Ponte Infante D. Henrique, Porto |
«Podemos pois distinguir diferentes momentos no processo de instauração do liberalismo em Portugal: um primeiro período liberal (1820-1823) dominado pelas Cortes que decretaram as primeiras reformas e votaram uma Constituição; uma reacção absolutista (1823-1826), que aboliu a Constituição e anulou as reformas; um período liberal (1826-1828), a seguir à morte do rei João VI, durante o qual se adoptou a Carta outorgada aos portugueses por D. Pedro, imperador do Brasil e herdeiro do trono de Portugal; uma nova reacção absolutista (1828-1834) que se desencadeou logo após o desembarque de D. Miguel, em Lisboa; e por fim a guerra civil (1832-1834), que terminou com a vitória definitiva dos liberais adeptos da carta outorgada por D. Pedro em 1826. Outras manifestações menores de guerra civil se verificaram, especialmente em 1823, 1826 e 1828.» (Victor de Sá)
Quase parece estarmos diante de uma descrição da alternância de poder entre o PS e o PSD depois do 25 de Abril de 1974: um faz uma coisa e o outro logo a seguir desfaz tudo, sendo o resultado final deste jogo de forças que se anulam reciprocamente a conservação do status quo. Portugal faz muitas revoluções sem consumar nenhuma delas: descobrir a razão de fundo do fracasso das mudanças sociais portuguesas é desconstruir a História de Portugal, tendo em vista esboçar uma filosofia da história capaz de nomear o mal radical que capturou os destinos deste triste, malévolo e feio país. Quando analisa as contradições e as inconsequências das Cortes, Victor de Sá aproxima-se diversas vezes da nomeação desse mal radical que limita e castra o alcance das reformas: «Além disso, se a Constituição votada consagrava o princípio segundo o qual a soberania reside na nação inteira e a lei é igual para todos os cidadãos, a nobreza do Antigo Regime não foi efectivamente despojada do seu poderio económico e da sua influência na sociedade: a eleição de novos deputados para as Cortes de 1823 trouxe a elas partidários do Antigo Regime (Acúrcio das Neves, por exemplo)». E, logo a seguir quando analisa o golpe de Estado da Vilafrancada, acrescenta: «Perante a maneira como os acontecimentos se desenrolaram, o golpe de Estado torna bem saliente um dos caracteres mais incisivos do liberalismo português: a encarniçada hostilidade da grande burguesia liberal por toda e qualquer expressão democrática na vida política. Trata-se de um antagonismo que define todo o período do liberalismo em Portugal. Os grandes proprietários de terras, os chefes militares e, enfim, na sua generalidade, a nobreza liberal são, nessa época, e sê-lo-ão sempre - havemos de verificá-lo -, os mais tenazes inimigos das aspirações populares, tanto no domínio político como no económico». A ideia-chave resume-se nesta frase lapidar: «a burguesia liberal portuguesa não renunciou de forma alguma a viver a expensas das rendas fundiárias, da mesma maneira que os antigos senhores feudais», e muitos dos seus membros receberam dos reis títulos de nobreza. No essencial, Victor de Sá não se afasta muito da verdade quando reduz o liberalismo em Portugal a duas características: o atraso no despertar do liberalismo no nosso país (1) e a falta de vigor revolucionário da burguesia liberal portuguesa (2), que, juntamente com a nobreza, se rendeu aos exércitos napoleónicos, jurando fidelidade à França, para não realizar as mudanças das estruturas políticas e económicas. O medo a toda a mudança social constitui um traço estrutural das classes dirigentes portuguesas.
Vitorino Magalhães Godinho critica a obra de Victor de Sá (1969) - A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestações das Ideias Socialistas em Portugal (1820-1852) - dizendo simplesmente: «Contestável na interpretação (não é período de "crise" do liberalismo mas sim de crescimento) e com deficiências». Não pretendo fazer a defesa da tese de Victor de Sá, cujas deficiências reconheço, mas as suas ideias nucleares encontram-se presentes na obra de Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1977), onde analisa as três impossibilidades do século XIX português, sem no entanto referir o papel reaccionário das classes dirigentes portuguesas ao longo da nossa história: o que quer dizer que a obra de Victor de Sá fornece mais pistas para desconstruir a História de Portugal do que a de Magalhães Godinho, cujo conceito de crescimento do liberalismo não é compatível com a sua própria hipótese de trabalho. Infelizmente, ambos os historiadores portugueses ficaram prisioneiros de uma noção vaga de liberalismo, aceitando acriticamente a identidade entre liberalismo e capitalismo estabelecida por Alexandre Herculano, cuja concepção de liberalismo era muito pouco democrática. Ambos lamentaram o estado deficiente da historiografia portuguesa em relação ao período do liberalismo em Portugal, criticando aquilo a que Victor de Sá chamou a concepção burguesa da história (Oliveira Martins) ou a história escrita do ponto de vista dos vencedores (Luz Soriano), mas, quando chegou a hora de fazer a história desse período, vemos emergir as figuras de historiadores franceses, como por exemplo Albert Silbert e Frédéric Mauro: o que deveria ter sido feito pelos historiadores portugueses foi realizado pelos historiadores franceses que, aprendendo a língua portuguesa, souberam interpretar com espírito crítico os documentos abandonados nos arquivos nacionais e estrangeiros. Da obra de Albert Silbert destaco dois brilhantes ensaios: Portugal perante a política francesa (1799-1814), onde integra o liberalismo português no seu contexto europeu, de modo a mostrar que as invasões francesas tiraram a Portugal as possibilidades do progresso económico, e Cartismo e Setembrismo, onde recorre à correspondência dos cônsules franceses para caracterizar a vida política no Porto de 1836-1839. Dois ensaios seminais que, não sendo estranhos à obra de Victor de Sá, lhe retiram a base de apoio argumentativo que usa para justificar as suas próprias lacunas historiográficas e teóricas. Victor de Sá estava na posse de todos os instrumentos teóricos para escrever a História do Liberalismo em Portugal, mas precipitou-se na direcção das ideias socialistas, sem compreender que a crise do liberalismo implicava necessariamente a crise do socialismo. Nem sequer Armando Castro conseguiu abastecer a história feita por Victor de Sá com as noções económicas necessárias para a compreensão da temporalidade diferencial de cada uma das estruturas que compõem um determinado modo de produção. Quando destaca o papel da juventude intelectual na instauração do liberalismo em Portugal, Victor de Sá coloca inadvertidamente o dedo na ferida: o desfasamento temporal entre as ideologias e as estruturas económica e política. Perante este desfasamento entre o avanço temporal da ideologia e o tempo retardado da economia, os intelectuais portugueses já deviam ter aprendido que as revoluções só são bem-sucedidas quando alteram profundamente a estrutura económica. Ora, se a estrutura económica sofre alterações sem mudar substancialmente o jogo de forças políticas em acção na sociedade portuguesa, então todas as ideologias - liberalismo ou socialismo - estão condenadas ao fracasso: as classes dirigentes em Portugal bloqueiam o desenvolvimento do país em qualquer uma das direcções ideológicas. Em Portugal, a modernidade é crise - crise do liberalismo, crise do socialismo - num sentido absolutamente reaccionário: as classes dirigentes não abrem mão dos seus privilégios e da esfera do poder político, sem o qual não são nada. Portugal é, portanto, refém das suas próprias classes dirigentes, as quais - como demonstrou Victor de Sá - são submissas em relação às forças estrangeiras e aos seus interesses. Os políticos portugueses sacrificam facilmente o interesse nacional, fazendo alianças negras com os interesses estrangeiros, de modo a conservar nas suas mãos a regalia de dividir entre si os recursos nacionais, aqueles que dizem ser "escassos". O exemplo mais flagrante dessa submissão foi, neste período, a própria Independência do Brasil, uma imposição inglesa, após a qual o novo Estado Brasileiro assinou tratados de comércio com a Inglaterra (Outubro de 1825) e a França (Janeiro de 1826), com D. Pedro a atiçar os brasileiros contra os portugueses.
J Francisco Saraiva de Sousa
Quase parece estarmos diante de uma descrição da alternância de poder entre o PS e o PSD depois do 25 de Abril de 1974: um faz uma coisa e o outro logo a seguir desfaz tudo, sendo o resultado final deste jogo de forças que se anulam reciprocamente a conservação do status quo. Portugal faz muitas revoluções sem consumar nenhuma delas: descobrir a razão de fundo do fracasso das mudanças sociais portuguesas é desconstruir a História de Portugal, tendo em vista esboçar uma filosofia da história capaz de nomear o mal radical que capturou os destinos deste triste, malévolo e feio país. Quando analisa as contradições e as inconsequências das Cortes, Victor de Sá aproxima-se diversas vezes da nomeação desse mal radical que limita e castra o alcance das reformas: «Além disso, se a Constituição votada consagrava o princípio segundo o qual a soberania reside na nação inteira e a lei é igual para todos os cidadãos, a nobreza do Antigo Regime não foi efectivamente despojada do seu poderio económico e da sua influência na sociedade: a eleição de novos deputados para as Cortes de 1823 trouxe a elas partidários do Antigo Regime (Acúrcio das Neves, por exemplo)». E, logo a seguir quando analisa o golpe de Estado da Vilafrancada, acrescenta: «Perante a maneira como os acontecimentos se desenrolaram, o golpe de Estado torna bem saliente um dos caracteres mais incisivos do liberalismo português: a encarniçada hostilidade da grande burguesia liberal por toda e qualquer expressão democrática na vida política. Trata-se de um antagonismo que define todo o período do liberalismo em Portugal. Os grandes proprietários de terras, os chefes militares e, enfim, na sua generalidade, a nobreza liberal são, nessa época, e sê-lo-ão sempre - havemos de verificá-lo -, os mais tenazes inimigos das aspirações populares, tanto no domínio político como no económico». A ideia-chave resume-se nesta frase lapidar: «a burguesia liberal portuguesa não renunciou de forma alguma a viver a expensas das rendas fundiárias, da mesma maneira que os antigos senhores feudais», e muitos dos seus membros receberam dos reis títulos de nobreza. No essencial, Victor de Sá não se afasta muito da verdade quando reduz o liberalismo em Portugal a duas características: o atraso no despertar do liberalismo no nosso país (1) e a falta de vigor revolucionário da burguesia liberal portuguesa (2), que, juntamente com a nobreza, se rendeu aos exércitos napoleónicos, jurando fidelidade à França, para não realizar as mudanças das estruturas políticas e económicas. O medo a toda a mudança social constitui um traço estrutural das classes dirigentes portuguesas.
Vitorino Magalhães Godinho critica a obra de Victor de Sá (1969) - A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestações das Ideias Socialistas em Portugal (1820-1852) - dizendo simplesmente: «Contestável na interpretação (não é período de "crise" do liberalismo mas sim de crescimento) e com deficiências». Não pretendo fazer a defesa da tese de Victor de Sá, cujas deficiências reconheço, mas as suas ideias nucleares encontram-se presentes na obra de Magalhães Godinho, Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1977), onde analisa as três impossibilidades do século XIX português, sem no entanto referir o papel reaccionário das classes dirigentes portuguesas ao longo da nossa história: o que quer dizer que a obra de Victor de Sá fornece mais pistas para desconstruir a História de Portugal do que a de Magalhães Godinho, cujo conceito de crescimento do liberalismo não é compatível com a sua própria hipótese de trabalho. Infelizmente, ambos os historiadores portugueses ficaram prisioneiros de uma noção vaga de liberalismo, aceitando acriticamente a identidade entre liberalismo e capitalismo estabelecida por Alexandre Herculano, cuja concepção de liberalismo era muito pouco democrática. Ambos lamentaram o estado deficiente da historiografia portuguesa em relação ao período do liberalismo em Portugal, criticando aquilo a que Victor de Sá chamou a concepção burguesa da história (Oliveira Martins) ou a história escrita do ponto de vista dos vencedores (Luz Soriano), mas, quando chegou a hora de fazer a história desse período, vemos emergir as figuras de historiadores franceses, como por exemplo Albert Silbert e Frédéric Mauro: o que deveria ter sido feito pelos historiadores portugueses foi realizado pelos historiadores franceses que, aprendendo a língua portuguesa, souberam interpretar com espírito crítico os documentos abandonados nos arquivos nacionais e estrangeiros. Da obra de Albert Silbert destaco dois brilhantes ensaios: Portugal perante a política francesa (1799-1814), onde integra o liberalismo português no seu contexto europeu, de modo a mostrar que as invasões francesas tiraram a Portugal as possibilidades do progresso económico, e Cartismo e Setembrismo, onde recorre à correspondência dos cônsules franceses para caracterizar a vida política no Porto de 1836-1839. Dois ensaios seminais que, não sendo estranhos à obra de Victor de Sá, lhe retiram a base de apoio argumentativo que usa para justificar as suas próprias lacunas historiográficas e teóricas. Victor de Sá estava na posse de todos os instrumentos teóricos para escrever a História do Liberalismo em Portugal, mas precipitou-se na direcção das ideias socialistas, sem compreender que a crise do liberalismo implicava necessariamente a crise do socialismo. Nem sequer Armando Castro conseguiu abastecer a história feita por Victor de Sá com as noções económicas necessárias para a compreensão da temporalidade diferencial de cada uma das estruturas que compõem um determinado modo de produção. Quando destaca o papel da juventude intelectual na instauração do liberalismo em Portugal, Victor de Sá coloca inadvertidamente o dedo na ferida: o desfasamento temporal entre as ideologias e as estruturas económica e política. Perante este desfasamento entre o avanço temporal da ideologia e o tempo retardado da economia, os intelectuais portugueses já deviam ter aprendido que as revoluções só são bem-sucedidas quando alteram profundamente a estrutura económica. Ora, se a estrutura económica sofre alterações sem mudar substancialmente o jogo de forças políticas em acção na sociedade portuguesa, então todas as ideologias - liberalismo ou socialismo - estão condenadas ao fracasso: as classes dirigentes em Portugal bloqueiam o desenvolvimento do país em qualquer uma das direcções ideológicas. Em Portugal, a modernidade é crise - crise do liberalismo, crise do socialismo - num sentido absolutamente reaccionário: as classes dirigentes não abrem mão dos seus privilégios e da esfera do poder político, sem o qual não são nada. Portugal é, portanto, refém das suas próprias classes dirigentes, as quais - como demonstrou Victor de Sá - são submissas em relação às forças estrangeiras e aos seus interesses. Os políticos portugueses sacrificam facilmente o interesse nacional, fazendo alianças negras com os interesses estrangeiros, de modo a conservar nas suas mãos a regalia de dividir entre si os recursos nacionais, aqueles que dizem ser "escassos". O exemplo mais flagrante dessa submissão foi, neste período, a própria Independência do Brasil, uma imposição inglesa, após a qual o novo Estado Brasileiro assinou tratados de comércio com a Inglaterra (Outubro de 1825) e a França (Janeiro de 1826), com D. Pedro a atiçar os brasileiros contra os portugueses.
J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
Quando um português nos diz que temos "excesso de EGO", devemos ficar felizes: ter EGO é ser diferente da manada de burrinhos. :)
Oh, não encontro o livro Constituições Portuguesas de Marcelo Caetano: sim, aprecio as obras dele! :)
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