segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Merleau-Ponty e o Habitar

«O Capital é uma "Fenomenologia do Espírito" concreta, isto é, trata indissoluvelmente do funcionamento da economia e da realização do homem". (Merleau-Ponty)
O conceito de habitar gira em torno de duas significações básicas: a de posse da casa e a de estado do próprio homem que se manifesta no habitar. No primeiro sentido, o habitar é compreendido como o habitar numa casa, e no segundo sentido, como a situação autêntica do próprio homem no espaço. A tematização do habitar possibilita descobrir que é no habitar que se concretiza verdadeiramente a relação do homem com o espaço e que esta espacialidade da vida humana permite, como viu Heidegger, apreender a essência do homem. Segundo Heidegger, ser homem consiste em habitar e o traço fundamental do habitar reside no resguardo de cada coisa na sua essência: "Resguardar a quadratura, salvar a terra, acolher o céu, aguardar os divinos, acompanhar os mortais, esse resguardo de quatro faces é a essência simples do habitar" (Heidegger).
Coube a Maurice Merleau-Ponty utilizar frequentemente o conceito de habitar na direcção mais vasta do segundo sentido e a torná-lo o conceito-chave para explicitar a relação do homem com o mundo e com a vida, embora não tenha reflectido explicitamente sobre a essência do habitar, tal como fez Heidegger. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar num sentido tão geral que chega a dizer que os homens habitam o ser. "Habitar o ser" designa a nova relação com o ser, que se opõe à objectividade científica que, em vez de habitar íntima e tranquilamente as coisas, procura manipulá-las. Na sua poética do devaneio, Bachelard apreende esta nova relação com as coisas, a partir da dualidade profunda da psique humana que Jung colocou sob o duplo signo de um animus e de uma anima: «Amar as coisas em função do seu uso é próprio do masculino. São pedaços das nossas acções, das nossas acções vivas. Mas amá-las intimamente, por elas mesmas, com as lentidões do feminino, eis o que nos conduz ao labirinto da Natureza íntima das coisas». Com esta extensão conceptual do conceito de habitar, abrem-se as portas à elaboração de uma nova filosofia da natureza, que tanto preocupou Merleau-Ponty nos seus Cursos.
O conceito de habitar é usado por Merleau-Ponty em cinco acepções fundamentais, cujos sentidos se sobrepõem de modo a proporcionar as linhas gerais de uma nova filosofia do habitar, a qual visa esclarecer a relação do homem com a casa e a pátria, a relação da alma com o corpo, a relação do sentido com a palavra, a relação do homem com o mundo e a relação do homem com o espaço e o tempo, ou, num sentido mais abrangente, a relação do homem com o ser. Eis as acepções:
1. A Casa. O significado fundamental é o de habitar uma casa. Nesta acepção, o habitar opõe-se a uma estada casual, meramente passageira ou temporária, num determinado ponto arbitrário do espaço. Habitar significa ser de um determinado ponto, estar enraizado nele, estar em casa. Também significa ter um âmbito fechado, acolhedor, um espaço próprio em casa, no qual o homem se retira e se abriga do mundo exterior ameaçador e hostil. As outras acepções derivam desta primeira significação e o seu conteúdo evoca o modo como o homem habita a sua casa. Como escreve Portmann: "O lar converte-se assim num lugar onde, graças à segurança e à tranquilidade, os estados anímicos essenciais de todo o animal superior encontram uma satisfação máxima; é, pois, um lugar que possibilita amparo".
2. Alma e Corpo. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar para designar a relação da alma com o corpo: "A alma habita o corpo". Esta expressão refere-se à relação estreita que é a encarnação da alma numa contextura espacial. Esta relação da alma com o corpo é qualificada de habitar, mas este habitar é deveras singular, porque a alma não pode abandonar esta morada ou habitação que é o corpo, tal como o homem pode abandonar a sua casa. O homem não pode desalojar a sua alma. Isto parece indicar que a relação do homem com a sua casa pode ser compreendida através da intensidade da sua relação com o seu corpo: o habitar numa casa é uma espécie de encarnação ou, como diria Bachelard, a casa é uma concha.
Esta concepção da encarnação distancia-se claramente da resposta dualista dada pelo orfismo ao problema da morte: Soma-sema, isto é, "o corpo é a sepultura da alma" e a morte corporal é a ressureição da alma. Esta visão órfica culminou na concepção cristã e gnóstica de uma interioridade no ser humano totalmente alheia ao mundo. A vida mora como um estranho no corpo. O corpo é, por natureza, um cadáver, que somente vive graças à alma, durante o breve período do ciclo vital em que a alma está presente. Na morte real, o corpo é abandonado pelo estranho hóspede que é a alma, e cada uma destas entidades distintas alcança a sua verdade original: o corpo torna-se cadáver e, ao abandoná-lo, a alma regressa à sua região originária.
Do ponto de vista do ter, podemos afirmar que o homem "tem" o seu corpo. Mas, como mostrou G. Marcel, o homem não "tem" o seu corpo, tal como possui os seus outros bens, e, por isso, não pode dispor do mesmo modo do seu corpo. Trata-se de uma "vinculação misteriosa e íntima entre eu e o meu corpo". Como não podemos distanciar-nos do nosso corpo, o problema da apropriação não se coloca: o corpo vivo encontra-se sempre-já apropriado e incluído na pessoa. A consciência ingénua afirma que o homem é o seu corpo e, deste modo, opera uma identificação parcial do homem com o seu corpo, sem fazer a distinção entre o corpo e a sua alma. G. Marcel diz apenas que o homem está encarnado no seu corpo. Num sentido meramente antropológico e não teológico, a encarnação designa esta unidade misteriosa que é o homem, ao mesmo tempo que possibilita pensar a sua relação com o espaço, mediante a qual o homem está implantado no espaço pelo seu corpo.
3. Palavra e Significado. Merleau-Ponty afirma frequentemente que o sentido ou a significação habitam numa palavra: "O vínculo entre uma palavra e o seu sentido vivo não é um laço externo, no sentido de associação; o sentido habita a palavra e a língua não é um fenómeno concomitante externo de processos espirituais". Do mesmo modo, mediante a compreensão intuitiva, podemos habitar o corpo de outra pessoa, porque, na expressão percebida, está contido o sentido de modo imediato. A qualificação da união da palavra e do significado com o termo habitar evidencia que este termo se refere à unidade indissolúvel análoga à que existe entre a morada e o habitante.
4. O Mundo. Merleau-Ponty utiliza a palavra habitar no sentido de que "os homens habitam o mundo". Isto significa que os homens não existem de modo arbitrário no mundo, mas que estão ligados ao mundo através de um vínculo de confiança tal como o que une a alma ao corpo e o que religa o conteúdo expresso com a sua expressão. Cada homem habita o mundo de modo distinto e o pintor pode dar visibilidade a esse mundo: o olho habita o ser como o homem habita a sua casa. Habitar significa aqui uma modalidade de um estar-ligado confiante e compreensivo. Este estar-ligado aplica-se tanto ao mundo total como a cada um dos seus objectos. A expressão "o homem habita as coisas" significa que o homem está intimamente ligado às coisas e que as coisas não são meros objectos exteriores, mas estão incluídas na sua vida como portadoras de um ser mais profundo: "coisificar é aproximar mundo" (Heidegger). Acolhimento é o termo usado por Bachelard para designar esta ligação íntima das coisas. Para o homem que sonha o mundo, o mundo já não está diante do eu e o eu já não se opõe ao mundo: "tudo é acolhimento".
O termo habitar é utilizado para designar a unidade indissolúvel com que algo anímico está encarnado "em" algo corpóreo e, deste modo, pode ser utilizado para designar genericamente a relação do homem com o espaço, porque, para Merleau-Ponty, "o homem habita o espaço". É evidente que o homem habita todas as regiões do mundo através do seu corpo, encarado como mero instrumento com ajuda do qual o homem se relaciona com o mundo. Porém, esta modalidade instrumental do habitar não ajuda a esclarecer a essência do habitar. Para Merleau-Ponty, o corpo é compreendido na sua qualidade espacial como a forma primitiva de todas as demais experiências do espaço: "O corpo é o espaço pátrio da alma e a matriz de todo o outro espaço existente". Isto significa que o corpo não é um mero instrumento mediante o qual se experiencia o espaço, mas é, ele próprio, um espaço experimentado e vivido, e, além disso, o espaço mais primigénio, cujo arquétipo permite compreender todos os outros espaços. O homem está imerso num espaço maior envolvente, não na qualidade de sujeito inextenso, mas mediante o próprio corpo como forma espacial.
5. Espaço e Tempo. Merleau-Ponty utiliza o termo habitar para designar a relação do homem com o espaço e o tempo: "O corpo habita o espaço e o tempo". Nesta frase, o termo habitar é utilizado juntamente com o conceito de être engagé, com o objectivo de rejeitar a ideia de um sujeito carente de mundo. A noção de espaço nocturno por oposição ao espaço diurno ajuda a esclarecer a relação do homem com o espaço: "Quando o mundo dos objectos claros e articulados se encontra abolido, o nosso ser perceptivo, amputado do seu mundo, desenha uma espacialidade sem coisas. É isso que acontece à noite. Ela não é um objecto diante de mim, ela envolve-me, penetra por todos os meus sentidos, sufoca as minhas recordações, quase apaga a minha identidade pessoal. Já não estou mais entrincheirado no meu posto perceptivo para dali ver desfilarem, à distância, os perfis dos objectos. A noite é sem perfis, toca-me ela mesma, e a sua unidade é a unidade mística do "mana". Até mesmo gritos ou uma luz distante só a povoam vagamente. Ela é animada na sua totalidade. É pura profundidade sem planos, sem superfícies, sem distâncias" (Merleau-Ponty). Tal como Minkowski, Merleau-Ponty recorre ao conceito de mana para caracterizar a participação mística na noite, que quase anula a nossa identidade pessoal, pelo facto de abolir a cisão existente entre sujeito e objecto. Na noite, o homem funde-se com o espaço que o envolve e o eu mistura-se com a obscuridade. Por isso, Bachelard disse que as noites não têm história nem futuro: «O sonho da noite não nos pertence. Não é um bem nosso. É, em relação a nós, um raptor, o mais desconcertante dos raptores: rapta o nosso ser". Na metafísica da noite e nos sonhos nocturnos, o sujeito perde o seu ser. Ao contrário dos sonhos diurnos, os sonhos nocturnos "são sonhos sem sujeito": "ao passo que o sonhador do sonho nocturno é uma sombra que perdeu o próprio eu, o sonhador do devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador, formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma actividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador do devaneio está presente no seu devaneio".
Para Merleau-Ponty, o homem ou o eu habitam no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Todos estes usos do termo habitar apontam para a singular intimidade da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está inserido e amalgamado com algo espacial, e esta relação está indirectamente ligada a expressões como estar encarnado, être engagé e outras similares. A espacialidade originária de que fala Merleau-Ponty não é uma estrutura espacial a priori, mas a forma da espacialidade que corresponde a um estado originário do sujeito humano, a partir da qual se desenvolvem as restantes modificações da espacialidade. Se a encarnação é, como diz G. Marcel, "a situação de um ser que aparece unido a um corpo", então Merleau-Ponty pode afirmar que o homem "habita no seu corpo". Esta é uma definição antropológica geral do homem que possibilita pensar as suas relações com o espaço.
No pensamento não-tematizado do habitar de Merleau-Ponty, a relação do homem com o espaço ou a sua atitude face ao espaço manifestou-se de diversas formas. Estas não se excluem mutuamente e, dado tenderem a sobrepor-se, podem ser encaradas como modificações da espacialidade humana. De modo esquemático, podemos apresentá-las deste modo:
1. Em primeiro lugar, temos a confiança ingénua no espaço, o estado infantil de segurança, que na vida ulterior pode prolongar-se num estado de amparo natural ou irreflexivo na casa e na pátria. O homem está aqui amalgamado com o seu espaço e encarna-o de modo imediato. A topofilia de Bachelard analisou as imagens do espaço feliz, sem levar em consideração os espaços de hostilidade e de luta. Porém, este privilegiar dos espaços felizes em detrimento dos espaços de ódio é justificado pelo facto do espaço feliz ser o espaço originário, no sentido da casa ser o primeiro mundo da existência humana. Só posteriormente, quando o homem é lançado para fora da casa natal, é que se forma a experiência do espaço hostil.
2. Em segundo lugar, temos o espaço do apátrida ou a carência de habitação. O espaço revela-se aqui no seu carácter estranho e tenebroso, onde o homem se encontra perdido. Os sem-abrigo são seres sem lar, isto é, seres expulsos do lar e lançados nos espaços perigosos das ruas das grandes metrópoles. Estes espaços hostis e os espaços felizes são modificações antitéticas da espacialidade. Os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais, na linguagem capitalista, significam "contribuintes". Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. O fugitivo leva, qual vagabundo, uma vida errante e intranquila, condenada ao desenraizamento ou, como Bachelard prefere dizer, à fragmentação: o fugitivo ou, como lhe chama Bachelard, a "alma apátrida" dispersa-se e perde-se no anonimato, na desordem, nos vícios e nas compulsões da grande cidade. A sua vida torna-se fragmentada, "fragmentadora fora de nós e em nós". A casa possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida e constitui um elemento de estabilidade: "Multiplica os seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso". A casa é capaz de recolher o disperso e conduzir o homem ao acolhimento.
3. Em terceiro lugar, deste estado de carência de habitação ou de sem-abrigo deriva a tarefa de refazer o amparo ou o abrigo mediante a construção de uma casa. Deste modo, surge um espaço interior, protector, separado do mundo externo. O espaço ameaçador não desaparece, embora seja deslocado do centro para a periferia. Segundo Bloch, o edifício é o espaço feito para o homem, absolutamente aberto ao futuro do homem novo. A utopia do espaço arquitectónico é, na sua própria qualidade, uma "utopia da terra": os corpos e as casas estão integrados na totalidade terrestre e infiltram-se com a sua própria utopia na utopia geográfica: "O Eldorado-Éden engloba, com diz Bloch, todas as outras utopias do fundamento de um mundo melhor".
4. Contudo, dado a casa criada pelo homem poder ser atacada e o espaço ameaçador continuar a insinuar-se sigilosamente dentro da casa, a última tarefa consiste em superar a radicação tenaz num recinto fixo e recuperar um último amparo num espaço que já não é o espaço próprio fundado pelo homem (a casa), mas sim o vasto espaço em geral. Deste modo, supera-se um amparo aparente, que se aferra tenazmente à sua aparência, artificialmente criado e sempre falaz, para lograr um amparo distinto, aberto, no qual a espacialidade ingénua pode ser reconstruída num plano superior. Este amparo aberto e superior é certamente a natureza ou a Terra: o resguardo da quadratura (Heidegger).
Estas quatro formas modificadoras da espacialidade da vida humana sobrepõem-se num sistema de estratos ou níveis ricamente estruturado. Porém, a relação do homem com o espaço exige do homem um esforço para existir. A verdadeira forma da vida humana no espaço é o habitar, mas o homem só pode captar e realizar o habitar através de um esforço total do seu ser, ou, como diz Heidegger, "os homens devem aprender a habitar". A tarefa do autêntico habitar estrutura-se numa tripla direcção: O primeiro imperativo é agir contra a condição do apátrida, própria do fugitivo e do aventureiro, que vagueiam sem descanso no espaço. Este imperativo impõe a necessidade de instalar-se num lugar determinado, criar raízes nesse lugar e construir um espaço próprio de abrigo. Os outros dois imperativos baseiam-se no perigo de errar, dentro deste espaço próprio, no autêntico modo de habitar. O segundo imperativo é dirigido contra o perigo de isolar-se dentro do espaço interior. Por isso, exige a inclusão plena na vida do espaço externo ameaçador e perigoso. Só nesta tensão entre os espaços felizes e os espaços de ódio (Bachelard) é que a vida humana pode alcançar a sua plenitude. Mas, para que isso ocorra, é necessário superar a crença ingénua na solidez da própria casa e abrir as portas da casa ao grande espaço, de modo a que este perca o seu carácter perigoso e se torne, também ele, um espaço acolhedor. O terceiro imperativo consiste em confiar nesse grande todo que é o espaço e em partilhá-lo com todos os seus vizinhos.
J Francisco Saraiva de Sousa

29 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A leitura que procurei fazer de Merleau-Ponty parece ser estranha, mas não é estranha: ela procura explicitar uma nova filosofia do habitar, com o recurso a Heidegger e a Bachelard. É uma leitura em andamento e espero que me ajudem a contornar as dificuldades.

Continuação de Boas Férias.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Convém conjugar o verbo habitar: Eu habito, Tu habitas, Ele habita, Nós habitamos a Terra. O habitar é sempre um habitar-com. O homem é o ser encarnado que habita a Terra, juntamente com outros habitantes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O conceito de encarnação é usado não no seu sentido teológico mas num sentigo antropológico, e, como tal, não pretende explicar nada: refere a unidade do duplo aspecto da natureza humana que Plessner pensa com o conceito de posição excêntrica do homem no mundo. Contudo, a encarnação foi explicitada por G. Marcel ou pelo existencialismo cristão.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, após ter pensado muito, decide deixar apenas as portas da minha casa virtual abertas ao mundo exterior. Quanto à minha morada real e ao meu espaço próprio, prefiro mantê-los fechados: o meu castelo está amuralhado e protegido por sete muralhas, as da utopia do Sol.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fiz alguns melhoramentos, de modo a explicitar melhor a problemática da filosofia do habitar. Prometo não voltar a mexer neste post: está concluído e aberto à crítica. :)

E. A. disse...

Oh! E nós que esperávamos que nos convidasse para ir beber um Porto a sua casa, agora diz-nos que resolveu entrincheirar-se!
;)
Continuação de boas férias! Essa cabecinha maravilhosa nunca pára!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom Dia Papillon

De vez em quando, fico apanhado dos neurónios, mas passa rapidamente. Tenho pensado muitas coisas e ainda não decidi, com excepção da decisão de fundo: continuar a viver. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E "continuar a viver" significa "continuar a habitar", sabendo que a nossa primeira morada é o corpo, o nosso corpo. Moramos no corpo ou habitamos o corpo e não há outro modo de ser homem: encarnados. :)

E. A. disse...

E então? Sermos corpo é a nossa fatalidade, e ante esta a nossa liberdade e a nossa magnanimidade.

E. A. disse...

(a possibilidade da nossa magnanimidade, diria)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estava a pensar na utopia da vida eterna e noutro modo de abordar o problema da morte, mas ainda não consegui tematizar este pensamento. Julgo que o último Heidegger captou algo deste pensamento que talvez possa ser esclarecido com o recurso às imagens da morte de Ernst Bloch: os homens morrem; os animais findam.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O conceito de encarnação pode ser recuperado para a filosofia: é muito rico! Feuerbach falou disso de modo interessante, mas foi obliterado pela luz radiosa de Marx...

E. A. disse...

Boa tarde F.,

Só agora pude ler o seu texto, e deixou-me com algumas dúvidas que passarei a expor e que, depois, me poderá dissipá-las, se for o caso.
Em primeiro lugar, quando afirma que, segundo Heidegger, «ser homem consiste em habitar». Para Heideger o Homem é Dasein e o "da" do Dasein não é ôntico nem geográfico, o "aí" - o(s) sítio(s) para o(s) quais sou lançada, só existem para mim, são dimensões disposicionais. Quando visito a casa natal, ou o "espaço feliz e seguro", (ideia, que contestei da outra vez e desta vez passo à frente) sou deposta em memórias desse mesmo sítio, as coordenadas geográficas não são experiência por si mesmas. Só entendo a asserção se subentende que a nossa atitude original é por mor a nós, e é esta disposição amorosa que rasga espaço, inaugura e coloniza.
Em segundo lugar, porque é algo que gostaria de ver mais desenvolvido até porque me é constante, como "desterrada" que sou, é a noção de pátria. Do que pude ter acesso e estudei, lembro-me da análise que ele faz ao hino «Germanien» de Holderlin, um hino belíssimo e hiper-patriótico que conta a História do Ser, culminando nos "alemães". E ligo isto com o segundo ponto das «modificações da espacialidade humana»: a casa, e em maior extensão, a pátria, são sinónimos de «acolhimento» e se calhar até melhor de recolhimento: aqui emana o problema da identidade e as consequências do não-reconhecimento de si nos outros. Vivemos num tempo em que não precisamos de "ser português" para nos constituir isto contra aquilo, etc. Esse processo tornou-se abstracto e mesmo vago. Para Heidegger seria radical ser alemão, fazer parte do ponto de vista alheio que é o povo germânico. Mas eu e uma geração toda, atrevo-me a dizê-lo, não nos é fundamental pertencer aqui, mas somos transeuntes, numa kinesis que a nada nos leva.

E. A. disse...

* descanso é com S. ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Papillon

Esse erro e outro já foram corrigidos: Obrigado por ter feito o alerta ortográfico. :)

Já li o seu comentário, mas ainda não lhe vou responder.

Sim, de certo modo, procuro trilhar um caminho novo, com alguma violência hermenêutica. O Heidegger tratado neste post é o dos "Ensaios e Conferências" e "A Caminho da Linguagem"; não o de "Ser e Tempo". A noção de pátria está associada a Ernst Bloch: a pátria da identidade, e, como tal, não tem nada a ver com nacionalismo. (Respondo depois...)

Infelizmente, também sou apátrida e hoje estou especialmente humilhado e dilacerado. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, suspeito da existência de uma modificação primordial da espacialidade, mas ainda não tenho nome para ela: sinto-a e procuro tematizá-la, neste caso com um novo post sobre M. Klein. O Bom Seio e o Mau Seio: novas cisões nos espaços acolhedores da casa materna. A mãe é a figura da ambivalência... Uma resposta?!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Vou passar à resposta:

Ponto 1. Sei que a Papillon contestou a noção da casa natal como espaço feliz. Por isso, vou fazer uma incursão por Melanie Klein: a sua visão das crianças não é a da inocência, mas a da agressividade e do sadismo oral.

Contudo, procurei fazer um acordo entre Bachelard e Bloch: a casa onírica é, em última análise, a casa ainda-não-realizada. Não a encontro no passado nem no presente, mas como uma possibilidade não-garantida. Esse sonho acordado pode ser partilhado e a sua realização depende desse projecto comum que visa a pátria da identidade ou, pelo menos, uma vida abrigada e recolhida sem angústia. Vou mais longe e digo que quando "regressamos" à casa paterna fazemo-lo quase como um lamento: as possibilidades perdidas, irremediavelmente perdidas, que, se tivessem sido cumpridas, a nossa vida teria tido outro "destino"; pelo menos, pensamos assim...

Contudo, a Papillon parece retomar deversamente a noção hodológica de espaço: a de Sartre e de Lewin: o espaço de caminhos, neste caso de caminhos intramentais. Mas reconheço que estou longe de ter tratado de todos os aspectos do espaço.

Ponto 2. Sim, estamos desterrados, mas não estamos felizes com a nossa condição apátrida ou o nosso desterro. Por isso, a identidade está em questão! E tornou-se uma tarefa urgente, quase rotineira, para cada um de nós! Construir a nossa identidade num mundo global ameaçado pelo relativismo e pelo fundamentalismo! Procuro uma terceira via...

Hölderlin é o grande poeta e Heidegger soube lê-lo, embora com muita contestação. O pensamento alemão sempre culmina com a glorificação da alma alemã, neste caso irmanada à alma grega. O nacionalismo espreita sempre, mas não é ele que está no âmago da noção de pátria: esta ainda-não-é...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, Papillon, a casa natal está repleta de fantasmas, muitos projectados pela mente da criança... e cada um mais feio do que os outros. Mas nem por isso perde o seu encanto e a sua magia... Estão lá as nossas raizes!

E. A. disse...

Boa noite Francisco,

Obrigada pelos seus esclarecimentos.
Não pensava no espaço hodológico especificamente, até porque não conheço o conceito de Kurt Lewin com profundidade, mas o espaço para o homem nunca é topológico ou geométrico, mas tingido de várias matizes segundo os seus interesses e desinteresses, e assim se norteia.
De facto tinha entedido como pátria - nação e não pátria - identidade. Sim, é realmente um problema, um acrescido desamparo nascermos já desterrados e sofremos penosamente este destino. :(
A casa Natal é para mim já mundo hostil e não pela luta intensa entre as personagens freudianas, mas porque já somos postos à prova, o nosso espaço tem de ser conquistado, defendido, etc. Lembro-me de pensar que os meus pais eram extra-terrestres e q tinha sido abandonada. É comum as crianças sentirem isso: a eminência do abandono - nascemos e morremos sozinhos, diz Torga.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Klein vê no trauma do nascimento a fonte da nossa ansiedade... O nascimento é desamparo: do universo acolhedor uterino para o mundo conflituoso extra-uterino... A busca do seio protector e ameaçador passa a ser a sua grande busca... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu lembro-me das sombras da noite me terem raptado sob a vigilância da lua e um olhar felino... Mas já passou: sou um rapto! Raptado do mundo eu sou... :(

E. A. disse...

«A poet is an unhappy being whose heart it torn by secret sufferings, but whose lips are so strangely formed that when the sighs and the cries escape them, they sound like beautiful music... and then people crowd about the poet and say to him: "Sing for us soon again;" that is as much as to say. "May new sufferings torment your soul."»
Kierkegaard

- Foi raptado para nosso deleite!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Papillon

Mais uma frase do seu amado Kierkegaard!

E. A. disse...

Sim gosto dele. Como o F. gosta de Hegel. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em homenagem a Papillon, prometo fazer um post sobre Kierkegaard, mais para Setembro.

Sim, herdei a negação determinada de Hegel e a crítica imanente, mas sem o "sistema", e, neste sentido, Kierkegaard ajudou a demolir essa tentação do sistema fechado e a recuperar o indivíduo. :)

madalena madeira disse...

Olá Francisco,

Aqui vai alguns escritos para partilhar contigo:

“ A longo prazo, os pc e estações de trabalho entrarão em declínio porque o acesso aos computadores estará em toda a parte: nas paredes, nos pulsos e nos computadores de rascunho, como papel de rascunho prontos a serem utilizados se necessário (Marx Weiser, Xerox PARC)”.
De acordo com Michio Kako, em 2020, a era da informática omnipresente deverá estar no auge, mas depois desta data o mundo dos computadores poderá ser dominado por computadores invisíveis, ligados em rede, dotados das capacidades da inteligência artificial: razão, reconhecimento da fala e até bom senso.
Depois de 2050, os dispositivos informáticos serão autoconscientes.
Cabe-nos a nós descobrir como a revolução informática terá impacto na nossa vida familiar, laboral e como esta vai aproximar e tornar as sociedades mais solidárias e, fundamentalmente, com vai globalizar-nos e fazer com que nos tornemos parte de um todo e todos, sem excepção, “ senhores do espaço e do tempo”.
Na Cibernética (Ciência que estuda e regula os comandos automáticos) as máquinas detêm “órgãos sensores” receptores e transmissores das mensagens que vêm do exterior e do interior através de fluxos de energia, do metabolismo humano e fluxo de mensagens, de impressões, que vão entrando e das acções das mensagens que vão saindo. E, uma coisa é certa, esta forma de comunicação não tem Estado-Nação e faz parte de uma rede internacional de informação.
Os sistemas ou circuitos cibernéticos, à semelhança do que se passa na Internet, gozam de uma relação dinâmica e interactiva com o seu meio ambiente e, tal como o Sistema Internacional parecem possuir uma inexorável tendência para a anarquia, para uma desordem crescente, de complexidades e de conexismos.
O Ciberespaço (termo que designa o universo constituído pelos computadores ligados em rede) conflui sentimentos universais que direccionam os seres humanos a qualquer lugar no mesmo.

Espero que gostes,

Madalena

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Madalena

Sim, gostei muito do seu texto. Também já postei diversas vezes sobre essa temática que merece ser pensada.

Obrigado pelo texto. :)

madalena madeira disse...

Olá FRancisco novamente,

Para nos fazer pensar, seguem mais umas palavras:

O impacto das Novas tecnologias de Informação e de Comunicação-

Este impacto teve como consequência no Ocidente, o declínio das indústrias pesadas, da automatização da manufactura e sobretudo do rápido crescimento da terciarização da economia Internacional e de inúmeras novas indústrias de processamento da informação que culminaram numa redução da força muscular. Dá-se a erupção da velocidade da inteligência e de novas capacidades interpessoais de comunicação.
O progresso laboral foi substituindo padrões de trabalho descontínuo e a tempo parcial caracterizado pela independência, flexibilidade e adaptabilidade, o que não é inédito. Desde a revolução Industrial, por exemplo, que se tem verificado que a sofisticação das máquinas acompanha a quantidade de trabalho feminino. Nas nações TIGRE (Singapura, Malásia, Tailândia, Coreia, Taiwan e Indonésia), na China, na Índia, África Oriental e meridional, Europa de Leste e América do Sul esta tendência encontra-se marcadamente presente. E, curiosamente, a grande maioria das empresas de montagens de artigos de electrónica são ocupadas por mulheres jovens que auferem salários relativamente baixos (à semelhança dos trabalhadores migrantes e crianças) em fábricas globais (Silicom Valley, Sillicon Glen, e as mesmas fábricas em Bangalore, Jacarta, Seul e Taipé).
A revolução das NTIC arrasta consigo um agitar nas sociedades dos Estados – Nações (sobretudo com o nascimento da Economia Global), nas famílias, no sistema neuronal, nas alterações climáticas e na Ecologia.
A montagem electrónica permitiu a produção global (em larga escala) de:
- Linhas telefónicas;
- Teclados;
- Operadores;
- Cabos;
- Tomadas;
- Interruptores;
- Fichas;
- Carretos;
- Caixotins das máquinas de escrever;
- Programas de cartões perfurados.
Mulheres, trabalhadores migrantes e crianças são utilizados nas fábricas e empresas apenas como resposta a necessidades súbitas ou como resposta a “guerras económicas” sob supervisão dos seus superiores hierárquicos.

Cybersindicalismo, não?

Obrigada por me leres,

Madalena

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Madalena

Exacto, até agora a globalização tem incidido nas comunicações e na dimensão financeira do capitalismo, mas acredito que iremos ficar cada vez mais dependentes das novas tecnologias da informação e da comunicação, que, em termos de empregabilidade, podem reter-nos em casa.

Um regresso sofisticado à época do artesanato: lugar de descanso e lugar de trabalho voltam a ser o mesmo. Sim, pelo caminhar da onda, o cybersindicalismo é uma hipótese a não excluir.

Contudo, ainda é muito difícil tematizar a sociedade em rede: estamos no começo...

Mais uma vez obrigado pelas suas perspectivas.