segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Corrupção e Ideologia Sem Nome

«A posse é, nesta perspectiva, propriedade: mas a abstracção da universalidade na mesma é o direito. (...) O indivíduo, em si e por si, não é absolutamente proprietário, possessor por direito; a sua personalidade, ou a abstracção da sua unidade e singularidade, é apenas uma abstracção e uma coisa de pensamento. Também não é na individualidade que residem o direito e a propriedade, pois ela é identidade absoluta, ou também uma abstracção, mas o direito reside somente na relativa identidade da posse, enquanto esta identidade relativa tem a forma da universalidade. O direito à propriedade é o direito ao direito (...).» (Hegel)
«A corrupção das próprias pessoas (diferente da corrupção dos seus representantes ou de uma classe dirigente) só é possível num governo que lhes tenha garantido uma comparticipação no poder público e lhes tenha ensinado a manipulá-lo. Onde o fosso entre o governante e o governado foi fechado, é sempre possível que a linha divisória entre público e privado se possa esbater e, eventualmente, esquecer.» (Hannah Arendt)
A corrupção não é um fenómeno tão complexo e generalizado como o pretendem apresentar. Aliás, quem o apresenta como tal mostra que não o pretende erradicar da sociedade, optando conscientemente por uma abordagem que visa adiar o seu combate político. Trata-se, portanto, de um "discurso ideológico" que denuncia a corrupção (a dos outros), não para pensar uma nova política para a eliminar, seja ela preventiva e/ou punitiva, mas para ganhar "trunfos" num debate que visa unicamente a conquista do poder.
Contudo, o facto da corrupção estar na ordem do dia parece indicar que, finalmente, a ideologia do "pensamento único" ou do "politicamente correcto" começa a mostrar as suas próprias contradições e, sobretudo, a sua «face distorcida». Tanto os corruptos como os seus falsos-denunciadores, portanto, ex-corruptos activos e/ou com pretensão a vir a ser activamente corruptos, revelam a sua verdadeira face: tornam-se visíveis e reconhecíveis. Em Portugal, os portugueses conhecem os rostos dos corruptos, que, mesmo quando denunciados publicamente, com provas materiais, negam a prática dos actos corruptos por eles cometidos. Também os "corruptos sem vergonha" passam a denunciar a corrupção e a Magistrada Maria José Morgado, defensora da "ordem" e da "lei", afirma que os corruptos não podem ser legalmente punidos. Paradoxo total: Como se pode defender uma "lei" impotente e "amiga" da corrupção? Estado de Direito? Mas que Estado de Direito é este que não cria leis para punir os corruptos já conhecidos publicamente?
Diante deste indício real e material não podemos cientificamente afirmar que a corrupção é complexa ou que está generalizada. A corrupção é uma prática inscrita na esfera do Estado e os corruptos são indivíduos que desempenham cargos públicos, portanto, políticos, nas mais diversas instâncias do Estado. Só estes indivíduos (os chamados injustamente "políticos profissionais") podem dispor dos "bens públicos" e usá-los em benefício próprio, fazendo "negociatas" escuras com os particulares (os capitalistas). A corrupção envolve sempre, de algum modo, o património do Estado (Weber) e a sua alienação ao desbarato a indivíduos privados, não em benefício do interesse público, mas em benefício dos interesses privados, os dos corruptos que, mesmo sem títulos de propriedade, enriquecem, embora alguns se tenham tornado empresários "bem sucedidos" à custa do Estado e do seu património, e os dos privados que aumentam as suas fortunas. Portanto, é natural que estes indivíduos não estejam interessados na elaboração de leis anticorrupção, porque, como já Marx sabia, o Direito não constitui o "domínio puro das leis". O Direito funciona no âmbito do aparelho repressivo de Estado com o recurso à ideologia jurídica, de resto uma ideologia de classe, e da ideologia moral. A ideologia dominante continua a ser a da classe dominante: a classe capitalista, agora intimamente ligada às novas classes dirigentes que usam os aparelhos partidários para conquistar o poder político, com o objectivo de «enriquecer», portanto, de corromper-se.
A partir destas breves considerações podemos enunciar diversas teses, das quais mencionamos, sem as desenvolver, sete teses:
Tese 1: O mundo ocidental, sobretudo a Europa, tem assistido nas últimas décadas à ascensão social de uma nova classe social: a classe dirigente, a qual abrange diversas facções de classe, nomeadamente políticos, deputados, autarcas, magistrados, advogados, engenheiros, professores universitários, sindicalistas, lideres partidários, etc..

Tese 2: Esta classe dirigente está instalada nas diversas esferas do poder político, sobretudo nos poderes legislativo, executivo e judicial, bem como nas empresas públicas, de modo a controlá-lo completamente.
Tese 3: A classe dirigente não se apresenta como tal, mas prefere apresentar-se como um grupo de indivíduos dotados de "conhecimentos especializados" e "técnicos" que lhes permite gerir "racionalmente" os bens públicos e os destinos políticos dos cidadãos. A sociologia recente legitima estes "conhecimentos burocráticos", como se fosse impossível gerir a sociedade sem eles! Fatalismo disfarçado que, no fundo, pretende apresentar este modelo de sociedade vigente como insuperável!
Tese 4: A nova classe dirigente gosta de falar no «fim das ideologias», como se estas já não fossem necessárias numa sociedade "democrática" que resolveu, graças à sua "competência profissional" e a sua "nobre" missão, as desigualdades sociais. A Democracia converte-se magicamente em "mundo pacificado", sem conflitos ou antagonismos sociais.
Tese 5: Mas, neste slogan da pacificação, só ameaçado pelo terrorismo islâmico, «revela-se» inadvertidamente uma nova ideologia de classe: o "pensamento único", supostamente assente na defesa unânime da democracia, da liberdade e da justiça social, posteriormente convertido em "ideologia do politicamente correcto". Ora, uma tal ideologia encobre, procurando justificá-los e legitimá-los, os interesses não-confessados da nova classe dirigente organizada em torno do chamado "centro político", pelo menos ao nível do "poder central" (Estado), como mostra o caso português.
Tese 6: Esta nova ideologia tomou forma ao longo da história recente das chamadas "ciências sociais" (sociologia, economia, psicologia, gestão, administração, história política), que se apropriaram da filosofia de Karl Marx (Arendt), retendo o seu suposto "perspectivismo social", após a terem submetido a um "processo de purificação" (anexação sem imaginação teórica criadora), durante o qual se descartaram de todos os conceitos negativos, tais como luta de classes, exploração, interesses de classe, enfim ideologia, precisamente aqueles capazes de iluminar novas alternativas sociais e políticas qualitativas. Ao descartar o conceito de ideologia, as chamadas ciências sociais inviabilizam a crítica e o debate, tornando-se prisioneiras do "relativismo". Elas glorificam o poder das novas classes dirigentes, bem como os interesses da chamada classe média, todos eles garantidos pela "prática da corrupção activa e organizada", legitimada e bem protegida pelo Direito e pelos aparelhos repressivos e ideológicos (os mass media) de Estado.
Tese 7: As novas classes dirigentes e os seus lacaios ideológicos perseguem o último bastião do "pensamente independente": a Filosofia Ocidental e o seu "racionalismo" intrínseco. A democracia é esvaziada e convertida num ritual meramente formal, durante o qual os políticos "mentem intencionalmente", em defesa da nova oligarquia centrista. A nova ideologia reclama a exclusividade: não tolera qualquer oposição! Ora, a Filosofia é sempre "hegemónica" e, onde não o é, há corrupção, ditadura, totalitarismo, fascismo disfarçado, enfim regime cleptocrático. Trata-se de conservar a memória e a tradição crítica, aquilo que está a morrer no mundo ocidental, condenado à morte, devido à gula irracional do capitalismo por lucros e à mediocridade «metabólica» e intelectual dos seus dirigentes.

Pelo menos hoje, não estou com paciência para comprovar todas estas teses, quer empiricamente, quer mediante o recurso à "história dogmática" da Filosofia e das Teorias Sociais e Políticas. Todas elas podem ser desenvolvidas e articuladas numa "teoria geral da corrupção política", fundada na teoria de Karl Marx, o que demonstra a sua actualidade numa sociedade capitalista globalizada, pelo menos ao nível do capital financeiro e da comunicação.
J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

quintarantino disse...

Apreciei a leitura. Voltarei. E irei comentar, mas à medida dos meus conhecimentos. É que o homem apresenta aqui uma bagagem cultural que faz favor...

Manuel Rocha disse...

Você sem paciência e eu sem tempo...mas há aqui reflexões muito pertinentes para a vasta questão "corrupção", desde logo a necessidade de lhe estabelecer o conteúdo dando nome à sua "ideologia sem nome". E que tal se ela atendesse por "american dream "?

:))

Mas este texto merecesse ser relido com tempo...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

"American dream": uma boa sugestão!
Penso que a ideia de felicidade enquina tudo: um mito terrível. Também pode ser visto como um problema de "escala". Os luso-gordos (corruptos) perderam a perspectiva da escala: querem tudo "grande", o que significa especulação e mais-valias gordas, como se fossem "imortais"... :)

Quintarantino

Bem-vindo! Hoje também estive distante da blogosfera... E agora vou ver se tiro um tempo para o programa da Fátima Campos. :)