sábado, 30 de julho de 2011

Reflexão em torno do Eu Autobiográfico de António Damásio

«As autobiografias são compostas por recordações pessoais, a totalidade das nossas experiências, incluindo as experiências dos planos que fizemos para o futuro, sejam eles precisos ou vagos. O eu autobiográfico é uma autobiografia feita consciente. Faz uso de toda a história que memorizámos, tanto recente como remota. Estão incluídas nessa história as experiências sociais das quais fizemos parte, ou das quais gostaríamos de ter feito parte, bem como as recordações que descrevem as nossas mais refinadas experiências emocionais, nomeadamente as que possam ser classificadas de espirituais.» (António Damásio, 2010)


António Damásio é um homem dotado de sensibilidade social apurada: as elucidações dos conceitos que utiliza para construir o cérebro consciente colocam quase sempre desafios embaraçosos à sua estratégia de investigação neuro-redutora. A definição de eu autobiográfico aqui apresentada em epígrafe é de tal modo rica que diferencia entre dois aspectos da experiência pessoal memorizada: o eu autobiográfico memoriza não só as experiências sociais "positivas" mas também as experiências sociais "negativas". Lançado num mundo comum que partilha com outros, o eu autobiográfico é forçado a fazer um balanço dos seus projectos para o futuro e das suas experiências sociais: a frustração, o fracasso, atormentam-no, levando-o no melhor dos casos a lutar contra a estrutura da sociedade que lhe nega a oportunidade de se realizar. A sociedade portuguesa é de tal modo feudalizante e corrupta que gera nos seus indivíduos frustração, mas infelizmente esta frustração é "reprimida" pelos portugueses apáticos sem conduzir à revolta contra o sistema. A sensibilidade apurada de António Damásio introduziu - talvez inadvertidamente - um outro elemento na sua neurologia da consciência humana: a sociedade. A construção do eu autobiográfico exige, além do cérebro, do corpo e da mente, este outro elemento nuclear que é a sociedade. Porém, o individualismo metodológico adoptado por António Damásio dificulta-lhe o acesso à sociedade, como se o próprio cérebro fosse o "sujeito" do processo de fazer do homem um ser dotado de consciência alargada. Se fosse coerente com a sua estratégia materialista de investigação, António Damásio devia ter rompido com esta noção idealista de um processo com sujeito. Estou a colocar um desafio que também não sei resolver cabalmente; o que sei é que o individualismo metodológico dificulta a explicação neurobiológica do célebre problema que herdámos de Descartes, o problema mente-cérebro. Para ser bem-sucedida, a estratégia materialista de investigação do cérebro deve desalojar o inimigo idealista ou mesmo espiritualista que se infiltrou no seu próprio terreno: o individualismo metodológico que, além de atomizar a sociedade, introduz noções-obstáculos que impedem a elucidação neurobiológica do problema mente-cérebro, com recurso à teoria da sociedade e da história tal como foi elaborada por Marx. O caminho seguido por António Damásio para elucidar a passagem do proto-eu para o eu autobiográfico, passando pelo eu-nuclear, confronta-o com a sociedade e, se há um "sujeito" nesse processo de desenvolvimento filogenético e ontogenético, esse "sujeito" só pode ser o eu autobiográfico. Porém, o eu autobiográfico não é anterior à sociedade: a pesquisa neurocientífica deve abdicar da tentativa de explicar a sociedade a partir da construção do cérebro consciente. Sem sociedade não pode haver cérebro consciente, até porque a consciência individual, a consciência autobiográfica de António Damásio, é um fenómeno ou "facto sócio-ideológico" (Bakhtin). A pesquisa neurocientífica deve encarar a sociedade como estando sempre-já aí onde se revela o cérebro consciente. Mas a concepção da sociedade como estrutura sempre-já presente na construção do cérebro consciente exige uma reformulação crítica da própria teoria do eu autobiográfico de António Damásio, de modo a abri-la à História, o continente descoberto por Marx: o cérebro é, evolutiva, estrutural e funcionalmente, um órgão social. Com esta reformulação crítica da teoria da construção do cérebro consciente de António Damásio, podemos fazer justiça ao verdadeiro materialismo que sempre foi uma filosofia da libertação, livrando-o dessa velha ideologia opressora que é o individualismo.


Atribuo as dificuldades do programa de pesquisa do cérebro à ausência de uma teoria bem-elaborada do cérebro. Changeux captou o eixo fundamental dessa teoria quando escreveu que «a capacidade de construir representações lábeis "abre" a organização do encéfalo ao meio social e cultural», mas esqueceu completar o seu darwinismo das sinapses com a teoria social e histórica de Marx: a abertura do cérebro ao mundo exige a substituição como figura de referência teórica de Darwin por Marx, substituição que foi operada com sucesso pela Escola de Psicologia "soviética" encabeçada por Vygotsky e Luria. A grande referência teórica da psicologia de Vygotsky, responsável pela sua superioridade em relação à psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget, não é Darwin, como dizem os psicólogos cognitivos do mundo anglófono, mas sim Marx e Engels: «A internalização das actividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana» (Vygotsky). Quando refere que "signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contacto social com outras pessoas", Vygotsky pressupõe uma teoria social do cérebro, completamente distinta da que opera nas obras de António Damásio, onde o cérebro mergulha na sua própria interioridade corporal, mantendo com o mundo exterior relações estritamente instrumentais. Com efeito, a sua hipótese de construção de uma mente consciente articula duas partes: "o cérebro constrói a consciência através da criação de um eu no interior de uma mente desperta" (1), cuja essência - do eu, claro! - é "vista como um focar da mente sobre o organismo material que ele habita", e o eu "é construído por fases" (2): a primeira fase surge da parte do cérebro que representa o organismo - o proto-eu - e consiste num aglomerado de imagens que descrevem aspectos relativamente estáveis do corpo e criam sentimentos espontâneos do corpo vivo, os sentimentos primordiais; a segunda fase resulta do estabelecimento de uma relação entre o organismo - tal como representado pelo proto-eu - e qualquer parte do cérebro que represente um objecto-a-ser-conhecido, dando origem ao eu nuclear; e a terceira fase permite que objectos múltiplos, anteriormente registados como experiência vivida ou como futuro antecipado, interajam com o proto-eu e produzam uma série de pulsos do eu nuclear, dando como resultado o eu autobiográfico. A teoria dos três estádios do eu é sedutora, mas não é isenta de dificuldades intrínsecas, até porque Damásio parece retomar o paradigma botânico da maturação (Karl Stumpf), como se o cérebro sozinho no seu enorme vazio social fosse capaz de construir estes três espaços imagéticos. Bem sei que não é esse o modelo subjacente à teoria de Damásio, mas o seu individualismo metodológico empobrece a sua teoria do cérebro, privando-o - o cérebro, claro! - da abertura ao mundo que o define como "órgão de relação" (Sherrington). A preocupação predominantemente filogenética de Damásio, em detrimento da perspectiva ontogenética e histórica, revela desde logo as dificuldades da sua teoria da construção de uma mente consciente: a rica "semântica" usada para descrever estados ou processos da mente consciente, normais ou patológicos, não se reflecte nas relações internas que os conceitos estabelecem uns com os outros no seio da matriz teórica que os define. Segundo Damásio, "os processos do eu apenas começaram a ter lugar depois de as mentes e a vigilância terem sido estabelecidas como operações cerebrais": a consciência comporta três elementos indispensáveis, o estado de vigília, a mente e o eu, dos quais o mais importante é o eu, pelo facto de ser "o representante máximo dos mecanismos individuais de regulação vital, a sentinela e curador do valor biológico". Damásio aborda assim a neurologia da consciência a partir do eu e não a partir da mente, como sucede habitualmente. No entanto, a abordagem da consciência a partir do eu não é inteiramente original: Karl Popper e John Eccles já tinham realizado uma abordagem similar, mas com uma diferença fundamental que reflecte problemáticas teóricas divergentes. Ao contrário da perspectiva defendida por Damásio, para quem os "eus" são possuídos pelo cérebro consciente, para Popper, tal como para Platão, o cérebro é possuído pelo eu: o eu activo é o programador activo ou o piloto do cérebro. O materialismo de Damásio cerebraliza precipitadamente os eus para demolir de vez o dualismo, mas paga um preço demasiado elevado: priva-se do contributo da teoria social do eu, como se o homem nascesse como eu quando, na verdade, ele aprende a ser um eu no decorrer das interacções sociais que estabelece com os outros significativos e, mais tarde, com o outro generalizado, a própria sociedade (Mead). Uma criança privada de experiência no mundo social não aprende nada! Damásio estabelece muitas diferenciações conceptuais subtis, usando uma linguagem francamente mentalista, mas, quando chega a hora da verdade, cerebraliza rapidamente todo esse universo mental sofisticado, correndo o risco de pôr em causa a credibilidade do programa materialista de pesquisa do cérebro. Quando aborda a construção do eu autobiográfico, para dar consciência à memória, Damásio destaca dois mecanismos: um dependente do mecanismo do eu nuclear e outro mecanismo de coordenação à escala cerebral, mas logo a seguir esclarece a natureza material deste último: "Os dispositivos coordenadores que postulo não são teatros cartesianos (não há neles uma peça a ser interpretada). Não são centros de consciência. (Não existe tal coisa.) Não são homúnculos interpretadores. (Não sabem nada, nem interpretam nada.) São exactamente aquilo que descrevo na minha hipótese e nada mais. São organizadores espontâneos de um processo. Os resultados da operação não se materializam nos dispositivos coordenadores, mas sim noutro local, mais especificamente nas estruturas do cérebro criadoras de imagens e edificadoras da mente, situadas tanto no córtex cerebral como no tronco encefálico». Ora, se o cérebro é o seu próprio "sujeito-objecto", o uso de uma linguagem mentalista é pura ficção, incapaz de se explicar como tal: a cerebralidade da mente consciente fecha-se ao mundo, ao mesmo tempo que precisa desse mundo e dos seus instrumentos linguísticos, conceptuais e técnicos para comunicar com os outros. O materialismo ultracerebral de Damásio é de tal modo paradoxal que se refuta a si próprio sempre que usa a linguagem da teoria adversária: o que está aqui em questão não são as hipóteses sobre as estruturas e os mecanismos da implementação do eu autobiográfico, mas sim a pertinência da teoria geral usada para os explanar. O pluralismo não é incompatível com o materialismo e, sobretudo, com o neuro-reducionismo. Damásio reconhece-o, pelo menos ao nível da descrição, quando fala da mente independente e rebelde que, sendo protagonizada pelo eu autobiográfico, criou o mundo da cultura, mas logo a seguir submete o seu desenvolvimento ao impulso homeostático. O materialismo só é uma filosofia adequada num universo plural, onde as subjectividades se confrontam e lutam umas contras as outras pela definição da realidade social; caso contrário, converte-se em totalitarismo.


A melhor maneira para compreender a teoria de Damásio é confrontá-la com outras teorias: Damásio e Popper partilham o individualismo metodológico, a abordagem da consciência a partir do eu e a negação da imortalidade da alma. O neuro-reducionismo, que, na actual conjuntura teórica, é ainda uma mera hipótese de trabalho, tem os seus próprios limites que não pode ultrapassar sob pena de perder toda a sua credibilidade: a sociedade não é um mero agregado de cérebros-mentes conscientes e a cultura, mesmo que seja produzida por eus autobiográficos, não pode ser explicada pela sua neurologia. A consciência crítica destes limites da estratégia neuro-redutora levou Popper e Eccles a propor uma teoria interaccionista que procura salvaguardar a autonomia do mundo físico, do mundo mental e do mundo cultural criado pela mente consciente do homem. No entanto, a autonomia de cada um destes mundos é pensada de maneira diferente por cada um deles: o agnosticismo de Popper não lhe permite aceitar a imortalidade da alma preconizada por Eccles. Ao acentuar de modo velado a mortalidade da mente ou do eu, Popper aproxima-se da posição mais radical de Damásio: as patologias da consciência analisadas por Damásio não só fornecem evidência empírica às suas hipóteses de localização cerebral dos fenómenos psicológicos que analisa, como também mostram que a consciência é um fenómeno demasiado precário e efémero que pode desaparecer em virtude de lesões de determinadas áreas cerebrais provocadas por doenças ou traumatismos. A cerebralidade da mente consciente aponta desde logo para a sua finitude radical, mas a sua morte, que é sempre a morte de uma pessoa, não afecta o mundo comum que partilhou em vida com outras pessoas: a sociedade é anterior aos seus membros e, enquanto se renovar, continuará a existir depois da sua morte. A teoria social do eu que Popper formula dizendo que "a criança se torna consciente de si própria sentindo o seu reflexo no espelho da consciência das outras pessoas sobre si" constitui uma peça fundamental da teoria do cérebro consciente, capaz de produzir cultura. Sem esta teoria que foi primeiramente elaborada por Hegel, Marx, Engels, Mead e Vygotsky, a neurologia da consciência alargada do homem corre o risco de não apreender a abertura do cérebro ao mundo social: os "objectos" mais importantes do mundo que a criança procura conhecer são as outras pessoas que interagem com ela. Se crescesse socialmente isolada, a criança falharia na obtenção da consciência plena do eu: a teoria da epigénese por estabilização selectiva das sinapses de Changeux explica o desenvolvimento da criança sem negar a autonomia da sociedade e da cultura. Changeux é, tal como Damásio, neuro-reducionista, mas o seu darwinismo das sinapses, além de substituir o darwinismo dos genes, abre o cérebro em crescimento ao mundo e à comunicação entre os indivíduos: a sociedade molda o encéfalo de todos os indivíduos que nascem no seu seio. A sociedade historicamente dada explica mais facilmente a psicologia dos seus membros do que esta última explica a própria estruturação da sociedade em que vivem. Como vimos, o individualismo metodológico que Damásio e Popper partilham tende a explicar a sociedade pela psicologia de cada um dos seus membros. Porém, o individualismo de Damásio leva-o a confrontar-se finalmente com o mundo da cultura que resiste à sua abordagem, enquanto que Popper, talvez por razões políticas, é obrigado a abdicar dele quando discute o eu, falando do eu como se fosse uma quase-essência, posição que tinha anteriormente reprovado nos seus adversários chamados Hegel e Marx. A discussão destas questões é demasiado complexa para ser esclarecida em poucas palavras. Reconheço o contributo de Damásio para a elucidação neurobiológica do cérebro consciente, mas não posso aprovar a teoria do cérebro que lhe é subjacente: o materialismo social e histórico não só liberta o neuro-reducionismo do individualismo metodológico, como também reforça a sua estratégia de investigação sem fechar o cérebro na sua corporalidade material. Ou numa linguagem mais provocante: protege-o do totalitarismo, abrindo o cérebro ao mundo em mudança, não tanto para não o desencantar, como parece suceder com a posição de Popper, mas sobretudo porque o cérebro enquanto órgão de relação está efectivamente aberto ao mundo. O eu autobiográfico de Damásio está de tal modo empenhado em construir-reconstruir a sua própria biografia pessoal que se esqueceu de tentar construir a crónica da sociedade que lhe fornece os quadros sociais e históricos da sua memória tornada consciente: o eu autobiográfico é um protagonista inadequado para narrar a "heterobiografia-crónica" da sociedade que moldou o seu cérebro em crescimento. (Tentarei noutros textos melhorar a minha perspectiva teórica.)


J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Leonardo Coimbra, leitor de Bergson

«O pensamento bergsónico é dos mais originais, subtis e profundos; a compreensão deste pensamento exige um esforço de inteligência, uma abertura de alma, incompatíveis com todas as parcialidades e fanatismos.» (Leonardo Coimbra)

«A filosofia bergsonista é um organicismo ampliante, um ser vivo cuja vida é um amor de superação, uma atitude de inquérito, um andamento da caridade intelectual». (Leonardo Coimbra)

«O Bergsonismo não pretende ser um sistema, mas um método que é o próprio caminho da vida do seu pensamento assimilidor.» (Leonardo Coimbra)

A obra A Filosofia de Henri Bergson de Leonardo Coimbra não deve ser aconselhada aos alunos que pretendam familiarizar-se com o pensamento filosófico de Henri Bergson. Leonardo Coimbra (1883-1936) é um dos membros mais ilustres da Escola (Filosófica) do Porto: a sua filosofia criacionista é a tentativa mais sistemática para dar corpo aos vislumbres filosóficos dos pensadores portuenses. O criacionismo de Leonardo Coimbra merece ser revisitado, não tanto para ser aprofundado e actualizado mas sobretudo para salvar alguns dos seus momentos de verdade capturados e asfixiados por um sistema filosófico que, apesar da sua teoria da ciência, não resistiu ao próprio desenvolvimento da ciência. A concepção geral da vida apresentada por Leonardo Coimbra fechou-se antecipadamente a duas revoluções científicas: a revolução da biologia molecular que quebrou o domínio vitalista, e a revolução das neurociências que aboliu o domínio espiritualista. A tentativa desesperada de articular conjuntamente vitalismo e espiritualismo conduziu Leonardo Coimbra a um substancialismo activo ou a uma "metafísica cristã de matriz aristotélico-tomista" que pode ser captada sob a designação de animismo. O animismo generalizado impulsiona toda a filosofia de Leonardo Coimbra ao longo da sua evolução intelectual e das suas fases de desenvolvimento. Apesar dos seus conhecimentos científicos e das suas aptidões matemáticas, Leonardo Coimbra sacrificou a sua epistemologia à sua ontologia reaccionária: a teoria da ciência está subordinada à teoria do ser que a obriga a recusar as novas descobertas científicas. O espírito científico atribuído a Leonardo Coimbra é uma máscara que ele usou para disfarçar o seu primitivismo mental. Portugal mental é um país arcaico, onde a Filosofia nunca teve qualquer possibilidade de medrar. Leonardo Coimbra tentou, pelo menos no início da sua carreira filosófica, lutar contra esta fatalidade nacional, mas, com o decorrer do tempo, acabou por vergar às forças arcaicas da alma lusitana que não suportam a própria racionalidade. O homem que fundou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto converteu-se finalmente num seguidor patético de Jesus Cristo: «Por mim depois de trabalhar, rezo; depois de ter subido com o meu esforço a montanha do pensamento e da realidade, ajoelho e canto; depois de olhar a vida do vértice da Vida, preparo audácia e humildade para o voo, que, dando-me à Morte, me deite no misterioso mar da Maior Vida. E na miséria do presente, no ruído de tanta calúnia e estupidez, entrevejo um luar de Silêncio, onde mora o Espírito e a ocultas vai alimentando de esperança e amor as pobres almas transviadas. Um rasto de luz espiritual permeia esta vida e apaga as almas, e, em seu profundo sentido de mistério, quando se calam um pouco as vozes da crítica e da ambição, elas sentem-se, como misteriosas bússolas, apontadas a um firme e glorioso destino. De olhos cerrados, em íntima meditação e puro amor, deixemos a alma apontar seu rumo!» (Leonardo Coimbra). A mesma rotina da oração encontramo-la hoje no estilo de vida de Gianni Vattimo, o filósofo italiano gay que, depois das aulas, vai à Igreja local para "comer" uma hóstia: o pensamento débil - a produção teórica de homens frouxos e passivos! - é sintoma de decadência cultural e de falta de virilidade. Tal como tantas outras figuras-promessas portuguesas, Leonardo Coimbra rezou mais do que pensou, e o pior é que fechou os olhos, entregando-se nos braços da Igreja Católica Portuguesa, a grande força-magma do atraso histórico de Portugal. Na última fase da sua vida, quando a sua alma começou a vislumbrar o luar do Silêncio, onde mora o Espírito, Leonardo Coimbra trocou a filosofia pela velha crença religiosa popular: o filósofo apagou-se para dar lugar a uma figura patética que fez coro com o regime do silêncio. Chamar ontologia a esta crença popular tão tristemente portuguesa é um atentado terrorista contra a Filosofia. Com a conversão católica do seu pensamento, Leonardo Coimbra cavou o seu próprio túmulo como filósofo: Leonardo Coimbra deixou de ser filósofo quando se converteu ao catolicismo reaccionário que sempre-já amordaça Portugal.


Leonardo Coimbra era um homem inteligente, mas a vulnerabilidade da sua libido e da sua masculinidade impediu o desabrochar pleno da sua inteligência filosófica e científica. O pensamento racional que tenta exorcizar a mudança é uma criação do cérebro masculino: o facto dos homens portugueses terem dificuldade em lidar com o pensamento racional (Teixeira de Pascoaes) aponta desde logo para um défice de masculinidade em Portugal, que se revela tanto nos homens heterossexuais como nos homens homossexuais e bissexuais. Portugal carece de homens capazes de estabelecer conversações normais e de criar laços-alianças afectivas com outros homens: a "homofobia" portuguesa não é tanto o medo da homossexualidade mas sobretudo o medo do Homem, como se os "machos" portugueses temessem os outros homens por não estarem seguros da sua própria masculinidade. Ou, em linguagem mais provocante: o homem heterossexual português é, potencialmente, um homossexual em privado, e o homem homossexual português é, virtualmente, um transsexual. Tanto a heterossexualidade como a homossexualidade portuguesas traduzem défices de masculinidade e de sexualidade de género. O "paneleiro" é o fantasma que persegue interiormente tanto o homem português como, em geral, o homem latino. Natália Correia captou bem este traço do homem português quando dizia que os açorianos eram "mariquinhas": o homem português é de tal modo medularmente "mariquinhas" que se submete aos caprichos da mulher portuguesa, figura pardacenta bem retratada por Abel Salazar. A educação católica reforça a interiorização deste traço-atitude-comportamento, fornecendo-lhe os seus quadros sociais e ideológicos. O caso de Leonardo Coimbra demonstra que o homem português só consegue afirmar a sua masculinidade mental e cognitiva longe da influência nefasta da Igreja Católica. A partir do momento em que foi caçado nas teias ideológicas da Igreja Católica, Leonardo Coimbra transformou-se em "mariquinhas", essa figura degradada que não se diferencia cognitivamente das velhas da aldeia que adulam - e fantasiam sexualmente com ele! - o pároco local. O "mariquinhas" lusitano é um adulador, mas um adulador maldoso e cheio de veneno. Em Portugal, a masculinidade dos homens é uma masculinidade castrada e castradora: os castrados tudo fazem para castrar aqueles que ousam ser - mental e cognitivamente - masculinos, isto é, autónomos. A história de Portugal pode e deve ser lida sob o signo da castração castradora: as "lutas políticas" cedem o seu lugar a uma rede complexa e transversal de intrigas, cujo objectivo é amputar as mentes brilhantes, de modo a conservar o status quo que nos nega o futuro. Portugal mental é um país amputado. O signo da amputação nacional revela-se claramente nos sites Web-cam: quando os portugueses não conseguem amputar o outro, devido ao anonimato e à distância, desejam "abocanhar" o seu "membro viril", uma forma ritualizada de amputação. O predomínio do fetiche fálico entre os homens portugueses está intimamente associado ao seu défice estrutural de masculinidade: a redução da masculinidade às dimensões do pénis é sintoma de masculinidade deficitária. A homofobia portuguesa expressa o desejo deficitário de devorar o pénis do outro, de modo a assimilar a sua suposta masculinidade. Um homem que sofra de défice de masculinidade não pode produzir pensamentos racionais: o seu alimento "espiritual" é o pensamento primitivo, do qual Leonardo Coimbra não conseguiu escapar. Seria demasiado fácil submeter o teoria do amor de Leonardo Coimbra a uma hermenêutica inteligente para mostrar a presença do tema do amor universal como orgia sexual, precisamente aquela que podemos observar nas estações de serviço, nos bares com as suas festas da espuma, nas praias periféricas e nos sites Web-cam. Mas não é este o caminho que vou seguir: revelar o "mariquinhas" que habitava a alma de Leonardo Coimbra, levando-o a encobrir o seu desprezo pela mulher portuguesa com falsas declarações de amor e falsos elogios da beleza feminina. Um homem seguro da sua própria masculinidade não precisa destes expedientes frouxos e demasiado "queer" para afirmar a sua atracção sexual. A minha preocupação é outra: Como resgatar as luzes de pensamento genuíno que brilharam nesta terra devastada pela amputação? Leonardo Coimbra vislumbrou uma teoria social da razão que, se tivesse sido pensada até às suas últimas consequências, o teria conduzido até à proximidade do marxismo, mas o marxismo é uma filosofia demasiado masculina para seduzir o "mariquinhas" que habitava a sua alma. Assustado com o marxismo, o "mariquinhas" deu um grito-gritinho, escondeu o seu próprio pénis da visão dos outros, e, com os músculos do ânus a pular de desejo, fugiu para longe da figura masculina de pensamento, refugiando-se nos braços "maternais" de Cristo: a visão racional da organização social e política da tribo, própria do homem seguro da sua masculinidade, foi abandonada e trocada pelos investimentos libidinais diádicos, típicos do cérebro feminino. Abandonar o espaço público e refugiar-se na esfera doméstica implica sempre o abandono da Filosofia que, neste nosso mundo carente de cérebros masculinos, foi substituída pela economia, a "ciência das fadas do lar". Hoje, no Ocidente, vivemos num "mundo de meninas", que nos nega o acesso à nossa própria masculinidade: os economistas-meninas governam-nos como se estivéssemos prisioneiros da esfera doméstica, sujeitos a todos os tipos de abusos íntimos e de tirania doméstica. Mas o que é hoje uma novidade no Ocidente no seu conjunto, se nos lembrarmos da época do mancebo criticada por Ortega y Gasset no início do século XX, foi sempre uma realidade em Portugal, onde existem dois tipos de meninas, as que nasceram com um pénis e as que nasceram com uma vagina, mas todas elas são meninas castradoras do brilho fálico alheio.


O que na filosofia de Bergson atraiu a atenção do "mariquinhas" que habitava a alma de Leonardo Coimbra? O seu sósia, o seu equivalente gémeo na alma de Bergson que, sendo vítima da chacota dos outros durante a sua adolescência, escreveu O Riso para se vingar deles. Quando elaborou a sua filosofia criacionista nas obras O Criacionismo: Esboço de um sistema filosófico (1912), A Morte (1913), O Pensamento Criacionista (1915), A Luta pela Imortalidade (1918), Do Amor e da Morte (1922) e A Razão Experimental (1923), Leonardo Coimbra já tinha lido algumas obras de Bergson, com o pensamento do qual estava familiarizado desde 1909. A obra A Filosofia de Henri Bergson (1934) foi, conforme nos diz na Advertência, escrita em Agosto de 1932, tendo nascido de uma conferência feita na semana do livro sobre a última obra de Bergson, As Duas Fontes da Moral e da Religião. Apesar desta familiaridade precoce com a filosofia de Bergson, o criacionismo de Leonardo Coimbra é um projecto original que partilha aspectos fundamentais com A Evolução Criadora de Bergson. Conforme demonstrou Georg Lukács, as filosofias vitalistas, oriundas da filosofia de Schelling, com o seu elogio da intuição como órgão de acesso privilegiado ao conhecimento do Ser, abriram as portas ao irracionalismo. Leonardo Coimbra procurou, pelo menos inicialmente, exorcizar este irracionalismo através da formulação de uma teoria da ciência que, ao contrário da de Bergson, não rejeitava a teoria da relatividade, geral e restrita, de Einstein. Porém, o irracionalismo inerente às filosofias da vida - a apologia da intuição, em vez da razão - acabou por tomar conta do seu próprio pensamento, obrigando-o a adoptar uma teoria do ser retrógrada: o que o seduziu nesta última obra de Bergson foi precisamente o seu momento de regressão cognitiva, que os conduziu - cada um à sua própria maneira, mais Leonardo Coimbra do que Bergson - ao espiritualismo e ao personalismo. Tanto Bergson como Leonardo Coimbra tiveram a oportunidade de transitar para um outro nível superior de conhecimento racional, mas, em vez disso, mesmo na posse do conceito de passagem da sociedade fechada para a sociedade aberta, da mente fechada para a mente aberta, optaram pelo recuo para um nível inferior de consciência social, como se o "arcaico" fosse mais "aberto" do que o "moderno": o certo é que estas filosofias da falsa "abertura" prepararam o terreno para o advento do nazismo e do fascismo, até porque o recuo para formas anteriores de consciência social tem consequências mais bárbaras do que a própria ideologia do progresso tecnológico. Leonardo Coimbra poderia ter reforçado o seu esquema evolutivo, explicitando e ampliando a sua teoria social da razão, de modo a proteger-se dos fanatismos, sem ceder ao irracionalismo da caridade do coração. Sampaio Bruno confrontou-se corajosamente com o marxismo, cuja interpretação económica da história aprovou, mas Leonardo Coimbra preferiu trocar a filosofia do humanismo integral pela velha filosofia teocrática cristã que, em Portugal, se aliou ao fascismo. O conservadorismo político de Leonardo Coimbra fê-lo fugir da História como o Diabo foge da cruz, sem ter compreendido realmente que o seu esquema evolutivo é tributário da filosofia da História que vemos surgir com G. Vico: o anti-modernismo do pensamento de Leonardo Coimbra revela-se integralmente na sua concepção de Deus e no humanismo que a suporta. As suas aptidões matemáticas não foram suficientes para lhe abrir a mente às novidades científicas, filosóficas e artísticas do seu tempo fértil: Leonardo Coimbra teve na sua posse todos os instrumentos conceptuais para avançar, mas, em vez disso, recuou, refugiando-se nas velhas crenças cristãs ultrapassadas. O fechamento da sua mente ao mundo em mudança acelerada revela-se de um modo arrepiante quando comenta Matéria e Memória de Bergson: o comentário é de tal modo desalinhavado e indigno de uma mente adulta que mais vale rasurá-lo completamente para não envergonhar a alma defunta de Leonardo Coimbra. A Filosofia de Henri Bergson é uma obra mal estruturada, onde Leonardo Coimbra revela o seu desfasamento-desconhecimento das técnicas hermenêuticas e argumentativas da Filosofia. Ao contrário de Bergson que deixou um testamento, onde nomeava as suas obras a publicar em Obras Completas, Leonardo Coimbra não soube preservar a sua imagem, misturando pensamentos profundos com patetices religiosas que envergonham ainda hoje os seus leitores. Rasurar estes momentos de cegueira cognitiva e de estupidez intelectual é o único procedimento que podemos utilizar para resgatar o momento produtivo da sua filosofia criacionista. A história da filosofia portuguesa só pode ser elaborada a partir dos procedimentos da hermenêutica da violência. Lamento ter de dizer que, quando leio obras portuguesas, fico com a impressão que a alma - o seu tema predilecto - está ausente, como se os portugueses fossem autênticos zombies destituídos de vida psicológica superior. Infelizmente, não estou enganado: os portugueses são zombies malditos. (Sobre a Escola do Porto ver aqui.)


J Francisco Saraiva de Sousa