quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Mito, História e Terras Selvagens

«As florestas tropicais e, em particular, a Amazónia, tornaram-se um símbolo, assim como o buraco na camada de ozono e o efeito estufa. Um símbolo inquietante, ameaçador, representante de um planeta doente, à deriva.» (G. Bologna)
Este é um título inspirado numa obra de Frederick Turner (1980), "Beyond Geography", onde este autor propõe uma nova filosofia da natureza encarada, em última análise, como uma filosofia da história, conceptualmente inspirada na fenomenologia religiosa de Mircea Eliade, mas congruente com a filosofia da história de Max Weber, fortemente influenciada pela crítica do cristianismo de Nietzsche, e retomada, em chave marxista, pela dialéctica do esclarecimento de Horkheimer e de Adorno.

Foi esta obra que me levou a lançar um desafio ao Manuel Rocha, o autor do blogue "Bolinas", o qual respondeu com este texto Desafio à Bolina, dando origem a uma polémica amigável. Porém, apesar de já ter apresentado a minha leitura neste post Ecologia Profunda e Política, aproveito esta ocasião para relembrar alguns conceitos muito esquecidos pelos portugueses, provavelmente nunca assimilados, a avaliar pelos debates anticristãos que surgem constantemente na blogosfera nacional.
A nossa civilização ocidental foi profundamente moldada pelo judaísmo e pelo cristianismo, de uma forma não compreendida pelos portugueses. Conforme demonstrou Max Weber, o processo de secularização já está presente no Antigo Testamento e é esta a ideia retomada por Frederick Turner, que a plasma e a desenvolve como a «história de uma civilização que substituiu o mito pela história como forma de entender a vida». A história da expansão europeia na América é recontada de modo a mostrar esta concepção em acção:
«A verdadeira história da exploração ocidental e, portanto, dos Estados Unidos, é de ordem espiritual», baseada na «mais certa das realidades: o espírito humano e a sua dura necessidade de realizar-se através do corpo e do espaço». O cristianismo operou uma passagem do mito para a história e esta passagem implica uma mudança de visão da natureza ou de paradigmas naturais, cuja diferença pode ser ilustrada «pelas expressões controle-pela-veneração e controle-pelo uso. Ou, como já foi observado, é a diferença entre tratar o cosmos por "Vós" ou tratar o cosmos por "Coisa"». De certo modo, esta diferença surge com «o aparecimento da civilização no Médio Oriente», posteriormente encarnada pela civilização ocidental. Onde surge a civilização, superam-se os sentimentos mais antigos e orgânicos: «a gratidão à natureza e a interdependência vital de todas as coisas. Estes sentimentos foram deslocados pelas noções masculinas de confrontar a força (natural) com outra força e da oposição permanente entre o homem e a natureza. A velha concepção de uma terra mãe e fecunda foi transformada na simbologia de uma luta vencida, com o falo metálico do arado a introduzir a sua semente grávida no subtilmente resistente útero/solo. As cidades verticais e estéreis, reluzindo na paisagem, esculpiam leões e bois para vigiar os seus portões contra todos os perigos exteriores. Da forma como surgiu nesta região, a civilização conscientemente criou muros que a separavam das harmonias orgânicas e definiu-se em termos de oposições» (Turner).
Deste modo, o "impulso mitológico" é substituído pelo "impulso tecnológico". «Em todos os lugares em que as culturas humanas desenvolveram e mantiveram um contacto íntimo e vital com os seus habitats, sem os isolamentos da alta tecnologia e as concomitantes rupturas, arrogâncias e desperdícios, em suma, em todos os lugares onde a mitologia é a mais desenvolvida das tecnologias, aí existem esses artefactos de comunhão e de adaptação». Ora, a civilização impõe a desmitologização e, consequentemente, uma visão antropocêntrica, que incentiva o abandono da sensação generalizada de inviolabilidade de muitas partes da natureza e permite a sua exploração eficiente: este é o caminho percorrido pelo desenvolvimento cultural e pela acumulação de confortos, aquele caminho que Turner narra a propósito da conquista ocidental das terras selvagens americanas. Esta história espiritual encarnada pela civilização ocidental criou uma terrível ilusão: «Cada nova protecção contra o mundo natural ajuda um pouco a construir a de independência da natureza, que com o tempo ajuda a erigir a maior das ilusões: a omnipotência do homem» (Turner).
No caso da nossa civilização, aquela que levou até às últimas consequências este processo de rejeição da natureza e de glorificação do poder do homem, consolidando o seu domínio do mundo, coube ao cristianismo, em continuidade com o judaísmo que fundou «o monoteísmo na geografia espiritual da humanidade», dessacralizar a natureza, encarando-a não como um poder com o qual os homens pudessem estabelecer uma relação de celebração e de reverência (a perspectiva do mito), mas como um poder maléfico que urge conquistar e domar (a perspectiva da história). Daí a inclinação cristã para levar a cabo a guerra contra os «povos politeístas», visível nas Cruzadas ou mesmo na Inquisição.
Ao contrário do mito que exprimia um «terror pela história» através do alívio da tensão e da ansiedade do homem perante a morte e do congelamento do tempo, o cristianismo como história vive para o futuro, na esperança de recuperar num futuro apocalíptico aquilo que certa vez teve no passado (1), mortifica o corpo, o que produz a miséria gradual da alma (2), e luta contra os infiéis (3). «Em termos mais específicos, o grande fardo da história cristã traduz-se nas agressões contra o corpo, contra o mundo natural, contra os primitivos, heréticos e cépticos, e na esperança vã, trágica, pateticamente teimosa de alcançar deste modo uma fé ou um paraíso perdidos» (Turner). Ao secularizarem radicalmente esta concepção cristã da história, as filosofias da história tendem a aceitar a sua ideia-base: a rejeição da natureza permite ao homem ser «o único animal que faz história», uma história que, como sabemos hoje, está a destruir a natureza, ameaçando a própria continuidade da aventura humana numa "terra devastada" (Eliot).
Apesar disso, como deixei bem patente num comentário feito no blogue de Manuel Rocha, qualquer tentativa de regressar atrás aos "tempos do mito" seria mais catastrófica do que continuar a caminhar para a frente, fazendo tudo o que podemos para repor os equilíbrios naturais destruídos, e convencer os povos vernaculares a não seguirem as nossas pisadas, na esperança de que as nossas acções não sejam demasiado tardias para salvar o futuro do nosso planeta. É certo que não expusemos toda a concepção da história espiritual da civilização tal como foi analisada por Turner, mas aquilo que dissemos é por agora suficiente para mostrar a necessidade de elaborar uma nova filosofia da natureza, portanto, um novo paradigma da natureza, do qual podem surgir novas orientações para as políticas ambientais capazes de conservar os ecossistemas naturais e a biodiversidade, sem os quais o homem não pode viver.
J Francisco Saraiva de Sousa

41 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel Rocha

Como não posso desenvolver muito mais este post. prometo amanhã, logo que tenha tempo, indicar referências bibliográficas. Aliás, tinha ficado de o fazer e partilhar consigo esses autores que procuram renovar a filosofia da natureza.
Abraço

Fernando Dias disse...

Gostei muito deste texto.
Concordo:
Não faz sentido andar para trás. Faz mais sentido ter saudades do futuro.
Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para repor os equilíbrios naturais destruídos.
Devemos convencer os patos bravos que o paradigma da modernidade mecanicista já deu o que tinha a dar.
Devemos ter esperança. Está na hora de salvar o futuro do nosso planeta.
Porque senão, parafraseando Sartre:
“Morrer não basta, é mister morrer a tempo”

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estamos todos de acordo, nós os três: "salvar o planeta"! Boa causa! É também a causa do Homem. :)

Fernando Dias disse...

Então o que podemos fazer para o entendimento entre civilizações e ter uma história única? Uma vez já instalada esta globalização e partindo do princípio que continuamos animados de um ideal de paz e de progresso!?

As culturas são heterogéneas! Como superar esta contradição com o cosmopolitismo?

Que lugar pode ter neste contexto a cultura ocidental?

E. A. disse...

De facto, só poderíamos ter evoluído cientificamente e tecnicamente (só creio nestes dois vectores de evolução), se superássemos o estado infantil de animismo. No entanto, quero assinalar um pressuposto e um paradoxo. O primeiro, relativamente aos princípios do cristianismo que numerou: o princípio basilar da fuga à dor! Quis-se suplantar o terror pelo tempo, prolongando-o num adiamento, em que se pretende o mínimo de sofrimento. Daí o desprezo pelo corpo e pela natureza: as fontes do mal humano! E depois o paradoxo: porque essa esperança é mais uma saudade, como diz o F., pois é algo que já se perdeu irremediavalmente, que nunca mais nos será devolvido! Ou seja: a solução joga-se no tempo, na história, mas ela n é realmente uma solução: a esperança é vã!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Apesar de tudo, a nossa cultura ocidental é uma cultura da liberdade, profundamente democrática (a sua herança grega). Por isso, estamos em condições de estabelecer um diálogo com as outras culturas.
Sinceramente, só o ocidente pode salvar o mundo. A nossa tradição é crítica e cognitivamente "superior". Por isso, conseguimos dominar, como diz Gellner. Mas vejo que a ameaça interna é mais preocupante do que a externa. Precisamos de uma nova filosofia... urgentemente, capaz de orientar a humanidade. Por isso, critico a filosofia contemporânea e as ciências sociais: devastaram o espírito! Mas também não tenho soluções...

Manuel Rocha disse...

Francisco,
Só o seu sono me salvou do tapete já neste round…( o próximo terá que ficar para a noite…)porque o sr Turner ( cuja obra não conheço ) me vem dar uma optima ajuda com aquilo que me diz dele.


«A verdadeira história da exploração ocidental e, portanto, dos Estados Unidos, é de ordem espiritual», baseada na «mais certa das realidades: o espírito humano e a sua dura necessidade de realizar-se através do corpo e do espaço».

Curiosa esta interpretação ! Sobretudo bonita ! Se eu fosse Americano juro que adorava que a minha história começasse assim! Mas este tipo de leitura ajusta-se que nem luva por medida ao que pretendia chamar a atenção quando me referi à mitologia na história e à forma como ela se produz e depois reproduz à margem da História.
Ignoro as fontes do Senhor Turner, mas…então e a nobreza do norte da Europa endividada e sem terra de rendimentos, bem como a nobreza mal querida nas Cortes Infglesa e Francesa a quem eram entregues “missões” estratégicas do outro lado como quem concede deportações ? E os aventureiros á procura dos seus próprios mitos ?E a fuga à peste de Copenhaga ?
Mas isso é a história da colonização da costa leste, e a do resto ? Nada a ver com a grande fome da batata na Europa do norte e a Filoxera no sul ?!Nada a ver com a degradação da dimensão económica da propriedade agrícola com o advento do liberalismo ?

“O cristianismo operou uma passagem do mito para a história e esta passagem implica uma mudança de visão da natureza ou de paradigmas naturais, cuja diferença pode ser ilustrada «pelas expressões controle-pela-veneração e controle-pelo uso. Ou, como já foi observado, é a diferença entre tratar o cosmos por "Vós" ou tratar o cosmos por "Coisa"». De certo modo, esta diferença surge com «o aparecimento da civilização no Médio Oriente», posteriormente encarnada pela civilização ocidental.”

Sim! Mas esse controle pelo uso não é o que faz a sociedade agrícola ? E de que tipo tinham sido as sociedades mesopotâmias e egípcias ?

“Onde surge a civilização, superam-se os sentimentos mais antigos e orgânicos: «a gratidão à natureza e a interdependência vital de todas as coisas. Estes sentimentos foram deslocados pelas noções masculinas de confrontar a força (natural) com outra força e da oposição permanente entre o homem e a natureza. A velha concepção de uma terra mãe e fecunda foi transformada na simbologia de uma luta vencida, com o falo metálico do arado a introduzir a sua semente grávida no subtilmente resistente útero/solo. As cidades verticais e estéreis, reluzindo na paisagem, esculpiam leões e bois para vigiar os seus portões contra todos os perigos exteriores. Da forma como surgiu nesta região, a civilização conscientemente criou muros que a separavam das harmonias orgânicas e definiu-se em termos de oposições» (Turner).”

Mais uma vez uma leitura bonita da história, mas que corrobora a minha leitura da agricultura como história da instrumentalização e por isso de ruptura .
Essa concepção de uma “terra mãe fecunda” é algo que me transcende, sinceramente! Recorda-me o que contava o F Dias sobre uma conversa entre a sua avó e alguém que se queixava de que a “terra não dava nada” e que quando ela o questionou “ e plantando?”, ele terá respondido :
-“ ah, prantando dá !
Pois !
Peça desculpa por mim ao Senhor Turner mas não consigo materializar o conceito do agricultor que espera que a colheita lhe caia literalmente do céu! Que peça a protecção do Divino para que conjugue os factores que lhe permitirão a colheita, sempre contingente ( chuva certa na altura certa, falta dela na colheita, ausência de doenças e pragas ), eu entendo! Mas mais não ! Por isso não compreendo de onde possa ter nascido essa leitura mitológica de uma relação natural e harmoniosa com uma terra fecunda !
A terra é madrasta ! Para semear tem que se desmatar, mobilizar, fertilizar. Depois são meses de esperas e preces para que não ocorram doenças nem pragas, para que não chova nem de mais nem de menos, e que de todo que não chova quando se colhe e antes que se guarde. A agricultura é um equilíbrio de incertezas permanentes, atenuado e muito pela agricultura industrial mas não de todo resolvido.Controlo ?! Não ! Apenas persistência!
Acho curioso que essa relação madrasta aparece por norma muito melhor retratada na literatura que na ciência social. Sugira Steinbeck ao Sr Turner. E aqui entre nós temos vasta escolha: Torga, Namora, Fonseca,Cunhal, que não olharam para o campo como espaço lirico, tosco, rústico ou o que quer que fosse, mas como a realidade dura que sempre foi.

Quanto à génese da civilização Ocidental na bacia mediterrânica, terá tido todas as razões que se quiserem, entrego isso de barato, desde que não se esqueçam as duas mais prosaicas mas que fizeram toda a diferença: Sol e Sal !

Até logo !
:))

PS: Mantenho que acho que o planeta não precisa de ser salvo...já o homem....:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já percebi a sua perspectiva, Papillon, e aceito a sua pertinência. Mas quando falo de Esperança penso em ernst Bloch.
sim, a ciência teve um papel fundamental no processo de "desencantamento da natureza", mas não podemos rejeitar a ciência, porque filosofia e ciência estão ligadas num nó profundo, além do nó filosófico com a política. Eu não quero voltar atrás, mas caminhar para a frente... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas a apologia do corpo também pode ser vista como uma degenerescência e é isso que acontece actualmente. Sem dor não há alegria!

E. A. disse...

Eu n rejeito a ciência, mas iluminando os pressupostos do seu aparecimento e desenvolvimento, pode-nos garantir um futuro melhor. Mas n percebo é esse: "n quero voltar atrás", "não podemos"!

E. A. disse...

Mas sabe pq se faz apologia ao corpo??? Porque se passaram séculos em que éramos animais encarcerados! O erotismo é glorificado, como nunca, por ter sido tão sacrificado! Nem na Grécia, Eros foi tão amado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ui Manuel Rocha

Não sei o que dizer. Reescreva a História! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, o regresso dos oprimido! Que se liberte, mas sem esquecer o espírito!
Voltar atrás significa "abandonar completamente o nosso modelo de desenvolvimento", e adoptar estilos de vida anteriores.
Não disse que era contra a ciência, mas esta está a ser maltratada...

E. A. disse...

Prefiro que a ciência seja maltratada, do que o corpo e a natureza. E o corpo n difere do espírito! Belos espíritos em corpos doentes? Isso n existe!

Manuel Rocha disse...

Papillon,

Exacto: " não podemos!"

Por isso é uma discussão deslocada. O melhor que se pode é aprender com os erros e não os repetir. Era o que tentava defender há dias no meu "regresso às hortas"...:))


Francisco,

Vá...conceda lá que estamos longe de conhecer todos os facto do passado e os que a história nos dá são parte deles e não temos como saber se "contaminados" pelos interesses do tempo.
Num cenário de conquista em guerra moderna o que faz o conquistado na véspera do assalto final ? Queima papéis ! Que é que sobra dessas provas ? Os mitos que sobre eles se elaborarem.

Manuel Rocha disse...

F Dias,

A cultura ocidental é cosmopolita e hegemónica neste momento.

Não acompanho o Francisco na sua valoração relativa.

E tenho sérias dúvidas nas possibilidades internas deste paradigma para se regenerar por dentro ( reformismo ).

E agora vou de vez !

Até logo !

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Que baralhada de conceitos! não estará a confundir mito e ideologia! Mais falsificação! Mais encobrir a verdade!
Nós somos desmitologizados há muito tempo. As sociedades arcaicas, as que conquistamos noutros cantos do mundo, é que viviam em sintonia com a natureza e algumas delas ainda sobrevivem na Amazónia e África central.
A sua concepção de campo é madrasta! Mas como disse ontem as noções de tempo e de espaço são diferentes no campo e na cidade.
Papillon, existem espíritos saudáveis em corpos enfermos! Infelizmente! E, nesse momento, a pessoa prefere o seu espírito! :)

E. A. disse...

Sim, talvez daí o cristianismo seja insuperável. Conseguiu magnificamente a libertação dos "enfermos" e análogos "coitadinhos".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Talvez o Manuel pense que podemos pacificar o mundo destruindo o ocidente! Mas isto seria o regresso à Idade das Trevas, aquela vivida por certas culturas cujos comportamentos podem ser observados no YouTube!
Mas o regresso às hortas tb é muito mau..., dado que a vida é dura nas hortas. Mas os dobuanos vêem as hortas como prolongamentos das suas pessoas: visão mágica da vida! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou meio perdido neste debate! :))))

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Admito que estejamos a funcionar com conceitos diferentes.

Aqui ficam os meus.

Mito como facto que perdura. Facto com interpretação . Interpretação como a leitura do acontecimento, datada pelas evidências ( ou os interesses) do autor e da época.

Ideologia como estrutura conceptual que inclui uma justificação ( porquê ) uma explicação ( como ) e um projecto ( para onde ).

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Então, temos estado a falar de coisas diferentes! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E somos ambos portugueses! Imagine como será o diálogo com outro indivíduo pertencente a outra cultura, por exemplo, um egípcio!
Daí a questão do F. Dias! Como estabelecer o diálogo intercultural? :)))

Fernando Dias disse...

Veja o exemplo de Heródoto. Como nasceu a paixão de Heródoto? Talvez da curiosidade surgida das perguntas de criança (fazendo o contraponto do estado infantil de Pappillon): “De onde vêm aqueles navios?”

A ambição dele foi pesquisar e investigar quem eram os outros, como viviam e como pensavam. Na altura até correspondia ao significado da palavra grega história. Mas ele não passou a sua vida nos arquivos. Ele ocupou praticamente o seu tempo a descobrir, a conhecer e a contactar pessoalmente com os outros, mesmo sem conhecer a língua dos Persas, Fenícios ou Egípsios. Depois usou o seu talento a descrever isto tudo. Como é que ele podia saber o que os outros pensavam? Só podia ser pelo que via, observava e contactava.

Claro que ele não decidia nada, nem acabaram as guerras por causa do seu trabalho. Mas que ajudou a conhecer melhor o outro, isso ajudou. E é esta aproximação a pequenos passos ao longo do tempo, dois passos em frente e um atrás, que se pode chegar a um cosmopolitismo de uma só cultura. Só que não é líquido que seja a nossa, embora pareça encaminhada nesse sentido.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Heródoto! Exacto! Levou a cabo uma tarefa nobre: a de compreender o outro e era grego. Ou então Tucídides, outro grande "historiador" da guerra do Peloponeso. Ou os romanos. Arendt examina bem esses autores. E, na palavra, somos democráticos...

Fernando Dias disse...

Mas depois vieram os românticos.
Os românticos apesar de terem pretendido um discurso moderno em relação aos conteúdos, quiseram manter a mesma instantaneidade comunicativa dos mitos gregos. Pretendiam assim, com uma nova mitologia substituir as fábulas dos hiperbóreos. Esta mitologia da razão era de um alcance político inaudito: realizar, no imediatismo da comunicação universal, a complexa libertação do espírito da humanidade. Sobre isto trabalharam Hölderlin, Schelling e Hegel enquanto jóvem.

Depois Schlegel vê o poder de abertura ao Absoluto ligado ao conceito de ironia. Mas Hegel, adulto, acha que a ironia romântica não é um movimento subjectivo que tem o poder de diminuir todo o conteúdo objectivo, por forma a fazê-lo desenvolver no arbítrio.

A raiz do uso romântico da ironia está no método dialógico socrático: o método irónico permite que se apresentem como compatíveis dois pontos de vista ou duas opiniões opostas, sem selecções preconceituosas. A ironia seria assim um método filosófico, uma espécie de antídoto que não só trava o entusiasmo inerente ao contacto com o objecto, mas também impede a queda no cepticismo por causa do distanciamento em relação ao objecto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Depois, mais recentemente, temos Habermas e Apel e voltamos para dentro de nós mesmos, enquanto o terrorismo nos tenta amedrontar. Somos assim... inconcluídos, inacabados... É isso que alimenta o nosso espírito: eterno diálogo democrático.
Mas vou tentar compreender melhor a perspectiva do Manuel. E talvez combater a concepção perigosa da filosofia como questionamento permanente! A crise/crítica precisa ser confrontada com o nihilismo: aquela atitude que não conduz a nada de construtivo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Alvorada

A ideologia é, em termos simples, uma justificação de assimetrias de poder: falo de ideologia quando um grupo tenta justificar o seu poder. A tarefa da filosofia é criticar as ideologias e não pactuar com elas. Por isso, não existem conceitos ideológicos! Uma contradição nos termos!
Vejo que certos preconceitos bloqueiam a via do conhecimento! Eu nunca fiz uma defesa do cristianismo. Apenas reconheço o seu papel civilizacional e, nesse sentido, a nossa cultura foi moldada por ele: temporalidade, individualidade, historicidade, "universalidade"... são noções (positivas) marcadas pelo cristianismo, incluindo o ateísmo.
Penso que a nossa tarefa é outra: abrir o mundo ao futuro.
A questão do Manuel em torno da história é mais epistemológica, mas tb aqui não estamos despidos. Isto é, não precisamos de improvisar, porque outros pensaram no assunto. E eu penso que não avançamos sem retomar essa herança. Não precisamos de fazer do passado tábua rasa.
Os povos "mitológicos" vivem em sintonia com a natureza e não a encaram como adversa. Isso não é um mito, mas uma realidade. Peço desculpa, mas não posso ficar indiferente à falta de rigor: o diálogo não faria sentido nesse caso! :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas prometo regressar à ideologia, esse conceito "minado" ou "envenenado" que, segundo Ricouer, Marx legou à Filosofia. Mas ele não é veneno, mas libertador! Pelo menos, liberta-nos dos discursos do poder, aqueles que reduzem a história à "história dos vencedores" (Benjamin), traíndo o seu compromisso para com a liberdade. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

F. Dias

Na sua Filosofia da História, Hegel escreveu:

«A liberdade no Oriente, na Grécia e no mundo germânico pode definir-se de modo provisório e superfecial com as seguintes fórmulas: no Oriente é livre um só, o déspota; na Grécia são livres alguns, na vida germânica vale o axioma que todos são livres, isto é, o homem é livre enquanto homem».

Penso que esta frase continua a ser muito pertinente e cabe à filosofia zelar por essa liberdade que conquistámos no Ocidente!

Hegel também escreveu: «O oposto da opinião é precisamente a verdade, e diante da verdade empalidece a opinião». Curiosamente, a Papillon defendeu Hegel e Marx: o discurso ideológico só pode ser desmistificado pelo discurso científico! Prefiro falar da crítica da ideologia, que tb se insinua no seio das ciências! :)

Alvorada disse...

Entendo!
Mas nesse caso o conceito que o Manuel ali tinha deixado está correcto no essencial, porque os grupos que justificam o seu poder também o fazem em nome do futuro e por isso propõem algo para ele.
Interpreto bem ?
Quanto â segunda parte do seu comentário, é impressão minha ou temos ali algo de contraditório com a obrigação ( digo bem ?) do filósofo questionar de novo tudo o que se possa ter por adquirido ?
Se calhar disse alguma asneira !
( risos )

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, devemos estar atentos e reler o que foi dito. Por exemplo, o conceito de ideologia tornou-se maldito nas últimas décadas, mas está a ser recuperado, porque clarifica a situação.
Quanto ao Manuel, de momento estou um pouco confuso... Porque a visão que fazemos (urbanos) do campo não é idílica... E não pretendemos um regresso ao campo! Queremos novas políticas ambientais... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Alvorada

Não tenho uma filosofia da natureza elaborada; preocupo-me com a crise ecológica e, em última análise, a minha visão da natureza é ecológica (científica), fortemente influenciada por Paul R. Ehrlich.
Quanto ao questionamento, eu estou sempre a nomear pensadores: dialogo constantemente com eles, até porque aplico a "negação determinada" e gosto de manter viva a tradição ocidental. Mas a filosofia não pode esquecer os seus mestres e muito menos abandoná-los.
A "desconstrução" mostrou ser pouco criativa e, em vez de iluminar, intoxicou-nos e paralisou a crítica, aquela que quer mudar qualitativamente o mundo. Precisamos dialogar com a tradição e descobrir nesse diálogo musculado (crítico) novas "soluções"... Até porque não podemos (nem convém) regressar atrás... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou com "dores de cabeça"... :)
Vou encarar tudo isto como um confronto de linguagens ou jogos de linguagem incomensuráveis. :(
Mas tudo farei para que o Ocidente não desista da sua maravilhosa aventura, mesmo que seja necessário reinventar fórmulas do passado e actualizá-las. Viva o Ocidente!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

BlueGift,

Tem razão em tudo o que diz e sei bem como estamos numa situação demográfica difícil. Mas não podemos desistir, até porque o mundo sem nós fica muito violento.
Sim, circulam por aí noções anárquicas de liberdade. Devemos desmistificá-las. :)

Fernando Dias disse...

Temos então o diálogo com a Natureza e o diálogo entre Civilizações.

Deixo a Natureza, por agora, e pergunto o que é que Jorge Sampaio anda a fazer no Diálogo de Civilizações? Não sei se dizem bem do multiculturalismo ou da mestiçagem cultural, que é o que Francisco tem criticado, e muito bem. Mas mesmo que não dialoguem nesses termos, como podem dialogar com aiatolas e tal? Ainda que se suponha uma total boa-fé de ambas as partes, em que base poderiam os ocidentais construir com estes homens uma visão do mundo comum? Começo a duvidar se tal situação alguma vez será possível.

Portanto, podemos ser partidários da tolerância civil, mas não temos que ser ecuménicos, isto é, tolerantes intelectuais. A tolerância civil consiste em renunciar a fazer a guerra aos homens que não partilham as nossas ideias, mas isso não significa que não se tenha de fazer, serenamente, guerra às suas ideias. Não devemos ceder nada no plano de uma teoria crítica, a não ser que sejamos sinceramente convencidos por argumentos intelectuais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo.
Infelizmente, nem sempre temos liberdade de expressão, por causa do "politicamente correcto". Mas estou meio tentado em criticar esse diálogo..., já que o Obama é candidato. :))))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...
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Manuel Rocha disse...
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Manuel Rocha disse...

Também concordo com o Fernando.

Há muito que advogo a "retirada" de zonas de tensão inevitável...mas os grandes interesses do nosso capitalismo não são assim tão "retiráveis"...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o capitalismo é um big factor de tensão...
Pensei..., porque não vi o texto. Está explicado! :)