«Lenine foi essencialmente um revolucionário, sem dúvida o maior revolucionário de todos os tempos, (...) que se distingue dos outros grandes revolucionários por não ter morrido vencido, sacrificado à causa que defendera, como Robespierre ou Babeuf, antes ter desaparecido em plena vitória quando era um homem de Estado no poder», profundamente admirado até mesmo por Hannah Arendt. (Henri Lefebvre)
Apresentar Lenine como um hermeneuta não é uma tarefa fácil, porque constitui uma aventura sem precedente, mas para um jovem estudante a aventura representa um desafio e a oportunidade de escandalizar a “inteligência” bem instalada e «aburguesada». Era estudante quando resolvi assumir esse risco e é a introdução, com muitas omissões, de um longo trabalho estudantil que vou partilhar convosco.
As obras de Lenine em que se vislumbra uma prática de interpretação estão intimamente ligadas à luta política e à prática teórica. Para Lenine, a hermenêutica, enquanto prática de interpretação de discursos ideológicos, constitui um «ramo» do materialismo histórico. Assim, um texto não é o seu próprio intérprete. Pelo contrário, um texto só pode ser devidamente interpretado e compreendido quando relacionado com as condições sociais da (sua) produção e com a totalidade social de que faz parte, cujo conhecimento é fornecido pelo materialismo histórico, a ciência da história fundada por Karl Marx.
Por razões políticas, Lenine debruçou-se demorada e predominantemente sobre a interpretação de textos políticos, embora se tenha dedicado a outros tipos de textos, filosóficos, científicos e literários. Este interesse de Lenine pela ideologia é perfeitamente natural, porque Lenine foi o teórico e o líder da Revolução de Outubro de 1917.
Para conduzir vitoriosamente essa revolução social, Lenine precisava de uma «teoria revolucionária»: o marxismo. Porém, o marxismo estava a ser sujeito a diversas «interpretações oportunistas» e Lenine foi forçado a intervir na luta teórica em defesa do «marxismo genuíno», porque, como dizia, «sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário». Na perspectiva de Lenine, esta teoria devia ser introduzida «de fora» no proletariado, devia constituir-se em «consciência de classe» do proletariado e guiá-lo na sua luta contra a sociedade capitalista existente. O objectivo dessa luta era a revolução social e a construção do «socialismo num só país», por sinal o mais «atrasado» da Europa e do mundo capitalista.
O marxismo devidamente interpretado devia combater a «espontaneidade» das massas populares e a sua política «trade-unionista» que, reduzida às reivindicações sindicais, não põe em causa a formação social capitalista. Como escreveu Lenine: «O movimento operário espontâneo não pode criar por si só senão o trade-unionismo (e cria-o inevitavelmente), e a política trade-unionista da classe operária não é mais do que a política burguesa da classe operária». Contra este «desvio economicista», «a doença infantil do comunismo», Lenine lutou por uma «política social-democrata», liderada e conduzida por uma organização política (partido político) formada por um número reduzido de intelectuais e de operários esclarecidos.
De facto, é em torno do problema da organização que giram e rodopiam quase todas as obras políticas de Lenine e muito especialmente a obra que nos serviu de «fio condutor» do estudo presente: “Que Fazer?”. Enquanto os economicistas (Martínov, Axelrod), reunidos à volta das publicações “A Causa Operária”, “A Vontade do Povo” e “Pensamento Operário” e obcecados com o «culto da espontaneidade», acreditavam na espontaneidade das massas operárias e camponesas, Lenine e os «bolcheviques» defendiam a tese segundo a qual o movimento popular devia ser conduzido por uma «vanguarda consciente». Nessa situação de ruptura, o problema da democracia não se colocava numa «organização secreta e clandestina», embora Lenine não poupasse rasgados elogios ao «princípio democrático» que guiava a prática política do Partido Social-Democrata alemão. Para Lenine, quanto mais centralizada fosse a direcção dessa organização clandestina, mais possibilidades tinha de escapar às investidas dos gendarmes e dos cossacos. E, como sabemos, a história deu-lhe razão, embora o centralismo democrático tenha resistido ao processo revolucionário, convertendo-se com Estaline numa «ditadura».
A prática hermenêutico-política de Lenine foi, portanto, bem sucedida. Apesar disso, Lenine não tem sido situado na galeria dos grandes filósofos hermeneutas, tais como Espinosa, Schleiermacher, Dilthey, Heidegger, Gadamer, Betti ou mesmo Ricoeur. De facto, é impossível situar Lenine na galeria dos hermeneutas, porque a hermenêutica só existe em Lenine (ou mesmo no marxismo) na condição (epistemológica) de não existir, isto é, de estar dissolvida na própria ciência da história fundada por Karl Marx. É preciso pensar este paradoxo e aceitá-lo enquanto tal: a hermenêutica leninista existe na condição de não existir. Isto significa que, ao contrário dos filósofos hermeneutas que concebem a «autonomia» da hermenêutica, como se nada existisse fora dos textos (Derrida), Lenine não a encara como uma disciplina autónoma, mas sim como um «momento» (o momento compreensivo) da análise crítica da ideologia.
Ora, como mostrou Georg Lukács, a essência do materialismo dialéctico e histórico reside na categoria de totalidade, mais precisamente da totalidade social em marcha, sem a qual não podemos explicar nenhum fenómeno, seja ele um acontecimento, uma acção ou um texto. Um texto ideológico exprime internamente as contradições sociais da totalidade antagónica em que está inserido e, por isso, quando se trata da ideologia da classe dominante, interessada na reprodução e na manutenção das próprias condições materiais que garantem a sua hegemonia (Gramsci), encobre, legitimando-as, as assimetrias de poder. É certo que, para Lenine, um discurso ideológico é sempre uma estrutura significativa, mas esta significação oculta uma significação fundamental de classe.
É a partir deste conceito básico de ideologia dominante que podemos descobrir como funciona a hermenêutica em Lenine. Dizer que um discurso ideológico tem uma significação de classe é o mesmo que dizer que ele exprime a «visão do mundo» da classe social a que pertence o seu «agente epistémico de produção». Para apreender o sentido de classe desse discurso é necessário conhecer a visão do mundo que se exprime nele e explicá-la em função dos interesses dessa classe social, envolvida numa luta de classes que é, em última análise, uma luta política pela conquista do poder político do Estado.
A interpretação leninista de um determinado discurso ideológico é, simultaneamente, “compreensiva” e “explicativa” e, neste aspecto, Lenine distancia-se claramente da hermenêutica praticada por Dilthey. A descrição da estrutura significativa de um determinado discurso ideológico e dos seus vínculos internos é um fenómeno de compreensão, enquanto a sua integração numa estrutura mais vasta (uma classe social, a estrutura económica, a luta pela conquista do aparelho de Estado) constitui a sua explicação. Daí que um discurso ideológico não possa ser o seu próprio intérprete, porque ele só pode ser compreendido e explicado nas suas relações com as demais estruturas sociais que formam uma totalidade a-dominante complexa. Isto significa, em termos muito resumidos, que o seu sentido de classe só pode ser apreendido nesse movimento contínuo que vai da parte ao todo e do todo à parte, tendo em conta o primado da totalidade sobre as suas partes constituintes, tal como Marx indica com a sua representação tópica do modo de produção.
É certo que Schleiermacher e Dilthey conheciam este procedimento hermenêutico, mas, ao contrário de Lenine, opunham a compreensão e a explicação, como se fosse uma oposição entre ciências do espírito (compreensivas) e ciências da natureza (explicativas), abdicando da explicação. A autonomia da hermenêutica é assim conquistada à custa de isolar o texto ou as estruturas significativas ideológicas do seu «exterior»: a totalidade social antagónica. Por isso, os hermeneutas burgueses foram incapazes de conceber uma teoria da ideologia, isto é, de descobrir os interesses de classe que se ocultam no «interior» de um discurso ideológico e, portanto, incapazes de apreender a hermenêutica como desmistificação. Esta constitui precisamente uma das maiores descobertas de Lenine: a ideia de hermenêutica como desmistificação, a única capaz de orientar o processo revolucionário, ora dando um passo em frente, ora dando dois passos atrás, até que a situação expluda numa imensa revolução social. Contudo, convém ter em atenção que Lenine concebeu no seio do marxismo uma «autonomia radical da política» em relação à estrutura económica e será em função das distinções entre teses justas e teses não-justas que Lenine irá avaliar a »verdade» das interpretações em conflito: uma interpretação justa, aliás aquela que sabe ver quando as condições materiais são propícias ao avanço da luta política do proletariado, será aquela capaz de conduzir a classe operária à vitória sobre o Estado dominado pela classe burguesa, incluindo as novas classes dirigentes, portanto, ao triunfo da revolução socialista.
Comentário Adicional: Foram omitidos muitos extractos de texto que espero não terem dificultado a compreensão da prática interpretativa de Lenine das conjunturas políticas revolucionárias. Hoje estou mais aberto ao pensamento hermenêutico de Hans-Georg Gadamer, aliás o grande filósofo da Hermenêutica. Paradoxalmente, penso que a autonomia radical da política pensada (e vivida) por Lenine no seio do marxismo pode ser vista em sintonia com a «universalidade da hermenêutica» proposta por Gadamer. A única diferença entre estes dois pensadores é que Lenine nunca escreveria uma obra intitulada "Verdade e Método", porque não concebia a autonomia do texto em relação ao seu «exterior», prática que conduziu a filosofia contemporânea a um «beco sem saída», porquanto abandonou o conceito de ideologia e a sua crítica (Foucault), e que teve como resultado a apologética não-confessada da sociedade de consumo tal como se instalou. Neste trabalho estudantil, cometi um erro que dissolvi nesta apresentação: atribui uma "sociologia do conhecimento" a Lenine, quando, na verdade, Lenine denunciava toda a sociologia como uma «ideologia burguesa». Aliás, esta é a posição verdadeira do marxismo: Marx nunca pensou a sua teoria como uma "sociologia", até porque para ele a noção de "sociedade" era profundamente ideológica. Ele pensou em termos de modo de produção e de formação social. No final da sua vida, Lenine dizia que «o nosso inimigo interno é a burocracia». Isto parece indicar que, se ele tivesse permanecido vivo, iria limpar os burocratas do «aparelho de Estado». Coloca-se assim um novo problema: o da vigilância dos "dirigentes políticos" sujeitos à corrupção e dos seus «lacaios sindicalistas» (trade-unionistas). Um problema bem actual em Portugal! A desconfiança marxista pela natureza burguesa do Direito está perfeitamente justificada: o Direito, o domínio da Lei, faz parte dos aparelhos repressivos de Estado, até porque a lei cria os criminosos (Marx), ao mesmo tempo que deixa impune os maiores criminosos: os dirigentes políticos corruptos. John Stuart Mill, o pai do liberalismo político, pode ser tomado como o filósofo mais crítico da "ditadura da lei". A corrupção não se combate pela lei mas pela luta contra os corruptos que criam as próprias leis injustas! E (repare-se) a corrupção não é uma questão ética, mas uma questão política! A ética é a desculpa desavergonhada dos próprios corruptos!
J Francisco Saraiva de Sousa
16 comentários:
Muito interessante !
Curiosa a percepção de Lenine de que o sindicalismo facilmente corporativiza e que nessa medida passa a ser mais uma força burguesa conservadora ...:)
Curiosa também a leitura de Mill da "ditadura da lei", algo que subscrevo sem quaisquer reservas.
Gostei ainda do enfase colocada na contextualização dos textos, algo de que muitas vezes se passa ao lado, propiciando-se abordagens meramente literais e compreensões distorcidas das realidades para as quais reportam.
Viva o marxismo-leninismo !!!
:)))))
De facto, tem razão Manuel: dizem-se muitas mentiras sobre os autores.
E sabe porquê? Porque os corruptos estão no poder, como diz Cravinho! Eles não querem a verdade!
Abaixo a corrupção nacional!
Abaixo !!!
Mas que não tenha que ser pela via da suspeição generalizada. Esta coisa de que todos são culpados até prova em contrário coloca de pernas para o ar qualquer esboço de Estado de Direito e no limite corrompe tanto a democracia como a própria corrupção.
A corrupção no poder não é ela também somatório das pequenas corrupções transversais à sociedade? E no limite não se estará tb a meter no saco da corrupção os procedimentos "aligeirados" que culturalmente caracterizam a nossa forma "informal" de lidar com o poder ? Um paradigma, não é ele próprio um estimulo à corrupção ? O Capitalismo não é intrinsecamente corrupto na sua essência? E que diria Lenine se nos estivesse a ler estes textos ?
:)))
Diga-me uma coisa, Francisco, há muita corrupção aí em Portugal?
Aqui a pessoa incorruptível é praticamente vista como um E.T.
Sem dúvida tivemos bons políticos, indivíduos idôneos e íntegros. Infelizmente eles viveram à época de Machado de Assis.
Sim, em Portugal as elites dirigentes são altamente corruptas: poder político e poder económico/financeiro estão corrompidos.
Depois há a corrupção transversal: universidades têm professores que entram não por mérito mas por cunha, etc. Poder judicial corrompido... empresários corruptos...
Tudo "farinha do mesmo saco": latinos corruptos!? Talvez...
E partidos políticos corruptos...
Portugal é profundamente corrupto e inculto! :((((
Enfim, é uma tristeza ter nascido português e neste país feio, com gente feia, como diz Abel Salazar.
É preciso dizer a verdade, para ver se as coisas mudam... O bastonário da ordem dos advogados, o general Garcia, o exministro Cravinho, etc, começam a denunciar a "corrupção de Estado"... :)
A corrupção transversal no Brasil possui tentáculos muito grandes. Na universidade conheci muita gente que conseguia ter acesso a cargos importantes por meio de manipulações políticas e por outros estratagemas demagógicos. Na usp ou na puc, duas importantes faculdades brasileiras, soa bem se confessar de "esquerda". Só não sei até hoje o que eles entendem por esquerda. Veja o triste rumo a que governo do Lula (uma verdadeira marionete deslumbrada com o poder) nos tem levado. O governo deste chefete tem sido um dos mais corruptos da nossa história. Aqui há uma espécie de sebastianismo perverso. As massas anseiam pelo regresso de um messias, e o Lula vestiu perfeitamente a carapuça. Francisco, se quiseres ver gente feia vem visitar o Brasil, rs.
Para não ser injusto com o meu país, devo mencionar as coisas boas daqui: praias, cerveja gelada, belas bundas femininas que abundam (somos bem conhecidos por este material), liberdade para dizer qualquer tipo de besteira e não ser preso. Falta mais alguma coisa de que não me lembro...
Estive a reler Gilberto Freyre, "Casa-Grande & Senzala", e fiquei impressionado, como ele defende a tese da nossa mestiçagem nacional (lusa) e levada para o Brasil e para todo o mundo. Não percebi a tese da "bissexualidade", mas devia ser revolucionária na altura.
Curiosamente, com excepção de Herculano e Oliveira Martins, não conheço bem a nossa história "racial": lusitanos, celtas, uma mistura. É engraçado como ele fala dos minhotos (Braga), os louros ou barba loura e cabelo escuro. Pessoalmente, acho os minhotos uma "praga nacional" (muito religiosos).
As Universidades portuguesas funcionavam depois da revolução pela cor política; agora é pela cunha, parentesco, laços políticos ou religiosos, mas sobretudo busca dos mais "burrinhos". Aquilo que são: Burrinhos!
Também temos, claro, boa gente...
Enfim, como diz Oliveira Martins, secundado por Teixeira de Pascoaes, os portugueses são um "povo sem génio", no fundo gente com muito medo. São muitos séculos de opressão nacional imposta por falsas elites fechadas e corruptas. Neste momento, as pessoas têm medo, não dos "bandidos", mas das taras das falsas elites dirigentes.
O vosso Lula é do povinho e, por isso, fácil de ser corrompido. Talvez a "confusão" cultural não nos faça bem... Precisamos vencer no mundo...
André,
Falta, claro que sim: a abundância de grandes compositores!
É impressionante como nascem, num só país, tantos e tão bons! A música brasileira erudita e popular é muito boa e conseguiu conquistar o mundo... Não há nenhum grupo de jazz que não interprete pelo menos um tema de Jobim ou do seu séquito.
Com boa música, calor, belas paisagens, meninas e meninos bonitos... lamento informar-lhe, mas esse é o melhor dos mundos possíveis... :)))
Papillon, obrigado por ter me lembrado: A abundância de grandes compositores. Entretanto, o império asqueroso do funk, do axé e de outras sujeiras nacionais atualmente é hegemônico (ou quase...). Estou mais para Cândido (il faut cultiver notre jardin- cultivo o meu ouvindo Tom Jobim, é claro) do que para os ingênuos Pangloss e seu Leibniz ("Tous les événements sont enchaînés dans le meilleur des mondes possibles", Candide ou l'optimisme!
Vi ontem em teatro! Estou inundada! :)
Não sou assim tão "cândida", mas sou optimista: o mundo é demasiado maravilhoso para perdermos tempo em amarguras vãs! Por isso, rir é óptimo, nem que seja rir do próprio optimismo!
E sob o deus das contradições... a salvação! :)
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