quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Searle e o Mito da Concepção Científica do Mundo

«O efeito global da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um anti-esclarecimento (anti-Aufklärung); nela, como Horkheimer e eu escrevemos, o esclarecimento (Aufklärung), isto é, o progressivo domínio técnico da Natureza, converte-se num logro colectivo, num instrumento de coacção da consciência. Ela impede a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões.» (Adorno)
John R. Searle é, de todos os filósofos da mente, o mais lúcido, o mais criativo (teoria dos actos de fala) e, por isso, merece um pouco mais de atenção. Porém, a sua teoria da mente é deveras redutora e, no fundamental, dogmática. Eis um resumo da sua teoria:
«Consciência, em resumo, é uma característica biológica de cérebros de seres humanos e determinados animais. É causada por processos neurobiológicos, e é tanto uma parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras características biológicas, como a fotossíntese, a digestão ou a mitose» (Searle).
Esta é uma formulação dogmática da teoria da mente. Embora não conheçamos «o detalhe de como cérebros causam consciência», Searle pensa que é neste sentido que devemos orientar a nossa pesquisa das relações entre cérebro e mente, porque está em sintonia com a "nossa visão científica do mundo", que resume nestes termos:
«A nossa imagem do mundo, embora extremamente complicada em detalhe, fornece uma explicação bastante simples do modo de existência da consciência. De acordo com a teoria atómica, o universo é constituído de partículas. Estas partículas estão organizadas em sistemas. Alguns desses sistemas são vivos, e esses tipos de sistemas vivos evoluíram por longos períodos de tempo. Entre eles alguns desenvolveram cérebros que são capazes de causar e sustentar consciência. Consciência é, assim, uma característica biológica de determinados organismos, exactamente no mesmo sentido "biológico" em que a fotossíntese, a mitose, a digestão e a reprodução são características biológicas de organismos» (Searle).
Apesar da sua profundidade de pensamento e da sua defesa da "ontologia da subjectividade", Searle limita-se, no fundamental, a proferir uma "profissão de fé" numa determinada "visão científica do mundo", fortemente materialista, redutora e simplista, porque no âmbito desta concepção os animais dotados de consciência exibem outras características não mencionadas mas intimamente relacionadas com a consciência, tais como aquilo a que Searle chama no final do seu livro "A Redescoberta da Mente" «o carácter social da mente». Afirmar que "o cérebro causa a mente" é assumir uma tese do materialismo mecanicista, a que chama "naturalismo biológico", superada pela versão histórica e dialéctica do materialismo proposta por Marx.
Este "descuido" está bem patente na sua afirmação peremptória: «a ontologia do mental é uma ontologia irredutivelmente de primeira pessoa», como se a "sociedade" fosse estranha ou mesmo "externa" a essa ontologia da subjectividade! Não admira que Searle confesse que ainda não sabe «como analisar a estrutura do elemento social na consciência individual»! Se tivesse lido Mikhail Bakhtin, um discípulo de Marx, teria sido confrontado com este enunciado: «A consciência individual é um facto sócio-ideológico», porque a «consciência (só) adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso das suas relações sociais». Ou, no caso de desconfiar do marxismo, poderia ter levado mais a sério a teoria da génese social do "self" de George Mead ou mesmo a de Cooley! Mas Searle prefere fingir que re-descobre tudo o que já tinha sido descoberto, mediante o exercício individualista, portanto, descontaminado social e ideologicamente, do seu entendimento!
Em última análise, podemos dizer que Searle se limita literalmente a "re-descobrir" (termo que se inspira em Bruno Snell, cuja teoria Searle parece não compreender) aquilo que já tinha sido descoberto por outros filósofos, mas que, em virtude da sua ortodoxia dogmática, é incapaz de captar no seu carácter genuíno, aquele que aponta para além do biologismo. Neste sentido, é possível colocar "Searle contra Searle", tarefa que levaremos a cabo noutros posts, levando a sério a sua perspectiva de que «a filosofia da linguagem é uma ramo da filosofia da mente».
J Francisco Saraiva de Sousa

35 comentários:

Fernando Dias disse...

Acho que faz uma leitura perfeita de Searle. De facto, Searle no área da consciência comete muitos erros. Um deles é o de não ter conseguido libertar-se do cientificismo. É como o Francisco diz, “fortemente materialista, reduciunista e simplista”. Ainda por cima, quando ele próprio se tinha proposto deitar fora conceitos arcaicos de materialismo/idealismo. Só que acantonou-se no naturalismo, e com isso não melhorou a situação.

Claro que para partirmos a nossa pedra, o trabalho de Searle ajuda bastante, mais que não seja com os seus próprios erros. Aprende-se muito com os erros, tanto com os nossos, como com os dos outros.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, vou tentar desmontá-lo em diversos posts, porque ele merece e gosto dele. Como diz, "o trabalho de Searle ajuda muito". :)
Ele publicou outra obra, onde leva em conta o elemento social, mas ainda não tive acesso a ela. Não sei o que diz.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Papillon está hoje muito fechada nas suas meditações. Ela disse que actuamente revivemos os dualismos e os monismos, esquecendo o que os pré-socráticos disseram. A sua conclusão parece ser a seguinte: estamos condenados a vermo-nos como seres dualistas, embora não sejamos dualistas.
Este debate privado coloca na ordem do dia o dualismo! Afinal, o terror do dualismo pode ser um preconceito científico, até porque nunca foi deveras desmentido!

Fernando Dias disse...

Quem sou eu para saber o que pensavam Parménides e Heráclito?
Assim invento: ambos eram ontologicamente monistas. Mas Epistemologicamente Heráclito era monista e Parménides dualista.
É fácil ser ontologicamente monista, mas muito difícil sê-lo epistemologicamente, por causa daquilo que é embaraço em Searle: Temos evidência do conhecimento na primeira pessoa e conhecimento na terceira pessoa. Este é o “duro problema” de David Chalmers, o hiato mente-mente. A clivagem físico/fenoménica.

E qual é a vossa ideia acerca disto?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto aos pré-socráticos, não os tenho muito presentes nesses termos e a Papillon não justificou a perspectiva dela.
O Chalmers é um pouco "zombie" e, em última análise, é panpsiquista estranho. Mas os argumentos engenhosos deles não me tiram o sono, porque a consciência nunca esteve em causa, pelo menos para mim. Não faz sentido negar a consciência que se pode manifestar no seu "nada" de múltiplas maneiras. Ela é estranhamente múltipla e as fissuras ou cissões fazem parte da sua maneira de ser.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas a questão que debatíamos era a de saber se o dualismo não pode ser reformulado, em vez de descartado como "não-científico", porque no dia-a-dia nos vivemo e experienciamos como se fossemos seres duais. É por isso que os monismos não fazem sentido, pelo menos para a "psicologia popular".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Enfim, gostamos de "máscaras"... Não vejo a consciência como "física"...

Fernando Dias disse...

Então tem um conceito de consciência parecido com o budista lato senso (sabendo que há muitos budismos), mas na questão da consciência parece que não diferem.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não conheço o budismo... em primeira mão. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas penso que não preciso da mediação budista para explicitar o modo de ser da consciência. Filosoficamente, a fenomenologia ajuda e talvez a gnose tão maltratada.
O monismo é uma filosofia do poder instalado, qualquer monismo, seja materialista ou idealista. acho esta ideia digna de ser pensada. Não é por acaso que quando se critica certas versões do cristianismo venha à baila a "ressurreição dos corpos", o seu momento de verdade!

Fernando Dias disse...

Dualismo gnóstico? Séc II.
Fenomenologia do "entre-deux" merleaupontiano?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, a gnose tal como vista por Hans Jonas. Mas isso não significa adesão: apenas retomar a sua carga explosiva, politicamente explosiva.
Merleau-Ponty e Sartre são dois ponto-de-partida! E Marx... sempre como orientação de fundo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em suma, a "filosofia da mente" tal como praticada nos USA é profundamente ideológica e reaccionária, porque bloqueia a capacidade humana para mudar o mundo. Paradoxalmente, ela não se explica a si mesma!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Trata-se de retomar a fenomenologia da consciência, indo até Hegel. Merleau-Pnty dizia que "O Capital é uma "Fenomenologia do Espírito" concreta". Interessante!

Fernando Dias disse...

Concordo com a penúltima entrada : ela não se explica a si mesma.
Mas curiosamente a filosofia da mente americana (lato senso) ainda mantém a dualidade entre noções de sujeito e objecto. Sartre também. Mas Merleau-Ponty parece que não. Ou estou equivocado? O que é que lhe parece?

Na última entrada: Esta versão de Merleau-Ponty é hegeliana. A outra é husserliana

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Deste modo, podemos reformular o problema cérebro/mente e contribuir para a mudança social qualitativa, deixando a consciência antecipante "criar" o futuro... O materialismo "auto-supera-se" e conservamos a "magia", o encanto...

E. A. disse...

Exacto, é como diz: o dualismo nunca foi desmentido, daí ter evocado os arqueólogos do pensamento, os filósofos da natureza, os sábios pré-socráticos.
Negar a consciência, ou reduzi-la à sua fisicidade é um absurdo. Penrose, tal como Heisenberg, aludem à física quântica para superar o dualismo, mas são ineptos...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Husserl é um fenomenólogo transcendental e como tal foi desmontado por Adorno.
Merleau-Ponty procurava uma fuga quando morreu: "Visível e Invisível". A sua fenomenologia, mesmo no seu período husserliano, era existencial, influenciada pelo Ser e o Nada de Sartre, bem como por Heidegger.
Mas o corpo tem "centro", a menos que se recorra à "cabala" e outras seitas, o que ele fez ou fazia antes de morrer. A dialéctica permite mediar essa oposição.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penrose deve-nos a mecânica quântica não-computacional que complete a clássica! :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, Papillon, mas o Heisenberg e o Penrose aceitam a "consciência" e o último não a quer reduzir a um programa: negação da mente computacional dos zombies!
Mas tem razão: o dualismo é descartado mas ninguém o supera. Descartes era genial! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Merleau-Ponty diz: "o mundo é carne", a qual não é matéria, não é espírito, não é substância. Filosofia da carne! Carne, o meio formador do sujeito e do objecto! Refere-se a este Ponty, F. Dias?

Fernando Dias disse...

sim, mas eu não traduzo corpo no sentido de carne. A corporalidade está para lá da carne.

Descartes é genial na 6ª meditação

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Retomada por Husserl na sua 6ª Meditação Cartesiana, onde avança como o "análogo": o problema do alterego e do corpo de outrem. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Merleau-Ponty trabalhava numa "ontologia do ser bruto e do logos" e provavelmente a carne fosse a via seguida... A obra está inacabada e é extremamente tensa...

Fernando Dias disse...

Em relação ao corpo de outrem penso que Sartre saiu-se melhor com a fenomenologia da alteridade, em o ser e o nada, tentando fazer uma aproximação entre Husserl e Hegel (être pour autrui)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, é muito forte Sartre! Vou editar um post sobre o corpo em Sartre, mas ainda não o revi. :)

Manuel Rocha disse...

Olá, gente boa !

Vão jantar uma carne à Sartre ?!

Hummm...um menu antropófago...ainda bem que estou longe....::)))

Isto não é um comentário, apenas para os cumprimentar.
Já cá volto para a sobremesa !

E. A. disse...

Penrose diz que a mente n é assimilável por um qualquer software, é certo, mas tenta reduzir os fenómenos da consciência às leis quânticas, algo que n conseguiu... mas talvez alguém consiga!

Olá Manuel, bom apetite, tb vou fazer o meu jantar.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fazer o jantar? Linda menina! :)))

Manuel Rocha disse...

Olá Papillon!

Obrigado ! Já estou no café...um belissimo arábica puro da Jamaica ( Blue Mountain ) com uma bolacha de alfarroba...:))

Tentados ??

Agora, enquanto o Francisco trata do corpo ao Sartre, eu vou escrever "Sol e Sal", que foram o trampolim do Ocidente...até já !

E. A. disse...

Claro. Não tenho empregados. Quer ser meu escravo, Francisco? Eu juro que lhe dava um tempinho para vir ao blog escrever ensaios sobre filosofia da mente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não gosto de ser "slave". só "master"! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nunca comi "alfarroba"! Não soa bem! :(

Manuel Rocha disse...

Ah não ? Peça ao seu irmão que lhe leve uns biscoitos delas de Querença ou de S Brás ! Verá que se converte...:))

Já acabei o meu "Sol e Sal"...vou rever e publicar...brincadeiras à parte, por vezes tenho a sensação de que a história tende a esquecer as coisas que correm bem e o que nunca falha...será pré-deformação jornalistica com propensão para as noticias catastrofistas ??
:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, agora me lembro: já provei alfarrobas mas prefiro chocolate mesmo. :)))