«A alma conhece todas as outras coisas, só não conhece a si mesma». (Mestre Eckhart)
Mestre Eckhart (1260-1327) é o mestre da mística alemã, a quem se deve não só a origem da língua filosófica como também a origem da especulação filosófica alemãs. A sua doutrina mística, sobretudo as 120 proposições elencadas pelo arcebispo franciscano de Colónia, Henrique II de Virneburg, posteriormente reduzidas a 28 proposições retiradas do seu livro Da Divina Consolação, foi considerada herética pela Igreja e, por isso, Mestre Eckhart foi condenado pelo Papa João XXII, embora tenha morrido antes da publicação da bula papal de excomunhão (27 de Março de 1329). A Igreja tinha as "suas razões" para desconfiar deste "dominicano" que pregava ao povo, em língua alemã, para transmitir e divulgar a sua «mensagem». Mestre Eckhart era dominicano e, por isso, o tomismo aparece como pano de fundo dos seus escritos em latim. Por isso, ao contrário de São Boaventura (um místico franciscano), não reconheceu a primazia da vontade, isto é, da vida em relação ao “pensamento”. Em vez disso, Erckhart defende a primazia do entendimento (intelecto) e, portanto, aposta na razão, embora numa razão intuitiva. Mestre Eckhart é peremptório a este respeito: «Nada faz mais verdadeiro o homem do que a renúncia de sua própria vontade. Verdadeiramente, sem a renúncia da própria vontade em todas as coisas, não conseguiremos nada diante de Deus. Mais ainda se conseguirmos realmente renunciar à própria vontade e se ousarmos despojar-nos interior e exteriormente de todas as coisas, então sim fizemos tudo, antes disto não fizemos nada. (…) (Só depois é que) deves entregar-te totalmente a Deus em todas as coisas e então não te preocupes com o que Ele fará por Ele mesmo. (…) Andar totalmente à luz da vontade de Deus, sem vontade própria, somente isso seria a perfeita e verdadeira vontade». Toda a mística cristã deriva, em última análise, de Plotino e a de Mestre Eckhart não foge à regra: «(…) Deus é, em sentido próprio, um só, e Ele é intelecto ou pensar, e é só e simplesmente pensar, sem acréscimo de outro ser. Por isso, só Deus, pelo intelecto, produz as coisas no ser, porque só nele o ser e o pensar são idênticos». E mais adiante acrescenta: «“aquele que se une a Deus constitui, com Ele, um só espírito” (1 Cor 6, 17). Pois o intelecto é, propriamente, de Deus; Deus, porém, é um. Logo, o quanto cada qual tem de intelecto ou de capacidade intelectual, tanto tem de Deus, tanto do um e tanto do ser-um com Deus. Pois o Deus uno é intelecto, e o intelecto é o Deus uno. Por isso, Deus nunca e nenhures é Deus, salvo no intelecto». Cada criatura carrega dentro de si a Ideia de Deus, a que Mestre Eckhart chama “centelha”. Esta chama, este fogo interior, não se perde nem pode ser completamente destruída. Com diz Mestre Eckhart: «A chamazinha é tão aparentada com Deus que se constitui um Uno só, sem distinção». Isto significa que «entre homem e Deus não existe só nenhuma diferença, como também nenhuma pluralidade, não existe senão a unidade». Desta concepção deriva o famoso tema da «geração de Deus na alma». A compreensão deste conceito é fundamental para a leitura que fazemos do pensamento de Mestre Eckhart. A sua tese, segundo a qual «a razão é a cabeça da alma», embora possa soar a tomismo ou mesmo a aristotelismo, significa simplesmente que a razão se concentra na suprema interioridade, como uma força que já não está junto das outras forças, mas que constitui a cabeça de toda a “tonalidade afectiva”, incluindo a vontade, o instinto, o movimento, o entusiasmo, a desgraça e a felicidade. Toda a “afectividade” está resumida na razão e é carregada pela razão. Não se trata evidentemente de uma razão abstracta, mas da cabeça da alma, ou melhor, da totalidade da alma. Eckhart dá muitos nomes a esta totalidade: scintilla (centelha), “pequeno castelo dentro da alma”, enfim synteresis da plena disponibilidade e do total desprendimento, portanto, da perfeita liberdade. A palavra “synteresis” significa consciência, não consciência moral, tal como a conhecemos, mas sim consciência mística. Desprender-se ou despojar-se é o ponto de acreditação do homem com Deus que «habita» dentro de si, com o espírito da humanidade liberta e voltada sobre si mesma, enfim com o espírito da essencialidade humana. Este conceito está intimamente ligado com a “pobreza na alma” enquanto despojada de tudo aquilo que não é necessário para a essencialidade, nem para chegar a ser essencial. Thomas Münzer chama “desprovimento” ou “desprendimento” a este desprender-se do supérfluo, da intranquilidade vã, do ruído das preocupações e dos prazeres inessenciais. Tudo aquilo que dissipa ou que distrai, o múltiplo, inclusivamente toda a falsa riqueza proveniente da falta de rectidão, tem de desaparecer, caso o homem procure alcançar uma grande pureza. Mestre Eckhart diz: O verdadeiro desprendimento ou a completa disponibilidade nada mais é senão «que o espírito permaneça tão insensível em face de todas as vicissitudes da alegria e da dor, das honrarias, dos ultrajes e dos insultos, como uma montanha de chumbo é insensível a um sopro de vento. Tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança com Deus. Pois o ser Deus, Deus o deve ao seu desprendimento imutável; e do desprendimento Lhe vem a pureza e a simplicidade e a imutabilidade. Assim sendo, se o homem deve assemelhar-se a Deus, isso se fará pelo desprendimento. Pois este conduz o homem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Donde resulta uma semelhança entre Deus e o homem, mas tal semelhança deve nascer da graça, pois é a graça que desprende o homem de todas as coisas temporais e o purifica de todas as coisas passageiras. E sabe que estar vazio de toda a criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus». Deus comunica connosco no castelo, na centelha, na sua própria pureza como pureza da nossa essência alcançada e realizada nessa união. Ora, esta comunicação directa de Deus com o homem adquire claramente uma significação política: Deus comunica-se sem vinculações mediadas pela Igreja, sem sacramentos. O Igreja, os sacramentos, os senhores, tudo isso é desnecessário, porque há um caminho directo para o Altíssimo, acessível a todos os cristãos. A missão da Igreja como mediadora dos sacramentos e da administração dos mistérios torna-se, de certo modo, ilegítima, até porque se converte numa barreira que impede a divinização dos homens. Todos estes mistérios podem ser penetrados e perscrutados pela razão, não pela razão comum, mas pela razão do homem que volta a si mesmo, do homem que habita na centelha (o “homem interior” por oposição ao “homem exterior”), porque esta razão é a mesma que é designada nos mistérios. Os homens foram feitos à imagem de Deus e, desde que se desprendam e se despojam de tudo, com a ajuda da graça divina, podem não somente compreendê-la em si mesmos, mas também realizá-la em si mesmos. (CONTINUA) J Francisco Saraiva de Sousa
20 comentários:
Se compreendi bem, a noção de "totalidade de alma" se subsume em si a "afectividade", distingue-se da noção de Nous aristotélica, como faculdade de pensar superior, mas também de Plotino, que o toma como independente a qualquer exterioridade... E se é assim, o despojamento desejável para a imperturbabilidade, é sempre despojamento do essencial, pois também constitui a centelha.
De qualquer maneira, esta interpretação do imago Dei é interessante pelas consequências políticas que demonstrou. Somos capax Dei sem mediações hieráticas.
A sua nova imagem é muito carnavalesca. :))
No fundo, o que pretendo mostrar é que há um ateísmo místico: esta será a mensagem política da mística de Eckhart. A fusão deus/homem no instante!
Contudo, contornei a trindade e comecei a demonstrar que Eckhart inverte a criação. Daí Feuerbach ter a vida facilitada. E o intelecto é incriado! Divinização do homem!
Repare que a redução de Husserl ou a serenidade de Heidegger bebem aqui! :)
Mas não estou com disposição para estabelecer todas essas ligações. Eckhart leu bem santo agostinho e São Paulo.
Mas, como já lhe tinha dito, Eckhart é complexo e tem uma linguagem muito rica. É difícil verteu-lo em português. Segui Boff, embora com "alguns erros". O termo em alemão seria "Eingedenken" (consciência mística), para o qual não encontro boa tradução. Seria necessário confrontá-lo com S. Boaventura e seu itinerário da mente para Deus.
Porém, retive uma observação feita a lápis quando li Eckhart: pensar os "sem-abrigo" e confrontá-lo com a tese actual de "mundo sem lar". :)))
Hmmm... sim S. Agostinho fala na intimidade que é Deus, e na exterioridade que corresponde à estrutura indigente do desejo. Tal como Eckhart. Mas continuo sem entender a noção de "totalidade da alma" que compreende a afectividade, o desejo, etc. Se ele estabelece o pensamento como anterior à vida, n faz muito sentido que a razão compreenda tudo!
Boa questão: seria necessário retomar a distinção que faz entre homem exterior e homem interior e toda a "escalada mística". "Sofrer sem sofrimento" pode ser uma via de acesso! E a "renúncia da própria vontade" (a vontade de nada querer de Heidegger)! Entrega a Deus no recolhimento de si ou espoliação de si!
Por favor! Vontade de nada? Como o budismo?
Vontade de vida! Eros vencerá sempre a Thanatos. :)
Ui, Papillon "materialista".
Essa era a doutrina do último Heidegger que a elaborou em diálogo com Nietzsche! E sobre a qual H. Arendt meditou na Vida do Espírito!
O nosso intelecto é divino, portanto incriado: nele Deus e nós somos um só! E cabe-nos a tarefa de devolver a plenitude a Deus! A morte pode ser "doce"!
Sim, uma vida "virtuosa", sem "CORRUPÇÃO"! :))))
Afinal, somos "divinos"... Boa mensagem! :)
E Devolver a plenitude a Deus implica mudar o homem e o mundo! Abaixo as instituições existentes! O dinheiro! O materialismo moral! A idolatria! As imagens! Mudança qualitativa é o rumo desta fusão mística activa, a da libertação, com eros purificado!
Isso é conversa dos desgostosos e tristes!
Não sou materialista! Mas não acho que o caminho seja o despojamento de si! Isso é absurdo, contraditório em si mesmo.
Eu n quero devolver nada a Deus! Quero ser um bom ser humano, o melhor possível, ou seja, incorruptível no sentido ético, coerente e consistente, e é este o meu compromisso.
As imagens? O Francisco é talibã! Eles tb destroem as imagens para não se "distrairem". N seja radical.
A alegria é plena!
As falsas representações de Deus! O deus da Igreja não era, segundo Eckhart, o Deus verdadeiro. Só é verdadeiro aquele que se desprende dessas imagens e ideologias falsas. As faces divina e humana fundem-se.
Não estou a defender o meu ponto de vista, mas a repensar Eckhart em moldes actuais e politicamente interventivos. :)))
Mas, eu acho isso um pouco pretensioso - fundir a imagem divina e humana...Onde reside Deus? na consciência mística? Mas tb numa flor, numa obra de arte, no amor! As coisas do mundo tb nos apontam para ele! A intimidade com Deus tem que ser ascética?
Ascética não, mas mundana.
Eckhart era um místico da libertação, não um místico recolhido, porque, se o fosse, não partilhava as suas experiências, mas vivia-as, como outros fizeram.
Restituir a plenitude a Deus é acabar com a injustiça e mudar o mundo, porque este, sendo obra de Deus, é "bom" e não "mau" como é actualmente na sua exterioridade!
Pense, Papillon, estou a ser deveras crítico daquilo que é: a luso-corrupção! :)))
A "renúncia da vontade", portanto, a entrega confiante a Deus, significa não despojar o outro da vida e dos seus bens! Não querer tudo para si e nada para os outros! Porque todos somos "filhos de Deus". Eckhart é um homem do nosso tempo! :)))
Pensei que o despojamento fosse material e espiritual. Como os budistas pregam.
Ok, Francisco, vou PENSAR. :P
Despojamento espiritual - da imaginação, digo!
Daí a "totalidade da alma"! E a razão ser a cabeça da alma! Pensar antes de cometer qualquer "injustiça" ou antes de seguir outras vias escusas! :)
ok pense que eu vou tomar conta de mim! :)))
Mestre Eckhart é um homem "rico" e a sua "riqueza" despreza (anula, envergonha) a riqueza material (pobreza de espírito) dos "senhores", ontem feudais, hoje colarinhos-brancos! :)
Julgo poder ir mais longe, sem "violar" a letra e o espírito de Mestre Eckhart, e dizer que a persistência com que edito posts pode ser vista como um acto contínuo de "despojamento" de mim. Entrega total ao Outro!
Um abraço para a Papillon
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