Algures, num passado distante mas não esquecido, um professor universitário chamou-me ao gabinete, para discutir a nota a dar-me. Disse-me que merecia vinte, mas só me dava a nota se eu fizesse uma oral não prevista pelo esquema de avaliação escolhido e acordado entre ambos logo no início do ano lectivo. Como recusei submeter-me à oral, sem recusar falar sobre a matéria, ele ficou irritado (talvez por isso tenha morrido sozinho, fulminado pelo coração, poucos anos depois) e, cortou papéis, numerou-os, baralhou-os e meteu-os numa caixa, pedindo que tirasse um.
Cada papel tinha um algarismo, eram seis papéis bem dobrados (15, 16, 17, 18, 19, 20) e a minha nota seria dada por «sorteio aleatório»: tirei um papel, desdobrei-o e tinha ficado com a nota mais baixa alguma vez tirada nos meus estudos em geral e a única no conjunto das classificações do curso. 15 valores! A nota mais baixa alguma vez obtida por mim. Mas não protestei e, por isso, irritou-se novamente chamando-me nomes tais como «burguês», «aristocrático», «frio», «cerebral», «distante», «fascista» e outros tantos menos próprios. Mandei-o à merda e saí do gabinete, batendo com a porta. Mas, antes de sair, ainda me disse: «É cartesiano como o seu mestre e isso irrita-me profundamente». Ora, um dos meus mestres na altura e desde sempre era precisamente Louis Althusser e é dele que quero falar hoje. Em 1971, Althusser publicou na revista La Pensée um célebre texto: «Idéologie et Appareils Idéologiques d'État», que, como sabemos, foi extraído de um manuscrito mais vasto publicado muito depois da sua morte. Trata-se de «Sur la Reproduction» (1995). Coube a Althusser desenvolver uma teoria geral da ideologia e do Estado no âmbito da reprodução das relações de produção capitalistas. Contudo, embora falasse frequentemente da estrutura jurídica e da ideologia jurídica burguesa, Althusser não tinha dedicado muito tempo à filosofia do direito. Mas a publicação desse manuscrito inédito revela que avançava a passos acelerados nem domínio muito controverso no seio do marxismo. É esse contributo que iremos analisar, sempre muito próximos da letra e do espírito deste belo livro póstumo do mestre. Os capítulos V e XI são dedicados exclusivamente ao estudo do direito nas formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista, sendo o primeiro mais descritivo do que o segundo mais teórico.
Cada papel tinha um algarismo, eram seis papéis bem dobrados (15, 16, 17, 18, 19, 20) e a minha nota seria dada por «sorteio aleatório»: tirei um papel, desdobrei-o e tinha ficado com a nota mais baixa alguma vez tirada nos meus estudos em geral e a única no conjunto das classificações do curso. 15 valores! A nota mais baixa alguma vez obtida por mim. Mas não protestei e, por isso, irritou-se novamente chamando-me nomes tais como «burguês», «aristocrático», «frio», «cerebral», «distante», «fascista» e outros tantos menos próprios. Mandei-o à merda e saí do gabinete, batendo com a porta. Mas, antes de sair, ainda me disse: «É cartesiano como o seu mestre e isso irrita-me profundamente». Ora, um dos meus mestres na altura e desde sempre era precisamente Louis Althusser e é dele que quero falar hoje. Em 1971, Althusser publicou na revista La Pensée um célebre texto: «Idéologie et Appareils Idéologiques d'État», que, como sabemos, foi extraído de um manuscrito mais vasto publicado muito depois da sua morte. Trata-se de «Sur la Reproduction» (1995). Coube a Althusser desenvolver uma teoria geral da ideologia e do Estado no âmbito da reprodução das relações de produção capitalistas. Contudo, embora falasse frequentemente da estrutura jurídica e da ideologia jurídica burguesa, Althusser não tinha dedicado muito tempo à filosofia do direito. Mas a publicação desse manuscrito inédito revela que avançava a passos acelerados nem domínio muito controverso no seio do marxismo. É esse contributo que iremos analisar, sempre muito próximos da letra e do espírito deste belo livro póstumo do mestre. Os capítulos V e XI são dedicados exclusivamente ao estudo do direito nas formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista, sendo o primeiro mais descritivo do que o segundo mais teórico.
Althusser apresenta logo de início esta definição «mínima», isto é, descritiva, de Direito: O Direito é «um sistema de regras codificadas que são aplicadas, isto é, respeitadas e contornadas na prática quotidiana». O Direito privado contido no Código Civil constitui a base jurídica a partir da qual os outros sectores do Direito tentam sistematizar e harmonizar as suas próprias noções e as suas próprias regras. Althusser esclarece a sua ideia fundamental:
«O Direito Privado enuncia, sob uma forma sistemática, regras que regem as trocas mercantis, isto é, a venda e a compra, as quais repousam, em última instância, sobre o "direito de propriedade". O próprio direito de propriedade explicita-se a partir dos seguintes princípios gerais jurídicos: a personalidade jurídica (personalidade civil que define os indivíduos como pessoas de direito, dotadas de capacidades jurídicas definidas);
«O Direito Privado enuncia, sob uma forma sistemática, regras que regem as trocas mercantis, isto é, a venda e a compra, as quais repousam, em última instância, sobre o "direito de propriedade". O próprio direito de propriedade explicita-se a partir dos seguintes princípios gerais jurídicos: a personalidade jurídica (personalidade civil que define os indivíduos como pessoas de direito, dotadas de capacidades jurídicas definidas);
a liberdade jurídica de "usar e abusar" dos bens que constituem o objecto da propriedade;
e a igualdade jurídica (todos os indivíduos dotados de personalidade jurídica --- no nosso Direito actual, todos os homens, excepto a «escória» excluída da igualdade jurídica)».
Na peugada de Kant, Marx e Engels destacam três características do Direito:
1) A sistematicidade do Direito. O Direito assume necessariamente a forma de um sistema que tende naturalmente à não-contradição e à saturação internas. No Direito deve reinar entre todas as regras desse sistema uma coerência que não possibilite conflitos entre elas. Por isso, os juristas tendem a desenvolver essa sistematização, de modo a eliminar a possibilidade de contradição. Além disso, o Direito deve ser saturado, ou seja, o sistema de regras deve abranger todos os casos possíveis apresentados na realidade, de modo a evitar um défice jurídico de facto, susceptível de introduzir no Direito práticas não-jurídicas prejudiciais à integridade do sistema. Deste modo, insinua-se desde já a existência de um exterior do Direito, encarado pela jurisprudência como eventual ameaça à segurança do próprio Direito.
2) A formalidade do Direito. A formalidade do Direito não incide sobre o conteúdo do que é trocado pelas pessoas jurídicas nos contratos de compra e de venda, mas sobre a forma desses contratos de troca, forma definida pelos actos formais das pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o Direito. A sua formalidade é que permite a sua sistematização como tendencialmente não-contraditório e saturado. Ambos os aspectos do Direito constituem a sua universalidade formal: o Direito é válido para --- e pode ser invocado por --- toda a pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica. Contudo, o Direito não é um «ponto de vista moral», porque simplesmente existe e funciona e não pode existir e funcionar a não ser formalmente. Apesar de colocar entre parênteses os conteúdos aos quais se aplica, o formalismo do Direito só tem sentido quando se aplica a conteúdos definidos que estão necessariamente ausentes do próprio Direito e esses conteúdos são as relações de produção e os seus efeitos. Daqui resultam duas teses: a) o Direito não existe a não ser em função das relações de produção existentes, e b) o Direito não possui a forma do Direito, isto é, a sua sistematicidade formal, a não ser com a condição de que as relações de produção, em função das quais existe, estejam completamente ausentes do próprio Direito. Esta situação singular do Direito explica a fórmula marxista clássica, segundo a qual o Direito «exprime» as relações de produção, embora o seu sistema de regras as escamoteie. Portanto, o Direito não pode ser definido pelo Direito. Para Marx, todo o Direito é, em última instância, o Direito das relações mercantis e, por isso, é, por essência, em última instância, desigualitário e burguês. A não compreensão deste facto conduziu muitos marxistas a cometer graves erros quando procuraram pensar um Direito socialista ou mesmo a sociedade socialista. (Não entramos nessa discussão por a acharmos muito envelhecida.)
3) A repressividade do Direito. Tal como Kant na «Metafísica dos Costumes» (Primeira Parte: Doutrina do Direito), Marx viu bem que o Direito é necessariamente repressivo. Isto significa que o Direito não pode existir sem um sistema correlativo de sanções, isto é, não existe Código Civil possível sem um Código Penal que é a sua realização no próprio nível do Direito. Assim, por exemplo, quando duas pessoas jurídicas estabelecem um contrato, comprometem-se a cumprir obrigações de trocas definidas e, ao mesmo tempo, comprometem-se a ser sancionadas se não respeitarem as cláusulas do contrato. Isto significa que a existência de um contrato exige um complemento jurídico essencial do direito: o sistema das regras jurídicas de sanção do (não) respeito pelas cláusulas subscritas num contrato. O complemento jurídico do Código Civil é o Código Penal. Deste modo, o Direito reconhece que não pode ser aplicado pelas pessoas jurídicas, sem regras de uma obrigação repressiva. Kant já tinha visto que o Direito implica a obrigação, mas fê-lo de um ponto de vista da moralidade, isto é, do Dever. Mas, segundo Althusser, não é esta a perspectiva de Marx vista:
«Quem diz obrigação diz sanção; quem diz sanção diz repressão, portanto, necessariamente aparelho de repressão. Esse aparelho existe no Aparelho repressivo de Estado no sentido estrito da expressão. Chama-se: corpo da polícia, tribunais, multas e prisões. É por esse motivo que o direito faz corpo com o Estado».
Contudo, convém frisar que a prática do Direito não repousa exclusivamente sobre a repressão em acto, porque, na imensa maioria dos casos, as coisas se passam sem história: as cláusulas dos contratos são respeitadas. A repressão é frequentemente «preventiva». E a sua compreensão exige a intervenção de outros novos elementos: a ideologia jurídica e a ideologia moral.
J Francisco Saraiva de Sousa
Na peugada de Kant, Marx e Engels destacam três características do Direito:
1) A sistematicidade do Direito. O Direito assume necessariamente a forma de um sistema que tende naturalmente à não-contradição e à saturação internas. No Direito deve reinar entre todas as regras desse sistema uma coerência que não possibilite conflitos entre elas. Por isso, os juristas tendem a desenvolver essa sistematização, de modo a eliminar a possibilidade de contradição. Além disso, o Direito deve ser saturado, ou seja, o sistema de regras deve abranger todos os casos possíveis apresentados na realidade, de modo a evitar um défice jurídico de facto, susceptível de introduzir no Direito práticas não-jurídicas prejudiciais à integridade do sistema. Deste modo, insinua-se desde já a existência de um exterior do Direito, encarado pela jurisprudência como eventual ameaça à segurança do próprio Direito.
2) A formalidade do Direito. A formalidade do Direito não incide sobre o conteúdo do que é trocado pelas pessoas jurídicas nos contratos de compra e de venda, mas sobre a forma desses contratos de troca, forma definida pelos actos formais das pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o Direito. A sua formalidade é que permite a sua sistematização como tendencialmente não-contraditório e saturado. Ambos os aspectos do Direito constituem a sua universalidade formal: o Direito é válido para --- e pode ser invocado por --- toda a pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica. Contudo, o Direito não é um «ponto de vista moral», porque simplesmente existe e funciona e não pode existir e funcionar a não ser formalmente. Apesar de colocar entre parênteses os conteúdos aos quais se aplica, o formalismo do Direito só tem sentido quando se aplica a conteúdos definidos que estão necessariamente ausentes do próprio Direito e esses conteúdos são as relações de produção e os seus efeitos. Daqui resultam duas teses: a) o Direito não existe a não ser em função das relações de produção existentes, e b) o Direito não possui a forma do Direito, isto é, a sua sistematicidade formal, a não ser com a condição de que as relações de produção, em função das quais existe, estejam completamente ausentes do próprio Direito. Esta situação singular do Direito explica a fórmula marxista clássica, segundo a qual o Direito «exprime» as relações de produção, embora o seu sistema de regras as escamoteie. Portanto, o Direito não pode ser definido pelo Direito. Para Marx, todo o Direito é, em última instância, o Direito das relações mercantis e, por isso, é, por essência, em última instância, desigualitário e burguês. A não compreensão deste facto conduziu muitos marxistas a cometer graves erros quando procuraram pensar um Direito socialista ou mesmo a sociedade socialista. (Não entramos nessa discussão por a acharmos muito envelhecida.)
3) A repressividade do Direito. Tal como Kant na «Metafísica dos Costumes» (Primeira Parte: Doutrina do Direito), Marx viu bem que o Direito é necessariamente repressivo. Isto significa que o Direito não pode existir sem um sistema correlativo de sanções, isto é, não existe Código Civil possível sem um Código Penal que é a sua realização no próprio nível do Direito. Assim, por exemplo, quando duas pessoas jurídicas estabelecem um contrato, comprometem-se a cumprir obrigações de trocas definidas e, ao mesmo tempo, comprometem-se a ser sancionadas se não respeitarem as cláusulas do contrato. Isto significa que a existência de um contrato exige um complemento jurídico essencial do direito: o sistema das regras jurídicas de sanção do (não) respeito pelas cláusulas subscritas num contrato. O complemento jurídico do Código Civil é o Código Penal. Deste modo, o Direito reconhece que não pode ser aplicado pelas pessoas jurídicas, sem regras de uma obrigação repressiva. Kant já tinha visto que o Direito implica a obrigação, mas fê-lo de um ponto de vista da moralidade, isto é, do Dever. Mas, segundo Althusser, não é esta a perspectiva de Marx vista:
«Quem diz obrigação diz sanção; quem diz sanção diz repressão, portanto, necessariamente aparelho de repressão. Esse aparelho existe no Aparelho repressivo de Estado no sentido estrito da expressão. Chama-se: corpo da polícia, tribunais, multas e prisões. É por esse motivo que o direito faz corpo com o Estado».
Contudo, convém frisar que a prática do Direito não repousa exclusivamente sobre a repressão em acto, porque, na imensa maioria dos casos, as coisas se passam sem história: as cláusulas dos contratos são respeitadas. A repressão é frequentemente «preventiva». E a sua compreensão exige a intervenção de outros novos elementos: a ideologia jurídica e a ideologia moral.
J Francisco Saraiva de Sousa
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