Reitoria da Universidade do Porto |
«A crítica da ideologia ou histórica liga-se à sociedade actual em nome da sociedade futura e atribui as injustiças ao princípio de que o capitalismo e a propriedade privada trazem consigo o fatalismo da exploração, do imperialismo e da guerra e traça o esboço de uma ordem totalmente nova em que o homem realizará a sua vocação». (Raymond Aron)
Em Portugal, todos temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. Segundo Georges Lefebvre, a fome despertou os franceses para a Revolução de 1789: a fome é o mais universal de todos os instintos universais, porque é a fome que nos leva a conservar a nossa vida - o suum esse conservare de Espinosa! - e que põe os restantes instintos em movimento. Freud enganou-nos quando estabeleceu o instinto sexual como o mais primário e o mais forte de todos os instintos: nós podemos viver sem satisfazer o instinto sexual ou mesmo sem o sublimar, mas não podemos viver sem saciar a nossa fome. A fome que foi silenciada por Freud, a busca de alimentos é, conforme mostrou Ernst Bloch - o apetite comum a todas as criaturas vivas, do qual procedem os outros instintos imediatos e as tendências acompanhadas da percepção, isto é, os movimentos do sentimento e as emoções. Ora, ainda segundo Bloch, a esperança é o afecto mais importante, o modo humano do instinto de conservação. A esperança é, portanto, algo biologicamente constitutivo da existência humana e, quando é frustrada, tende a tornar-se activa como impulso de auto-expansão para diante. A fome renova-se constantemente e cresce de modo ininterrupto. Ora, quando não tem nenhuma perspectiva de pão seguro, como sucede hoje em Portugal, revolta-se e procura mudar a situação: emerge assim o interesse revolucionário que diz não ao mal-existente e que diz sim ao futuro antecipado. A privação de alimentos faz da fome uma docta fames, uma fome esclarecida e instruída que converte a auto-conservação em auto-expansão, estimulando os sonhos diurnos de uma vida melhor. A referência à teoria da docta spes de Bloch revela a actualidade da sua filosofia da esperança, ao mesmo tempo que trava o canto de triunfo neoliberal de Raymond Aron: o capitalismo não sacia a fome dos famintos. A Queda do Muro de Berlim teve diversas consequências desastrosas para o mundo e, em especial, para o Ocidente, uma das quais foi a alteração da geopolítica da fome, para usar a expressão de Josué de Castro: a fronteira da fome subiu para a Europa (Adriano Moreira) e, neste momento de crise, a fome está instalada na Europa mediterrânica. O colapso do comunismo permitiu ao capitalismo regressar triunfal e explicitamente àquilo que sempre foi: um sistema de exploração do homem pelo homem. Mas com uma agravante: a ascensão da classe dos gestores e dos economistas neoliberais fortaleceu de tal modo o capital financeiro que destruiu o tecido produtivo dos países, como se pudéssemos viver indefinidamente do cartão de crédito - da expansão do crédito - que alimentou a gula irracional dos banqueiros, dos especuladores e dos mercados financeiros. Com estas escassas indicações, subverto - invertendo-a - a tese elaborada por Aron: o ópio dos intelectuais - antes e, sobretudo, depois da Queda do Muro de Berlim - não é o marxismo mas o próprio neoliberalismo que os privou de uma perspectiva de futuro, como se acreditassem que o capitalismo fosse capaz de satisfazer uma agenda de meras reivindicações, incluindo a reivindicação dos direitos dos animais, no quadro da própria sociedade capitalista. Os intelectuais de esquerda viveram alienados até ao estalar da crise de 2008: eles limitaram-se a reivindicar direitos sem questionar o próprio capitalismo. A crise de 2008 apanhou-os completamente nus e desprevenidos: o capitalismo mundial ameaça privá-los de todos os direitos adquiridos e eles não têm alternativas, porque, abismados na sua alucinação mágica, deixaram de exercer a crítica da ideologia. Os intelectuais alucinados traíram a humanidade e o mundo: eles são co-responsáveis pela miséria presente. Entregue a si mesmo e à sua própria ideologia da auto-regulação do mercado, o capitalismo gera ininterruptamente pobreza e miséria. Não é possível pensar um mundo novo fora do marxismo adulto: estamos, portanto, condenados a ser de algum modo marxistas, no sentido de estarmos empenhados na tarefa de pensar alternativas ao capitalismo, o grande mal-existente que conduz a aventura humana à catástrofe. A Grande Esperança (Jean Fourastié) depositada na capacidade do capitalismo para abolir a pobreza, através do desenvolvimento tecnológico e do aumento da produtividade, converteu-se, no nosso tempo mental e cognitivamente indigente, em pesadelo: o capitalismo não pode abolir aquilo que ele próprio gera, a desigualdade social, a pobreza, a miséria e a guerra. As expressões capitalismo da esperança ou o seu equivalente mais recente - capitalismo da felicidade, este monstro ideológico pensado pela economia comportamental, são oxímoros: onde há capitalismo não há esperança ou felicidade possível; o capitalismo é o mal-existente, contra o qual devemos lutar incondicionalmente. A abundância dos economistas burgueses é hoje pobreza, não só material mas também espiritual, porque a condição operária - o trabalho - foi combatida em nome de uma falsa ociosidade que privou os homens do seu próprio espírito: a intervenção dos economistas na esfera política foi e é fatal para o espírito humano. Doravante, o poder político esclarecido deve livrar-nos das manipulações e das engenharias financeiras dos economistas e dos gestores: a grande política deve afastar a economia do poder, de modo a romper com a política-gestão.
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O título deste texto introdutório a uma temática que me preocupa há muito tempo é tributário do título de uma obra de Julien Benda: La Trahison des Clercs. Mas o seu motivo foi-lhe dado pela obra de Raymond Aron, L'Opium des Intellectuels. Com efeito, estou mais preocupado com a traição dos intelectuais do que com a traição dos clérigos. Por vezes, tenho proposto esquecer activamente as obras produzidas pelos intelectuais nas últimas três ou quatro décadas, mas o esquecimento não nos livra da responsabilidade: o melhor método é confrontá-los com o mundo que ajudaram a construir com o seu silêncio em relação ao próprio capitalismo. Os intelectuais de esquerda destas últimas décadas escutaram mais a voz de Aron do que a voz de Marx: a reformulação da agenda política de esquerda que operaram capitula perante o capitalismo, legitimando a ambição global da agenda neoliberal que nos mergulhou nesta crise profunda. Sem disso terem consciência, os intelectuais funcionaram como lacaios ideológicos da ambição desmesurada dos economistas neoliberais e dos gestores. É possível atribuir esta relevância da economia na sociedade ao próprio Marx, mas o seu posicionamento político revolucionário afasta-o da responsabilidade de ter fornecido uma caução - antes do tempo - à intervenção desastrosa dos economistas na esfera da política. A agenda política reivindicativa desta esquerda decadente que rompeu com a sua tradição histórica e teórica é que lhes deu - aos economistas neoliberais - todos os motivos para gerir a economia, a sociedade, a cultura e o mundo da vida, de modo a satisfazer reivindicações que carecem de sentido: a esquerda reivindicativa afundou-se na sua própria masturbação mental, sendo tão culpada como a direita pela actual situação de miséria. A situação ideológica da esquerda decadente é hoje aporética: o capitalismo que ontem lhe satisfez grande parte das suas reivindicações é o mesmo capitalismo que hoje as quer abolir. Enfim, a esquerda está sem projecto político, incapaz de auxiliar os novos famintos nos seus movimentos de indignação. Henri Lefebvre já nos tinha alertado para esse perigo de andar nu nas praças das manifestações de protesto quando escreveu Contra os Tecnocratas: os economistas ameaçam o destino dos intelectuais. Não admira que tenham inventado Bolonha, o coveiro da universidade.
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O leitor que conhece a minha teoria apocalíptica da História pergunta-me como posso reconciliá-la com a filosofia da esperança de Ernst Bloch. Caro leitor, a fome não me afasta de Bloch, cuja fenomenologia da consciência antecipadora pode ser integrada no seio da minha antropologia fundamental do homem como ser-sem-abrigo. A única diferença que nos separa é que eu - sendo um filósofo nocturno - já não acredito na possibilidade de construir aqui na Terra uma sociedade comunista que fecharia as portas à história, sendo portanto a sua conclusão: estamos condenados a fazer história sem poder controlar os efeitos da nossa acção, na certeza de que o nosso destino derradeiro é a catástrofe. Um filósofo nocturno como eu nunca perde o bom-senso. Ao abdicar da utopia do non omnis confundar rendo-me inteiramente à Morte e à caducidade do mundo, dizendo aos meus companheiros de jornada que as mandíbulas da morte pulverizam tudo, incluindo o espírito humano. Um filósofo nocturno como eu sabe que não pode olhar para a Morte e a Caducidade a partir de um ponto extraterritorial do meu próprio núcleo existencial: a minha condição mortal não me permite exigir a ressurreição dos mortos e alimentar as almas mortais com imagens de esperança contra a morte. Somos - cada um de nós - morte adiada: a morte que cada um é não pode ser exterior a si própria; a extraterritorialidade frente à morte e à caducidade do mundo é uma perspectiva desesperada de um ser que não se suporta a si próprio e, portanto, de um ser incapaz de vencer o medo para se libertar - aqui e agora - da tirania do Outro, neste caso do Capital. A filosofia nocturna convida o homem a arriscar a sua vida, de modo a garantir alguma dignidade. Deste modo, privo a esperança da confiança: nada nos pode salvar da nossa própria morte e da catástrofe. O máximo que podemos tentar fazer é adiar tanto quanto possível o nosso final trágico: quer dizer que, antecipando a morte e a catástrofe, somos levados a agir de modo a adiá-las, recusando sacrificar a humanidade mortal para satisfazer o egoísmo de meia dúzia de carrascos mortais, os senhores das bolsas. Não havendo salvação possível, nada nos impede de matar os opressores ou, simplesmente, de nos matarmos. Há mundo e fomos lançados nele sem ter sido previamente consultados: o ser que é, deste modo violento, lançado num mundo que não escolheu pode, pelo menos, decidir a sua própria morte. O suicídio consciente é o único acto livre que nos liberta da farsa do mundo. Ou então pode decidir lutar pela construção de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não há salvação para o homem e para o mundo. A solidariedade em torno da morte impede-nos de ser solidários com os exploradores e os opressores. Como dizia Marx, a violência é a parteira da História. No dia em que o homem perder o medo e aprender a viver sabendo que não tem salvação possível, nessa noite iluminada pela Lua o homem será livre para negar ser oprimido numa vida que não pertence a ninguém, nem a Deus.
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça, mas nem todos têm fome de conhecimento. Mas esta é já outra questão, cuja resposta exige uma clarificação da ontologia fundamental subjacente à Filosofia Nocturna. Como ainda não a quero partilhar convosco, reconduzo para o início do texto, propondo assim uma leitura em circuito fechado. Adeus companheiros de triste jornada: o anoitecer é o momento em que me fecho em mim mesmo. À meia-noite estou no máximo das minhas potências filosofantes nocturnas: Eu que sou o filósofo da funda meia-noite!
J Francisco Saraiva de Sousa
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O título deste texto introdutório a uma temática que me preocupa há muito tempo é tributário do título de uma obra de Julien Benda: La Trahison des Clercs. Mas o seu motivo foi-lhe dado pela obra de Raymond Aron, L'Opium des Intellectuels. Com efeito, estou mais preocupado com a traição dos intelectuais do que com a traição dos clérigos. Por vezes, tenho proposto esquecer activamente as obras produzidas pelos intelectuais nas últimas três ou quatro décadas, mas o esquecimento não nos livra da responsabilidade: o melhor método é confrontá-los com o mundo que ajudaram a construir com o seu silêncio em relação ao próprio capitalismo. Os intelectuais de esquerda destas últimas décadas escutaram mais a voz de Aron do que a voz de Marx: a reformulação da agenda política de esquerda que operaram capitula perante o capitalismo, legitimando a ambição global da agenda neoliberal que nos mergulhou nesta crise profunda. Sem disso terem consciência, os intelectuais funcionaram como lacaios ideológicos da ambição desmesurada dos economistas neoliberais e dos gestores. É possível atribuir esta relevância da economia na sociedade ao próprio Marx, mas o seu posicionamento político revolucionário afasta-o da responsabilidade de ter fornecido uma caução - antes do tempo - à intervenção desastrosa dos economistas na esfera da política. A agenda política reivindicativa desta esquerda decadente que rompeu com a sua tradição histórica e teórica é que lhes deu - aos economistas neoliberais - todos os motivos para gerir a economia, a sociedade, a cultura e o mundo da vida, de modo a satisfazer reivindicações que carecem de sentido: a esquerda reivindicativa afundou-se na sua própria masturbação mental, sendo tão culpada como a direita pela actual situação de miséria. A situação ideológica da esquerda decadente é hoje aporética: o capitalismo que ontem lhe satisfez grande parte das suas reivindicações é o mesmo capitalismo que hoje as quer abolir. Enfim, a esquerda está sem projecto político, incapaz de auxiliar os novos famintos nos seus movimentos de indignação. Henri Lefebvre já nos tinha alertado para esse perigo de andar nu nas praças das manifestações de protesto quando escreveu Contra os Tecnocratas: os economistas ameaçam o destino dos intelectuais. Não admira que tenham inventado Bolonha, o coveiro da universidade.
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça. O leitor que conhece a minha teoria apocalíptica da História pergunta-me como posso reconciliá-la com a filosofia da esperança de Ernst Bloch. Caro leitor, a fome não me afasta de Bloch, cuja fenomenologia da consciência antecipadora pode ser integrada no seio da minha antropologia fundamental do homem como ser-sem-abrigo. A única diferença que nos separa é que eu - sendo um filósofo nocturno - já não acredito na possibilidade de construir aqui na Terra uma sociedade comunista que fecharia as portas à história, sendo portanto a sua conclusão: estamos condenados a fazer história sem poder controlar os efeitos da nossa acção, na certeza de que o nosso destino derradeiro é a catástrofe. Um filósofo nocturno como eu nunca perde o bom-senso. Ao abdicar da utopia do non omnis confundar rendo-me inteiramente à Morte e à caducidade do mundo, dizendo aos meus companheiros de jornada que as mandíbulas da morte pulverizam tudo, incluindo o espírito humano. Um filósofo nocturno como eu sabe que não pode olhar para a Morte e a Caducidade a partir de um ponto extraterritorial do meu próprio núcleo existencial: a minha condição mortal não me permite exigir a ressurreição dos mortos e alimentar as almas mortais com imagens de esperança contra a morte. Somos - cada um de nós - morte adiada: a morte que cada um é não pode ser exterior a si própria; a extraterritorialidade frente à morte e à caducidade do mundo é uma perspectiva desesperada de um ser que não se suporta a si próprio e, portanto, de um ser incapaz de vencer o medo para se libertar - aqui e agora - da tirania do Outro, neste caso do Capital. A filosofia nocturna convida o homem a arriscar a sua vida, de modo a garantir alguma dignidade. Deste modo, privo a esperança da confiança: nada nos pode salvar da nossa própria morte e da catástrofe. O máximo que podemos tentar fazer é adiar tanto quanto possível o nosso final trágico: quer dizer que, antecipando a morte e a catástrofe, somos levados a agir de modo a adiá-las, recusando sacrificar a humanidade mortal para satisfazer o egoísmo de meia dúzia de carrascos mortais, os senhores das bolsas. Não havendo salvação possível, nada nos impede de matar os opressores ou, simplesmente, de nos matarmos. Há mundo e fomos lançados nele sem ter sido previamente consultados: o ser que é, deste modo violento, lançado num mundo que não escolheu pode, pelo menos, decidir a sua própria morte. O suicídio consciente é o único acto livre que nos liberta da farsa do mundo. Ou então pode decidir lutar pela construção de um mundo melhor para todos, mesmo sabendo que não há salvação para o homem e para o mundo. A solidariedade em torno da morte impede-nos de ser solidários com os exploradores e os opressores. Como dizia Marx, a violência é a parteira da História. No dia em que o homem perder o medo e aprender a viver sabendo que não tem salvação possível, nessa noite iluminada pela Lua o homem será livre para negar ser oprimido numa vida que não pertence a ninguém, nem a Deus.
Temos fome, fome de alimentos, fome de emprego e fome de justiça, mas nem todos têm fome de conhecimento. Mas esta é já outra questão, cuja resposta exige uma clarificação da ontologia fundamental subjacente à Filosofia Nocturna. Como ainda não a quero partilhar convosco, reconduzo para o início do texto, propondo assim uma leitura em circuito fechado. Adeus companheiros de triste jornada: o anoitecer é o momento em que me fecho em mim mesmo. À meia-noite estou no máximo das minhas potências filosofantes nocturnas: Eu que sou o filósofo da funda meia-noite!
J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Olá, Francisco!
Só não percebi o título... em relação com o texto. De resto, claro. E espero que as manifs aí no Porto tenham sido levadas a cabo com vigor e continuem :)
Queria chamar a atenção a um livro recentemente publicado, uma Antologia de autores vários (Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa), a que dedico um texto no meu blog, pois que integro a Antologia com um conto de minha autoria. Fica aqui para os interessados:
http://soudefactoodiabo.blogspot.com/2011/10/os-anos-de-ouro-da-pulp-fiction.html
No final do meu texto encontra-se um link com um excerto da obra. Obrigado.
Abraços
Tiago:
Já tinha lido no teu blog via facebook, mas ainda não comprei o livro.
Abraço
Na boa, Francisco. Um abraço :)
O blog do Tiago Rosa está na lista de Actualizações: basta clicar e ver o livro. :)
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