A filosofia contemporânea procura repensar em termos positivos o corpo e, neste esforço, vai ao encontro da preocupação fundamental de Maurice Merleau-Ponty, de Wittgenstein ou mesmo de Jean-Paul Sartre. Apesar do interesse contemporâneo manifestado pelo corpo, frequentemente associado ao nome de Michel Foucault, ainda carecemos de uma teoria geral do corpo, capaz de apresentar uma síntese activa dos conhecimentos científicos disponíveis sobre o corpo na sua "unidade dinâmica" com o self e a agência e nas suas relações como o mundo e os outros, com os tempos e com os espaços. De certo modo, António Damásio tem razão quando reivindica um papel central para o corpo na resolução do problema cérebro-mente. Giddens parece ser o único teórico social a tentar integrar o corpo numa teoria abrangente, mas à custa de menosprezar os conhecimentos biológicos e médicos a favor da teoria social. A sua tese de que «o self está encarnado num corpo» já tinha sido enunciada por Merleau-Ponty numa tentativa derradeira de superar o dualismo da tradição judaico-cristã e grega. Contudo, qualquer tentativa teórica de superar o dualismo pode converter-se, nas actuais circunstâncias, em mera ideologia, isto é, mera justificação das assimetrias de poder e da dominação económica. Michel Foucault analisou o corpo em relação aos mecanismos do poder, destacando a emergência do "poder disciplinar" em circunstâncias de modernidade. Para Foucault, o corpo torna-se no foco do poder e o poder nas sociedades modernas, em vez de tentar "marcar" o corpo externamente, como nos tempos pré-modernos, sujeita-o a uma disciplina interna de auto-controle e, através de múltiplos mecanismos disciplinares, produz "corpos dóceis". A visão do corpo aqui presente é incompleta e absolutamente acrítica. Foucault ilude a relação entre corpo e agência, torna-os equivalentes, como se corpo mais poder fosse igual a agência! Conforme lembra Giddens, a disciplina corporal é intrínseca ao agente social competente e constitui uma característica contínua do fluxo de conduta na duração da vida diária. Sob a influência de Nietzsche, Foucault procura "demarcar" a sua teoria do poder da teoria marxista, sem se aperceber que a filosofia de Nietzsche que o inspira é infinitamente inferior à filosofia de Marx. A atenção e o modo como tratou a sexualidade revelam a fragilidade da sua teoria do corpo. Actualmente, a afirmação do corpo tende a identificar-se com a afirmação da sexualidade encarada numa perspectiva consumista. O corpo como "ser sexuado" (Merleau-Ponty) possibilita facilmente essa falsa manobra de superação do dualismo a favor de um discurso redutor: aquele que afirma que o corpo mais poder é igual a agência. Ao abolir o self, a teoria do corpo tende necessariamente a glorificar a ordem estabelecida, cujos poderes produzem corpos dóceis e passivos à custa da fragilização do self e da atrofia das suas competências cognitivas. A sobrevalorização e a domesticação da sexualidade ou mesmo da moda neutralizam a força do pensamento negativo e do seu agente. A superação teórica do dualismo é, portanto, mero reflexo dos imperativos económicos. A noção marxiana do corpo como «feixe de necessidades» revela o carácter colonizador do poder económico, como demonstrou Marcuse, ao mesmo tempo que possibilita a elaboração de uma economia política do corpo. A afirmação nietzscheniana do corpo é, no fundo, um pensamento decadente que capitula diante da sociedade estabelecida: o corpo como único veículo da identidade social, como mostraram Goffman ou Umberto Eco, significa que o self está "ausente" ou, pelo menos, que se tornou demasiadamente frágil, impotente e incapaz de pensar por si próprio. A sua relação com o corpo tornou-se hetero-instrumental (a economia precisa de corpos consumidores, passivos e destituídos de self autónomo) e auto-fetichista (o eu esgota-se na superfície corporal, frequentemente sujeita a mutilações, perfurações ou tatuagens, muitas das quais identitárias). A colonização económica do corpo parece indicar que, nas actuais circunstâncias, todas as tentativas monistas de superar o dualismo, quer numa direcção materialista, quer numa direcção espiritualista, correm o risco de glorificar a sociedade estabelecida e, portanto, incapazes de apresentar alternativas sociais qualitativas. Os monismos esquecem que o "cogito encarnado" num corpo (Merleau-Ponty) pode entrar em conflito com o seu próprio corpo, como acontece em determinadas perturbações, tais como o transexualismo vulgarmente definido como «uma mente feminina prisioneira num corpo masculino». Esta perturbação pode ser vista como uma perturbação da identidade corporal movida pelo desejo de automutilação ou auto-amputação, e, como tal, pode funcionar como modelo na elaboração de uma teoria negativa do corpo articulada com uma teoria do self no âmbito da antropologia filosófica, portanto, dialéctica. J Francisco Saraiva de Sousa
21 comentários:
Quero salvarguardar Nietzsche dado ter sido mal tratado: ele n queria nenhum "monismo" fundado no corpo, pois monismo ou dualismo são conceitos idealistas, dialécticos. Ele n falava numa heteronomia do self pelo corpo, aliás ele falava frequentemente em autonomia e autarquia e essa releva fundamentalmente de um self que é constituinte de um todo orgânico. Deleuze depois reinterpreta esta teoria com as noções de multiplicidade, agenciamento, devir, etc. E Foucault segue-o...
A não-identidade corporal é uma doença, n sei até q ponto pode ser tomada como argumento.
Além disso Freud n dizia que todas as mulheres invejam o pénis e todos homens desejam conceber? Eu desejaria ter um pénis também, mas uma prótese n me chegava, por isso prefiro ter uma vagina perfeita.
Boa Noite
Não critiquei Nietzsche mas a sua teoria do poder tal como se manifesta nos franceses.
Não tenho lido Deleuze, por falta de tempo. E raramente aprecio os pensadores franceses, sobretudo os contemporâneos.
Sim, Nietzche tem os seus martelos e, por vezes, aproxima-se de Kant e da autonomia. Mas a sua glorificação do corpo, pelo menos no Zaratustra, não é revolucionária e a sua teoria não ilumina a praxis transformadora.
Mas o transexualismo e outros fenómenos mostram a tensão entre o sujeito e seu corpo. :)
N disse q a filosofia do corpo era revolucionária e, de facto, n consegue lançar uma proposta ética consistente.
Mas também n deve dizer que a sua resposta é decadente, qual é a resposta saudável? A marxista?
Eu n preciso de nascer mulher e desejar ter um pila ou o contrário para haver tensão entre sujeito e corpo. É uma coisa normal no ser humano...
No caso do transexualismo é diferente porque há mesmo uma necessidade de ser e parecer do sexo oposto, o que n deixa de ser uma aberração, com todo o respeito que tenho por essas pessoas que são, aliás, tremendamente corajosas por preferirem mutilar-se e ter vaginas como se fazem chouriços... é preciso estar-se mesmo doente e em grande desespero para fazer mal ao próprio corpo. Penso eu... :)
A marxista ajudou a melhorar o mundo. Marx não tem uma teoria do corpo, pelo menos em estado teórico: apenas indicações. algumas ainda não trabalhadas.
Afilosofia deve orientar o mundo, caso contrário, é discurso perdido.
Tive a ler o Foucault de Deleuze: uma linguagem imaginativa mas pouco produtiva. Blá-blá ... muito blá-blá e que resta? Diagramas, forças, relações, multiplicidades, agenciamentos,...? :(
Gosto muito mais de Nietzsche e Freud do que de Marx. Por falar nestes três, Foucault tem um livro, ou melhor, um pequeno ensaio, em que fala destes três.
Deleuze é muito difícil pela linguagem e pelas imagens matemáticas, estudou matemática... gosto da teoria do devir em Mille Plateaux.
Bon soir, Monsieur!
Quanto ao transexualismo, não defendo nem critico: aceito-os na sua diversidade e diferença. Tem "devir genético", para falar à Deleuze (sic): certos alelos explicam essa perturbação. Mas fui mais longe ao reter o modelo da amputação. Tensão entre corpo e mente que varia em várias multiplicidades ou direcções. Isto mostra que não basta falar num self encarnado para resolver este problema. Há ali "dualismo", duas identidades em colisão. Não podemos descartar o "mental"... Era nessa direcção que dirigi este post que não pretende apresentar uma teoria do corpo..., evidentemente...
N é uma questão de aceitar ou criticar moralmente falando, pois trata-se de um sentimento incontrolável, devastador. A aceitação é tb inevitável.
Tive um colega de curso que de "João" num ano passou para "Joaquina" noutro e é estranho porque parecia mais um mutante e não homem ou mulher. Na adolescência passei uma fase que queria ser "ambivalente" e n tinha nada a ver com bissexualidade, era mesmo desejo de superar o sexo, numa confusão entre os dois. Mas depois rendi-me à minha feminilidade.
E a teoria do devir mulher de Deleuze pode-se encaixar no fenómeno do transexualismo!
Vou pensar no devir-mulher de Deuleze. Interessante! Em que obra? :)
A joaquina tem uma vagina plástica? Já deve estar direitinha. :)
Está onde lhe disse, Mille Plateaux.
Ela ainda n tinha sido castrada. Por isso n sei. Bastou-me ver fotografias de uma operação de reconstrução de vagina para... não querer saber.
Graças a Deus que amo o meu corpo.
Só tenho o primeiro volume dessa obra sobre capitalismo e esquizofrenia.
Capitalismo e Esquizofrenia é o sub-título da obra. A teoria dos devires está no volume IV.
Há em brasileiro traduzido por "mil platôs"...
Sim, já a tinha visto mas não a comprei.
Um blogue faz crítica cerrada aos meus posts com posts equivalentes mas com orientação teórica diferente, como se tudo decorresse das diferenças sociais impostas a uma suposta igualdade biológica e genética. Que horror de pensamento que tenta tapar o sol com uma peneira!
O Francisco é "belicista" e combatente em tudo. Se não gosta do que esse blog publica, ignore. :)
Reagi com novo post. :)))
:))) É homem, sem dúvida, mas também muito excitável!
Sou lutador e muito ocidental. Quando tentam fazer injustiça, dou muita luta. Não suporto "mentira intencional" ou oportunismo. :)
Então é homem, excitável e ingénuo. Mas é adorável. :)
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