quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Marxismo, Ateísmo e Cristianismo

«É inútil querer salvar um sentido incondicionado sem Deus.» (Horkheimer, 1963)
O autor desta frase que aparece em epigrafe é um filósofo marxista chamado Max Horkheimer, esse mesmo que escreveu o célebre ensaio intitulado "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" (1937), "o manifesto filosófico" da Escola de Frankfurt. Esta frase tirada de um ensaio mais tardio de Horkheimer (1963), "Teísmo-Ateísmo", justifica só por si a tese que pretendo defender, sem a desenvolver, neste post: O marxismo não é (teoricamente falando) um ateísmo.
Ao contrário de Nietzsche e de Freud, Marx nunca colocou a «questão de Deus» para a negar, isto é, negar a existência de Deus, embora tenha criticado a religião. O seu texto mais enfático a este propósito é um texto de juventude datado de 1843-44. Com efeito, na sua "Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução", Marx dedica muitos parágrafos à crítica da religião, enunciando a tese muito divulgada e mencionada segundo a qual a religião é o ópio do povo. Eis o texto:
«É esta a base da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem (Feuerbach). A religião constitui de facto a auto-consciência do homem, enquanto ele não se encontrou ainda ou não voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstracto, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo humano, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, produzem a religião que é uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritual, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e justificação. É a realização fantástica do ser humano na medida em que o ser humano não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indirectamente a luta contra o mundo cujo aroma espiritual é a religião.
«A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo uma expressão da miséria real e um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.
«A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é uma condição para a sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica embrionária do vale de lágrimas de que a religião é a auréola.
«A crítica colheu das cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem capricho ou consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo como seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório à volta do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio.
«Consequentemente, a tarefa da história, uma vez que o outro mundo de verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A imediata tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana na sua forma secular, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política».
Este texto (mais do que a "Questão Judaica" que merece ser estudada em diálogo com a sociologia da religião de Max Weber) circulou por todo o mundo e foi lido, juntamente com os escritos de Nietzsche e de Freud, com os quais tem algumas semelhanças, como uma espécie de manifesto do ateísmo, quando na realidade ele assume que o ateísmo foi uma ideologia burguesa realizada/superada e que, por conseguinte, a luta nesse momento era (e ainda é) contra a alienação económica.
Embora Jean-Paul Sartre tenha assumido o ateísmo e, portanto, o humanismo, a maior parte dos grandes pensadores marxistas nunca defenderam o marxismo como um ateísmo. Louis Althusser que rejeitou as obras de juventude de Marx, anteriores a 1845, como não sendo «marxistas», foi peremptório nesta «matéria»:
«...o ateísmo é uma ideologia religiosa (ateísmo como sistema teórico) e, por isso, o marxismo não é um ateísmo. (...) O Marxismo não é um ateísmo tal como a física moderna não é uma física anti-aristotélica. (...) O marxismo trata a religião, o teísmo e o ateísmo do mesmo modo que a física moderna trata a física aristotélica, lutando teoricamente contra ela quando esta constitui um obstáculo teórico, combatendo-a ideológica e politicamente quando constitui um obstáculo ideológico e político. Do ponto de vista teórico o marxismo opõe-se a toda e qualquer pretensão teórica da religião. Teoricamente, o marxismo não é um ateísmo, é uma doutrina que, na medida em que a religião existe como obstáculo, se vê obrigado a lutar contra ela. É preciso que isto se diga porque é verdade. Ora bem, existem leis para a luta teórica, ideológica e política; lutar não quer dizer matar as pessoas nem forçá-las a renunciar às suas ideias. Lutar pode ser também reconhecer o que certas ideias aberrantes escondem de positivo... com as ideias existentes, portanto, uma luta sem trégua. Com o positivo que as ideias indicam, escondendo-o. existem amplas possibilidades de entendimento e esclarecimento...» (Carta a Michel Simon, Agosto de 1966).
Curiosamente, quer Althusser tenha ou não tomado conhecimento, a obra de Ernst Bloch pode ser vista como uma leitura positiva de Marx com a religião judaico-cristã, levada a cabo em chave ateia, como testemunha a sua magnífica obra "Atheismus im Christentum. Zur Religion Des Exodos Und Des Reichs" (1968), de resto já presente nas suas obras anteriores "O Princípio Esperança" e "O Espírito da Utopia" (1918), para já não referir "Thomas Münzer: Teólogo da Revolução" (1919). Nesta obras, Bloch distingue uma corrente fria e uma corrente quente no marxismo: a primeira protagonizada por Engels é mais científica (ciência dialéctica das tendências), enquanto a segunda é mais utópica (nova ciência do futuro), não num sentido abstracto mas concreto: a Utopia Concreta, cujo conceito é pensado a partir de um novo materialismo ("Experimentum mundi", 1975). Para Bloch, «ateísmo e utopia concreta constituem, na radicalidade de um mesmo acto, simultaneamente a destruição da religião e uma esperança religiosa herética, uma esperança recolocada sobre os seus pés. A utopia concreta é a filosofia e a prática do conteúdo tendencial presente no mundo em estado de latência». O conceito de «transcender sem transcendência» (também usado por Jean-Paul Sartre) pode ser visto como outra maneira de dizer que a teoria de Marx está vinculada a uma filosofia escatológica da história que visa, em última análise, a realização do «reino da liberdade» (o equivalente marxista do Reino de Deus, mas sem Deus), num mundo sempre aberto à novidade e, portanto, à experiência do futuro, à experiência do mundo. Neste sentido, o marxismo autêntico e o cristianismo autêntico coincidem, tal como testemunharam as lutas dos camponeses guiadas pela "teologia da revolução" de Thomas Münzer. Embora refira Feuerbach, tal como fizera Marx, Bloch podia ter mostrado que a "Fenomemologia do Espírito" de Hegel era já, também ela, uma "antropologia secularizada e ateia". Sem este espírito utópico, o marxismo frio torna-se incapaz de orientar a práxis transformadora que visa a emancipação humana, bem como a "ressurreição da natureza", outro conceito de Marx muito pouco compreendido pelos seus discípulos (Veja Filosofia de Ernst Bloch).
A filosofia da Esperança de Bloch inspirou a "Teologia da Esperança" de Jürgen Moltmann e a Teologia da Libertação na América Latina (Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff). Todas superam o dualismo tradicional entre "história da salvação" e "história do mundo", sendo levadas a propor a realização da utopia concreta no horizonte da escatologia da história. Gutierrez defende que a história humana não é uma história paralela ao projecto salvífico de Deus, mas a estrutura concreta onde acontece a história da salvação: a história humana foi completamente assumida por Jesus Cristo. Ora, segundo a concepção de Bloch da religião desteocratizada e do "transcender sem transcendência", a ênfase é colocada na afinidade entre a escatologia utópica da Bíblia e a escatologia secularizada do marxismo. Para Bloch, o marxismo, dado ser um salto mediatizado do reino da necessidade no reino da liberdade, deve reclamar para si toda a herança subversiva e anti-estática expressa (evidente ou implicitamente) na Bíblia. Por isso, afirma que a Bíblia deve ser lida com os olhos do "Manifesto Comunista", sem deixar que o sal do ateísmo se torne insosso.
Embora não simpatizasse muito com o projecto filosófico de Ernst Bloch, Horkheimer, pelo menos o último Horkheimer, parece retomar um certo "teísmo do protesto", em chave evidentemente negativa, a partir do qual pretende esboçar uma nova ética, em confronto com as éticas "naturalistas". Assim, quando analisa o materialismo do século das Luzes, afirma que este colocou a natureza no lugar da divindade destronada (D' Holbach). Mas, como diz mais adiante, a natureza só pode ensinar o direito do mais forte e a autopreservação; não ensina a liberdade e a justiça. Por isso, Horkheimer pensa que, na nossa era de questionamento constante de Deus, o teísmo constitui o pensamento de uma realidade mais justa, até porque o ateísmo em voga se tornou o pensamento do poder: sem a referência ao divino, a acção boa perde a sua glória, a salvação daqueles que são injustamente perseguidos e condenados à exclusão social. Na hora presente, a teoria crítica recupera o seu lado teológico: a «expressão de uma ânsia, de uma nostalgia de que o assassino não pode triunfar sobre a vítima inocente». A sua teologia (negativa) teísta é «a esperança de que a injustiça que caracteriza o mundo não pode permanecer assim, que o injusto não pode ter a última palavra».
Que diversidade de interpretações do pensamento de Karl Marx! Penso que todas elas mostram que a teoria de Marx não é um ateísmo ou mesmo um humanismo. O «regresso às próprias coisas», proposto por Husserl nas suas Investigações Lógicas, já tinha sido proposto por Marx, de uma forma exemplar que abriu a Filosofia à empiria, ensinando os filósofos a estar atentos ao devir da realidade, sem dogmatismo e posicionando-se sempre contra a injustiça e a falta de liberdade. Por isso, a teoria de Marx assumiu sempre a forma de uma crítica, mas de uma crítica em constante devir, porque também a realidade social sobre a qual incide está em devir.
E, quanto à religião, Marx sabia que só há Deus ou Sagrado onde existem homens ou, por outras palavras, onde existem homens há Deus: «O significado dos conceitos (em especial desta oposição entre ateísmo e teísmo) não permanece inafectado pela história, e a sua transformação é infinitamente diferenciada» (Horkheimer). Por isso, nesta hora em que o Ocidente é confrontado com fundamentalismos terroristas, uns demasiado teístas, outros plasticamente ateus, não compreendo como se pode estudar Filosofia e tirar um curso de Filosofia sem nunca se ter estudado História Comparada das Religiões, Filosofia da Religião e Teologia! Em vez disso, dizem-se palermices a partir da leitura incompetente de obras de divulgação científica, num estilo claramente opinativo e sofistico, sem levar em conta a história dogmática da nossa herança ocidental, portanto, a nossa tradição crítica de pensamento. Ora, a hora presente exige a elaboração de uma teoria filosófica da religião, pensada no âmbito da antropologia filosófica e levando em conta a antropologia teológica, em especial a de Moltmann, a de Paul Tillich, a de Rudolf Bultmann e a de Wolfhart Pannenberg. De uma maneira ou de outra, todos nós mortais ansiamos pelo «inteiramente Outro» (Horkheimer), isto é, por Deus, a justiça plena!
J Francisco Saraiva de Sousa

15 comentários:

Fernando Dias disse...

Concordo.
O marxismo, assim como o budismo, teoricamente falando, não são uma religião mas uma filosofia. Mas se falarmos na prática, ambas levaram a uma religiosidade. Podemos conceber religiosidade sem a existência de um Deus. E vamo-nos dispensar de definir religiosodade.

Nem um nem outro contêm entre os princípios e os fins a possibilidade de uma entidade como um Deus. E nesse sentido não se podem considerar verdadeiramente ateístas, porque nem sequer dão espaço ao equacionamento: contra ou a favor da existência de Deus. O ateísmo tem de admitir nas suas premissas a hipótese da possibilidade da existência de Deus e depois conseguir demonstrar que tal hipótese é impossível.

Fernando Dias disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Fernando Dias disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Fernando Dias disse...

Peço desculpa, mas houve aqui um problema informático. É só um comentário!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi F. Dias

É isso mesmo... Há efectivamente uma "religiosodade" sem Deus, assim como existem religiosidades que procuram manipular Deus.
Temos diante de nós uma tarefa colossal: clarificar a filosofia e talvez elaborar uma nova teoria (filosófica) da religião. Mais: verificar que o cristianismo tal como o conhecemos, nos seus grandes textos, está sempre já helenizado. Aliás, como diz Bloch, o cristianismo traz em si o "ateísmo"; aponta para a sua superação. Althusser associou ateísmo e humanismo e rejeita-os como sendo versões da mesma "ideologia teórica", alheia ao marxismo. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não faz mal, acentua a ideia fundamental três vezes... assim ninguém pode queixar-se de não ter compreendido..., após três leituras. :)))

Manuel Rocha disse...

Bem...se o meu negócio fosse filosofia fazia-lhe já uma oferta de emprego...com a sua produtividade não haveria patrão que não o quisesse para empregado...hummm...a menos que você se tenha antecipado e já tenha por aqui uns estagiários a filosofar para si....::)))

Tudo isto para dizer que acompanhar esse débito é quase ocupação a tempo inteiro, e como sou comentador não remunerado já cá volto mais tarde...::))

Manuel Rocha disse...

Mas, de resto, e se não estou em erro, não foi o próprio Marx quem considerou que o Cristianismo e o Materialismo Dialáctico eram as únicas concepções do Mundo que podiam reivindicar-se como tal ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... Bem precisava de uns estagiários, mas o actual governo, tal como todos os outros, não é sensível à Cultura, isto é, à Filosofia. Aliás, como dizia Pascoaes, os lusos são pouco dados ao pensamento...; bem nem todos, evidentemente! :) ou :( ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Caro Manuel Rocha: é verdade o que diz. Daí que tenha referido abundantemente Ernst Bloch, uma obra difícil de traduzir mas exemplar. injustamente esquecida, pelo menos em Portugal.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Devo esclarecer que, nestes posts, prefiro esquecer-me e lembrar os grandes pensadores e filósofos... Sou um mero guardião do Ocidente! :)))

Manuel Rocha disse...

Agora que já arranjei tempo para lhe digerir este "tratado" ( tem mesmo a certeza de que não tem aí uns estagiários a mais??...dava-me cá um jeito um deles de empréstimo...::)), claro que tenho que cumprimentá-lo pelo excelente trabalho ( e dos estagiários, bem entendido...).

Existe de facto à solta uma certa arrogância que escamoteia à partida, e com suporte numa razão e numa lógica datadas, comprometidas, e muitas vezes distorcidas, tudo o que é diferente apenas porque o é !

Julgo que andam por aí os seus alvos e confesso que se fosse um deles me sentiria neste momento arrasado....::))

Uma nota para o comentário ao Quin que deixou lá no meu lado...olhe que a frase que critica é minha e não dele ( ele estava a citar-me )...:)), pelo que o homem está inocente ! De resto venho reinvidicar a critica que me é devida para me poder defender à altura, ora essa....:::)))!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas não vê o "comunitário" à Sandel?
Não sou contra o comunitário, desde que não se construa à custa do individual... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Deixei-lhe comentário no seu post. a pedir-lhe que explicite esse "primado". :)
Quanto às "múmias", todos as conhecemos... :)

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Já me expliquei...espero que suficientemente...::))

Depois me dirá...:)