«O trabalho, dizem os economistas, é a fonte de toda a riqueza. É-o sem dúvida… conjuntamente com a natureza que lhe fornece a matéria que ele transforma em riqueza, Mas é infinitamente mais ainda. É a condição fundamental primeira de toda a vida humana, e é-o a tal ponto que podemos dizer: o trabalho criou o próprio homem». (F. ENGELS) Marx mostrou que, na era da industrialização, o trabalho tornou-se trabalho assalariado e, como tal, deixou de estar associado às necessidades humanas imediatas e entrou no processo anónimo de produção. O trabalhador converteu-se numa peça da engrenagem produtiva, desapossada de poder e de vontade. O trabalho passou a valer pelo salário e, deste modo, tornou-se alienante e inumano. É certo que o trabalho garante a possibilidade de consumo (sensação de satisfação), mas também conduz ao vazio e à frustração (sensação de insaciabilidade). A era pós-industrial, a nossa era, é confrontada com o aumento do desemprego, do trabalho precário e a tempo parcial e, simultaneamente, com o crescente trabalho qualificado. Actualmente, o trabalho deixou de ser um mecanismo capaz de promover a «igualdade social», tornando-se um factor de desigualdades, porque o seu valor continua a ser o dinheiro que se obtém pela venda da força-de-trabalho, e o emprego é cada vez mais um bem escasso. É, portanto, o poder aquisitivo que determina o valor do trabalho. O valor deixou de ser valor-de-uso e tornou-se valor-de-troca. A qualidade de vida passou a ser determinada pelo dinheiro: "Mais dinheiro, mais qualidade de vida". Além disso, o trabalho vale em função do papel social do trabalhador: a classe trabalhadora, entregue ao trabalho produtivo dos serviços, e a «classe dominante», dedicada às profissões liberais e ao poder político e executivo empresarial e bancário, são dois universos absolutamente distintos, que oscilam entre o trabalho precário e os profissionais de colarinho-branco que autolegitimam injusta e abusivamente o seu estatuto superior. Cava-se, assim, um fosso entre aqueles para quem o trabalho é fonte de subsistência, sempre precária porque indefinida e escassa, e os que encontram supostamente no trabalho a sua «auto-realização». A Doutrina Social da Igreja Católica defende a ideia de que o trabalho é «fonte da identidade e da auto-realização humanas», aliás uma ideia «marxista», que merece ser pensada, embora a questão que clarifique o sentido do trabalho possa ser outra, aquela colocada por Friedmann: «O homem da civilização do futuro, já nascido depois da fábrica atómica e da nova tecnologia, poderá vir a realizar-se e a encontrar a sua felicidade no tempo livre?». Com efeito, o trabalho só se tornou um tema digno de reflexão filosófica com a economia política clássica (Ricardo e Adam Smith) e, sobretudo, com as filosofias de Hegel e de Marx, este último, considerado por Hannah Arendt, como «o grande filósofo do trabalho». O marxismo sempre denunciou o trabalho assalariado e o seu carácter alienado. Contudo, esta denúncia foi realizada sem levar em conta as ambiguidades políticas da sua própria concepção de trabalho, de resto denunciadas por Hannah Arendt e Georges Friedmann. Daí que a maior parte dos marxistas tenha caído na tentação de dar expressão à tese de Marx dos dois reinos – o reino da necessidade e reino o da liberdade, francamente desfavorável a uma visão positiva do trabalho. Convém reler as «Metamorphoses du Travail» de André Gorz, uma dessas vítimas da concepção negativa do trabalho, de modo a centrar a nossa atenção em três aspectos básicos: a racionalização económica que nos leva a trabalhar como o fazemos não é, de modo algum, racional no sentido pleno, isto é, libertadora ou emancipadora. Pelo contrário, produz desintegração social (1), degradação da vida individual (2) e desigualdade (3). Gorz elaborou um projecto político com o objectivo de combater estas consequências da racionalização económica, que deveria ter três direcções que se complementam e convergem: 1) uma distribuição do trabalho solidária que crie sociedade, isto é, relações sociais mais humanas; 2) uma desmistificação do trabalho, que, graças à tecnologia, já não teria que ser a principal ocupação da vida; 3) e aquilo a que Marx chamou «o livre desenvolvimento da individualidade», pelo aproveitamento do tempo libertado de trabalho. 1. Criar sociedade. Dado que o mercado ameaça destruir a sociedade, a programação global do trabalho equivale a programar uma nova forma de entender a sociedade e de viver em sociedade. A racionalidade económica capitalista criou mais riqueza, num sentido quantitativo, mas não conseguiu corrigir a desigualdade e a falta de solidariedade entre os homens, nem contribuiu significativamente para a melhoria adequada da qualidade de vida individual. Um modo de produção que favorece e acentua o atomismo e a maximização dos lucros, na medida em que obriga a ganhar mais dinheiro para consumir mais, não contribui efectivamente para dignificar a vida individual. Esta tarefa cabe ao Estado, ou, como diz Gorz: é função de uma política socialista «criar sociedade», subordinar a racionalidade económica a fins sociais, em particular éticos ou políticos, combater o défice de sociedade que o capitalismo implica. Isto significa que é necessário começar a pensar qual deve ser o significado do trabalho na vida humana, chegar a uma concepção de trabalho digna e adequada para que a sociedade adquira coesão e a vida pessoal não se degrade. Trata-se, portanto, de elaborar uma política do trabalho capaz de minorar os efeitos negativos da racionalidade económica, procurando harmonizá-la com a racionalidade da vida. 2. Desmistificar o trabalho. Segundo Gorz, também é necessário que os indivíduos vejam o trabalho de uma outra forma, como qualquer coisa que dá sentido às suas vidas. Este sentido parece derivar não do tempo de trabalho, mas do tempo livre: Os teóricos mais radicais pensam ser absurdo continuar a dar ao trabalho o melhor «tempo» das nossas vidas, quando, nos tempos modernos, as novas tecnologias permitem reduzir o tempo de trabalho e aumentam o tempo de ócio, o tempo para viver. Se formos capazes de distribuir equitativamente esse trabalho, que necessita já de menos mão-de-obra humana, porque esta foi substituída pela técnica, o tempo de descanso e de liberdade pode aumentar para todos. Essa visão diferencial dos «tempos» não é uma reivindicação exclusiva de Gorz, mas da sociedade em geral. Contudo, esta distinção entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio invalida a tarefa de dignificar o próprio trabalho, e os seus defensores ainda não perceberam que os tempos de lazer, além de serem empresarialmente organizados pelo mercado (Adorno), são gastos a consumir (Arendt), numa conjuntura em que a tecnologia dispensa o trabalhador, tornando o trabalho como fonte de subsistência (emprego) num bem escasso. 3. O livre desenvolvimento da individualidade. O ideal seria a continuidade perfeita entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio: o trabalho como diversão, como reclamava Marcuse. Porém, isto só é possível para algumas pessoas e para certas actividades de trabalho - intelectual, artístico, artesanal. Gorz diz que «a satisfação existencial depende da actividade fora do trabalho mais do que qualquer outro factor». O trabalho precisa de deixar de ser o mais central, para se converter numa actividade entre outras. Para Gorz, seria necessário abrir caminho a uma nova utopia: a da «sociedade do tempo livre». A ironia é que esta utopia está a realizar-se num sentido não desejável: o aumento do desemprego e, terrivelmente, do tempo livre, gasto à procura de emprego. Neste novo cenário, torna-se necessário glorificar o trabalho como fonte essencial de identidade e de realização pessoal, de resto uma ideia que já tinha sido avançada por Wilhelm Reich que via no trabalho uma fonte de saúde. Além disso, esta noção positiva do trabalho manifesta-se claramente nos textos de Marx e de Engels, nomeadamente naquele que aparece neste post em epigrafe. Esta visão positiva do tempo de trabalho e do tempo da vida (também presente no pensamento de Marx) depende tanto de uma forte vontade política socialista, como da educação para o trabalho. A globalização não parece ser favorável à concretização de uma concepção justa e distributiva de trabalho. Com efeito, não só tende a tornar mais barato o trabalho, como também fomenta o desemprego, numa época em que o Estado está a perder autonomia em relação ao poder económico. O que está em causa hoje em dia é a própria subsistência das pessoas e é neste domínio do trabalho e do emprego pleno que as políticas socialistas podem fazer a diferença qualitativa, humanizando o trabalho mais penoso (1), e distribuindo melhor o trabalho, a fim de que um maior número de pessoas possa ter emprego para desfrutar, em seguida, a liberdade e a possibilidade de fazer outras coisas e de se ocupar naquilo que mais preenche a sua vida (2). Deste modo, podemos talvez libertar qualitativamente os homens do «reino da necessidade», isto é, da preocupação pela mera subsistência, abrindo-lhe as portas do «reino da liberdade«, onde devem aprender a ser autónomos e solidários, sem que sejam vítimas da concepção unidimensional e muito portuguesa de que o sentido do trabalho se encontra na profissionalização aparente, obtida de modo corrupto, isto é, na (falsa) identidade pessoal na e para a profissão, vista como eliminação dos concorrentes e megaconcentrações de empregos. Esta é a concepção dos luso-corruptos que negam distribuir o trabalho de modo equitativo e justo. Para eles, o êxito profissional é inseparável do lucro económico, aliás estabelecido pelos próprios, e a qualidade de vida mede-se pela quantidade de dinheiro que cada um consegue sacar abusivamente ao Estado, como se eles fossem o Estado. A «utopia da civilização do lazer», outrora defendida por certas correntes do marxismo, deve ser abandonada, porque esquece que vivemos num mundo cada vez mais global, numa sociedade consumista, ameaçada pelas desigualdades sociais e pelo desemprego. O lazer converteu-se em tempo de consumo: a jornada de trabalho foi reduzida para possibilitar o tempo livre, mas a sua ocupação não deu origem ao surgimento de «individualidades livres e desenvolvidas». Ora, esta concepção do trabalho-lazer foi admiravelmente minada por Hannah Arendt: «Cem anos depois de Marx sabemos quão falaz é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites». Este é um texto de improviso escrito como uma denúncia antecipada das asneirolas que vão ser ditas hoje à noite no programa «Prós e Contras» dedicado ao Trabalho. J Francisco Saraiva de Sousa
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