sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Crítica e Sociedade

«Tudo fervilha de comentários; de autores há grande penúria». (Montaigne)
Numa sociedade sem oposição, como a nossa, e não me refiro à ausência de oposição política credível ao governo socialista de José Sócrates, convém lembrar um dos filósofos que dedicou toda a sua vida a criticar a sociedade estabelecida, em nome de um princípio de realidade mais livre, justo e solidário: Herbert Marcuse. Mas, antes de passar ao seu texto, desejo retomar Montaigne, que, numa única frase, caracterizou profeticamente o estilo de pensar da nossa gente metabolicamente reduzida: «Tudo fervilha de comentários; de autores há grande penúria». De facto, ouvindo os nossos comentadores, jornalistas, políticos ou até amigos, concluímos que, sem assunto ordenado, sagaz e competente, a conversação degenera em tolice. Os luso-tolinhos falam, sem se darem conta que «os reis e os filósofos defecam, e as senhoras também». O comentário feito sem conhecimento, competência e espírito crítico, é sintoma de atrofia cognitiva e mental. O tratamento consiste em apostar novamente num ensino centrado na aprendizagem de conteúdos objectivos de conhecimento, sem os quais a crítica degenera em retardamento mental.
Aqueles que desejam salvar a sua mente encontram neste texto de Marcuse uma orientação crítica, que os pode ajudar a livrar-se das pseudo-verdades do positivismo do pensamento único, do «politicamente correcto» e da sua falta de coragem, de modo a conquistar a sua autonomia. Os bloguistas devem ler este texto e meditar seriamente na sua compulsão opinativa e bajuladora em relação a supostos poderes estabelecidos na blogosfera. Vejam como Marcuse opõe a dialéctica ao positivismo:
«A filosofia de Hegel é, na verdade, aquilo de que foi acusada pelos seus opositores imediatos: uma filosofia negativa. Ela é, na sua origem, motivada pela convicção de que os factos que aparecem ao senso comum como indícios positivos da verdade são, na realidade, a negação da verdade, tanto que esta só pode ser estabelecida pela destruição daqueles. A força que move o método dialéctico está nesta convicção crítica. A dialéctica está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas do ser são perpassadas por uma negatividade essencial, e que esta negatividade determina o seu conteúdo e movimento. A dialéctica constitui a oposição rigorosa a qualquer forma de positivismo. De Hume aos positivistas lógicos da actualidade o princípio de tal filosofia tem sido o prestígio definitivo do facto, e o seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato. O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma “filosofia positiva” que englobaria todo o saber e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e acrítica da sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os factos, a renunciar a transgredi-los e a submeter-se à situação vigente. Para Hegel, os factos, enquanto factos, não têm autoridade. Eles são propostos pelo sujeito, que os mediatiza pelo processo de compreensão do seu desenvolvimento. A verificação repousa, em última análise, neste processo, ao qual se relacionam todos os factos, e que lhes determina o conteúdo. Tudo o que é dado tem que se justificar ante a razão; esta nada mais é que a totalidade das capacidades da natureza e do homem.
«A filosofia de Hegel, entretanto, que começa com a negação do dado e conserva por toda a parte tal negatividade, chegará a concluir que a História atingiu a realidade da razão. Os conceitos hegelianos básicos estão ainda vinculados à estrutura social do sistema dominante e, sob este aspecto, pode dizer-se que o idealismo alemão preservou a herança da Revolução Francesa.
«Mas a “reconciliação da ideia com a realidade”, proclamada na Filosofia do Direito, de Hegel, contém um elemento decisivo que anuncia mais do que a mera reconciliação. Este elemento foi preservado e utilizado pela doutrina posterior de negação da filosofia. A filosofia atinge a sua meta quando formula a visão de um mundo no qual se realiza a razão. Se neste momento a realidade reunir as condições necessárias para materializar a razão, o pensamento pode deixar de se referir ao ideal. A verdade exigiria então a prática histórica real para realizar o ideal; ao deixar este de lado, a filosofia renuncia à sua tarefa crítica, transferindo-a a uma outra força. O ápice da filosofia é, pois, ao mesmo tempo, a sua renuncia. Libertada da preocupação com o ideal, a filosofia desobriga-se também da sua oposição à realidade. Isto significa que ela deixa de ser filosofia. Não se conclua, porém, que o pensamento deva compactuar com a ordem existente. O pensar crítico não cessa, mas assume nova forma. Os esforços da razão voltam-se para a teoria social e para a prática social» (Herbert Marcuse, Razão e Revolução).
J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aveugle.Papillon
Não encontrei o seu comentário. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok Já vi o seu comentário ao poema de Guerra Junqueiro. Ainda bem que gosta deste poeta e homem corajoso, com a sua dimensão heróica num país indigente. A foto foi tirada quando falava para alguém com TV nessa direcção. :)