«Nenhum socialismo sem democracia, nenhuma democracia sem socialismo». (Rosa Luxemburgo)
Devo confessar que não estava preparado para dizer algumas palavras sobre o pensamento daquele que foi um dos maiores filósofos do século XX: Ernst Bloch (1885-1977). E, como seria de esperar num país pouco dado ao pensamento, mas muito dado à hipocrisia e à corrupção, não existe nenhuma obra de Bloch traduzida em língua portuguesa (Portugal). A esquerda portuguesa nunca reclamou a herança de Bloch: os comunistas, porque Bloch critica severamente o «desvio estalinista», e os socialistas, porque Bloch critica o «desvio social-democrata». A filosofia de Bloch não se reconhece em nenhuma destas duas interpretações do pensamento de Karl Marx, propondo um novo marxismo, num diálogo profundo com o pensamento de Rosa Luxemburgo. Os jovens portugueses não sabem que o pensamento de Esquerda, seja comunista seja socialista ou social-democrata, deriva da filosofia de Karl Marx. Aliando-se à «corrente quente» de Rosa Luxemburgo, Bloch propõe uma nova leitura de Marx que, sem abandonar a crítica da economia política, portanto o Marx da maturidade, dinamiza a utopia, não a «utopia abstracta», pensada como um esboço ou um modelo de um Estado idealizado de justiça e de igualdade, mas a «utopia concreta», de modo a corrigir e a ultrapassar os conceitos de um materialismo vulgarizado. Isto significa que Bloch reactualiza o socialismo utópico e os conceitos éticos de um pensamento voltado para o futuro e enraizado numa ontologia do «ainda-não-ser». As categorias centrais deste «novo espírito utópico» são a «possibilidade» e a «esperança».
Neste pensamento, a verdade vem sempre acompanhada de um sentido de emancipação, apresentando-se como uma espécie de alavanca para uma prática transformadora. Esta prática humanista pode concretizar-se no processo real da história humana, porque nela está latente uma tendência proto-utópica que ainda não conseguiu realizar-se. Este «ainda-não» constitui a categorial fundamental da filosofia blochiana da praxis, a qual se estrutura basicamente na determinação do ser e do ente através da «antecipação do futuro» no ser do presente, ou seja, na co-determinação do ser presente pelo horizonte do futuro. Contudo, a realização e a exteriorização dessas potências não é o resultado de um imanentismo automático, mas depende da actividade prática dos sujeitos. Estes devem apoderar-se dessas possibilidades de transformação e utilizá-las no sentido de uma prática transformadora verdadeiramente humana.
Neste momento, Bloch distancia-se da «interpretação científica» do socialismo de Engels, reintroduzindo o conceito de «dignidade humana», presente na filosofia do «direito natural», e exorcizando o conceito demasiado «positivo» de ciência. A conservação do sentido revolucionário do direito natural permite-lhe fundamentar os direitos do indivíduo, do cidadão e da democracia pluralista, sem os quais não pode haver socialismo autêntico. Isto significa que, segundo Bloch, o socialismo exige «a prática real dos direitos do cidadão» e a garantia das liberdades individuais. Bloch retoma a crítica de Rosa Luxemburgo contra Lenine, para afirmar que estas conquistas históricas da burguesia devem estar inscritas no projecto e no programa de um governo socialista. (Quer tenham ou não lido as obras de Bloch, os socialistas portugueses defendem claramente a dignidade do homem, a qual é incompatível com a pobreza e a corrupção vigente em Portugal. Por isso, os socialistas devem sonhar-para-a-frente e transformar radicalmente a sociedade portuguesa, de modo a garantir o funcionamento de uma democracia real, pluralista e participativa.) Bloch faz uma distinção entre uma «corrente fria» e uma «corrente quente» no marxismo e, sem a aplicar à própria teoria de Marx, defende claramente a «corrente quente» de Rosa Luxemburgo, embora de um modo peculiar. Porquê? Porque, para Bloch, a análise político-económica de Marx está intimamente ligada a uma filosofia escatológica da história, isto é, a uma interpretação messiânica secularizada da história, oposta às teorias social-democratas do gradualismo e do progresso científico enquanto libertador da humanidade. (Podemos dizer com segurança que Bloch seria um crítico severo do actual PM português, José Sócrates. Contudo, face aos seus opositores (Paulo Portas, Filipe Menezes ou os Comunistas Petrificados), Sócrates poderá vir a ser iluminado pelos «sonhos diurnos» inscritos no seio de uma «matéria» prenhe de «futuro autêntico».) Isto significa que a «corrente fria» do marxismo enquanto condição de possibilidade da sociedade capitalista e da modernidade perde a sua eficácia como instrumento crítico de uma filosofia da praxis que visa a transformação radical do mundo se não for completada ao nível teórico e prático pela «corrente quente». Esta exprime as aspirações profundas que visam a democracia, a justiça social e a fraternidade entre os homens, bem como a crítica da ideologia que legitima a dominação do homem sobre o homem. Deste modo, a «corrente quente» possibilita realizar uma síntese produtiva entre a ética socialista e a prática renovadora, entre a imaginação social e a conquista do poder, entre a teoria e a prática de emancipação. Bloch abandona claramente o conceito de «ditadura do proletariado», aliás um conceito marginal no pensamento de Marx, e propõe um «socialismo da liberdade», o qual deve ter consciência da sua herança utópica. (Mário Soares sempre defendeu este socialismo da liberdade e, por isso, permanece marxista.) Deste modo, Bloch é levado a definir o marxismo como uma «ciência das tendências», descobrindo nele uma «ciência mediatizada do futuro». Estamos diante de uma «ciência dialéctica da realidade», ou seja, diante de uma análise das variadas possibilidades objectivas (Georg Lukács) de «transformação do mundo conforme a medida humana». Esta nova ciência, ou este «novo marxismo», precisa estar aberta às suas heranças culturais e à percepção inteligente das propriedades da realidade que apontam para o futuro. A ciência dialéctica das tendências é, no fundo, a «nova ciência do futuro», visto ser «a consciência progressiva do todo (totum) progredindo», do todo que ainda é factum, mas que se desenvolve no conjunto do devir, juntamente com o que «ainda-não-se-tornou». Assim, ligando o projecto marxista do «tornar-se-mundo» da filosofia e do «tornar-se-filosofia» do mundo com a categoria de possibilidade no horizonte do ente, Ernst Bloch integra a teoria marxista no horizonte mais amplo de uma ontologia do «ainda-não-ser», fundada na hipótese da exteriorização possível da imanência utópica no ente e de um destino utópico final de um mundo inacabado, mas preparado para um aperfeiçoamento constante, graças à categoria de «possibilidade». A filosofia de Bloch completa e ultrapassa o projecto de Marx, mas, tal como o jovem Marx, afirma que o último eschaton desta filosofia da praxis deve ser a realização da «consubstancialidade do homem e da natureza»: o advento de uma sociedade nova que realiza a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo constituído pelo homem e a humanização constituída da natureza. Em suma: Ernst Bloch é o fundador de um pensamento neomarxista da «utopia concreta», de uma ontologia do «ainda-não-ser» e de uma «fenomenologia da consciência antecipadora». Num mundo cada vez mais carente de imaginação política, torna-se necessário reler as obras de Ernst Bloch, estimular o «optimismo militante», dando condições aos cidadãos para participarem activamente na esfera pública, e lutar contra o eclipse da democracia. A filosofia deve esquecer Heidegger e repensar a «docta spes» de Bloch: repensar o inventário das imagens do desejo, dos sonhos e das figuras de antecipação utópica, tais como emergiram na história da filosofia, da literatura, da arquitectura e da música, nas utopias dos contos de fadas e nas utopias arquitectónicas modernas. Ora, tudo isto constitui o miolo da obra fundamental de Bloch, «O Princípio Esperança».
J Francisco Saraiva de Sousa
Devo confessar que não estava preparado para dizer algumas palavras sobre o pensamento daquele que foi um dos maiores filósofos do século XX: Ernst Bloch (1885-1977). E, como seria de esperar num país pouco dado ao pensamento, mas muito dado à hipocrisia e à corrupção, não existe nenhuma obra de Bloch traduzida em língua portuguesa (Portugal). A esquerda portuguesa nunca reclamou a herança de Bloch: os comunistas, porque Bloch critica severamente o «desvio estalinista», e os socialistas, porque Bloch critica o «desvio social-democrata». A filosofia de Bloch não se reconhece em nenhuma destas duas interpretações do pensamento de Karl Marx, propondo um novo marxismo, num diálogo profundo com o pensamento de Rosa Luxemburgo. Os jovens portugueses não sabem que o pensamento de Esquerda, seja comunista seja socialista ou social-democrata, deriva da filosofia de Karl Marx. Aliando-se à «corrente quente» de Rosa Luxemburgo, Bloch propõe uma nova leitura de Marx que, sem abandonar a crítica da economia política, portanto o Marx da maturidade, dinamiza a utopia, não a «utopia abstracta», pensada como um esboço ou um modelo de um Estado idealizado de justiça e de igualdade, mas a «utopia concreta», de modo a corrigir e a ultrapassar os conceitos de um materialismo vulgarizado. Isto significa que Bloch reactualiza o socialismo utópico e os conceitos éticos de um pensamento voltado para o futuro e enraizado numa ontologia do «ainda-não-ser». As categorias centrais deste «novo espírito utópico» são a «possibilidade» e a «esperança».
Neste pensamento, a verdade vem sempre acompanhada de um sentido de emancipação, apresentando-se como uma espécie de alavanca para uma prática transformadora. Esta prática humanista pode concretizar-se no processo real da história humana, porque nela está latente uma tendência proto-utópica que ainda não conseguiu realizar-se. Este «ainda-não» constitui a categorial fundamental da filosofia blochiana da praxis, a qual se estrutura basicamente na determinação do ser e do ente através da «antecipação do futuro» no ser do presente, ou seja, na co-determinação do ser presente pelo horizonte do futuro. Contudo, a realização e a exteriorização dessas potências não é o resultado de um imanentismo automático, mas depende da actividade prática dos sujeitos. Estes devem apoderar-se dessas possibilidades de transformação e utilizá-las no sentido de uma prática transformadora verdadeiramente humana.
Neste momento, Bloch distancia-se da «interpretação científica» do socialismo de Engels, reintroduzindo o conceito de «dignidade humana», presente na filosofia do «direito natural», e exorcizando o conceito demasiado «positivo» de ciência. A conservação do sentido revolucionário do direito natural permite-lhe fundamentar os direitos do indivíduo, do cidadão e da democracia pluralista, sem os quais não pode haver socialismo autêntico. Isto significa que, segundo Bloch, o socialismo exige «a prática real dos direitos do cidadão» e a garantia das liberdades individuais. Bloch retoma a crítica de Rosa Luxemburgo contra Lenine, para afirmar que estas conquistas históricas da burguesia devem estar inscritas no projecto e no programa de um governo socialista. (Quer tenham ou não lido as obras de Bloch, os socialistas portugueses defendem claramente a dignidade do homem, a qual é incompatível com a pobreza e a corrupção vigente em Portugal. Por isso, os socialistas devem sonhar-para-a-frente e transformar radicalmente a sociedade portuguesa, de modo a garantir o funcionamento de uma democracia real, pluralista e participativa.) Bloch faz uma distinção entre uma «corrente fria» e uma «corrente quente» no marxismo e, sem a aplicar à própria teoria de Marx, defende claramente a «corrente quente» de Rosa Luxemburgo, embora de um modo peculiar. Porquê? Porque, para Bloch, a análise político-económica de Marx está intimamente ligada a uma filosofia escatológica da história, isto é, a uma interpretação messiânica secularizada da história, oposta às teorias social-democratas do gradualismo e do progresso científico enquanto libertador da humanidade. (Podemos dizer com segurança que Bloch seria um crítico severo do actual PM português, José Sócrates. Contudo, face aos seus opositores (Paulo Portas, Filipe Menezes ou os Comunistas Petrificados), Sócrates poderá vir a ser iluminado pelos «sonhos diurnos» inscritos no seio de uma «matéria» prenhe de «futuro autêntico».) Isto significa que a «corrente fria» do marxismo enquanto condição de possibilidade da sociedade capitalista e da modernidade perde a sua eficácia como instrumento crítico de uma filosofia da praxis que visa a transformação radical do mundo se não for completada ao nível teórico e prático pela «corrente quente». Esta exprime as aspirações profundas que visam a democracia, a justiça social e a fraternidade entre os homens, bem como a crítica da ideologia que legitima a dominação do homem sobre o homem. Deste modo, a «corrente quente» possibilita realizar uma síntese produtiva entre a ética socialista e a prática renovadora, entre a imaginação social e a conquista do poder, entre a teoria e a prática de emancipação. Bloch abandona claramente o conceito de «ditadura do proletariado», aliás um conceito marginal no pensamento de Marx, e propõe um «socialismo da liberdade», o qual deve ter consciência da sua herança utópica. (Mário Soares sempre defendeu este socialismo da liberdade e, por isso, permanece marxista.) Deste modo, Bloch é levado a definir o marxismo como uma «ciência das tendências», descobrindo nele uma «ciência mediatizada do futuro». Estamos diante de uma «ciência dialéctica da realidade», ou seja, diante de uma análise das variadas possibilidades objectivas (Georg Lukács) de «transformação do mundo conforme a medida humana». Esta nova ciência, ou este «novo marxismo», precisa estar aberta às suas heranças culturais e à percepção inteligente das propriedades da realidade que apontam para o futuro. A ciência dialéctica das tendências é, no fundo, a «nova ciência do futuro», visto ser «a consciência progressiva do todo (totum) progredindo», do todo que ainda é factum, mas que se desenvolve no conjunto do devir, juntamente com o que «ainda-não-se-tornou». Assim, ligando o projecto marxista do «tornar-se-mundo» da filosofia e do «tornar-se-filosofia» do mundo com a categoria de possibilidade no horizonte do ente, Ernst Bloch integra a teoria marxista no horizonte mais amplo de uma ontologia do «ainda-não-ser», fundada na hipótese da exteriorização possível da imanência utópica no ente e de um destino utópico final de um mundo inacabado, mas preparado para um aperfeiçoamento constante, graças à categoria de «possibilidade». A filosofia de Bloch completa e ultrapassa o projecto de Marx, mas, tal como o jovem Marx, afirma que o último eschaton desta filosofia da praxis deve ser a realização da «consubstancialidade do homem e da natureza»: o advento de uma sociedade nova que realiza a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo constituído pelo homem e a humanização constituída da natureza. Em suma: Ernst Bloch é o fundador de um pensamento neomarxista da «utopia concreta», de uma ontologia do «ainda-não-ser» e de uma «fenomenologia da consciência antecipadora». Num mundo cada vez mais carente de imaginação política, torna-se necessário reler as obras de Ernst Bloch, estimular o «optimismo militante», dando condições aos cidadãos para participarem activamente na esfera pública, e lutar contra o eclipse da democracia. A filosofia deve esquecer Heidegger e repensar a «docta spes» de Bloch: repensar o inventário das imagens do desejo, dos sonhos e das figuras de antecipação utópica, tais como emergiram na história da filosofia, da literatura, da arquitectura e da música, nas utopias dos contos de fadas e nas utopias arquitectónicas modernas. Ora, tudo isto constitui o miolo da obra fundamental de Bloch, «O Princípio Esperança».
J Francisco Saraiva de Sousa
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