Lido por Descartes, Pascal ou mesmo por Kant, Michel de Montaigne ocupa um lugar fundamental na história das "cartografias do Self", junto de Platão, Santo Agostinho, Descartes, Locke e Rousseau. Com efeito, a sua obra «Os Ensaios», dedicados à descrição de si mesmo, inicia um outro tipo de individualismo moderno, o da auto-descoberta, que difere do cartesiano tanto no objectivo como no método. Montaigne procura identificar o indivíduo na sua diferença e desenvolve o seu pensamento por meio de uma crítica de auto-interpretações de primeira pessoa, ao passo que Descartes nos fornece uma ciência do sujeito na sua essência geral, utilizando as provas do raciocínio impessoal. Portanto, Montaigne parte à busca do Self para chegar à harmonia consigo mesmo, de modo a mostrar «aquilo que sou essencialmente» (identidade).
Este post vem a propósito de um diálogo que Aveugle.Papillon estabeleceu comigo no meu post Auto-Estima e Tamanho do Pénis. Com efeito, a pesquisa das dimensões do pénis ainda é, pelo menos em Portugal, um assunto tabu. Ora, no seu tempo (século XVI), Montaigne tratou desse assunto, de uma forma arrojada e muito actual, denunciando a hipocrisia do seu tempo e retomando a coragem dos autores clássicos, incluindo Platão, que falavam (e representavam) natural e abertamente do nudismo, do "acto genital" ou das "partes pudendas". Montaigne afirma mesmo que «cada uma das minhas partes me faz tão igualmente eu quanto qualquer outra. E nenhuma outra me faz mais propriamente homem do que essa (o pénis e seu tamanho)». Como argumento de base, lembra que «em quase todo o mundo, essa parte do nosso corpo era deificada». Por isso, para Montaigne, não faz sentido não ousar «falar dele sem vergonha» e excluí-lo das «conversas sérias e regradas». Porém, Montaigne vai mais longe na denúncia dessa hipocrisia: «Acaso não podemos dizer que, durante esta prisão terrestre, não há em nós nada puramente corporal nem puramente espiritual, e que injustamente dilaceramos um homem vivo; e que parece haver razão para que nos comportemos, com relação ao exercício do prazer, pelo menos tão favoravelmente quanto o fazemos para com a dor?» Com esta questão (retórica), Montaigne revela a sua concepção da condição humana e defende uma «filosofia das voluptuosidades corporais», injustamente denegridas pelas doutrinas que desprezam uma parte da natureza humana. E, fazendo-nos lembrar a obra de Marcuse, «Eros e Civilização», professa valorizar todos os prazeres, ampliando-os para além da sua dimensão sensual (relativa aos sentidos), com a participação da alma, de modo a levarmos uma vida conforme a condição humana. Fonte: Livro III d' Os Ensaios de Montaigne, V/Sobre Versos de Virgílio, mais conhecido por Do Amor. J Francisco Saraiva de Sousa
Este post vem a propósito de um diálogo que Aveugle.Papillon estabeleceu comigo no meu post Auto-Estima e Tamanho do Pénis. Com efeito, a pesquisa das dimensões do pénis ainda é, pelo menos em Portugal, um assunto tabu. Ora, no seu tempo (século XVI), Montaigne tratou desse assunto, de uma forma arrojada e muito actual, denunciando a hipocrisia do seu tempo e retomando a coragem dos autores clássicos, incluindo Platão, que falavam (e representavam) natural e abertamente do nudismo, do "acto genital" ou das "partes pudendas". Montaigne afirma mesmo que «cada uma das minhas partes me faz tão igualmente eu quanto qualquer outra. E nenhuma outra me faz mais propriamente homem do que essa (o pénis e seu tamanho)». Como argumento de base, lembra que «em quase todo o mundo, essa parte do nosso corpo era deificada». Por isso, para Montaigne, não faz sentido não ousar «falar dele sem vergonha» e excluí-lo das «conversas sérias e regradas». Porém, Montaigne vai mais longe na denúncia dessa hipocrisia: «Acaso não podemos dizer que, durante esta prisão terrestre, não há em nós nada puramente corporal nem puramente espiritual, e que injustamente dilaceramos um homem vivo; e que parece haver razão para que nos comportemos, com relação ao exercício do prazer, pelo menos tão favoravelmente quanto o fazemos para com a dor?» Com esta questão (retórica), Montaigne revela a sua concepção da condição humana e defende uma «filosofia das voluptuosidades corporais», injustamente denegridas pelas doutrinas que desprezam uma parte da natureza humana. E, fazendo-nos lembrar a obra de Marcuse, «Eros e Civilização», professa valorizar todos os prazeres, ampliando-os para além da sua dimensão sensual (relativa aos sentidos), com a participação da alma, de modo a levarmos uma vida conforme a condição humana. Fonte: Livro III d' Os Ensaios de Montaigne, V/Sobre Versos de Virgílio, mais conhecido por Do Amor. J Francisco Saraiva de Sousa
33 comentários:
E lido por Nietzsche! Ele diz (penso que no Ecce Homo, mas não tenho a certeza): "Terei eu a vontade de poder de Montaigne no corpo? Quem me dera, e talvez na alma!" É algo assim, parafraseado.
Montaigne é grande, não se pode dizer grande filósofo, mas grande homem, e é isso que Nietzsche faz apologia, a grandes homens! Montaigne é o último vislumbre de luz no ocaso de uma grande época: o Renascimento. Não é por acaso que os Ensaios tenham ido para o index. (Sim, porque Pascal leu-o, mas precisamente para o criticar de herege e Descartes leu a Apologia de Raymond Sebond, onde é exposto o seu cepticismo ou metodologia céptica). E só nos finais do séc. XIX e durante o século XX, começou a ser novamente lido e estudado em toda a sua profundidade.
Será que é possível renascer outro homem assim, neste nosso tempo, Francisco? Ler Montaigne por um lado engrandece a alma, mas por outro pressente-se a sua inactualidade: parece que os homens nobres pereceram de vez...
[Afinal, estava lá, no livro V! E tb estava lá aquilo que eu disse no outro comentário?]
Exacto, Nietzsche, Cassirer, Merleaun-Ponty..., tem sido lido até hoje.
Sim, esta nesse ensaio, mas a tradução brasileira que usei dificulta a compreensão, bem como a dos clássicos vertidos em português.
Não reli de novo o ensaio, mas reli umas pequenas partes, seguindo os sublinhados de outrora.
Gosto também de Emerson, outro grande homem. Vivemos tempos indigentes, como dizia Rilke..., portanto, sem grandes homens.
Cassirer trata do seu suposto cepticismo epistemológico, na sua obra "O Problema do Conhecimento", juntamente com o nosso Francisco Sanchez, tão esquecido pelos portugueses. Não estou seguro desse cepticismo..., mas o que me fez reler «Os Ensaios» foi a sua concepção do canibalismo. Infelizmente, as obras de Cassirer não estão traduzidas. Martins Fontes editou a "Filosofia das Formas Simbólicas". Mas o curso de Filosofia é muito pobre..., uma miséria de pensamento.
Nunca li Emerson, mas sei que é influenciado por Montaigne. Vou tentar ler.
Obrigada por ter feito este post. Como já percebeu gosto muito de Montaigne; alguns ensaios deviam ser de leitura obrigatória na escola, assim como as Confissões de S. Agostinho, o Symposium de Platão, etc. Os alunos perceberiam o quanto e quão temos de aprender com os antigos, e que nós os "pós-modernos" somos mesmo "indigentes" diante dos grandes (Rilke, como grande poeta, diz com facilidade a verdade)... :)
A obra de Emerson também se chama "Essays". :)
Existem duas traduções portuguesas parciais: da Imago e Martin Claret, esta de bolso e mais baratinha (5 euros). Ambas do Brasil! "História" e "A Supra-Alma" merecem ser lidos.
Sim, também não acho que Montaigne seja "céptico"; aliás Montaigne é muitas coisas ao longo dos seus ensaios: estóico, epicurista... ama Séneca e Lucrécio, isso é evidente. Mas o que é facto é que o único ensaio mais sistemático, o ensaio XII do livro II - a Apologia, onde ele parece adiantar um cepticismo epistemológico e moral também!
Diz que o curso de Filosofia é uma miséria por não dar Cassirer? Eles não tem que dar tudo. A mim não me deram Montaigne: fui eu que li e estudei, tirando dúvidas com um professor. Montaigne é um filósofo menor. Eles têm que escolher.
E as "Confissões" de Rousseau e seu duplo-Eu...
Ou reformular o curso, abrindo novas cadeiras, umas semestrais, outras anuais. Os cursos de ciências dão "tudo" e de modo "exaustivo" e "rápido".
Isso foi ironia ou está a falar a sério?
Os cursos de ciências exigem competências muito diferentes, ou pelo menos diferentes, de um curso de Filosofia!
Até bem recentemente os filósofos não falavam desse modo. O curso deve fornecer as corrdenadas ferais da filosofia, fazendo opções de fundo, mas sem esquecer o básico. A compreensão de um Grande Filósofo exige conhecimento dos "menores". Daí a necessidade de disciplinas semestrais que façam essas ligações e que explorem novas áreas, incluindo as ciências fundamentais. Caso contrário, o curso não tem saída profissional ou científica.
Eu concordo consigo em parte: porque de facto como já tivémos oportunidade de discutir sobre isso, o curso de Filosofia (e acho que podemos falar de todos em Portugal) parece que é alheado do mundo, parece que nada do que traga o mundo, a sua evolução tecnológica e científica, os seus traumatismos também (terrorismo e outros fenómenos), modificarão substancialmente o pensamento. O que é um erro, como concluimos.
Por outro lado, não concordo numa "administração" da Filosofia como exemplifica, porque foi tentada na minha escola e foi um fiasco - o extinto curso de História das Ideias: curso com cadeiras de Filosofia e de História da Filosofia, que só serviam para os alunos terem grandes notas, porque não precisavam de problematizar e pensar apenas de engolir e vomitar a matéria. Daí ter ficado intrigada com o que propõe.
"História das Ideias" dispenso: nunca concordei com essa ideia peregrina.
Não concordo com a redução do curso de filosofia a uma emanação ectoplasmática de 3 ou 4 professores sem obra filosófica.
Repare: Pense em Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Pascal, Kant, Hegel, Marx: Alguma área do conhecimento era-lhes estranha? Não. Agora há a mania de que o ente pertence à ciência e o ser à filosofia. Em suma: a filosofia ficou com "nada". O que Heidegger dá à filosofia? Ser=tempo? Não concluiu a obra. Ser=acontecimento? Nada... Estou a ser duro com ele, intencionalmente.
Despejar matéria? Porque foi mal dada e as frequências mal elaboradas.
Mas a filosofia não é história, embora a sua história lhe pertença, a ela e só a ela, não aos historiadores.
Comentar textos não esgota a actividade filosófica. A filosofia tem "exterior". Deve estudá-lo.
Interessante o que diz... penso que "a mania de que o ente pertence à ciência e o ser à filosofia", demonstrada por Heidegger, não é inconveniente, porque, o que é facto é que a filosofia para Aristóteles era sophia+nous diferente do conhecimento científico, a episteme. O que tem mudado são as descobertas científicas que permitiram emancipar algumas ciências que eram do domínio da filosofia, como a psicologia, a sociologia, a antropologia etc. E a filosofia não querendo ser outra vez retórica e sofística, perguntou pelo Ser novamente, a pergunta de Heidegger.
Não sei. Obrigada por me ajudar a reflectir. :)
O meu curso é de Filosofia, sem História das Ideias, mas os colegas que o tiraram tinham de facto grandes notas, porque como a matéria era dada às colheradas, um bocadinho disto, um bocadinho daquilo, era bem mais fácil do que tratar um problema específico. :)
Eu sou mais imperial na minha concepção de Filosofia: guardo o lugar e zelo pela cultura ocidental. Mas, desse prisma, a história da filosofia está a ser anexada pelas ciências autonomizadas, não? Ora, para mim, isso não faz sentido: o conhecimento científico também faz parte da nossa herança e devemos zelar por ele.
Sim, a Filosofia é irredutivelmente grega, ocidental. Não disse o contrário.
Então, a filosofia como matriz de todos os saberes, como a raiz, como a entende Descartes? Esta ideia não é bem-vinda pelas ciências autonomizadas. Zelar pelo conhecimento científico e não ser conhecimento científico - é esta a ambivalência da filosofia.
Há Hegel e Marx e seus discípulos: para eles esse problema não existe. Abordam todos os problemas, sem temer as chamadas ciências sociais. A teoria crítica faz o mesmo. Toda a realidade pode ser abordada pela Filosofia. Esta não é mais uma área ou disciplina.
Ok. Vou pensar nisto. :)
Mas poder ser tudo ou chegar a tudo, também equivale a não ser nada. Não sei, tenho que pensar.
Crítica da ideologia e da sociedade. Estou sem saber que tema abordar depois da meia-noite.
Cumprimentos :)
O Francisco é muito fértil! :)
A minha fertilidade está impaciente!
Agora sinto cientificamente a blogosfera: um bando de pessoas pouco originais, salvo boas excepções. Há um grupo que bajula os jornalistas, na esperança talvez de virem a fazer jornalismo. Não percebem o sentido da crise: pouco críticos, muito apáticos.
:D
Eu não leio esses blogs; são geralmente enfadonhos porque superficiais e, como diz, pouco criativos.
A blogosfera não é mais que a reprodução da sociedade. Com o conforto acrescido do anonimato. :)
[Quando digo que é fértil queria dizer que é produtivo...]
Sim, compreendi. Mas preciso de ser picado para produzir. Estive a ver onde param os meus posts e estão dispersos pelo mundo, curioso! Mas a blogosfera exige espírito de sobrevivência... e estou sem saber o que tratar. Pensei nos jovens devido ao relatório da OCDE, mas tenho abordado isso: todos sabemos que os jovens estão a regredir em termos cognitivos. É isso... estou sem ideias.
Mas, escreve todos os dias para que as pessoas o leiam todos os dias? É isso que entende por "sobrevivência da blogosfera"?
Sim, acredito que os seus textos naveguem pela internet, mas não para os melhores fins, penso eu. Quero dizer: plágios, reproduções, etc.
O relatório da OCDE é interessante, mas só vem comprovar o que todos suspeitamos.
Sim, tem razão. Demasiado evidente!
Somos lidos todos os dias e muitos brasileiros. Pena é que me contactem mais via e-mail. Gosto de "conversar online". É claro que inicialmente não tinha isto em vista, mas, sem esta interacção diária, ficamos isolados. Há muita rivalidade e o jornalismo reduz ou tenta reduzir tudo a si mesmo. Devemos lutar contra esta presença jornalística que atropela a mente. Uma nova função para a filosofia: desconstruir o jornalismo e suas "notícias". :)
Os direitos de autor estão garantidos. :)
Que interessante. Mas, então, diga aos seus amigos brasileiros que comentem aqui, para eu e outros podermos ler e se alargar o número de intervenções e tornar o diálogo mais interessante.
Antigamente ia para jornalismo quem queria ser escritor, quem amava as palavras, como os poetas e os filósofos. Agora muitos deles não sabem escrever, as suas reportagens estão sempre pejadas de senso-comum, clichés, palavras na "moda", tipo "deslocalização" (que nem existe) e coisas que tais, deve conhecer estes "recursos" bem melhor que eu...
Alguns já publicaram os comentários, sobre Bloch, Marx, teoria crítica e já adicionei um blogue deles.
Querem saber como pretendo avançar na "leitura liberal" de Marx. Ah, tenho esses debates noutros blogues, quando me pedem para reeditar algum post.
Também não tenho tempo para tantos debates. Já entrei em vários e sou recente na blogosfera. Por isso, há a política de links. A Helena participa muito..., como viu ontem.
“Através do diálogo filosófico em comunidade, as pessoas sem voz podem vir a definir a sua própria realidade. Neste processo terão que dominar os instrumentos intelectuais e sociais fundamentais, que lhes proporcionarão não só uma compreensão do mundo em que vivem, como também a descoberta de que, por muito limitadas que estejam pelo mundo em que vivem, não estão totalmente submetidas a ele”.
Ann Sharp, '97
A filosofia como o reduto da liberdade. :)
Tive ideia para novo post. Boa ideia a sua. Leia "A Consolação da Filosofia" de boécio. :)
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