Numa sociedade pouco democrática, como a portuguesa, os poderes estabelecidos exigem que os cidadãos tenham "confiança na justiça", mesmo quando esta fornece provas evidentes de mau funcionamento, de arbitrariedade ou mesmo de abuso de poder. Esta exigência é claramente sintoma de degradação da democracia, a qual deve funcionar na base do diálogo e da busca cooperativa da verdade, diálogo alargado a todos os cidadãos racionais, livres, responsáveis e empenhados, não só no domínio da esfera pública (sentido lato) mas também no âmbito do espaço parlamentar. Em Portugal, casos muito mediáticos que incendiaram as paixões públicas mostram que o poder judicial funciona mal e, quando funciona, "funciona" de um modo pouco transparente, corporativista e antidemocrático, zeloso do seu próprio poder. As teorias sociológicas da criminalidade, começando por Durkheim, para não recorrer à sua fonte grega (Platão e Aristóteles), procuraram minar a abordagem jurídica do crime. Porém, a teoria que avançou mais nesta direcção foi elaborada pelo novo interaccionismo simbólico, herdeiro da Escola de Chicago, e pela fenomenologia social. Esta teoria difundiu-se em «Social Pathology» de Lemert, em «Outsiders» de Becker e em «Images of Deviance» de Cohen, primeiramente nos USA e, pouco depois, na Grã-Bretanha. O seu objectivo primordial era ir além do estudo do crime para abranger uma área mais ampla de problemas que não são claramente regulamentados pelo sistema de justiça penal. Por isso, procurou introduzir a noção de deviance, que podemos traduzir por desvio ou talvez melhor por transgressão, de modo a evitar a definição convencional e tautológica de crime como «uma infracção do direito penal», aliás pouco aceite universalmente e muito ligada à manutenção do poder instituído e dos seus interesses metabolicamente reduzidos.
Apesar de admirar imenso estes estudos da transgressão, (Com efeito, quem não fica seduzido pela descrição do "mundo dos consumidores de maconha" feito por Becker e retomado no Brasil por Gilberto Velho?), prefiro retomar algumas teses da criminologia radical, com o objectivo de lançar uma Filosofia Criminal ou teoria política do crime, capaz de denunciar a corrupção e o universo criminoso dos colarinhos-brancos. Em 1976, Chambliss & Mankoff declararam simplesmente que «determinados actos são definidos como criminosos porque é do interesse da classe dominante defini-los desse modo». Schwendinger & Schwendinger já tinham, em 1975, denunciado a apropriação da palavra "crime" pelos Estados capitalistas, preferindo descrever como crimes problemas como racismo, imperialismo e sexismo. Portanto, nesta perspectiva radical da criminalidade, o "crime" faz parte de um sistema hegemónico (Gramsci), completamente voltado para uma política de denominação, de dominação e de condenação que deve ou deveria ser objecto de resistência política activa. Com efeito, as condições da vida moderna e a importância crescente que ganham as condições económicas são de molde a conceder maior peso à criminalidade astuciosa, fluída e não calculável, mas cuja existência se encontra claramente estabelecida. Esta criminalidade dos colarinhos-brancos (white collar criminality), portanto, das classes ditas superiores, foi estudada por Sutherland (1949), sobretudo aquela situada no mundo dos negócios, da banca e das finanças, alargada actualmente à esfera política partidária e do Estado. Em «Fallen Idols», Clarke (1981) afirmou que o aumento das fraudes financeiras e comerciais se deve basicamente à pura expansão da regulamentação (jurídica) e Trench (1981) defendeu, em «Towards a Middle System of Law», a ideia de que «hoje em dia praticamente tudo pode ser crime», em função dos interesses da classe dirigente dominante. Alicerçada nestas novas abordagens do crime, a Filosofia Criminal, entendida como teoria política do crime, deve assumir como tarefa inspeccionar a partir de fora e com novos olhos o direito e o sistema de justiça penal, definindo novos tipos de crimes, em particular o abuso de poder e a corrupção, apoiados na manipulação da comunicação social e em esquemas maquiavélicos de vitimização de inocentes, que ameaçam verdadeiramente a essência da democracia. J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
Mais um óptimo texto :)
Lemert, Becker e Cohen...como eu os conheço bem a todos!
Vou referir estes seus dois textos sobre o crime no meu blogue. Estão muito bons!
Abraço!
Obrigado Helena.
Também podemos travar as nossas batalhas na teoria, na esperança de contagiar outros e produzir mudanças práticas na vida. :)
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