quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Teoria Exotic Becomes Erotic de Daryl J. Bem

A teoria "exotic becomes erotic" (EBE) de Bem (1996, 2000) oferece uma explicação para o modo pelo qual os comportamentos sexualmente tipificados estão relacionados com a orientação sexual.
Segundo Daryl J. Bem (1996, 2000), a questão «O que causa a homossexualidade?» é não só «politicamente suspeita» como também «cientificamente mal concebida». «Politicamente suspeita», porque é «frequentemente motivada por uma agenda de prevenção e de cura». «Cientificamente mal concebida», porque «presume que a heterossexualidade é tão bem compreendida, tão obviamente a consequência evolutiva "natural" da vantagem reprodutiva, que somente os seus desvios são teoricamente problemáticos». O próprio Sigmund Freud (1905, 1972), nos seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, escreveu: «Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse exclusivo dos homens pelas mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é facto evidente em si mesmo, baseado numa atracção, afinal de natureza química» (p.146, Acrescento de 1915). Nesta perspectiva, Bem propõe uma teoria do desenvolvimento da atracção erótica/romântica que fornece a mesma explicação básica para ambos os desejos por pessoas do sexo oposto ou do mesmo sexo, tanto para homens como para mulheres.
A teoria proposta por Bem (1996) procura especificar os antecedentes causais das atracções eróticas e/ou românticas de um indivíduo por pessoas do sexo oposto e do mesmo sexo. A teoria será esquematizada numa "figura mental", com o recurso à imaginação do leitor. Neste "esquema mental", Bem propõe a sequência temporal de acontecimentos que conduzem a maior parte dos homens e das mulheres à orientação sexual numa cultura género-polarizada, tal como a nossa: uma cultura que dá ênfase às diferenças entre os sexos por meio da organização omnipresente tanto das realidades como das percepções da vida comum em torno da dicotomia masculino-feminino (Daryl J. Bem, 1993).
A sequência começa no topo do "esquema mental" com Variáveis Biológicas (nível A) e termina em baixo com a Atracção Erótica/Romântica (nível F). A evidência a favor da teoria é organizada dentro da seguinte sequência narrativa: A conformidade/não-conformidade de género na infância é uma causa antecedente da orientação sexual em adulto (C>F). Isto é assim porque a conformidade ou não-conformidade de género leva uma criança a perceber pares do sexo oposto ou do mesmo sexo como exóticos (C>D) e a classe de pares exóticos torna-se subsequentemente atraente erótica ou romanticamente para ele ou ela (D>F). Isto ocorre porque os pares exóticos produzem excitação autonómica intensificada (D>E), a qual é posteriormente transformada em atracção erótico/romântica (E>F). Esta sequência completa de acontecimentos pode ser iniciada, entre outras vias, por factores biológicos que influenciam os temperamentos de uma criança (A>B), os quais, por sua vez, influenciam as preferências dele ou dela por actividades e parceiros em conformidade ou não-conformidade de género (B>C). Esta é a visão geral da teoria proposta por Bem (1996), mais conhecida por teoria EBE: «Exotic Becomes Erotic».
A proposição central de que os indivíduos podem tornar-se eroticamente atraídos por uma classe de indivíduos por quem se sentiram diferentes durante a infância é, segundo Bem, verdadeiramente geral e transcende as orientações sexuais que estão fundadas sobre o género. Assim, por exemplo, uma pessoa «light-skinned» pode começar a erotizar pessoas «dark-skinned», através de um ou mais processos descritos pela teoria. Contudo, para produzir uma atracção erótica diferencial por um sexo ou pelo outro sexo, é necessário que a base dos diferentes sentimentos possa, ela mesma, diferenciar entre os sexos. Por outras palavras, para alcançar uma atracção erótica baseada-no-sexo, um indivíduo deverá sentir-se diferente por razões «sex-based» ou «gender-related». Sentir-se simplesmente «lighter-skinned», pobre, mais inteligente ou mais introvertido do que um dos pares da infância não produz o tipo de sentimentos diferentes que produz a atracção homoerótica ou heteroerótica diferencial.
Os dados consistentes com esta análise provêm, segundo Bem, de um estudo intensivo de entrevistas em larga-escala conduzido em San Francisco Bay Area pelo Kinsey Institute for Sex Research (Bell, Weinberg e Hammersmith, 1981-a). Usando relatórios retrospectivos de respondentes adultos, os investigadores compararam aproximadamente 1000 homens gay e lésbicas com 500 homens e mulheres heterossexuais, para testar diversas hipóteses sobre o desenvolvimento da orientação sexual. O estudo — doravante o San Francisco Study — não concedeu virtualmente apoio às teorias correntes baseadas-na-experiência da orientação sexual, incluindo as teorias baseadas sobre processos de aprendizagem ou de condicionamento ou sobre a psicodinâmica familiar. Contudo, o estudo revela que 71% dos homens gay e 70% das lésbicas da referida amostra tiveram sentimentos diferentes em relação aos seus pares do mesmo sexo durante a infância, de resto um sentimento que foi mantido ao longo da infância e da adolescência pela maior parte dos respondentes. Quando foram interrogados sobre os aspectos em que se tinham sentido diferentes, eles mencionaram esmagadoramente razões relacionadas-com-o-género. Os homens gay declararam, a maior parte deles com muita frequência, que não tinham brincado (ou gostado) dos desportos dos rapazes («boy's sports»); a maior parte das lésbicas afirmaram frequentemente que tinham sido mais masculinas do que as outras raparigas e que tinham estado mais interessadas em desportos do que as outras raparigas. Em contraste, menos de 8% dos homens e mulheres heterossexuais disseram que tinham tido sentimentos diferentes dos seus pares do mesmo sexo infantis por razões relacionadas com o género. Aqueles que tinham tido sentimentos diferentes dos seus pares tendem a mencionar razões, tais como terem sido pobres, mais inteligentes ou mais introvertidos.
A Variáveis Biológicas (i.e., genes, hormonas pré-natais)
B Temperamentos Infantis (i.e., agressão, nível de actividade)
C Actividade Sexualmente Típica/Atípica e Preferências dos Parceiros de Jogo(Conformidade/Não-Conformidade de Género)
D Sentimentos Diferentes dos Pares do Sexo Oposto/Mesmo Sexo (dissimilar, não familiar, exótico)
E Excitação Autonómica Não-Específica por Pares do Sexo Oposto/Mesmo Sexo
F Atracção Erótica/Romântica por Pessoas do Sexo Oposto/Mesmo Sexo(orientação sexual).
A > B. Variáveis biológicas, tais como genes ou hormonas pré-natais, não codificam a orientação sexual per si, mas os temperamentos infantis, tais como a agressão ou o nível de actividade.
B > C. Os temperamentos de uma criança predispõem-na, ele ou ela, para preferir mais algumas actividades do que outras. Uma criança pode preferir o jogo «rough-and-tumble» e «competitive team sports» (actividades tipicamente masculinas); outra pode preferir socializa-se sossegadamente ou brincar com bonecos («jacks») ou «hopscotch» (actividades tipicamente femininas). As crianças podem preferir brincar com pares que partilham as suas actividades preferidas; por exemplo, uma criança que joga «baseball» ou «football» pode selectivamente procurar outros rapazes como companheiros-de-jogo. As crianças que preferem actividades sexualmente típicas e parceiros de jogo do mesmo-sexo são inseridas na género-conformidade; as crianças que preferem actividades sexualmente atípicas e parceiros de jogo do sexo-oposto são classificadas sob a não-conformidade de género.
C > D. As crianças com conformidade de género podem sentir-se diferentes dos pares do sexo oposto, percebendo-os como dissemelhantes, não-familiares e exóticos. De modo similar, as crianças com não-conformidade de género podem sentir-se diferentes — talvez alienadas — dos pares do mesmo sexo, percebendo-os como dissemelhantes, não-familiares e exóticos.
D > E. Estes sentimentos de dissemelhança e de falta de familiaridade produzem excitação autonómica intensificada. Para a criança tipicamente masculina, isso pode ser sentido como antipatia ou desprezo na presença de raparigas («girls are yucky»); para a criança tipicamente feminina, isso pode ser sentido como timidez ou apreensão na presença de rapazes. Um exemplo particularmente claro é dado pelo «Sissy boy» que é repreendido ou insultado pelos pares masculinos devido à sua não-conformidade de género e, como resultado, é provável que tenha uma experiência de excitação autonómica forte de medo e ira na sua presença. Embora as raparigas sejam menos punidas do que os rapazes pela não-conformidade de género, uma «tomboy girl» que é ostracizada pelos seus pares femininos pode ter sentimentos similares de excitação afectivamente atenuada na sua presença. Contudo, a teoria exige que todas as crianças — género conformadas ou não — tenham experiências de excitação autonómica não-específica intensificada na presença de pares dos quais ele ou ela se sente diferente. No caso modal, a excitação pode não ser necessariamente atenuada afectivamente ou conscientemente sentida.
E > F. Indiferente à fonte específica ou ao tom afectivo da excitação autonómica infantil, ela é transformada anos mais tarde em atracção erótica/romântica. As passagens D>E e E>F contêm assim mecanismos psicológicos específicos que transformam o exótico em erótico (D>F). De modo breve, a sequência completa delineada neste "esquema mental" pode ser referida como a teoria EBE (Exotic Becomes Erotic) da orientação sexual.
A teoria de Bem defende, sinteticamente, que predisposições genéticas conduzem a diferenças individuais de temperamento nas crianças, tais como agressividade ou interesse por «jogos rudes» («rough and tumble»). Os temperamentos infantis influenciam o desejo das crianças para interagir com rapazes e raparigas. Segundo Bem, o género une os grupos de amigos das crianças e o grau de similaridade comportamental das crianças em relação com os companheiros do sexo oposto são as causas próximas da orientação sexual adulta. Por exemplo, as crianças que têm mais «amigos femininos» («girl friend»), isto é, raparigas e rapazes efeminados, descobrem, por contraste, o pouco familiar e dissemelhante sexo exótico e excitante, isto é, rapazes, e esta excitação é ulteriormente transformada em atracção erótica. Um aspecto evidente que parece inconsistente com a teoria de Bem é a descoberta de que, para as raparigas pelo menos, a afiliação ao mesmo sexo versus sexo oposto é um dos domínios do comportamento infantil sexualmente típico que mostra fraquíssima associação com a orientação sexual adulta (Bailey e Zucker, 1995).
Tal como outras teorias psicossociais, a teoria EBE parece implicar ligações fracas entre os comportamentos sexualmente tipificados e a orientação sexual. A via causal — dos temperamentos infantis para os padrões de amizade infantil e a similaridade/dissimilaridade com o sexo oposto, até à orientação sexual adulta — é indirecta e a composição de género dos grupos de amizade infantil é indubitavelmente influenciada por um conjunto de outros factores além do temperamento infantil, criando, por esse meio, uma via causal verdadeiramente «aberrante» do temperamento infantil para a orientação sexual adulta. Do mesmo modo, o grau de similaridade e de dissimilaridade da criança em relação aos companheiros do sexo oposto é complexo, multidimensional e, frequentemente, condicionado por muitos factores.
A teoria EBE não prediz quais os comportamentos adultos sexualmente tipificados que possam estar mais fortemente ligados à orientação sexual. Em vez disso, concentra-se sobre a agressividade infantil e os jogos «rudes», porque estes comportamentos têm implicações nas preferências das crianças por companheiros de jogo masculinos ou femininos. Contudo, interesses sexualmente típicos e preferências «toy» — querer brincar com bonecas, querer brincar com bonecos soldados e camiões — parecem frequentemente condicionar também as preferências das crianças pelos amigos de brincadeira. (Pode ler este post Teorias Psicossociais da Homossexualidade).
J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

E. A. disse...

Já está bem, foi de repente!

Esta teoria é interessante e talvez passível de concorrer com outras na explicação da orientação sexual, mas por si só parece-me um pouco fraca. O temperamento infantil não me parece algo absolutamente espontâneo, que possa ser tido como um dado em bruto. E além disso, n é uma disjunção básica: brincar com bonecas ou jogar futebol. N há uma hipótese ambivalente?
Depois, se admitirmos que há uma divisão, o que não nos é familiar, o "exótico", é pelo qual nos vamos atrair? Mas que senso de sexualidade tão básico! Então, a possibilidade de nos atrairmos pelos "iguais": mulheres femininas que se atraem por mulheres femininas, e o mesmo em relação aos homens?

:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, essa foi a crítica que fiz desta teoria EBE. Mas faça sugestões: estou a corrigi-las para publicação!

E. A. disse...

Então, peço desculpa por ter sido redundante. Como lhe disse, até receei não ter percebido. O que disse, foi pela minha intuição e observação, nada científicas... :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

É uma teoria bem elaborada, que procura conciliar várias perspectivas. Mas penso que o seu poder explicativo tem os seus limites. (Não percebi o pedido de desculpa!) :)

Manuel Rocha disse...

Bem...vou ler primeiro H Arendt....:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Blue Gift

De facto, tem razão quando refere o problema das bolsas e o tipo de pesquisa encomendada que se faz hoje em dia. O espírito da ciência está a morrer. Aliás, a cultura superior está a morrer, porque se converte em algoritmos: burocratização. Contudo, esta é uma teoria abrangente que procura reconciliar diversos estudos. Tem algum trabalho de pensamento e de originalidade! O que é raro encontrar. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, é mesmo frágil e não dá conta de muitos fenómenos. Mas a teoria neurohormonal também tem os seus apuros. Tratei da bissexualidade, da homossexualidade masculina e feminina e das heterossexualidades noutros posts.
Há os factores genéticos... e a diferenciação neural começa antes da produção da testosterona. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

BlueGift

Contudo, esta teoria "relaciona a orientação sexual com os factores biológicos, cognitivos e culturais". E não nega o papel dos genes e das hormonas. Diversos estudos fornecem-lhe apoio empírico. Quanto aos jogos rudes, não há nada a dizer: é dado assente explicado pelos níveis hormonais pré-natais. Ao contrário do que se pensa, o masculino e o feminino não são infinitamente moldáveis. Mas os dados mais congruentes com a hipótese neurohormonal já os expus noutros posts.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um dia destes edito o texto original: este é um mero resumo.

Bem, depois de reler, pensei noutra crítica do exótico tornando-se erótico. Em termos simples, o alvo exótico de cada sexo é o sexo oposto. Porém, no caso homossexual, ocorre a erotização do próprio sexo ou do mesmo sexo, como se os homossexuais fossem membros do sexo oposto. Mas, para isso acontecer, é preciso levar em conta os factores genéticos e neuro-hormonais. Mesmo assim só se aplica na perfeição no caso de transsexuais.

Até preciso de rever os meus estudos, pk de momento penso a homossexualidade em termos de desvio e de flutuação, com grande propensão para perturbações mentais.

Mas o que dificulta a minha tarefa é a fluidez que tenho detectado nos homens heterossexuais. A minha hipótese original não previa essa fluidez. Bem, sempre posso recorrer à cloaca comportamental para a explicar.