No post anterior dedicado à exposição da Filosofia do Direito de Louis Althusser, apresentámos uma teoria descritiva do Direito e concluímos essa descrição quando a compreensão do funcionamento do Direito implicava a intervenção da ideologia jurídica burguesa e do seu suplemento: a ideologia moral. Convém acentuar novamente que a concepção do Direito de Althusser está mais próxima da abordagem de Kant do que da abordagem de Hegel do Direito. De facto, se lerem «A Metafísica dos Costumes» de Kant, podem verificar esta proximidade entre uma concepção marxista, a de Althusser, e uma concepção «liberal» do Direito.
Mas, quando se chega à ideologia jurídica, entende-se a razão de ser dessa proximidade e vislumbra-se logo a seguir aquilo que as distingue. Isto significa que a última secção do capítulo V, O Direito, da obra de Althusser, já não é descritiva, mas substancialmente teórica: a sua noção do Direito como aparelho repressivo de Estado já lá está presente, daí que o capítulo XI, De Novo sobre o "Direito". A sua Realidade: o Aparelho Ideológico de Estado Jurídico, se limite a clarificar esta noção, no âmbito de uma possível revolução. Pelo menos, esta é a perspectiva do próprio Althusser e dos seus seguidores. No entanto, desde cedo, encarei o contributo teórico de Althusser como uma tentativa de explicação teórica do fracasso da revolução socialista, até porque a sua teoria dos aparelhos ideológicos de Estado é vincadamente funcionalista, o que mostra bem a coesão social do capitalismo e a sua capacidade de renovar-se. Porque razão a maioria das pessoas jurídicas respeitam as cláusulas dos contratos que subscreveram? Esta é a questão colocada por Althusser, que, para lhe responder, começa por referir a solução do «senso comum» (o medo da polícia) e a solução das «pessoas de bem» («por simples honestidade). No entanto, a resposta é mais sofisticada: sem a intervenção ou mesmo sem a ameaça do aparelho repressivo de Estado especializado, as pessoas jurídicas respeitam os seus contratos, «porque estão "impregnadas" pela "honestidade" da ideologia jurídica que se inscreve no seu comportamento de respeito pelo Direito e permite propriamente ao Direito "funcionar", isto é, à prática jurídica "agir sozinha", sem a ajuda da repressão ou da ameaça». Neste ponto, Althusser aconselha algum cuidado. É certo que a ideologia jurídica é exigida pela prática do Direito, portanto, pelo Direito, mas não é o Direito. Assim, por exemplo, nos seus códigos, o Direito diz: a. Todo o indivíduo é juridicamente livre (de contratar ou não, de usar e abusar ou não dos seus bens...). Trata-se de uma definição jurídica da liberdade, de uma definição da liberdade pelo Direito, de uma definição da liberdade perfeitamente precisa que só é válida nos limites do Direito. Não tem nada a ver com a liberdade moral. política e metafísica, ou com a liberdade da ideologia jurídica. b. Todos os indivíduos são juridicamente iguais perante qualquer acto contractual e suas consequências, nomeadamente penais. Trata-se de uma definição jurídica da igualdade, que só é válida nos limites do Direito e que não tem nada a ver com a igualdade moral, política e metafísica, ou com a igualdade da ideologia jurídica. c. As pessoas jurídicas devem respeitar os compromissos que subscreveram. Trata-se de uma definição jurídica da obrigação, que só é válida nos limites do Direito e que não tem nada a ver com a obrigação moral e a obrigação metafísica, ou com a obrigação da ideologia jurídica. A ideologia jurídica retoma as noções de liberdade, igualdade e obrigação, inscrevendo-as, «fora do Direito, portanto, fora do sistema das regras do Direito e dos seus limites, num discurso ideológico que é estruturado por noções completamente diferentes». Podemos compreender agora a «pequena diferença»: Quando diz que «os indivíduos são pessoas jurídicas juridicamente livres, iguais e com obrigações enquanto pessoas jurídicas», o Direito não sai do Direito e, reduzindo «honestamente» tudo ao Direito, exerce honestamente o seu «ofício» de Direito. Mas, quando diz que «os homens são livres e iguais por natureza», a ideologia jurídica faz um discurso completamente diferente: aqui é a «natureza» e não o Direito que «fundamenta» a liberdade e a igualdade dos «homens» (e não das pessoas jurídicas). Quando à obrigação, a ideologia jurídica tem necessidade de um «pequeno suplemento», porque não diz que os homens têm obrigações «por natureza»: o da ideologia moral da "Consciência" e do "Dever", sem o qual não permanece de pé. Em suma: «O Direito é um sistema formal sistematizado, não contraditório e saturado (tendencialmente), que não tem existência própria. Apoia-se, por um lado, num Aparelho repressivo de Estado especializado, e, por outro, na ideologia jurídica e num pequeno suplemento da ideologia moral». A ideologia jurídico-moral toma, portanto, o lugar da polícia, mas não é a polícia. Esta última só intervém quando a ideologia jurídico-moral não é suficiente para garantir o regular funcionamento da prática jurídica. (Continua) J Francisco Saraiva de Sousa
Mas, quando se chega à ideologia jurídica, entende-se a razão de ser dessa proximidade e vislumbra-se logo a seguir aquilo que as distingue. Isto significa que a última secção do capítulo V, O Direito, da obra de Althusser, já não é descritiva, mas substancialmente teórica: a sua noção do Direito como aparelho repressivo de Estado já lá está presente, daí que o capítulo XI, De Novo sobre o "Direito". A sua Realidade: o Aparelho Ideológico de Estado Jurídico, se limite a clarificar esta noção, no âmbito de uma possível revolução. Pelo menos, esta é a perspectiva do próprio Althusser e dos seus seguidores. No entanto, desde cedo, encarei o contributo teórico de Althusser como uma tentativa de explicação teórica do fracasso da revolução socialista, até porque a sua teoria dos aparelhos ideológicos de Estado é vincadamente funcionalista, o que mostra bem a coesão social do capitalismo e a sua capacidade de renovar-se. Porque razão a maioria das pessoas jurídicas respeitam as cláusulas dos contratos que subscreveram? Esta é a questão colocada por Althusser, que, para lhe responder, começa por referir a solução do «senso comum» (o medo da polícia) e a solução das «pessoas de bem» («por simples honestidade). No entanto, a resposta é mais sofisticada: sem a intervenção ou mesmo sem a ameaça do aparelho repressivo de Estado especializado, as pessoas jurídicas respeitam os seus contratos, «porque estão "impregnadas" pela "honestidade" da ideologia jurídica que se inscreve no seu comportamento de respeito pelo Direito e permite propriamente ao Direito "funcionar", isto é, à prática jurídica "agir sozinha", sem a ajuda da repressão ou da ameaça». Neste ponto, Althusser aconselha algum cuidado. É certo que a ideologia jurídica é exigida pela prática do Direito, portanto, pelo Direito, mas não é o Direito. Assim, por exemplo, nos seus códigos, o Direito diz: a. Todo o indivíduo é juridicamente livre (de contratar ou não, de usar e abusar ou não dos seus bens...). Trata-se de uma definição jurídica da liberdade, de uma definição da liberdade pelo Direito, de uma definição da liberdade perfeitamente precisa que só é válida nos limites do Direito. Não tem nada a ver com a liberdade moral. política e metafísica, ou com a liberdade da ideologia jurídica. b. Todos os indivíduos são juridicamente iguais perante qualquer acto contractual e suas consequências, nomeadamente penais. Trata-se de uma definição jurídica da igualdade, que só é válida nos limites do Direito e que não tem nada a ver com a igualdade moral, política e metafísica, ou com a igualdade da ideologia jurídica. c. As pessoas jurídicas devem respeitar os compromissos que subscreveram. Trata-se de uma definição jurídica da obrigação, que só é válida nos limites do Direito e que não tem nada a ver com a obrigação moral e a obrigação metafísica, ou com a obrigação da ideologia jurídica. A ideologia jurídica retoma as noções de liberdade, igualdade e obrigação, inscrevendo-as, «fora do Direito, portanto, fora do sistema das regras do Direito e dos seus limites, num discurso ideológico que é estruturado por noções completamente diferentes». Podemos compreender agora a «pequena diferença»: Quando diz que «os indivíduos são pessoas jurídicas juridicamente livres, iguais e com obrigações enquanto pessoas jurídicas», o Direito não sai do Direito e, reduzindo «honestamente» tudo ao Direito, exerce honestamente o seu «ofício» de Direito. Mas, quando diz que «os homens são livres e iguais por natureza», a ideologia jurídica faz um discurso completamente diferente: aqui é a «natureza» e não o Direito que «fundamenta» a liberdade e a igualdade dos «homens» (e não das pessoas jurídicas). Quando à obrigação, a ideologia jurídica tem necessidade de um «pequeno suplemento», porque não diz que os homens têm obrigações «por natureza»: o da ideologia moral da "Consciência" e do "Dever", sem o qual não permanece de pé. Em suma: «O Direito é um sistema formal sistematizado, não contraditório e saturado (tendencialmente), que não tem existência própria. Apoia-se, por um lado, num Aparelho repressivo de Estado especializado, e, por outro, na ideologia jurídica e num pequeno suplemento da ideologia moral». A ideologia jurídico-moral toma, portanto, o lugar da polícia, mas não é a polícia. Esta última só intervém quando a ideologia jurídico-moral não é suficiente para garantir o regular funcionamento da prática jurídica. (Continua) J Francisco Saraiva de Sousa
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