terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Montaigne e Eros Liberto

Lido por Descartes, Pascal ou mesmo por Kant, Michel de Montaigne ocupa um lugar fundamental na história das "cartografias do Self", junto de Platão, Santo Agostinho, Descartes, Locke e Rousseau.
Com efeito, a sua obra «Os Ensaios», dedicados à descrição de si mesmo, inicia um outro tipo de individualismo moderno, o da auto-descoberta, que difere do cartesiano tanto no objectivo como no método. Montaigne procura identificar o indivíduo na sua diferença e desenvolve o seu pensamento por meio de uma crítica de auto-interpretações de primeira pessoa, ao passo que Descartes nos fornece uma ciência do sujeito na sua essência geral, utilizando as provas do raciocínio impessoal. Portanto, Montaigne parte à busca do Self para chegar à harmonia consigo mesmo, de modo a mostrar «aquilo que sou essencialmente» (identidade).
Este post vem a propósito de um diálogo que Aveugle.Papillon estabeleceu comigo no meu post Auto-Estima e Tamanho do Pénis. Com efeito, a pesquisa das dimensões do pénis ainda é, pelo menos em Portugal, um assunto tabu. Ora, no seu tempo (século XVI), Montaigne tratou desse assunto, de uma forma arrojada e muito actual, denunciando a hipocrisia do seu tempo e retomando a coragem dos autores clássicos, incluindo Platão, que falavam (e representavam) natural e abertamente do nudismo, do "acto genital" ou das "partes pudendas". Montaigne afirma mesmo que «cada uma das minhas partes me faz tão igualmente eu quanto qualquer outra. E nenhuma outra me faz mais propriamente homem do que essa (o pénis e seu tamanho)».
Como argumento de base, lembra que «em quase todo o mundo, essa parte do nosso corpo era deificada». Por isso, para Montaigne, não faz sentido não ousar «falar dele sem vergonha» e excluí-lo das «conversas sérias e regradas». Porém, Montaigne vai mais longe na denúncia dessa hipocrisia: «Acaso não podemos dizer que, durante esta prisão terrestre, não há em nós nada puramente corporal nem puramente espiritual, e que injustamente dilaceramos um homem vivo; e que parece haver razão para que nos comportemos, com relação ao exercício do prazer, pelo menos tão favoravelmente quanto o fazemos para com a dor?» Com esta questão (retórica), Montaigne revela a sua concepção da condição humana e defende uma «filosofia das voluptuosidades corporais», injustamente denegridas pelas doutrinas que desprezam uma parte da natureza humana. E, fazendo-nos lembrar a obra de Marcuse, «Eros e Civilização», professa valorizar todos os prazeres, ampliando-os para além da sua dimensão sensual (relativa aos sentidos), com a participação da alma, de modo a levarmos uma vida conforme a condição humana.
Fonte: Livro III d' Os Ensaios de Montaigne, V/Sobre Versos de Virgílio, mais conhecido por Do Amor.
J Francisco Saraiva de Sousa

33 comentários:

E. A. disse...

E lido por Nietzsche! Ele diz (penso que no Ecce Homo, mas não tenho a certeza): "Terei eu a vontade de poder de Montaigne no corpo? Quem me dera, e talvez na alma!" É algo assim, parafraseado.

Montaigne é grande, não se pode dizer grande filósofo, mas grande homem, e é isso que Nietzsche faz apologia, a grandes homens! Montaigne é o último vislumbre de luz no ocaso de uma grande época: o Renascimento. Não é por acaso que os Ensaios tenham ido para o index. (Sim, porque Pascal leu-o, mas precisamente para o criticar de herege e Descartes leu a Apologia de Raymond Sebond, onde é exposto o seu cepticismo ou metodologia céptica). E só nos finais do séc. XIX e durante o século XX, começou a ser novamente lido e estudado em toda a sua profundidade.

Será que é possível renascer outro homem assim, neste nosso tempo, Francisco? Ler Montaigne por um lado engrandece a alma, mas por outro pressente-se a sua inactualidade: parece que os homens nobres pereceram de vez...


[Afinal, estava lá, no livro V! E tb estava lá aquilo que eu disse no outro comentário?]

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto, Nietzsche, Cassirer, Merleaun-Ponty..., tem sido lido até hoje.
Sim, esta nesse ensaio, mas a tradução brasileira que usei dificulta a compreensão, bem como a dos clássicos vertidos em português.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não reli de novo o ensaio, mas reli umas pequenas partes, seguindo os sublinhados de outrora.
Gosto também de Emerson, outro grande homem. Vivemos tempos indigentes, como dizia Rilke..., portanto, sem grandes homens.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Cassirer trata do seu suposto cepticismo epistemológico, na sua obra "O Problema do Conhecimento", juntamente com o nosso Francisco Sanchez, tão esquecido pelos portugueses. Não estou seguro desse cepticismo..., mas o que me fez reler «Os Ensaios» foi a sua concepção do canibalismo. Infelizmente, as obras de Cassirer não estão traduzidas. Martins Fontes editou a "Filosofia das Formas Simbólicas". Mas o curso de Filosofia é muito pobre..., uma miséria de pensamento.

E. A. disse...

Nunca li Emerson, mas sei que é influenciado por Montaigne. Vou tentar ler.

Obrigada por ter feito este post. Como já percebeu gosto muito de Montaigne; alguns ensaios deviam ser de leitura obrigatória na escola, assim como as Confissões de S. Agostinho, o Symposium de Platão, etc. Os alunos perceberiam o quanto e quão temos de aprender com os antigos, e que nós os "pós-modernos" somos mesmo "indigentes" diante dos grandes (Rilke, como grande poeta, diz com facilidade a verdade)... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A obra de Emerson também se chama "Essays". :)
Existem duas traduções portuguesas parciais: da Imago e Martin Claret, esta de bolso e mais baratinha (5 euros). Ambas do Brasil! "História" e "A Supra-Alma" merecem ser lidos.

E. A. disse...

Sim, também não acho que Montaigne seja "céptico"; aliás Montaigne é muitas coisas ao longo dos seus ensaios: estóico, epicurista... ama Séneca e Lucrécio, isso é evidente. Mas o que é facto é que o único ensaio mais sistemático, o ensaio XII do livro II - a Apologia, onde ele parece adiantar um cepticismo epistemológico e moral também!

Diz que o curso de Filosofia é uma miséria por não dar Cassirer? Eles não tem que dar tudo. A mim não me deram Montaigne: fui eu que li e estudei, tirando dúvidas com um professor. Montaigne é um filósofo menor. Eles têm que escolher.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E as "Confissões" de Rousseau e seu duplo-Eu...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou reformular o curso, abrindo novas cadeiras, umas semestrais, outras anuais. Os cursos de ciências dão "tudo" e de modo "exaustivo" e "rápido".

E. A. disse...

Isso foi ironia ou está a falar a sério?
Os cursos de ciências exigem competências muito diferentes, ou pelo menos diferentes, de um curso de Filosofia!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Até bem recentemente os filósofos não falavam desse modo. O curso deve fornecer as corrdenadas ferais da filosofia, fazendo opções de fundo, mas sem esquecer o básico. A compreensão de um Grande Filósofo exige conhecimento dos "menores". Daí a necessidade de disciplinas semestrais que façam essas ligações e que explorem novas áreas, incluindo as ciências fundamentais. Caso contrário, o curso não tem saída profissional ou científica.

E. A. disse...

Eu concordo consigo em parte: porque de facto como já tivémos oportunidade de discutir sobre isso, o curso de Filosofia (e acho que podemos falar de todos em Portugal) parece que é alheado do mundo, parece que nada do que traga o mundo, a sua evolução tecnológica e científica, os seus traumatismos também (terrorismo e outros fenómenos), modificarão substancialmente o pensamento. O que é um erro, como concluimos.

Por outro lado, não concordo numa "administração" da Filosofia como exemplifica, porque foi tentada na minha escola e foi um fiasco - o extinto curso de História das Ideias: curso com cadeiras de Filosofia e de História da Filosofia, que só serviam para os alunos terem grandes notas, porque não precisavam de problematizar e pensar apenas de engolir e vomitar a matéria. Daí ter ficado intrigada com o que propõe.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"História das Ideias" dispenso: nunca concordei com essa ideia peregrina.
Não concordo com a redução do curso de filosofia a uma emanação ectoplasmática de 3 ou 4 professores sem obra filosófica.
Repare: Pense em Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Marx: Alguma área do conhecimento era-lhes estranha? Não. Agora há a mania de que o ente pertence à ciência e o ser à filosofia. Em suma: a filosofia ficou com "nada". O que Heidegger dá à filosofia? Ser=tempo? Não concluiu a obra. Ser=acontecimento? Nada... Estou a ser duro com ele, intencionalmente.
Despejar matéria? Porque foi mal dada e as frequências mal elaboradas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas a filosofia não é história, embora a sua história lhe pertença, a ela e só a ela, não aos historiadores.
Comentar textos não esgota a actividade filosófica. A filosofia tem "exterior". Deve estudá-lo.

E. A. disse...

Interessante o que diz... penso que "a mania de que o ente pertence à ciência e o ser à filosofia", demonstrada por Heidegger, não é inconveniente, porque, o que é facto é que a filosofia para Aristóteles era sophia+nous diferente do conhecimento científico, a episteme. O que tem mudado são as descobertas científicas que permitiram emancipar algumas ciências que eram do domínio da filosofia, como a psicologia, a sociologia, a antropologia etc. E a filosofia não querendo ser outra vez retórica e sofística, perguntou pelo Ser novamente, a pergunta de Heidegger.
Não sei. Obrigada por me ajudar a reflectir. :)

O meu curso é de Filosofia, sem História das Ideias, mas os colegas que o tiraram tinham de facto grandes notas, porque como a matéria era dada às colheradas, um bocadinho disto, um bocadinho daquilo, era bem mais fácil do que tratar um problema específico. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu sou mais imperial na minha concepção de Filosofia: guardo o lugar e zelo pela cultura ocidental. Mas, desse prisma, a história da filosofia está a ser anexada pelas ciências autonomizadas, não? Ora, para mim, isso não faz sentido: o conhecimento científico também faz parte da nossa herança e devemos zelar por ele.

E. A. disse...

Sim, a Filosofia é irredutivelmente grega, ocidental. Não disse o contrário.

Então, a filosofia como matriz de todos os saberes, como a raiz, como a entende Descartes? Esta ideia não é bem-vinda pelas ciências autonomizadas. Zelar pelo conhecimento científico e não ser conhecimento científico - é esta a ambivalência da filosofia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há Hegel e Marx e seus discípulos: para eles esse problema não existe. Abordam todos os problemas, sem temer as chamadas ciências sociais. A teoria crítica faz o mesmo. Toda a realidade pode ser abordada pela Filosofia. Esta não é mais uma área ou disciplina.

E. A. disse...

Ok. Vou pensar nisto. :)

E. A. disse...

Mas poder ser tudo ou chegar a tudo, também equivale a não ser nada. Não sei, tenho que pensar.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Crítica da ideologia e da sociedade. Estou sem saber que tema abordar depois da meia-noite.
Cumprimentos :)

E. A. disse...

O Francisco é muito fértil! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A minha fertilidade está impaciente!
Agora sinto cientificamente a blogosfera: um bando de pessoas pouco originais, salvo boas excepções. Há um grupo que bajula os jornalistas, na esperança talvez de virem a fazer jornalismo. Não percebem o sentido da crise: pouco críticos, muito apáticos.

E. A. disse...

:D
Eu não leio esses blogs; são geralmente enfadonhos porque superficiais e, como diz, pouco criativos.
A blogosfera não é mais que a reprodução da sociedade. Com o conforto acrescido do anonimato. :)

[Quando digo que é fértil queria dizer que é produtivo...]

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, compreendi. Mas preciso de ser picado para produzir. Estive a ver onde param os meus posts e estão dispersos pelo mundo, curioso! Mas a blogosfera exige espírito de sobrevivência... e estou sem saber o que tratar. Pensei nos jovens devido ao relatório da OCDE, mas tenho abordado isso: todos sabemos que os jovens estão a regredir em termos cognitivos. É isso... estou sem ideias.

E. A. disse...

Mas, escreve todos os dias para que as pessoas o leiam todos os dias? É isso que entende por "sobrevivência da blogosfera"?
Sim, acredito que os seus textos naveguem pela internet, mas não para os melhores fins, penso eu. Quero dizer: plágios, reproduções, etc.

O relatório da OCDE é interessante, mas só vem comprovar o que todos suspeitamos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, tem razão. Demasiado evidente!
Somos lidos todos os dias e muitos brasileiros. Pena é que me contactem mais via e-mail. Gosto de "conversar online". É claro que inicialmente não tinha isto em vista, mas, sem esta interacção diária, ficamos isolados. Há muita rivalidade e o jornalismo reduz ou tenta reduzir tudo a si mesmo. Devemos lutar contra esta presença jornalística que atropela a mente. Uma nova função para a filosofia: desconstruir o jornalismo e suas "notícias". :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Os direitos de autor estão garantidos. :)

E. A. disse...

Que interessante. Mas, então, diga aos seus amigos brasileiros que comentem aqui, para eu e outros podermos ler e se alargar o número de intervenções e tornar o diálogo mais interessante.

Antigamente ia para jornalismo quem queria ser escritor, quem amava as palavras, como os poetas e os filósofos. Agora muitos deles não sabem escrever, as suas reportagens estão sempre pejadas de senso-comum, clichés, palavras na "moda", tipo "deslocalização" (que nem existe) e coisas que tais, deve conhecer estes "recursos" bem melhor que eu...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Alguns já publicaram os comentários, sobre Bloch, Marx, teoria crítica e já adicionei um blogue deles.
Querem saber como pretendo avançar na "leitura liberal" de Marx. Ah, tenho esses debates noutros blogues, quando me pedem para reeditar algum post.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também não tenho tempo para tantos debates. Já entrei em vários e sou recente na blogosfera. Por isso, há a política de links. A Helena participa muito..., como viu ontem.

E. A. disse...

“Através do diálogo filosófico em comunidade, as pessoas sem voz podem vir a definir a sua própria realidade. Neste processo terão que dominar os instrumentos intelectuais e sociais fundamentais, que lhes proporcionarão não só uma compreensão do mundo em que vivem, como também a descoberta de que, por muito limitadas que estejam pelo mundo em que vivem, não estão totalmente submetidas a ele”.
Ann Sharp, '97


A filosofia como o reduto da liberdade. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tive ideia para novo post. Boa ideia a sua. Leia "A Consolação da Filosofia" de boécio. :)