quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Platão, Roca da Necessidade e Consciência Moral

Destino
«O célebre mito de Er, o homem que passou doze dias no Hades e que, não tendo bebido a água do rio Ameles (despreocupação) na planície do Letes (esquecimento), pode contar a grande viagem, contém uma nova tentativa de escatologia. Aí se encontram intimamente ligadas uma escatologia, aliás bem obscura, e uma teoria do destino humano. Na primeira, fala-se duma coluna de luz que atravessa o Céu e a Terra, e que liga os dois pólos, provavelmente o eixo do mundo; depois, da roca da necessidade, com a sua haste, o seu peso, por meio do qual se fazem todas as revoluções celestes; finalmente, da constituição desse peso, formado por oito botões, de dimensões e de cores diferentes, encaixados uns nos outros, não participando com igual velocidade do movimento da roca, dando cada qual uma nota diferente, e que representam, supondo-se a Terra no centro, o céu dos fixos, os cinco grandes planetas, e finalmente o Sol e a Lua. O que, além disso, há de mais interessante na escatologia propriamente dita é a concepção da predestinação das almas. Estas, em virtude do código penal que lhes é próprio, são admitidas de mil em mil anos, salvo o caso de faltas que exijam mais longa expiação, à escolha duma nova vida terrestre. Exemplares de vida, condições animais ou condições humanas, são postos diante delas, e o destino fixa para cada uma a categoria em que poderá escolher. Mas, como o número de lotes é superior ao das almas, a última não é gravemente lesada. É-lhes dito que cada uma tem a responsabilidade da sua escolha, e que Deus não intervém para nada, que cada uma delas terá, para a conduzir na vida, o demónio que a si própria terá dado. Enquanto expiavam as faltas da sua existência anterior, as almas não tinham esquecido esta. Estes antigos réprobos são, pois, prudentes na sua nova escolha. Mas, entre os bem-aventurados, aqueles que devem a sua felicidade, não à filosofia mas àquelas virtudes de acaso de que falava o Ménon, escolhem muitas vezes sem reflectir, e escolhem mal. Cada alma, feita a escolha, pode ler o seu destino inteiro, e esse destino é irrevogável, por estar ligado ao próprio movimento dos astros. Porque as Parcas são filhas da Necessidade: Láquesis, que preside à opção dos destinos; Cloto, que os fia; Átropos, que os sanciona, têm um papel no mecanismo das revoluções celestes. De resto, a passagem de cada alma, com o seu demónio guardião, sob o trono da Necessidade, indica suficientemente que nada mais lhe resta de ora avante senão sofrer sem apelo possível as consequências da escolha que fez antes de entrar na vida. Se escolheu mal, o seu único recurso será então, segundo parece, aprender com o filósofo a comportar-se bem perante o seu destino presente, e a ser capaz, quando essa hora voltar, de fazer melhor escolha.» (Léon Robin


«Não esperes jamais permanecer oculto quando cometeres qualquer acção desonesta; pois ainda que pudesses ocultar-te aos demais, terias em ti próprio a consciência da tua culpa». (Pseudo-Isócrates


Tenho sido acusado pelas mentes preguiçosas de estar a operar uma espécie de viragem conservadora na teoria crítica. Os indivíduos que me acusam de estar ideologicamente mais próximo de Paulo Portas do que de Karl Marx não sabem - tal é o imenso tamanho da sua ignorância diplomada! - que essa viragem conservadora da teoria crítica já foi realizada há muito tempo por Walter Benjamin. Escusado será dizer que os meus acusadores tendem a ser professores, estas estranhas criaturas que, tendo saído da universidade tal como tinham entrado, sem aprender nada de novo, se demitiram da sua missão de ensinar e de educar, abolindo do seu pobre vocabulário a palavra "castigo" para não estorvar a sua sede vampírica pela remuneração que lhes permite fazer viagens de fantasia sexual. O sistema de educação tem contribuído para o aumento da despesa pública sem no entanto produzir resultados positivos: a situação dos professores está mais próxima da situação dos juízes e dos magistrados públicos do que da situação dos profissionais da saúde. Pelos maus resultados que produzem, os professores não merecem o investimento que tem sido realizado na educação e na sua formação: a educação é um enorme buraco negro sem desculpa e sem justificação possível. Enquanto os médicos prestam excelentes cuidados de saúde, os professores e os magistrados destruíram completamente o sistema de educação e o sistema de justiça. Depois do 25 de Abril melhorámos substancialmente o sistema de saúde, mas o mesmo não pode ser dito em relação à educação e à justiça, os dois grandes fracassos da III República. A educação é um fracasso total e os seus agentes devem ser responsabilizados por esse fracasso: os professores não merecem o pão que comem, a água que bebem e o ar que respiram. Os professores são culpados pela degradação acelerada do sistema de ensino e de educação. Não adianta tentarem justificar o injustificável: o fracasso da educação denuncia a vossa culpa essencial e identifica-vos como pecadores que aboliram semanticamente o castigo para não serem castigados pelo vosso crime: a liquidação da cultura superior e da sua transmissão às novas gerações. Se ser conservador é ser guardador de lugar do conhecimento superior, então aceito o rótulo que me fixaram: sou conservador cultural. Mas isso não implica que tenha rompido com o pensamento político de Esquerda que desejo libertar da vossa presença medíocre. 


A propósito da culpa dos professores portugueses pela destruição da educação e da cultura, acabei por actualizar a teoria platónica da consciência moral. Platão desenvolveu a sua teoria em diversas obras, das quais destaco a que mais me interessa aqui - A República, cujo livro X expõe o mito de Er. A teoria da consciência moral de Platão compreende a consciência do pecado como perturbação interior da alma e a noção de infelicidade incurável do malvado que ousa obter no presente os seus maiores triunfos. Hoje, neste nosso tempo indigente e malvado, ninguém quer ouvir falar de pecado e de castigos: os malvados - nossos contemporâneos - retiveram de Platão apenas a sua noção de felicidade, dando-lhe um outro sentido que não se coaduna com o seu sentido originário. A preocupação pelo destino de além-túmulo está presente n'A República: a alma do mortal desperta para esta preocupação quando se aproxima do término da sua vida. Esta preocupação pela morte adquire o aspecto de terror ou de serenidade conforme a alma tenha consciência dos seus pecados ou das suas boas acções: as almas malvadas dos pecadores temem os tormentos infernais a que serão condenadas eternamente depois de mortas para a vida. Mas os terrores infernais só nos interessam enquanto estão ligados à consciência do pecado que leva os que pensam na morte a efectuar o seu exame de consciência. O mito de Er gira - quase todo ele - em torno da concepção da consciência de pecado como condenação interior e tormento da alma na vida presente: a consciência da responsabilidade apodera-se da alma daqueles mortais que temem a vida de além-túmulo. As almas que devem reencarnar são conduzidas à presença de Láquesis, filha de Ananke (Necessidade), que tem sobre os joelhos as sortes e os paradigmas das diversas formas de vida. Cada alma deve escolher livremente o seu exemplar de vida, tendo consciência da sua responsabilidade. O profeta que as dispõe por ordem e que apresenta os modelos de vida às almas para que escolham, adverte-as sobre a sua responsabilidade, dizendo-lhes: «Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efémeras, vai começar outro período portador de morte para a raça humana. Não é um génio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o génio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude (areté) não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O Deus é isento de culpa». Esta declaração de Láquesis é muito semelhante à descrição da criação e do destino das almas humanas apresentada no Timeu, embora a liberdade e a responsabilidade das almas sejam mais limitadas n'A República do que no Timeu. Uma vez realizada a escolha, o destino da alma na nova vida é selado pelas Parcas e pela sua mãe, a Necessidade: todas as consequências acarretadas pelo modelo de vida escolhido estão determinadas e a alma que, por causa da sua inexperiência ou cobiça, escolheu de forma apressada e estúpida o seu modelo de vida, encontra-se condenada ao mau destino. Léon Robin concluiu daqui que a fatalidade e a responsabilidade se opõem de tal modo que Platão tem dificuldade em as reconciliar. Porém, como demonstrou Werner Jaeger, a escolha do modelo de vida, além de ser o momento em que a alma afirma plenamente a sua responsabilidade, resulta da vida anterior: o homem deve preparar-se nesta vida presente para poder realizar livremente a escolha que fará na outra vida quando, após a sua peregrinação milenária, estiver disposto a descer novamente à Terra para viver uma vida superior ou inferior. Para Platão, o homem pode participar na obra da sua libertação, lutando pela conquista e pela conservação do caminho ascendente, de modo a completar a sua libertação plena numa nova vida. A predestinação não é, portanto, uma fatalidade transcendente e inelutável, mas "algo" adquirido como consequência da vida anterior: a consciência da vida anterior deve aguçar o sentido de responsabilidade do homem na vida presente. O homem pode resistir ao seu destino. No Timeu, Platão é peremptório quando afirma que as almas devem controlar os seus impulsos e as suas paixões para viver na justiça e não na iniquidade: o homem pode salvar-se desde que seja capaz de suportar todos os bens e todos os males, de modo a conservar-se no caminho ascendente. Possuir consciência vigilante da nossa responsabilidade e efectuar constantemente exame interior são os meios de que dispomos para seguir o caminho ascendente e, deste modo, conquistar a purificação libertadora. O destino do homem na vida mortal presente e na futura vida eterna consiste numa criação contínua da sua consciência moral, a única capaz de impedir a sua precipitação na condenação final. Ésquilo aborda de modo exemplar o problema da responsabilidade quando, em duas das suas obras, faz o coro expressar a convicção de que o homem pode e deve resistir ao impulso do "seu" daimon (demónio) e vencê-lo: a co-responsabilidade do daimon - o génio ou o guardião enviado por Láquesis para guardar a vida escolhida e fazer cumprir as coisas escolhidas pela alma no momento da reencarnação - não liberta e não onera o homem da sua própria responsabilidade. 


Para finalizar, convém dizer que a ética platónica está vinculada ao ensinamento de Sócrates, tal como o analisou Hannah Arendt: o mais vergonhoso não é sofrer a injustiça e a maldade, mas sim cometê-las, porque a alma viciada é o pior de todos os males. Eis um trecho do discurso de Sócrates extraído do Górgias de Platão: «Pois bem, ou se refuta a minha tese, demonstrando que não é pela posse da justiça e da temperança que os homens são felizes nem pela maldade que são infelizes, ou se aprova esta tese e se tiram dela as consequências. E estas consequências, Cálicles, são todas aquelas afirmações, a respeito das quais me perguntavas se eu falava a sério, quando dizia que, em caso de culpa, uma pessoa se deveria acusar a si própria, acusar um filho ou um amigo, e que era para isto que devia servir a retórica. E aquilo que supunhas que Polo admitia por vergonha era afinal verdadeiro, ou seja, que praticar a injustiça é não só mais feio como pior do que sofrê-las; igualmente verdadeiro que, para se ser um bom orador, é preciso ser justo e versado nas matérias da justiça, o que Polo dizia que Górgias me tinha concedido também por vergonha. (...) Sustento, Cálicles, que o mais vergonhoso não é eu ser esbofeteado injustamente nem ver o meu corpo mutilado ou a minha bolsa cortada; mais vergonhoso e pior é o facto de me baterem, mutilarem ou despojarem, porque roubarem-me, reduzirem-me à escravidão, entrarem à força em minha casa, numa palavra, cometerem contra mim e contra o que me pertence uma injustiça, é pior e mais vergonhoso para o que a pratica do que para mim que a sofro». (O Ministro das Finanças, Vítor Gaspar, devia ler o Górgias.) Seguindo a orientação predominante da ética antiga, a ética de Platão formula o problema moral como problema da felicidade, mas o seu conceito de felicidade opõe-se ao uso que dele fazem os malvados do nosso tempo. Em Platão, o centro e o critério da consciência moral residem na felicidade, entendendo-se aqui a consciência moral como consciência do dever e consciência do pecado que o viola. O homem deve sentir vergonha não pelo que fazem os outros, mas pelo que ele próprio faz. Sócrates distingue claramente duas formas de vergonha: a forma exterior mediante a qual sentimos vergonha pelos feitos dos outros e pelos seus preconceitos, e a forma interior mediante a qual nos envergonhamos pelos nossos próprios feitos e preconceitos. E, acompanhando o preceito pitagórico posteriormente retomado e aprofundado por Demócrito, Sócrates defende a passagem da forma exterior para a forma interior de vergonha: as consequências deste trânsito são a tranquilidade da consciência perante as ofensas sofridas, pelas quais o sujeito não é responsável, e a perturbação da consciência perante as ofensas que comete contra os outros, pelas quais é responsável. A partir do momento em que intervém a consciência moral, é mais vergonhoso para o sujeito cometer a injustiça do que a sofrer. N'A República, Platão mais não faz do que acentuar que a injustiça e a maldade constituem vícios da alma. O pior de todos os males é a injustiça que o sujeito comete contra os outros, a qual se converte em castigo de si próprio pelo facto de gerar discórdia interior e perturbação na sua consciência: o que quer dizer que a felicidade e a infelicidade não dependem do êxito exterior, porque aquele que logra os maiores êxitos exteriores à custa da maldade e da corrupção se encontra no fundo mais terrível do abismo moral. Porém, aquele que é vítima dessa maldade pela qual o carrasco obtém o seu êxito exterior recebe o seu verdadeiro prémio na aprovação e na tranquilidade da sua consciência: feliz é o homem honesto e bondoso. Para Platão, a felicidade encontra-se na razão inversa dos êxitos obtidos pelo justo e pelo injusto: «o justo é feliz, o injusto é miserável». Ao contrário do que se pensa, a ética de Platão não é uma ética da resignação: as vítimas de Wall Street - enfim, todas as vítimas! - não estão condenadas a sofrer a injustiça e a maldade dos mercados financeiros. Platão afirma que o castigo da injustiça não é aquele que a maior parte dos homens imaginam ser: os carrascos podem evitar o castigo exterior, ocultando as suas maldades ou comprando o parecer dos juízes, mas não conseguem evitar o castigo interior, aquele que se realiza no «interior» da sua consciência. A consciência do pecado implica o seu próprio castigo e o pecador só consegue aliviar esse tormento através da expiação. O castigo não é um mal, mas um benefício para o próprio culpado que, através da expiação, pode purificar e apaziguar a sua alma atormentada pelo pecado. A maior desgraça que pode acontecer ao criminoso é ocultar e evitar o castigo: a consciência moral é assim juiz e castigo interior inexorável e iniludível. O criminoso deve expiar pelos seus crimes, sofrendo o castigo humano aqui na Terra e o castigo divino no além-túmulo, o grande tormento eterno do inferno.


J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Começo a estar cansado da blogosfera!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mudei a configuração de alguns dos meus blogues - agora têm uma configuração dinâmica que pode ser alterada pelo utente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Enfim, nascemos, vivemos e morremos sozinhos: estamos profundamente sós!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E, pensando bem, até somos mais felizes e autênticos sozinhos do que acompanhados: o outro degrada-nos e priva-nos do nosso próprio convívio interior. A nosso maior amigo somos nós próprios.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Até escolhi uma boa imagem para acompanhar este texto. :)

O nosso maior amigo...*