Dedico este post a responder às críticas que me foram dirigidas pelo autor do blogue «Navegador Solitário» e começo por impugnar a sua tese central: «o colonialismo é, por definição e nas suas práticas, racista». Embora não pretenda defender o colonialismo, sou obrigado a livrá-lo de estigmas como este e a refazer a sua história, de modo a que «os assassinados (não sejam) defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação» (Theodor W. Adorno). Por isso, para que os mortos estejam em segurança (W. Benjamin), contraponho uma tese que formulo quase como um silogismo, embora a forma possa enganar:
Teoricamente falando, a ciência não é uma ideologia.
Teoricamente falando, o racismo é uma ideologia.
Portanto, teoricamente falando, a ciência não é racista. Por ciência, entendo não só o conjunto do sistema de conhecimentos empíricos, como também todas as filosofias produzidas ao longo da História da Civilização Ocidental. Com a vastidão deste conceito de ciência, corro o risco de ver a minha tese refutada, através da referência a pensamentos científicos e filosóficos que justificaram alguma forma de racismo, sobretudo de racismo intra-europeu. Mas conheço esses pensamentos, muitos dos quais analisados por Ernst Cassirer na sua obra «O Mito do Estado», e, por isso, corro seguramente o risco. Não me deixo intimidar pelos discursos de determinadas correntes antropológicas, nem sequer pela realidade insólita do Holocausto e, contra estes discursos e realidades ideologicamente empolgadas, reafirmo o carácter emancipador da ciência, mais precisamente da sabedoria ocidental e o seu discurso da paz e da tolerância. Antes de avançarmos argumentos a favor da nossa tese, devemos clarificar a noção de racismo. Afinal, o que se entende por racismo? Qualquer Dicionário de Língua Portuguesa define o racismo nestes termos: «Teoria que tende a preservar a unidade da raça numa nação». Esta definição tirada de um Dicionário real é muito pouco comum e talvez muitíssimo ideológica, mas o racismo e o nacionalismo caminham quase sempre juntos (Ernst Gellner). A definição mais comum diz apenas que se trata de uma doutrina que considera que determinada raça é superior a outra(s) raça(s), justificando assim alguma assimetria de poder existente. Nesta perspectiva, até faz sentido o conceito de colonialismo proposto por Agry: o colonialismo é racismo. Mas esta concepção é perigosa, na medida em que se move no seio do próprio racismo. As assimetrias de poder existentes entre etnias ou raças podem ser (e são) explicadas ideologicamente pelo racismo: a raça supostamente dominante submete a raça supostamente inferior. Porquê? Porque é superior em determinadas características ou traços, características estas que podem ser observadas objectivamente e que lhes permitem subjugar as raças menos dotadas de certas capacidades, em particular cognitivas. Não adianta recorrer à ciência para combater o racismo e as suas práticas: os racistas são inteligentes e sabem adaptar o seu discurso às descobertas científicas. Negar biologicamente as raças não é solução, porque uma tal negação não é científica mas ideológica, muitas vezes imposta pelos próprios poderes colonialistas ou racistas, pouco interessados em fazer face a uma sublevação das raças oprimidas. Não cabe às ciências denunciar o racismo, porque estas são obrigadas pelas regras do seu jogo a detectar diferenças inter-raciais e estas diferenças existem e são conhecidas. Neste momento, convém entrar em cena o conceito de filosofia como crítica da ideologia, aquele elaborado por Marx e seus seguidores, de resto o único capaz de desmistificar o racismo. Cabe à Filosofia e, portanto, à política, denunciar o racismo e iluminar a prática que visa a sua abolição ou, pelo menos, a atenuação dos seus efeitos estigmatizantes e injustos. Parece que sigo caminhos estranhos, mas não são tão estranhos quanto parecem: podem ser selvagens e, por isso, sujeitos a reformulações teóricas mais precisas, resultantes de uma busca cooperativa da verdade. O discurso científico das diferenças inter-raciais não justifica nem legitima as práticas racistas coordenadas por uma ideologia que afirma a superioridade de uma raça ou mesmo grupo étnico, para legitimar o seu poder sobre outras raças ou grupos étnicos. São jogos completamente diferentes: a ciência procura conhecer a realidade, sem a transfigurar, enquanto a ideologia visa legitimar assimetrias de poder. Brecht dizia que todos nós somos lá no fundo racistas, uns mais do que outros. E tinha razão, conforme demonstrou Konrad Lorenz, quando constatou que a maior parte dos povos reservam a noção de «homem» ou «humanidade» para designar o seu próprio grupo, e a noção de não-homens ou bárbaros para designar os membros doutros grupos. A dinâmica instintiva investida nestas formas de agressividade intra-específica e na fomentação de laços intragrupais é extremamente complexa e ninguém pode pensar temerariamente que as pode neutralizar facilmente, com pequenos ensinamentos morais ou mediante a aprendizagem. A vida tem as suas próprias leis, de resto muito refractárias às mudanças sociais e culturais impostas do exterior. Estamos condenados a viver eternamente com o racismo latente nas relações de poder e a tentar controlá-lo eternamente. A luta contra o racismo é uma luta permanente, simplesmente porque certas características raciais são demasiado evidentes e visíveis para serem negadas. Além disso, o triunfo do Ocidente sobre outras culturas é, até ao momento presente, incontornável: o Ocidente domina porque simplesmente detém o monopólio da racionalidade e, portanto, do poder (Max Weber, Ernst Gellner). Mas também tem cabido ao Ocidente ajudar as outras culturas a libertarem-se dos poderes do obscurantismo e a lutar pela democracia, até por uma democracia multi-racial que defenda o respeito pelas diferenças que reflectem no fundo a biodiversidade. Apesar disto tudo que foi dito, continuo convencido de que o colonialismo não é essencialmente um racismo, porque o que o moveu foi a dinâmica do próprio capitalismo em expansão, em busca de novos mercados e, portanto, de maiores lucros. O racismo pode ter surgido depois quando era necessário manter uma reserva de mão-de-obra barata e submissa, pronta a vender a sua força de trabalho em troca de salários miseráveis, como se as suas características raciais específicas justificassem a sua própria exploração. Mas esta ideologia é muito velha: ela sempre foi usada pelas sociedades de classes, nas quais a classe dominante usa todos os aparelhos de Estado, repressivos e ideológicos, mais os últimos do que os primeiros (Althusser), para conquistar o assentimento dos membros das classes exploradas. O sistema indiano de castas é perfeitamente racista, provavelmente muito mais racista que o colonialismo português que, em todos os lados por que passou, deixou atrás de si muitos mestiços, cuja prova mais evidente foi a colonização do Brasil, tão bem analisada por Gilberto Freyre na sua obra «Casa-Grande & Senzala». Como já é tarde e começo a ficar muito ensonado, dou por terminado este post e, se os meus leitores tiverem dúvidas, coloquem-nas e juntos podemos clarificar melhor estes conhecimentos, na esperança de conseguirmos vencer um preconceito, pelos vistos enraizado na natureza humana. J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Reconheço o carácter lacunar da minha reflexão sobre o racismo, aliás uma ideologia detestável e repugnante. Contudo, penso ter esboçado as ideias-força que dão forma a uma teoria política do racismo, capaz de contribuir para a sua «abolição».
Logo que tenha tempo, prometo editar novos textos sobre o racismo.
"O racismo procura acentar a sua pseudoteoria no conceito de raça, enquanto conjunto de características físicas herdadas (cor do cabelo, pele) e outras crenças raciais que, sendo consideradas etnicamente relevantes, possuem geralmente um carácter mítico. De facto, os desenvolvimentos genéticos caminharam em diferentes linhas, demolindo assim as pretensas teorias das raças puras. Por isso, o tipo de racismo biológico, se bem que cada vez menos aduzido e aceite, constitui uma construção pseudocientífica a que aderiu um determinado número de pessoas."
Carlos Silva
Este mesmo sociólogo, Carlos Silva, encontra algumas teorias explicativas do racismo. Contudo, deixarei apenas aqui as teorias biológico-genéticas que me parecem que são aquelas que mais se enquadram com o que o Francisco aqui debate.
"Desde o século XIX e sobretudo desde os anos vinte do século XX, os defensores destas teorias afirmavam que os factores determinantes para o aparecimento e o desenvolvimento do racismo seriam de ordem biológica e genética. As práticas racistas no contexto colonial, imperialista e sobretudo fascista-nazi justificar-se-iam e legitimar-se-iam através da ideologia biologista e social-darwinista, segundo a qual os genes seriam responsáveis pela pureza e hierarquização das raças humanas, justificando assim que umas fossem «naturalmente» superiores a outras. (...)"
O primeiro contexto histórico que conheceu manifestações de racismo foi precisamente da expansão colonial europeia para a África e América. Os africanos negros eram transportados para o continente americano como mão-de-obra escrava, e assim os brancos faziam ver a sua superioridade em relação aos negros.
Assim, e sobretudo a partir do século XVII, tomaram lugar atitudes racistas não somente em termos biológicos mas também em termos económicos e políticos, com uma exploração económica e dominação política aos negros, índios e outros povos considerados selvagens e bárbaros.
Já dizia Jefferson "quanto à memória, os negros são iguais aos brancos, mas, quanto à razão, são inferiores".
Já no século XX assistimos a organizações como o Ku-klux_Klan na América e Hitler na Europa que proclamava a superioridade da raça branca ariana, declarando uma guerra de extermínio anti-semita e provocando o maior holocausto do século.
Com o processo de descolonização assitimos a uma regresso de muita mão-de-obra à Europa sobretudo para a reconstrução europeia pós II Guerra Mundial.
Obrigado.
Estou a pensar fazer um novo post sobre esta matéria, retendo a informação que gentilmente cedeu. Depois digo qualquer coisa.
Abraço
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