Num post anterior, tinha prometido abordar o problema da criminologia, numa perspectiva simultaneamente científica e política. Mas ainda não será desta vez que o vou fazer, embora vá tratar das relações mútuas entre os burocratas e os criminosos. Mais precisamente, vou propor uma leitura de um texto produzido por Marx e extraído da sua fabulosa obra «Teorias da Mais-Valia» (3 volumes), cuja edição da responsabilidade de Karl Kautsky foi publicada de 1905 a 1910. Esta obra fornece todos os instrumentos necessários para a elaboração de uma teoria geral da ideologia, ao mesmo tempo que desmonta as ideologias económicas.
Contudo, sou confrontado de momento com um problema: tenho de recorrer a uma tradução brasileira. A obra a que recorro pode servir de introdução ao pensamento de Marx, porque fornece uma selecção de textos do próprio Marx, antecedida de uma boa introdução: «Sociologia e Filosofia Social de Karl Marx» de T.B. Bottomore e M. Rubel. Eis o texto:
«Um filósofo produz ideias, um poeta produz versos, um pároco produz sermões, um professor produz livros didácticos, etc. Um criminoso produz o crime. Mas, se for examinada mais de perto a relação entre este último ramo da produção e o conjunto das actividades produtivas da sociedade, (somos forçados) a abandonar uma porção de preconceitos. O criminoso produz não só o crime, mas também a lei penal; produz o professor que dá lições de Direito Penal e até o inevitável compêndio em que o professor apresenta as suas lições como mercadoria à venda no mercado. (Daqui) resulta um aumento na riqueza material, (para além) do prazer que... o autor extrai ao escrever esse compêndio.
«Mais ainda, o criminoso produz todo o aparelho da polícia e da justiça criminal - detectives, juízes, carrascos, jurados, etc.; e todas estas diferentes profissões, que constituem outras tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem diversas capacidades do espírito humano, criam novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. Até a tortura tem dado ocasiões para as mais engenhosas invenções mecânicas, empregando um contingente de trabalhadores honestos na fabricação desses instrumentos.
«O criminoso produz uma impressão, seja moral ou trágica, e presta um serviço despertando os sentimentos éticos e estéticos do público. Ele produz não apenas os compêndios de Direito Penal e a própria lei criminal - e com isso os legisladores -, mas também a arte e a literatura, romances e peças trágicas (exemplos omitidos). O criminoso interrompe a monotonia e a segurança da vida burguesa: com isso protege-a contra a estagnação e põe em jogo aquela tensão infatigável, aquela mobilidade de espírito sem a qual o próprio estímulo da competição acabaria embrutecido. Imprime, portanto, um novo impulso às forças produtivas. O crime subtrai ao mercado de trabalho uma fracção do excesso de população, diminui a competição entre os trabalhadores e, até certo ponto, evita que os salários desçam abaixo de um mínimo, ao (mesmo tempo) que o combate ao crime absorve outra parte da mesma população.Assim, o criminoso aparece como sendo uma das "forças de equilíbrio" naturais, que estabelecem uma justa compensação e abrem toda uma perspectiva de ocupações "úteis". A influência do criminoso sobre o desenvolvimento das forças produtivas pode ser mostrada em detalhe. Teria o negócio de fechaduras chegado à sua perfeição actual, se nunca tivessem existido ladrões? Teria a confecção de papel-moeda atingido a sua actual perfeição, se nunca tivessem existido falsários? Teria o microscópio entrado na vida normal do comércio, se nunca tivessem existido imitadores? Não será a evolução da Química devida tanto à adulteração dos artigos e às tentativas para descobri-la, quanto ao esforço produtivo honesto? O crime, pelo seu incessante desenvolvimento de novos meios de ataque à propriedade, dá lugar a novas medidas de defesa e os seus efeitos produtivos são tão grandes como os das greves que estimulam a invenção de máquinas.
«Deixando a esfera do crime privado: Haveria um mercado mundial, as própria nações existiriam, se não houvesse crimes nacionais? Não é a árvore do mal a mesma árvore do bem, desde os tempos de Adão?
«Na sua «Fábula das Abelhas» (1708), Mandeville já demonstrava a produtividade de todas as ocupações de Inglaterra, antecipando a nossa argumentação: "O que chamamos Mal, neste mundo, tanto moral quanto natural, é o grande princípio que faz de nós Criaturas sociáveis, a Base sólida, a Vida e o Sustento de todos os negócios e Empregos, sem excepção: para que precisemos buscar o Original verdadeiro de todas as Artes e Ciências, e para que o Mal do Momento acabe, a Sociedade precisa ser estragada senão completamente dissolvida"».
Este texto de Marx pode parecer enigmático, pelo menos a todos aqueles que não são dotados de pensamento crítico, preferindo entregar-se aos «prazeres instantâneos» sem os questionar e sem questionar a sua vida nesta terra. Todavia, o texto é claro e situa-se na sequência da discussão da distinção que Adam Smith fez entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, com os difamadores de Smith a considerar o segundo tão produtivo como o primeiro. No entanto, escamoteiam o facto, pelo menos neste caso dos criminosos, dos trabalhadores improdutivos terem isto em comum: embora possam produzir «bens imateriais», eles consomem «bens materiais», isto é, os produtos do trabalho dos trabalhadores produtivos. Neste caso particular, tanto os criminosos como as restantes ocupações que gravitam em torno do crime não produzem riqueza material, embora possam fomentar a criação de novas profissões e imprimir novos impulsos ao desenvolvimento das forças produtivas, além dos efeitos positivos produzidos entre os trabalhadores produtivos. Este caso do crime mostra, portanto, que o crime é uma força económica. Apesar de encarnar o Mal, ele também favorece o Bem: as árvores do Mal e do Bem são uma só e mesma árvore.
Mas pretendemos ir mais longe e mostrar que nas nossas democracias corrompidas, que mais do que democracias genuínas são oligarquias disfarçadas, os criminosos produzem burocratas e estes tudo fazem para manter o seu exército de criminosos, sem os quais muitos deles não teriam razão de ser. O objectivo da burocracia tal como a conhecemos na União Europeia e, em particular, em Portugal, não é adoptar uma política de combate radical contra o crime, mas geri-lo de modo a beneficiar de algum modo com ele. Os burocratas e os criminosos são as duas faces da mesma moeda: nenhum deles pode viver sem o outro. Por isso, estão intimamente ligados. A existência de criminosos justifica a existência de burocratas ligados ao crime, e a existência de burocratas tende a criar novos crimes para justificar a sua presença. Ao racionalizar a gestão e a administração dos assuntos públicos, a burocracia nada mais faz do que manter os seus privilégios, constituindo-se num novo grupo que detém todo o poder que é exercido para manter a sociedade instituída, aquela que lhe permite enriquecer num ano, como sucede com os administradores (e gestores dos bancos ou das empresas públicas em Portugal. Estes burocratas provenientes da economia, do direito e da engenharia constituíram-se como um grupo fechado, que abusam do poder para enriquecer, mantendo uma promiscuidade entre poder político e poder económico (corrupção). Este é um problema da democracia portuguesa e das democracias ocidentais, que, no fundo, são oligarquias disfarçadas). Anexo. Só agora reparei que este post foi editado incompleto: quer dizer que falta texto. Mas, logo que saiba a razão de ser deste problema técnico ou erro da minha parte, direi qualquer coisa. Como escrevo geralmente de improviso, não tenho disponível o resto do texto. Se não o encontrar, terei de refazer, isto é, reinventá-lo. Contudo, convém ter em conta que o texto de Marx enuncia uma verdade empírica e que nós somos livres para denunciar a ideologia que a envolve, de modo a transcender a realidade estabelecida. J Francisco Saraiva de Sousa
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