Este é um dos conceitos fundamentais da cultura ocidental e, de facto, poderíamos escrever a sua história à luz deste conceito, a começar pela obra de Homero. Mas, neste momento, o meu objectivo é mais modesto. A leitura do texto de Baptista Bastos, RAUL SOLNADO: A PRESENÇA DA GRANDEZA. postado por Agry e a sua noção de amnésia história acordaram em mim uma velha memória: o meu estudo sobre a memória que ainda está por concluir e não sei se será alguma vez concluído. Outro texto de Agry, ALTERNATIVAS AO NEOLIBERALISMO, sugeriu-me uma via de abordar a memória histórica que quero partilhar: qual a relação da política com a memória? Ou mais precisamente: qual a relação da Esquerda com a memória? Martha Harnecker tem razão quando afirma que o marxismo não pode ser culpabilizado pelos «erros» cometidos pelo «comunismo soviético», mas engana-se quando afirma que o marxismo possui uma «receita». O seu mestre, Louis Althusser, tomou consciência disso muito tarde, já na «clínica psiquiátrica», após ter morto a mulher: o marxismo não tem uma política, isto é, não tem uma receita alternativa ao «liberalismo económico», isto é, à economia de mercado. É, por isso, que a Esquerda atravessa um período de crise teórica e prática. Sem alternativa de um novo modelo económico, depois do colapso da economia planificada ou dos modelos de auto-gestão, a Esquerda ficou necessariamente paralisada e, quando está no poder, tende a ser mais «liberal» do que a própria Direita. Isto significa que temos de tentar melhorar a «sociedade» no âmbito do capitalismo global. A Esquerda deve proteger a economia de mercado, reservando ao Estado um papel regulador substancial, e não deve salvaguardar um modelo patrimonial de capitalismo, de resto propenso a fomentar a burocracia e a corrupção. Vejo no esquecimento do seu passado uma das razões da sua crise teórica e política. A Esquerda em geral e a Esquerda Socialista (Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas) em particular sofrem actualmente de amnésia histórica: ignoram o seu passado e os seus autores, sobretudo ignoram Marx, entregando-se a um «pragmatismo» destituído de projecto político (socialismo) ou mantendo um saudosismo pouco criativo, como se a classe trabalhadora integrada ainda fosse uma possível força de transformação social (comunismo). A causa de Marx triunfou: a classe trabalhadora lutou pela melhoria das suas condições de vida, integrou-se e, neste momento, é tão ou mesmo mais metabólica que as forças de Direita. A sua luta é meramente sindical e não política. Como Lenine sabia, os sindicatos são instituições pouco dadas à luta política revolucionária e os partidos que os defendem, em particular o Partido Comunista Português, já não são fiéis ao pensamento político de Lenine, de resto o grande político do marxismo. Só a agravamento das condições objectivas de vida poderia criar uma conjuntura política favorável a um movimento revolucionário, mas, diga-se a verdade, não adianta fomentar esse movimento, porque não há sociedade perfeita ou qualquer fim da História, a não ser a destruição da humanidade. Devemos, portanto, retomar a leitura dos grandes mestres da Esquerda, isto é, recuperar a memória activa do nosso passado, mas sem projectar uma sociedade futura perfeita. Isto não significa que o sonho seja proibido; pelo contrário, é sonhando para a frente num horizonte sempre aberto e, portanto, inconcluso, que podemos salvaguardar a nossa memória histórica e libertar o futuro, melhorando o presente. Este esquecimento do passado deve-se não só à atrofia cognitiva que se observa nos lideres políticos actuais, bem como nos cidadãos das mesmas gerações, mas também ao facto deles constituírem a grande geração mais privilegiada da história da humanidade. Esta geração grisalha beneficiou de condições extremamente favoráveis, em particular de todos os benefícios do Estado Social, aqueles que estão a ser reduzidos drasticamente por todos os países da União Europeia. Isto significa que as novas gerações vão viver em constante risco e risco de pobreza. Esta pode ser novamente utilizada como uma arma política. No entanto, preferia ver o socialismo incentivar a economia de mercado, chamando os proprietários às suas responsabilidades e levando-os a assumir riscos, sem contar com o apoio do Estado e dos seus subsídios, outra forma de capitalismo patrimonial. Deste modo, o Estado ficaria livre para apoiar iniciativas que vão ao encontro da sua tradição histórica. O mercado deve funcionar por si mesmo, sem ajudas financeiras significativas do Estado e, uma vez libertado do seu sector público (outra força de corrupção), o Estado pode zelar pelos ideais da Esquerda, entre os quais o liberalismo político. Isto exige uma reforma do Estado que o partido socialista português tem evitado fazer. Esta reforma não visa a extinção do Estado, como pretendia Marx, mas o aumento da sua eficácia na implementação de políticas sociais, culturais, educacionais, de saúde, de combate à pobreza, de apoio à natalidade, defesa da cidadania e da participação política, enfim todas aquelas políticas que o socialismo sabe pela sua história serem as suas políticas. Abandoná-las como sucede actualmente na União Europeia é o mesmo que trair o próprio Ocidente, a única civilização que ousou contrariar as forças obscuras do destino e que se permitiu sonhar para a frente. Uma economia de mercado forte, entregue às suas próprias leis, embora regulada pelo Estado, cuja missão fundamental é combater as desigualdades sociais, pode ser uma força capaz de ajudar o socialismo a cumprir a sua missão histórica: defesa da liberdade e defesa da igualdade de oportunidades. O marxismo só é hoje possível como marxismo liberal. Dado a memória não ser uma força passiva mas uma força activa e formadora, a rememoração do seu passado «esquecido» pode relançar esse marxismo liberal, capaz de fazer face às políticas neoliberais da Direita Liberal ou conservadoras da Direita Retrógrada. Reformulando o seu passado, a Esquerda socialista pode recriá-lo e munir-se de um projecto político capaz de levar os cidadãos a tomarem consciência de que também eles devem participar activamente na transformação eterna da sociedade em função de um modelo negativo: aquele que não arrisca uma definição cabal da futura sociedade. Precisamos de reler Marx em chave liberal e está leitura deve relançar a crítica da economia política, capaz de denunciar as técnicas adaptativas dos cálculos económicos e financeiros. O discurso da extinção do Estado ou do Trabalho, por exemplo, deve ser relido e substancialmente alterado ou mesmo abandonado. Uma sociedade de lazer é um perfeito absurdo e, como viu Hannah Arendt, esta ideia «marxista» contribuiu para a construção de uma sociedade metabólica de consumidores, impondo uma concepção perigosa de igualdade, absolutamente contrária à natureza humana. Em vez dessa ideia, precisamos de políticas de requalificação e de dignificação do trabalho, com emprego pleno, as únicas capazes de ajudar a fazer frente aos desafios da globalização. Em vez de um princípio hedonista, precisamos retomar uma política que valorize o esforço e a competência em todos os níveis da sociedade, a começar pela escola e pela educação. São estas «pequenas coisas» que devem marcar a diferença entre a Esquerda e a Direita. A Esquerda é, por definição, a insatisfação permanente com o estado de coisas estabelecido, sem promessas de futuro garantido. Em diálogo permanente com o passado, a Esquerda sonha sempre para a frente, procurando melhorar a qualidade de vida, sem estar prisioneira de um modelo pré-estabelecido de sociedade. Isto significa que a sua divergência interna, reforma ou revolução, já não faz sentido. A amnésia histórica não é apenas um traço definidor da Esquerda estabelecida: a Direita também sofre da mesma síndrome, mas com uma diferença substancial. A Direita não tem passado, porque toda ela é profundamente ideológica, ou seja, má consciência: o seu objectivo é sempre conservar as regalias conquistadas ou os direitos adquiridos, isto é, manter o status quo, sem qualquer projecto dirigido para a frente. Isto significa que só a Esquerda pode dinamizar a história e, portanto, zelar pela continuidade da aventura ocidental. Recuperar Marx é, pois, reactivar a nossa Tradição Ocidental. J Francisco Saraiva de Sousa
8 comentários:
Por agora, pretendo apenas reafirmar-lhe que o texto a que se refere como, aliás, já ontem lho comuniquei é dum grande jornalista que dá pelo nome de Baptista Bastos.
Frequentemente faço postagens desse autor devidamente assinaladas e autorizadas
Agradecia que corrigisse isto, por favor.
Quanto à expressão, ela não tem dono porque, há muito, faz parte do meu universo linguistico. O texto é que não, por favor
Agry
Abraço
Agry
Provavelmente ainda não leu o meu comentário. Se me permite, tomo a liberdade de lhe sugerir que rectifique para "O texto de Baptista Bastos , postado por Agry"
Agry
Ok Vou rectificar.
E tentar afinar algumas ideias. Quando alinhavei o texto, já era muito tarde e estava com muito sono.
Abraço
Para tomar conhecimento. Mas sou capaz de o adicionar nos meus elos: a ele.
Obrigado pela informação.
Abraço
Obrigado Agry
Já sei eliminar. Sou mesmo distraído.
Abraço
Obrigada pelo link. Adorei este texto, excelente diagnóstico. Pela abordagem filosófica dos fenómenos da memória e amnésia e pela reflexão madura do marxismo.
Uma sociedade de lazer é um perfeito absurdo e, como viu Hannah Arendt, esta ideia «marxista» contribuiu para a construção de uma sociedade metabólica de consumidores, impondo uma concepção perigosa de igualdade, absolutamente contrária à natureza humana.
A Borboleta é especial. :)
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