«Vive, assim, na preocupação do desejo de conhecer as coisas e não junto às coisas. Por isso, só o saber que não conhece é que permite à alma morar e, ao mesmo tempo, a estimula à busca». (Mestre Eckhart)
Uma das teses defendidas por Mestre Eckhart condenada pela bula papal diz precisamente isso: «Há algo na alma que é incriado e incriável; se toda a alma fosse assim, seria incriada e incriável; e isto é o entendimento». No seu sermão “O Silêncio da Criação”, Mestre Eckhart comenta esta tese: «A este respeito, um mestre pagão disse uma bela palavra para outro mestre: “Percebo em mim uma coisa que brilha na minha razão; sinto que é algo mas não posso compreender o que seja; só me parece que, se conseguisse apreendê-lo, conheceria toda a verdade”. Respondeu o outro mestre: “Então procura. Pois, se puderes apreendê-lo, terás o conjunto de toda a bondade e a vida eterna”». Isto significa que a divindade deve desprender-se e rebaixar-se, isto é, "descer ao mundo", purificando-se de tudo o que os senhores e os ideólogos da dominação fizeram em seu nome, e, ao sair de si mesmo, o divino converte-se em nada. Ora, deparamo-nos aqui com a teologia negativa, com interessantes contactos com o ateísmo, mas com um ateísmo místico. Deus converte-se em luz, que habita nas trevas. Deus converte-se em deserto puro, o pleno vazio, o despojado de tudo o que é instituição existente, que, para ser compreendido na sua pureza, precisa do homem tornado puro, pobre, para lhe dar ou restituir a plenitude, sem saciedade, mentira ou alienação. Irrompe-se nesse instante um abismo vazio, no qual o homem despojado e Deus despojado se encontram. A afirmação herética é a de que Deus deve ser verdadeira vida para o homem e não ao contrário, como defende a ortodoxia cristã. Com esta afirmação, o acto da criação é invertido: não é Deus que fez o homem à sua imagem, mas o homem é que cria incessantemente Deus à sua imagem, não só a falsa representação de Deus, o Deus da Igreja que não é verdadeiramente Deus, mas o conteúdo válido da fé das próprias representações puras. Como disse Ernst Bloch, «Deus nasce como homem na synteresis». Ou como diz Mestre Eckhart: «Por isso, peço a Deus que me torne livre de Deus. (…) Neste impulso recebo tamanha riqueza, que Deus com tudo aquilo que é como “Deus” e com toda a sua obra divina, não me pode ser suficiente; pois me é dado nesse irromper, que eu e Deus sejamos Uno. Aí eu sou o que era. E aí nem acrescento nem diminuo. Pois sou aí uma causa imóvel, que move todas as coisas». Gottfried Keller observou correctamente o parentesco entre a mística e o ateísmo, porque a mística reclama como riqueza humana a riqueza divina e como riqueza divina a riqueza humana. Assim, L. Feuerbach e Angelus Silesius estão próximos, até porque o primeiro compreendeu que o Cur Deus homo, porque Deus se fez homem, a encarnação de Deus, está intimamente ligada à sua crítica antropológica da religião. Deus na sua pureza e o homem na sua pureza trocam os seus rostos (faces) e tornam-se indistinguíveis. Este encontro tem lugar na synteresis e, em concreto, no instante. O instante significa “agora”, aliás um agora muito breve, instantâneo, milésimos de segundo. Este nunc stans é, como já sabia Santo Agostinho, o momento que preenche tudo, o momento em que tudo se realiza e, ao mesmo tempo, que traz no seu bojo a realização, o cumprimento. Este momento converte-se em instante místico, em que sucede o grande encontro. No instante está contida toda a eternidade, de modo que o instante é o abismo em que o próprio Deus da graça deve desaparecer como ilusão e em que se produz a divinização do homem. Isto sucede na vivência da unio mystica, da fusão do homem com Deus, que abarca tudo e que tem uma duração sem limites, na qual se esfumam todas as categorias temporais. Ora, Mestre Eckhart une a ideia de "agora" como ponto central do mundo, que está em todas as partes, com uma concepção cosmológica da geometria medieval. Muito antes de Copérnico ou de Giordano Bruno, Alanus ab Insulis ou Alain de Lille, descreveu o universo como uma esfera infinita. Se o cosmos é infinito, então o centro, como num círculo infinito, reside em todas as partes, não está "aqui" ou "ali", mas em qualquer ponto do ser. Esta concepção desloca o homem e o seu mundo para fora do centro, ao mesmo tempo que lhes concede a centralidade, porque qualquer lugar pode agora ser o centro do mundo e não somente Deus que habita para além do mundo finito. A concepção de omnia ubique de Nicolau de Cusa está aqui antecipada: tudo está concentrado em todas as partes, em cada ponto do cosmos. Na mística de Mestre Eckhart, esta ideia ajuda a reforçar o valor infinito da alma humana, porque implica uma transformação da sublimidade: o sublime já não é sublime ou misterioso porque esteja longe, mas porque está muito próximo deste pequeno homem, o microcosmos. Este instante pontual, visto como centro espacial do mundo, é alcançado e conquistado de modo mais visível e despojado do supérfluo precisamente na synteresis, na chama, na centelha, no castelo, no ponto profundo do espírito, onde habita Deus como o mais íntimo, o mais próximo, o mais cosmicamente central do homem e do mundo. Aqui reside provavelmente a "maior heresia" da mística de Mestre Eckhart: o homem é a verdade de Deus, tema posteriormente pensado de modo radical por L. Feuerbach. Esta proposição deve ser lida como um retorno do mundo a Deus e, ao mesmo tempo, como um retorno de Deus ao mundo e, sobretudo, ao homem. Isto significa que Deus pensado como transcendente ou mesmo como existente se dissolve no instante místico que brilha no homem. Contudo, Deus não brilha no homem existente, mas sim num homem oculto. Ao antigo conceito místico do Deus absconditus corresponde aqui o contraconceito de um homo absconditus, de um homem oculto, para o qual se deseja avançar e que se comporta negativamente em relação a tudo aquilo que foi e tem sido. Deste modo, o homem converte-se em objecto do mais elevado respeito e da mais elevada dignidade. A mística de Mestre Eckhart retoma novamente aqui a teologia negativa e afirma que o homem é Deus e Deus é homem no ponto mais profundo da centelha. De facto, Mestre Eckhart defende a primazia do conhecimento, isto é, da vita contemplativa sobre a vida activa, a qual está plasmada na representação do mundo. Para Mestre Eckhart, o mundo total despojado daquilo que não é essencial é um processo de conhecimento, no qual o Deus implícito, imanente, se conhece a si mesmo no mundo. Essência e conhecimento são uma só e mesma coisa. Como disse Ernst Bloch: «Em Eckhart a essência do mundo, Deus, abre os seus olhos numa Ilíada do devir e numa Odisseia do des-vir, ou do retorno ao seu centro». Ou como diz Mestre Eckhart: «Todo o grão refere-se ao trigo, todo o metal refere-se ao ouro, todo o nascimento refere-se ao homem». Entenda-se: não ao homem como algo já existente, mas ao homem como um possível megantropo. J Francisco Saraiva de Sousa
Uma das teses defendidas por Mestre Eckhart condenada pela bula papal diz precisamente isso: «Há algo na alma que é incriado e incriável; se toda a alma fosse assim, seria incriada e incriável; e isto é o entendimento». No seu sermão “O Silêncio da Criação”, Mestre Eckhart comenta esta tese: «A este respeito, um mestre pagão disse uma bela palavra para outro mestre: “Percebo em mim uma coisa que brilha na minha razão; sinto que é algo mas não posso compreender o que seja; só me parece que, se conseguisse apreendê-lo, conheceria toda a verdade”. Respondeu o outro mestre: “Então procura. Pois, se puderes apreendê-lo, terás o conjunto de toda a bondade e a vida eterna”». Isto significa que a divindade deve desprender-se e rebaixar-se, isto é, "descer ao mundo", purificando-se de tudo o que os senhores e os ideólogos da dominação fizeram em seu nome, e, ao sair de si mesmo, o divino converte-se em nada. Ora, deparamo-nos aqui com a teologia negativa, com interessantes contactos com o ateísmo, mas com um ateísmo místico. Deus converte-se em luz, que habita nas trevas. Deus converte-se em deserto puro, o pleno vazio, o despojado de tudo o que é instituição existente, que, para ser compreendido na sua pureza, precisa do homem tornado puro, pobre, para lhe dar ou restituir a plenitude, sem saciedade, mentira ou alienação. Irrompe-se nesse instante um abismo vazio, no qual o homem despojado e Deus despojado se encontram. A afirmação herética é a de que Deus deve ser verdadeira vida para o homem e não ao contrário, como defende a ortodoxia cristã. Com esta afirmação, o acto da criação é invertido: não é Deus que fez o homem à sua imagem, mas o homem é que cria incessantemente Deus à sua imagem, não só a falsa representação de Deus, o Deus da Igreja que não é verdadeiramente Deus, mas o conteúdo válido da fé das próprias representações puras. Como disse Ernst Bloch, «Deus nasce como homem na synteresis». Ou como diz Mestre Eckhart: «Por isso, peço a Deus que me torne livre de Deus. (…) Neste impulso recebo tamanha riqueza, que Deus com tudo aquilo que é como “Deus” e com toda a sua obra divina, não me pode ser suficiente; pois me é dado nesse irromper, que eu e Deus sejamos Uno. Aí eu sou o que era. E aí nem acrescento nem diminuo. Pois sou aí uma causa imóvel, que move todas as coisas». Gottfried Keller observou correctamente o parentesco entre a mística e o ateísmo, porque a mística reclama como riqueza humana a riqueza divina e como riqueza divina a riqueza humana. Assim, L. Feuerbach e Angelus Silesius estão próximos, até porque o primeiro compreendeu que o Cur Deus homo, porque Deus se fez homem, a encarnação de Deus, está intimamente ligada à sua crítica antropológica da religião. Deus na sua pureza e o homem na sua pureza trocam os seus rostos (faces) e tornam-se indistinguíveis. Este encontro tem lugar na synteresis e, em concreto, no instante. O instante significa “agora”, aliás um agora muito breve, instantâneo, milésimos de segundo. Este nunc stans é, como já sabia Santo Agostinho, o momento que preenche tudo, o momento em que tudo se realiza e, ao mesmo tempo, que traz no seu bojo a realização, o cumprimento. Este momento converte-se em instante místico, em que sucede o grande encontro. No instante está contida toda a eternidade, de modo que o instante é o abismo em que o próprio Deus da graça deve desaparecer como ilusão e em que se produz a divinização do homem. Isto sucede na vivência da unio mystica, da fusão do homem com Deus, que abarca tudo e que tem uma duração sem limites, na qual se esfumam todas as categorias temporais. Ora, Mestre Eckhart une a ideia de "agora" como ponto central do mundo, que está em todas as partes, com uma concepção cosmológica da geometria medieval. Muito antes de Copérnico ou de Giordano Bruno, Alanus ab Insulis ou Alain de Lille, descreveu o universo como uma esfera infinita. Se o cosmos é infinito, então o centro, como num círculo infinito, reside em todas as partes, não está "aqui" ou "ali", mas em qualquer ponto do ser. Esta concepção desloca o homem e o seu mundo para fora do centro, ao mesmo tempo que lhes concede a centralidade, porque qualquer lugar pode agora ser o centro do mundo e não somente Deus que habita para além do mundo finito. A concepção de omnia ubique de Nicolau de Cusa está aqui antecipada: tudo está concentrado em todas as partes, em cada ponto do cosmos. Na mística de Mestre Eckhart, esta ideia ajuda a reforçar o valor infinito da alma humana, porque implica uma transformação da sublimidade: o sublime já não é sublime ou misterioso porque esteja longe, mas porque está muito próximo deste pequeno homem, o microcosmos. Este instante pontual, visto como centro espacial do mundo, é alcançado e conquistado de modo mais visível e despojado do supérfluo precisamente na synteresis, na chama, na centelha, no castelo, no ponto profundo do espírito, onde habita Deus como o mais íntimo, o mais próximo, o mais cosmicamente central do homem e do mundo. Aqui reside provavelmente a "maior heresia" da mística de Mestre Eckhart: o homem é a verdade de Deus, tema posteriormente pensado de modo radical por L. Feuerbach. Esta proposição deve ser lida como um retorno do mundo a Deus e, ao mesmo tempo, como um retorno de Deus ao mundo e, sobretudo, ao homem. Isto significa que Deus pensado como transcendente ou mesmo como existente se dissolve no instante místico que brilha no homem. Contudo, Deus não brilha no homem existente, mas sim num homem oculto. Ao antigo conceito místico do Deus absconditus corresponde aqui o contraconceito de um homo absconditus, de um homem oculto, para o qual se deseja avançar e que se comporta negativamente em relação a tudo aquilo que foi e tem sido. Deste modo, o homem converte-se em objecto do mais elevado respeito e da mais elevada dignidade. A mística de Mestre Eckhart retoma novamente aqui a teologia negativa e afirma que o homem é Deus e Deus é homem no ponto mais profundo da centelha. De facto, Mestre Eckhart defende a primazia do conhecimento, isto é, da vita contemplativa sobre a vida activa, a qual está plasmada na representação do mundo. Para Mestre Eckhart, o mundo total despojado daquilo que não é essencial é um processo de conhecimento, no qual o Deus implícito, imanente, se conhece a si mesmo no mundo. Essência e conhecimento são uma só e mesma coisa. Como disse Ernst Bloch: «Em Eckhart a essência do mundo, Deus, abre os seus olhos numa Ilíada do devir e numa Odisseia do des-vir, ou do retorno ao seu centro». Ou como diz Mestre Eckhart: «Todo o grão refere-se ao trigo, todo o metal refere-se ao ouro, todo o nascimento refere-se ao homem». Entenda-se: não ao homem como algo já existente, mas ao homem como um possível megantropo. J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Dedico este texto aos portugueses de "bom coração" e aos que fazem anos hoje! Um Abraço
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