A teoria crítica da sociedade está ligada ao trabalho teórico da Escola de Frankfurt, que teve o seu início antes da Segunda Guerra Mundial, na época da República de Weimer, com a criação oficial do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social) em 1923, filiado na Universidade de Frankfurt. Os membros deste grupo, que se empenharam na crítica radical das sociedades industriais avançadas, incluíram pensadores tais como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, Leo Löwenthal, Erich Fromm e Herbert Marcuse. Com a tomada do poder por Hitler, Max Horkheimer que dirigia o Instituto desde 1930 é demitido e com ele todos os seus membros fundadores judeus. Financiado desde o começo por homens de negócios da comunidade judaica, em particular por Felix J. Weil, que lhe garantem a independência, o Instituto sobrevive. Os seus fundos são transferidos para a Holanda. São criados anexos em Genebra, Londres e Paris, mas o único estabelecimento com o destino de se tornar num local estável para os investigadores exilados é a Universidade de Colúmbia, que lhes cede um dos seus edifícios. Aí trabalham Max Horkheimer, Leo Löwenthal e, a partir de 1938, Theodor Adorno. Depois da guerra, Horkheimer e Adorno, entre outros, regressam à Alemanha, onde reabrem novamente o Instituto em Frankfurt. Membros da segunda geração de teóricos críticos, tais como Jürgen Habermas e Albrecht Wellmer, saíram desde então do Instituto para continuar noutros lugares o trabalho iniciado pelos membros fundadores. O contributo mais importante da teoria crítica, no âmbito do projecto moderno de emancipação racional, foi, sem dúvida, a crítica da racionalidade instrumental. Este projecto de crítica da razão possui um sentido clássico: o de que a razão deve efectuar a sua própria crítica, na medida em que procura definir os seus limites e evitar eventuais maus usos de si mesma. A outra face desta retomada do empreendimento kantiano da autocrítica da razão é claramente hegeliana: uma crítica da atrofia da razão reduzida ao «entendimento». O processo de formalização da razão desenvolve-se gradativamente ao longo dos séculos até culminar com a fixação do pensamento no dado. Como escreve Marcuse: «De Hume aos positivistas lógicos da actualidade o princípio [de qualquer forma de positivismo] tem sido o prestígio definitivo do facto e o seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato. O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma “filosofia positiva” que englobaria todo o saber e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e acrítica da sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os factos, a renunciar a transgredi-los e a submeter-se à situação vigente». Com o positivismo a realidade existente adquire valor essencial e primazia em relação ao devir histórico, à transformação e à transcendência: o pensamento imobiliza-se perante a realidade tal como ela é. Segundo Horkheimer, a razão objectiva designa «a existência da razão como um poder inserido não só na consciência individual, mas também no mundo: nas relações entre os seres humanos e entre as classes sociais, nas instituições sociais e na natureza e suas manifestações. Os grandes sistemas filosóficos, tais como o de Platão e de Aristóteles, a escolástica e o idealismo alemão, [...] [desenvolveram] um sistema abrangente, ou uma hierarquia, de todos os seres, incluindo o homem e os seus fins. A sua estrutura objectiva, e não apenas o homem e os seus propósitos, era o que determinava a avaliação dos pensamentos e das acções individuais». A razão objectiva encerra uma estrutura própria, funcionando como medida ou critério de verdade para os pensamentos e as acções individuais. Uma tal concepção de razão vinculava-se, na actividade do ser humano, mais com a determinação de fins do que com a mera escolha de meios. Uma diferença considerável separa esta tradição filosófica pré-moderna — segundo a qual a razão é um princípio inerente ou constituinte da própria realidade onde se insere e se desenrola a vida do homem —, das linhagens de pensamento que se inauguram a partir do século XVII, que tendem a compreender a razão como capacidade ou faculdade do espírito. Em consequência deste último ponto de vista, tematizado por Descartes, só o sujeito humano, o ser consciente, pode rigorosamente ser considerado portador de racionalidade. Assim, a razão subjectiva equipara-se a uma faculdade de operação lógica, de dedução, de sistematização e cálculo, não importando tanto, em si mesmos, os conteúdos postos em correspondência com ela. Ela compreende-se, passo a passo, através da modernidade, como capacidade de relacionar meios, de adequação de procedimentos a fins, fins mais ou menos aceites por si ou, cada vez mais, tomados como óbvios. «Concede pouca importância à indagação de se os propósitos como tais são racionais. Se essa razão se relaciona de qualquer modo com os fins, ela tem como certo que estes são também racionais no sentido subjectivo, isto é, de que servem ao interesse do sujeito quanto à autopreservação — seja a do indivíduo isolado ou a da comunidade de cuja subsistência depende a preservação do indivíduo. A ideia de que um objectivo possa ser racional por si mesmo — fundamentada nas qualidades que se podem discernir dentro dele — sem referência a qualquer espécie de lucro ou vantagem para o sujeito, é inteiramente alheia à razão subjectiva, mesmo quando se ergue acima da consideração de valores utilitários imediatos e se dedica a reflexões sobre a ordem social como um todo». Neste sentido, a razão subjectiva passa a constituir uma relação directa, fundamental, com a autoconservação, um dos princípios supremos do pensamento liberal moderno. A teoria crítica apresenta-se, na sua primeira fase, como herdeira e devedora de um conceito de razão como razão objectiva, da maneira como o compreendem os filósofos do idealismo alemão, mediado com o outro princípio fundamental do pensamento moderno: a consciência-de-si. A ideia de uma nova filosofia crítica por oposição à teoria tradicional encontra-se lançada no ensaio programático de Horkheimer — Teoria Tradicional e Teoria Crítica (1937). A teoria tradicional, criada por Descartes, limitava-se a ordenar «a experiência a partir de uma problemática corolária da reprodução da vida no interior da sociedade no seu estado presente. Os sistemas das diferentes disciplinas continham os conhecimentos sob uma forma que, nas circunstâncias dadas, os torna utilizáveis num maximum de casos. A génese social dos problemas, as situações reais nas quais é utilizada, os objectivos aos quais é aplicada aparecem-lhe como situados fora de si mesma». Dedicava-se basicamente à descrição minuciosa do que é dado, encontrado, no plano natural ou social, para efeito da sua posterior explicação. Horkheimer procura um tipo de actividade teórica que, por um lado, respeita e reconhece a validade de tal postura, mas, por outro lado, aponta nela duas lacunas importantes. Em primeiro lugar, acusa-a de não reflectir sobre os seus pressupostos «extrateóricos», isto é, histórico-culturais e sociais, não indagando em que medida elementos éticos, políticos, ideológicos e sociais, podem tornar-se presentes interferindo na sua produção. Além disso, enquanto a actividade teórica racional limita-se à lógica interna da investigação, permanece incapacitada de reflectir sobre o papel e o sentido da actividade por ela realizada no «mundo da vida». «A teoria crítica da sociedade toma por objectos os homens enquanto produtores da totalidade das formas que a sua vida reveste na história. As condições da realidade, das quais procede a ciência, não lhe aparecem como dados que se procura unicamente constatar e prever segundo as leis das probabilidades. O que é dado em todas as circunstâncias não depende apenas da natureza, mas também dos poderes que o homem exerce sobre ela. Os objectos e o modo da sua percepção, a problemática e o sentido das respostas que lhe são dadas derivam de uma actividade humana e do grau da sua potência». No projecto inicial da teoria crítica, Kant, Hegel, Marx e Lukács são influências decisivas. Destes autores deriva a preocupação de se transformar conscientemente o mundo, de se procurar realizar a razão na vida social. Tal realização inspira-se num traço inconfundível da ética kantiana: a reconciliação entre o individual e o universal operada pela razão prática. A sua realização no âmbito de uma filosofia política procura, entretanto, escapar de algumas das dificuldades em que caiu a filosofia kantiana no seu empreendimento para «salvar a liberdade», sendo as mais frequentemente mencionadas o dualismo nítido da solução filosófica que recorre à distinção de “dois mundos” e a exterioridade da crítica moral à realidade empírica, o que se encontra na raiz das típicas oposições entre ser e dever-ser. O recurso a Hegel possibilita evitar os obstáculos que se ergueram no caminho da filosofia prática de Kant. Hegel enfrenta os mesmos problemas de um outro ponto de vista: a razão só pode ser realizada onde ela, de alguma forma ou de certo modo, já esteja presente: só o que é potencialmente racional torna-se efectivamente razão. Nos Princípios da Filosofia do Direito, Hegel formula lapidarmente o princípio de identidade em torno do qual gira toda a sua filosofia: «O que é racional é real e o que é real é racional». Contudo, Horkheimer, Adorno e Marcuse procuram distanciar-se de determinados elementos da concepção hegeliana da história capazes, na sua perspectiva, de se prestar a possíveis capitulações teóricas diante da ordem estabelecida. Embora Hegel represente o esforço mais bem-sucedido de mediar razão e realidade ou pensamento e ser, a teoria crítica afirma-se, desde logo, como uma crítica do idealismo tomado como pensamento identificador e concluído. A XI Tese sobre Feuerbach de Marx, segundo a qual «os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se, porém, de o transformar», denuncia a falsa identidade hegeliana como mitologia conceptual, apontando para uma praxis revolucionária susceptível de reconciliar aquilo que se apresenta não reconciliado na presente ordem estabelecida. O pensamento identificador torna-se inimigo da verdadeira reconciliação: «Da dialéctica materialista tal como está contida na teoria crítica, não se admite — ao contrário de Hegel [ou mesmo de Lukács] — a unidade do pensamento e da história. Na actualidade existem formas de vida reais e históricas, cuja irracionalidade se tem rendido já ao pensamento. A dialéctica não é algo concluída como processo. Entre o pensamento e o ser não reina nenhuma harmonia, mas a contradição apresenta-se ainda hoje em dia como uma força impulsora; e não só entre o homem e a natureza, mas especialmente entre os próprios homens com as suas necessidades e capacidades e a sociedade como seu produto. A superação realiza-se, por conseguinte, na luta real e histórica entre aqueles indivíduos que representam as necessidades e as capacidades, isto é, a universalidade, e os que representam as formas estereotipadas, isto é, os interesses particulares» (Horkheimer). A teoria crítica é assim reenviada à crítica marxiana da economia política, compreendida como uma orientação acerca das condições necessárias para a realização da razão na sociedade moderna. Para Marx, a razão realizar-se-ia ou começaria a efectivar-se a partir do momento em que os homens se tornassem verdadeiramente associados e regulassem consciente e livremente o seu intercâmbio material com a natureza. A descrição da lógica da sociedade capitalista, realizada por Marx na sua obra O Capital, não possui o estatuto de um fim em si mesmo, mas assenta no pressuposto normativo da representação de uma sociedade humana na qual não haja mais miséria, exploração e opressão, e o trabalho obrigatório seja gradualmente abolido, e, portanto, a liberdade possa ser igualmente conquistada e desfrutada por todos. A crítica marxiana fornece um elemento de historicidade frutífero, na medida em que para os teóricos críticos fundadores o materialismo histórico foi sempre considerado uma teoria aberta e nunca um corpo de verdades prontas para a aplicação indiferenciada como sucede na metafísica marxista. Aliás, este aspecto já tinha sido explicitamente reconhecido por Georg Lukács: «Com efeito, embora não o admitamos, suponhamos que a investigação contemporânea demonstrou a inexactidão «de facto» de cada afirmação isolada de Marx. Um marxista ortodoxo sério poderia reconhecer incondicionalmente todos estes novos resultados, rejeitar todas as teses isoladas de Marx, sem por isso, por um só momento, se ver forçado a renunciar à sua ortodoxia marxista. O marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma «fé» numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro «sagrado». A ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao método». O impacto da barbárie fascista, a monstruosidade da Segunda Guerra Mundial, o totalitarismo estalinista e a integração social das classes trabalhadoras na sociedade estabelecida conduziram Horkheimer e Adorno, bem como Marcuse, a empreender uma «revisão» das pretensões e das aspirações iniciais da teoria crítica. Na década de 40, toma corpo, portanto, uma verdadeira autocrítica da razão — a radicalização da crítica, a qual possui a forma de uma crítica radical da concepção moderna da racionalidade. O esforço filosófico vira-se contra a aceitação dogmática da dominação da natureza e passa à recusa rigorosa do pensamento da subjugação do meio natural. A crença ingénua na razão cede o seu lugar a uma reflexão profunda sobre «a autodestruição do esclarecimento». O espírito da liberdade, da justiça, da verdade e dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa gerou, contra as suas próprias intenções, a aberração do «mundo totalmente administrado», que ameaça conquistar todas as sociedades, a menos que o esclarecimento acolha dentro de si mesmo «a reflexão sobre esse elemento regressivo». A dialéctica em que a razão e o esclarecimento incidem é a da regressão. Com o fascismo e a cultura de massas, «o progresso converte-se em regressão». A filosofia da história inerente à teoria crítica desde os seus começos ascende ao primeiro plano — a racionalidade aparece entrelaçada não só com a realidade social presente, mas também com a dominação da natureza. A evolução da racionalidade na Idade Moderna é vista por Adorno e Horkheimer, no fundo, como um empobrecimento da razão, a qual se vê envolvida numa caminhada rumo à sua redução ao entendimento técnico e instrumental. A característica decisiva desta instrumentalização da razão — em que o pensamento é rebaixado a um simples meio ao serviço de iniciativas que podem ser boas ou más — é o seu uso segundo um método rigoroso, conduzindo a um crescente sistema — cada vez mais minucioso e aperfeiçoado — de conhecimento objectivante. A liquidação da razão, sobretudo no século XX, está, inclusive, em contradição com as aspirações e os ideias dos grandes pensadores da própria emancipação moderna nos séculos XVII e XVIII. Horkheimer caracteriza essa esterilização da racionalidade nas seguintes palavras: «Justiça, igualdade, felicidade, tolerância, todos os conceitos que, como já foi mencionado, nos séculos precedentes eram inerentes à razão ou por ela deviam ser sancionados perderam as suas raízes espirituais. Eles ainda são objectivos e fins, porém não há nenhuma instância racional que esteja habilitada a atribuir-lhes um valor e a uni-los a uma realidade objectiva. (...) Quem pode afirmar que qualquer um destes ideais está mais estreitamente relacionado com a verdade do que seu contrário? (...) A constatação de que a justiça e a liberdade em si mesmas são melhor do que a injustiça e a opressão é cientificamente não-verificável e inútil. Em si ela soa entrementes exactamente tão sem sentido quanto a constatação de que o vermelho é mais bonito que o azul ou de que um ovo é melhor que o leite». É precisamente essa concepção instrumental da razão que governa e regula as relações do homem com a natureza física. Neste sentido, a Nova Atlantida de Francis Bacon é a primeira grande utopia técnica dos Tempos Modernos, que antecipa e retracta o optimismo técnico-científico associado à representação de um regnum hominis neste mundo, espírito que já manifesta, aí, a face de subjugação da natureza que ainda estava por vir. Com o desaparecimento gradativo dos conceitos qualitativos de natureza ao longo do século XVII, o conhecimento sobre o mundo físico passa definitivamente para o plano do que é matematicamente construído, do que é exacto.A ciência moderna nasce sob a égide do lema de Bacon: «saber é poder» — lema directamente voltado para um projecto de dominação da natureza, seja da natureza «fora de nós» ou ao nosso redor (natureza exterior), seja da natureza «em nós» (como contenção das paixões, dos sentimentos, dos desejos e como afastamento das «ilusões dos sentidos»). O próprio uso exacto da razão não é, portanto, um fim em si mesmo, e sim igualmente um meio de acesso ao que rege os fenómenos naturais, condição fundamental de possibilidade para a sua exploração e dominação. A tese de Adorno e Horkheimer desenvolvida minuciosamente na sua obra Dialéctica do Esclarecimento é neste ponto inequívoca: «O que os homens querem aprender da natureza é a utilizá-la, de modo a dominá-la plenamente, bem como a dominar os próprios homens. Além disso, nada mais importa» (16). Isto significa que, tanto do ponto de vista dos seus fundamentos científicos e metodológicos, quanto sob o prisma dos seus propósitos e finalidades, a técnica moderna manifesta um profundo estranhamento em relação à natureza. Cada intervenção técnica, dentro desse espírito, pressupõe uma postura básica de distanciamento e de oposição ao que é, tal como é. Essa concepção da técnica herda o carácter instrumental, progressivamente imposto, da racionalidade moderna de modo geral, tal como tinha sido apreendida por Max Weber, tornando-se, tomada como meio ou instrumento, representação corriqueira da relação do homem com o ambiente na era em que, tanto ela como a ciência, são, desde a esfera da vida quotidiana, glorificadas como veículo automático de progresso. Assim compreendida, a técnica encontra-se às voltas com uma profunda vontade de apropriação, de assenhoreamento. Este projecto de dominação da natureza vincula-se intimamente a aspectos como a matematização do saber, o conceito de construção do objeto pelo sujeito investigador, o cálculo exacto que interpela a natureza segundo instruções precisas de expectativas acerca de um determinado rendimento, de imperativos de produtividade. Que o ser exacto ou certo não esgota, no entanto, o ser verdadeiro é uma objecção levantada não só por Adorno, Horkheimer e Marcuse, mas por outros pensadores na contemporaneidade, em particular por Martin Heidegger e por Ernst Bloch. Como escreve Adorno: «O conceito de progresso é filosófico na medida em que, enquanto articula o movimento social, ao mesmo tempo se lhe contrapõe. Surgido socialmente, ele reclama uma confrontação crítica com a sociedade real. O momento da redenção, por mais secularizado que seja, não pode ser apagado dele. O facto de que não se deixe reduzir nem à facticidade nem à ideia demonstra a sua contradição interna. Pois o momento do esclarecimento, na medida em que se consuma na reconciliação com a natureza ao acalmar os sustos desta, está irmanado ao momento de domínio da mesma. Modelo de progresso, ainda que seja transferido para a divindade, é o controle da natureza externa e interna do homem. A opressão exercida mediante esse controle, cuja suprema forma de reflexão espiritual está no princípio de identidade da razão, reproduz o antagonismo. Quanto maior identidade impõe o espírito dominador, tanto mais injustiça sofre o não-idêntico. A injustiça transmite-se por essa resistência. Ela reforça o princípio opressor, enquanto o oprimido também se arrasta peçonhento. Tudo progride no todo; só não o faz até hoje o todo mesmo». A natureza, considerada na óptica da racionalidade instrumental, é apenas a totalidade de meros objectos: quer dizer que a crítica substancial da racionalidade moderna tem de conceder particular importância à vinculação que há entre a face da dominação da natureza e o agir humano voltado para fins, teleologicamente dirigido, de forma geral. Neste quadro, a normatividade do princípio da autoconservação hipertrofiou-se, autonomizando-se até se tornar essa hipóstase inescrupulosa no interior do projeto universal da lógica da reprodução do capital. A obviedade absolutizada da autoconservação — paradoxalmente contemporânea, na sua emergência, dos filósofos da liberdade dos séculos XVII e XVIII — desembocou historicamente, na era das sociedades massificadas, em resignação, em submissão automática como significando liberdade. São, por conseguinte, dois momentos inseparáveis de um mesmo movimento: por um lado, a entronização da autoconservação pelos agentes humanos à custa do menosprezo ou do sacrifício de diversos outros fins possíveis e plausíveis para a acção humana; por outro lado, o desnudamento da natureza de todo e qualquer valor e sentido internos, próprios, no processo que a depura de toda relevância religiosa, estética e, até mesmo, ética.O alto preço pago pela afirmação racional de si é manter-se refreada a natureza em si próprio, em cada subjectividade humana individual: «O homem compartilha, no processo de sua emancipação, o destino do resto do seu mundo. A dominação da natureza envolve a dominação do próprio homem. Cada sujeito tem de participar não só da subjugação da natureza exterior, seja ela humana ou inumana, como tem, para realizar isto, de reprimir a natureza em si mesmo». Renunciar ao presente, ao usufruto do imediato, torna-se imprescindível para a persecução do fim estabelecido. A ascese exigida e envolvida no gigantesco empreendimento social de autoconservação nem sequer é igualmente distribuída por todos.A crítica da dominação da natureza, levada a cabo por Horkheimer e Adorno, é uma dimensão central da sua filosofia da história. Na Dialéctica do esclarecimento, percebe-se nitidamente o carácter auto-destrutivo dessa dialéctica: a razão está condenada a gerar desrazão; este é o traço essencial da história do processo civilizacional. A contradição fundamental da intenção esclarecedora é de que a liberdade parece produzir-se apenas por meio da dominação — da natureza e do próprio homem. O destino do esclarecimento ao longo do tempo parece ser o de resolver problemas criando novos problemas na própria sequência da sua solução. Horkheimer vislumbra apenas uma «saída»: «[...] Somos herdeiros, para o melhor ou pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico. Opor-se aos mesmos por um regresso a estágios mais primitivos [de desenvolvimento social] não alivia a crise permanente que deles resultou. Pelo contrário, tais expedientes conduzem-nos do que é historicamente racional às formas mais horrendamente bárbaras de dominação social. O único meio de auxiliar a natureza é libertar o seu pretenso opositor, o pensamento independente». Na Dialéctica do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno concluíram que não havia outra cura para as feridas do Iluminismo senão o próprio Iluminismo radicalizado. A crítica da razão de Adorno e Horkheimer não se obscurece numa renúncia ao que a grande tradição filosófica e, em particular, o Iluminismo, pretendia, mesmo inutilmente, seguir: o conceito de razão. Como Nietzsche, ambos radicalizaram a crítica da razão ao ponto da auto-referencialidade, ou seja, até que essa crítica comece a minar os seus próprios fundamentos. Mas, ao contrário dos seguidores de Nietzsche — Martin Heidegger e Michel Foucault, Adorno deseja manter-se na contradição preformativa de uma dialéctica negativa, que dirige o meio inevitável do pensamento identificador e objectivador contra si mesmo. Pelo exercício da resistência, Adorno convenceu-se de ter permanecido fiel a uma razão perdida no instrumental. Esta razão esquecida, pertencente à pré-história, só encontra eco nos poderes de um mimetismo sem palavras. Embora possa ser circundado pela dialéctica negativa, o mimético não pode ser revelado. O mimético permite o não reconhecimento de uma estrutura que pudesse ser caracterizada como racional. Adorno não apela por uma estrutura heterogénea à razão instrumental, com a qual a força da racionalidade intencional totalizada pudesse colidir. Só a arte guarda a promessa de reconciliação. J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
É muito reconfortante saber que pessoas ao redor do mundo lêem os escritos que com muito esmero tentamos produzir. Obrigado pelo interesse. Gostei muito do teu blog também. Um abraço.
É a aldeia global. Obrigado. Outro abraço
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