quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Portugueses e o Mito do Bom Selvagem

The Death of General Wolfe (1771):
o índio norte-americano idealizado.
«Corre mundo desde longa data a teoria da participação portuguesa na génese do mito do "bom selvagem". Numa forma ou noutra, tornou-se quase um dogma histórico da cultura luso-brasileira. Do jornalismo passou ao ensaio; e agora mandarina nas dissertações e nas cátedras. Tal é o prestígio dos grandes mitos! E os mitos científicos, sobretudo pseudo-científicos, não fazem excepção à regra do lugar comum oficioso... /Não foi importante ou representativo o papel desempenhado pelos portugueses - e sobretudo pelos seus intelectuais - na formação do mito do "bom selvagem". Nem Duarte Pacheco Pereira, nem João de Barros, nem André de Resende, nem Damião de Góis ou Jerónimo Osório, nem Francisco de Andrade, nem António Galvão ou Fernão Mendes Pinto, e nem mesmo Gaspar Correia, Diogo do Couto, Fr. João dos Santos, ou qualquer outro da sua estirpe, tiveram olhos para esse mito ou, no mínimo, para os pressupostos desse mito. /Verificou a lusa gente a existência de variadíssimas crenças religiosas na superfície do globo. E sem dúvida que a verificação poderia levar ao conceito de religião natural. Assim repercutiu nalguns intelectuais e observadores de outros países. O certo, porém, é que não desembocou nesse resultado logo às primeiras, como a simples cronologia o documenta. E em todo o caso, é positivo que apenas induziu os portugueses ao reconhecimento da inferioridade das populações distantes.» (J. S. da Silva Dias)

Em 1937, Afonso Arinos de Mello Franco publicou a sua obra O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, onde elabora a hipótese da participação portuguesa na génese do mito do bom selvagem. A visão do índio esboçada por Mello Franco é demasiado romântica, como se o índio fosse um ser naturalmente bom. J. S. da Silva Dias impugna esta visão, alegando que, além de confundir os planos históricos dos séculos XVI e XVIII, erra quando atribuí ao índio brasileiro um papel na formação do mito do bom selvagem na mente política de Jean-Jacques Rousseau. Silva Dias até pode ter alguma razão quando defende a marginalidade portuguesa ao mito, mas o seu conceito da frustração cultural da expansão portuguesa retrata mais a sua própria incapacidade para elucidar o mito do bom selvagem do que a surdez lusitana às ressonâncias do pensamento vindas de além-Pirenéus: ele esquece que o mito do bom selvagem está por detrás de uma das maiores filosofias políticas do Ocidente. Há muitas maneiras de interpretar e de avaliar o mito do bom selvagem, o qual não funciona do mesmo modo em Montaigne (1592), em Lafitau (1740), em Diderot (1784) e em Rousseau (1778). Os portugueses quinhentistas não elaboraram um mito do bom selvagem, no sentido de terem descoberto nos povos primitivos algum princípio que lhes permitisse realizar uma crítica da civilização: os portugueses foram sempre mais difusores do que críticos da civilização. Silva Dias opõe ao mito do bom selvagem a ideologia colonialista do mau selvagem que atribui aos portugueses, sobretudo aos jesuítas. No plano em que se situa este confronto, somos forçados a louvar o realismo português: os índios brasileiros não eram seres inocentes, vivendo num estado natural avesso à guerra e aos actos de agressão. Mas qual é a função desempenhada pelo índio no mito do bom selvagem tal como o analisou Rousseau? Acreditaria Rousseau no seu bom selvagem? Silva Dias trabalha com uma cronologia ampla, que vai do século XVI até ao século XVIII, mas, quando ataca as posições dos outros, tende a estreitá-la de modo a descontextualizar as teses adversárias. Os intelectuais portugueses dos Descobrimentos não podem ser racionalmente acusados de não terem antecipado a obra filosófica e política de Rousseau ou de não terem escrito os Ensaios de Montaigne: eles escreveram outras obras fabulosas sobre o descobrimento do mundo, dos seus habitantes indígenas e dos seus costumes, sobre os quais forneceram imagens-retratos que reflectem diversas tonalidades em função do seu nível de desenvolvimento cognitivo e social. Abraçando a cronologia de Silva Dias, no fundo a cronologia do desenvolvimento do mito moderno do bom selvagem, verificamos que os portugueses não elaboraram sempre o mesmo retrato do "selvagem" como ser "bárbaro". Silva Dias esquece que, «antes de ser descoberto, o selvagem foi primeiro inventado» (G. Cocchiara, 1948): o mito moderno do bom selvagem mais não é do que a revalorização, radicalmente secularizada, de um mito muito mais antigo, o mito do Paraíso Terrestre e dos seus habitantes nos tempos fabulosos que precederam a História (Mircea Eliade). Seria este último mito estranho aos portugueses quando se lançaram à descoberta do mundo? Basta ler a obra do padre António Vieira - o homem que defendeu a "causa" dos índios brasileiros - para constatar o contrário. E, se lermos Camões, reencontramos esse mito - numa versão mais erótica, é certo! - no canto IX d'Os Lusíadas. A utopia erótica de Camões deve ser colocada ao lado das grandes utopias da Renascença: ela desmente a tese de que os portugueses eram insensíveis às belezas naturais e humanas - ou, como se dizia na altura, às formosuras - dos Trópicos. A História de Portugal está cheia de buracos: os historiadores e os intelectuais portugueses projectam a sua indigência mental e cognitiva sobre o passado histórico dos portugueses, esquecendo que estes entraram em contacto com outras culturas e civilizações sem complexos de inferioridade: eles protagonizavam a história universal. A mente lusitana do nosso tempo é de tal modo raquítica que empobrece invejosamente todo o passado de Portugal: a rememoração - a anamnese de Platão que prolonga o mito arcaico - tornou-se um exercício de auto-flagelação. Toda a obra de Silva Dias sobre a cultura portuguesa do século XVI é, filosoficamente falando, medíocre: as limitações intelectuais de Silva Dias - o homem que simula imitar o pensamento vindo de além-Pirenéus - não podem ser atribuídas, através do contágio retrospectivo da inveja, aos intelectuais portugueses dos Descobrimentos, cujas obras ainda não foram analisadas por uma inteligência superior: os intelectuais franceses tão invejados por Silva Dias fizeram com os seus "antepassados" aquilo que Silva Dias foi incapaz de fazer com os seus - valorizaram-nos, reactualizando o seu pensamento e integrando-o na corrente das ideias: o que quer dizer que admiro mais a ousadia do empreendimento de Mello Franco do que a cobardia intelectual de Silva Dias, embora saiba que o índio subjacente ao mito do bom selvagem não era o índio brasileiro mas o índio norte-americano, na terra do qual esse mito se transformou em teoria do progresso.


Bibliografia de alguns dos intelectuais portugueses dos Descobrimentos:


1. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de situ Orbis, Lisboa, 1905.
2. João de Barros, Décadas, 9 vols., Lisboa, 1777-78.
3. André de Resende, De Antiquitatibus Lusitaniae coeteraque historica, quae extant, opera, 2 vols., Coimbra, 1790.
4. Damião de Góis, Opúsculos Históricos, Porto, 1945.
5. António Galvão, Tratado dos Descobrimentos, Porto, 1944.
6. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, 2 vols., Lisboa, 1996.
7. Garcia da Orta, Colóquio dos Simples e das Drogas e cousas da Índia, 2 vols., Lisboa, 1891.
8. Gomes Eanes da Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Coimbra, 1915.
9. Gomes Eanes da Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné ou Crónica da Conquista de Guiné, Porto, 1972.
10. Rui de Pina, Crónica d'el-rei D. João II, Coimbra, 1950.
11. Livro da Côrte Imperial, 2 vols., Porto, 1910.
12. Padre António Vieira, Obras Escolhidas: Cartas & Sermões, 12 vols., Lisboa, 1997.
13. Pêro Vaz de Caminha, Carta de Achamento do Brasil, Lisboa, 1940.
14. Luís de Camões, Os Lusíadas, Lisboa, 1928.
15. Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil e mais escritos, Coimbra, 1955.
16. Novas Cartas Jesuíticas, São Paulo, 1940.
17. Carlos Malheiros Dias, dir., História da Colonização Portuguesa do Brasil, 3 vols., Porto, 1921-26. (Monumental e repleta de excelentes documentos.)
18. D. João de Castro, Roteiro de Goa a Suez ou do Mar Roxo, Lisboa, 1940.
19. D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, Lisboa, 1940.
20. D. João de Castro, Roteiro de Goa a Diu, Lisboa, 1940.
21. Abel Fontoura da Costa, Às Portas da Índia em 1484, Lisboa, 1935. (Contém boa documentação.)
22. Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, 4 vols., Coimbra, 1949-55.
23. Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia, 4 vols., Coimbra, 1924-33. (Monumental e repleta de informação.)


J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Se os portugueses não protestarem com força, o próximo orçamento de Estado - 2012 - vai comê-los vivos! Um povo passivo não tem futuro, excepto a Morte!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Português = lixo. :((

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está concluído! Voltarei a este tema noutra oportunidade.