O desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas abre novas possibilidades e modalidades de participação política e, contudo, o que vemos no ciberespaço é um uso medíocre da Internet, em particular da blogosfera. A democracia electrónica é, neste vasto oceano de mediocridade geral, uma prática muito restrita e, se não zelarmos pela sua qualidade, condenada a ser colonizada por empresas ou profissionais da mediasfera, os monstros pseudo-cognitivos da sociedade actual. Os bloguistas manifestam o desejo, provavelmente sincero, de participar na construção de uma nova democracia mais participativa e combativa, mas o seu contributo dificilmente revela competência e conhecimentos profundos. Mais uma vez, o chamado «homem comum» revela, como sempre defendeu V. Pareto, que a sua inteligência não está à altura daquilo que lhe proporcionam os «homens criativos». Numa sociedade metabolicamente reduzida, como a nossa, a democracia genuína, de resto um regime político frágil, cuja manutenção exige atenção permanente e inteligente, está ameaçada e, ao contrário do que se pensa oficialmente, não tanto do exterior (o islamismo), mas sobretudo e fundamentalmente do interior. A miséria da blogosfera é, portanto, um reflexo da miséria da sociedade que temos, mais precisamente daquilo a que chamo sociedade metabólica, que, de certo modo, se revela nestas palavras de Hannah Arendt: «As horas vagas do animal laborans nunca são gastas noutra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites. O facto de estes apetites se tornarem mais refinados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida mas, pelo contrário, visa principalmente as superfluidades da vida, não altera o carácter desta sociedade; implica o grave perigo de que chegará o momento em que nenhum objecto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo». Um exemplo dessa atitude compulsivamente consumista é o modo como os mass media «noticiaram» o episódio de Hugo Chávez, Presidente da Venezuela, na Cimeira Ibero-Americana: durante a conferência, chamou «fascista» ao ex-primeiro-ministro espanhol e o rei de Espanha mandou-o calar. Este episódio solapou toda a Cimeira: a mediasfera reduziu-a a este episódio insignificante. E os bloguistas, prisioneiros das práticas de agenda-setting, fizeram eco das práticas desinformativas e tóxicas dos mass media e «noticiaram» o episódio, tecendo comentários ridículos e superficiais para condenar a «tirania» de Hugo Chávez, como se os «bons» estivessem todos de um lado e os «maus», do outro lado. Jamais lhes passou pela cabeça questionar e problematizar o conteúdo do próprio episódio que eclipsou o conteúdo de toda a Cimeira. As «notícias» tendem a ser reduzidas a «pequenas insignificâncias», «incidentes bombásticos» ou «escândalos», montados em série de modo a anular o conteúdo e o contexto. A comunicação torna-se profundamente emocional. Problematizar o conteúdo do episódio é colocar a questão: Se vivemos numa democracia adulta, porque razão não se pode chamar «fascista» a um «líder político»? Ou, recorrendo ao caso já esquecido das caricaturas de Maomé: porque razão não se podem fazer caricaturas do profeta? Afinal, há ou não há liberdade de pensamento e de expressão? Estes casos em que o uso pleno da liberdade política é visto como «ofensa» mostram que a democracia está a degenerar e a converter-se numa oligarquia profundamente corrupta, sem visão de futuro. Os homens metabolicamente reduzidos, animal laborans, não percebem isso, porque simplesmente não conseguem pensar para além do seu estreito horizonte metabólico: opinam e opinam muito. A época dos especialistas tão abundantemente exibidos no programa «Prós e Contras» de Fátima Campos é a época dos animais faladores que falam sem saber do que falam, porque o que os move realmente é a busca de empregos seguros e bem remunerados. O pensamento crítico, aquele que move a filosofia e a política, está morto. O temor expresso por Horkheimer e Adorno está a realizar-se, está realizado: o eclipse da razão e o eclipse do indivíduo são uma só e mesma coisa: eclipse do pensamento crítico que implica necessariamente o eclipse da política. Se o sentido da política é a liberdade, como afirma Arendt, então a política perdeu o seu sentido: em vez da liberdade, o animal laborans procura o poder metabolicamente reduzido, isto é, o poder usado ao serviço de interesses privados. Aliás, na blogosfera, circula a máxima de que a história da humanidade é uma luta pelo poder. Pensou na luta de classes de Marx ou na circulação das elites de Pareto? Não é disso que se trata: a luta é a luta pelo território, portanto, luta pelo sexo. Isto significa que o homem luta pelo território para ter sexo. Este discurso blogosférico não está muito distante de um certo discurso biológico (etologia, sociobiologia e psicologia evolutiva), embora o desconheça em profundidade, e mostra até que ponto o animal laborans se tornou prisioneiro do mero metabolismo. Em vez de criar e usufruir o mundo, aniquila-o. O animal laborans é devorador e destrutivo. (Siga esta estranha polémica blogosférica neste blogue Avenida Central e veja os links apontados por este meu amigo virtual.) J Francisco Saraiva de Sousa
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