Durante o "zapping" habitual, calhou passar pela RTP2 (25 de Novembro de 2007) e ver que, num programa cultural interessante deste canal da RTP, a convidada era Maria de Fátima Bonifácio, uma historiadora portuguesa que admiro, não por ter lido as suas obras, mas pelas suas participações em programas televisivos. Assisti à parte final do programa sobre D. João VI, o Clemente, e retive esta noção muito espantosa de que a luta de classes defendida pelo materialismo histórico e a luta de raças preconizada pelo nazismo eram «consideradas como ciências» e, portanto, podiam ser «classificadas» no mesmo plano. O que é espantoso nesta afirmação, provavelmente não pensada, não é apenas colocar no mesmo plano o materialismo histórico e o nazismo, mas rotulá-los de «ciências» ou «crenças científicas», como se a ciência fosse também mera crença, sem questionar a natureza científica desigual desses discursos, como se tudo tivesse o mesmo «valor» no mercado plural do sentido. Isto é relativismo absoluto e total e, quem entra neste jogo linguístico, tem a mesma «autoridade» que os adversários: Fátima Bonifácio reduziu enfaticamente a historiografia a um conjunto de perspectivas, isto é, narrativas, todas equivalentes e todas muito pouco críticas, para não dizer a-críticas. A sua «verdade» auto-anula-se. Percebe-se esta «opinião» a partir do momento em que a nossa historiadora coloca o materialismo histórico no mesmo plano cognitivo do nazismo: ao negar a luta de classes, Fátima Bonifácio reduz a historiografia a uma narrativa a-crítica, metabolicamente reduzida, e pseudo-factual (os seus supostos factos empíricos podem ser e são as mentiras conspiradas pelas classes dominantes e relatadas pelos seus cronistas oficiais), centrada exclusivamente na dimensão política, tal como encarnada e protagonizada pelos governantes, mais precisamente na «intriga política», esquecendo malevolamente o sofrimento das classes desfavorecidas. A sua visão da democracia é oligárquica e cleptocrática. Pelo menos, Fátima Bonifácio reconheceu involuntariamente que o materialismo histórico era um «discurso científico», sem medo de pensar o futuro e sem abdicar da teoria. É provável que o nazismo tenha adaptado oportunisticamente o estilo marxista à sua causa (o nacional-socialismo), mas há uma diferença entre eles: a luta de classes é real e constitui um «motor» da história, cientificamente comprovado, mas o mesmo já não pode ser dito da «luta racial», que, até mesmo nas suas manifestações históricas inegáveis, está sempre subordinada à luta pelo poder e, por isso, constitui necessariamente uma ideologia: uma doutrina que visa legitimar assimetrias de poder. A prova desta confusão teórica exibida por Fátima Bonifácio está no facto de ter referido uma obra sobre o nazismo, segundo ela a melhor (sic), reforçando o seu carácter de narração, esta figura degenerada do pensamento pós-moderno. Felizmente, salvaguardou a Filosofia, o que significa que, apesar do seu relativismo historiográfico, reconhece que há um discurso teórico capaz de dizer a verdade, sem se deixar aprisionar no campo da doxa, isto é, das opiniões improvisadas em função dos interesses de momento, os das classes dirigentes. Ao abandonar a teoria, Fátima Bonifácio entrega-se à mera construção de narrativas sobre outras narrativas, as do passado que pretende iluminar (sic), incapaz de exercer o pensamento crítico. A sua historiografia é «conspirativa» (embora diga não ser partidária da conspiração, como todos os conspiradores da história), portanto, é a visão ideológica dos «vencedores« da História (W. Benjamin): é mera crónica tão válida quanto a das suas fontes e todas elas motivadas metabolicamente para glorificar os poderes instituídos, mais os do presente do que os do passado. A mais-valia teórica que Marx trouxe à historiografia é desprezada, porque, na verdade, Fátima Bonifácio, uma mulher que prezo, é uma beneficiária do sistema pós-revolucionário e dos seus direitos adquiridos. (Daí talvez a sua atracção pelo estudo das monarquias e da nobreza!) Celebrou em Genebra «Maio de 68», «fingindo que estudava» (palavras suas) e, de repente, viu-se instalada, juntamente com a sua geração, no poder. Ora, como já Maquiavel sabia, aqueles que estão no poder não desejam mudar nada, fazendo tudo para conservar os seus privilégios, e, se foram algum dia revolucionários, tornaram-se com o decorrer do tempo mais reaccionários do que os próprios «fascistas». A sua memória sofreu um «apagão» súbito, porque o poder, sobretudo aquele que cai milagrosamente em mãos moral e intelectualmente impreparadas, produz amnésia histórica e política. A geração dos hippies (geração grisalha) é actualmente o maior inimigo da democracia, da liberdade, da justiça e da mobilidade. Hoje, ser de Esquerda é lutar contra a antiga Esquerda, a que está instalada no poder. E é contra esses traidores que devemos lutar, retomando os grandes ideais do socialismo radical. Fátima Bonifácio poderia apresentar muitos argumentos a seu favor, mas a minha crítica, ainda que mal alinhavada e improvisada, demoliu completamente a sua visão da história, denunciando o seu carácter apologético do poder instituído. A sua visão da história é absolutamente ideológica e, como tal, deve ser denunciada e deitada ao lixo, onde a aguardam as mentiras milenares elaboradas pelos abusadores do poder e narradas para justificar a miséria e o sofrimento. A história factual é a perspectiva adoptada por aqueles que desistiram de pensar, porque sabem que o pensamento crítico é o arqui-inimigo dos poderes estabelecidos. Até Mónica Filomena prefere o factual! O seu liberalismo metabolicamente reduzido é a defesa descarada dos seus direitos adquiridos: uma catedrática reformada que pode falar tudo o que lhe passa pela cabeça, finalmente liberta do crivo da crítica e da responsabilidade intelectual. As suas opiniões são meras conspirações contra a verdade. Daí que queiram reduzir a ciência a mera crença em competição com outras crenças! Ora, como sabemos, os conspiradores negam sempre a velha teoria da conspiração, porque, como dizia Althusser, a ideologia dominante nunca diz ser uma ideologia. Se o fizessem, denunciavam-se como «amigos das mentiras» que visam legitimar assimetrias de poder, fortemente estimuladas pelas políticas da educação, mesmo as levadas a cabo pelo actual governo socialista. J Francisco Saraiva de Sousa
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