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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (6)

Cidade do Porto: Massarelos
1. Hoje foi dia de estudar o pai da psiquiatria americana: Benjamin Rush (1746-1818). Concordo com o seu amigo Jefferson: os seus tratamentos da loucura eram demasiado cruéis e condenáveis: aparelhos como o tranquilizador ou o girador são aparelhos de tortura. Mas o que me chamou a atenção foi a sua teoria da lepra da negritude dos escravos. A cor negra é uma doença que, segundo Rush, pode ser tratada. Em termos ideológicos, Rush diz o seguinte: o negro pode ser um empregado doméstico aceitável do ponto de vista médico, embora deva ser alvo de segregação sexual para impedir a transmissão de uma doença hereditária temida. Os brancos não devem tiranizá-los - os negros - e não devem casar com eles: a doença poderá ser curada no futuro.

2. Negando as diferenças entre doenças do corpo e doenças da mente, Benjamin Rush abusou da metáfora médica para medicalizar a vida social: o Pennsylvania Hospital foi a materialização da ideologia psiquiátrica que fez do desvio social uma doença mental.

3. Infelizmente, Portugal é um país entregue aos burros: O Bode Expiatório da psiquiatria institucional foi sempre o Homossexual. O auto de 1723 relata um caso que ocorreu em Lisboa, cuja sentença foi a flagelação e dez anos de serviço nas galés. A homossexualidade era tratada como um delito e o delito como uma heresia: o castigo era a relaxação - queima na fogueira - ou flagelação - açoitamento - e as galés. A chamada libertação dos loucos não ocorreu em Lisboa, mas sim no Porto: o Hospital Conde de Ferreira protagoniza esse movimento em Portugal, embora usasse ainda alguns instrumentos de tortura. Porém, ainda não temos uma história da loucura em Portugal.

4. A masturbação foi outra prática sexual condenada e punida pela Psiquiatria Institucional: a ideologia psiquiátrica da masturbação é deveras bizarra. Porém, ainda hoje os pacientes que se masturbam compulsivamente nas enfermarias são objecto de um tratamento clássico: as mãos são amarradas às grades da cama. Mas como devem ter reparado falei de masturbação compulsiva: o que quer dizer que há formas patológicas de masturbação. Devemos criticar a violência psiquiátrica sem deitar fora a Psiquiatria.

5. Enfim, concordo com a crítica da violência psiquiátrica levada a cabo pela Antipsiquiatria, mas também condeno os excessos deste movimento, em especial a política do orgasmo. Chegou a hora de mandar à merda o orgasmo. Descarta-te do sexo e cultiva a tua mente! Todos os movimentos de emancipação sexual fracassaram. Hoje sabemos que o sexo não liberta; pelo contrário, escraviza, destruindo a mente, a vida pessoal e social e a saúde mental e física.

6. A teoria da negritude de Benjamin Rush parece ser um disparate e assim é. Mas faz algum sentido no contexto americano oitocentista. Com efeito, por volta de 1792, começaram a surgir zonas brancas no corpo de um escravo negro chamado Henry Moss, que, no espaço de três anos, ficou completamente branco. Ele era portador de uma doença hereditária chamada vitiligouma doença não-contagiosa em que ocorre a perda da pigmentação natural da pele, tanto nos negros como nos brancos. (Rush desconhecia que a perda de pigmentação pode ocorrer nos brancos.) Ora, quando soube disso, Rush pensou que a cor biologicamente normal do negro era uma doença que, no caso de Moss, tinha sido curada de modo espontâneo. Daí que tenha sugerido que a cor negra era resultado do sofrimento de lepra pelos seus ancestrais africanos. Ora, nalguns casos, em especial entre os habitantes das ilhas de lepra do Pacífico Sul, a lepra é acompanhada pela cor negra da pele.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Futebol: a válvula dos impulsos homo-eróticos


Ontem foi um dia divertido: uns amigos alemães de esquerda socialista partilharam comigo estas e muitas outras imagens dos rituais futebolísticos. Foi uma oportunidade para rever a teoria da tribo do futebol de Desmond Morris e de lhe dar um conteúdo mais sexual: o futebol como cópula gay ritualizada no campo e exteriorizada algures nos bastidores. Penso que a teoria da natureza homossexual das relações sociais proposta por Lévi-Strauss e retomada por Luc de Heusch, para já não falar de Lionel Tiger e Robin Fox, pode ser desenvolvida a partir do paradigma do futebol ou mesmo do exército e de outras instituições masculinas: a rigidez das sexualidades de género masculino é hoje um conceito amachucado. As sexualidades masculinas não são tão rígidas como pensávamos: a fluidez que verificamos nos nossos dias reconduz ao núcleo homo-erótico. Não bastar dar um nome: "homens que fazem sexo com outros homens"; é preciso explicar este comportamento e revelar o seu núcleo homo-erótico. Os chimpanzés e outros macacos fornecem excelentes modelos animais para compreender a natureza homossexual das relações sociais humanas. A libertação das mulheres produziu efeitos estranhos na sociedade: desvalorizou o corpo feminino e sobrevalorizou o corpo masculino, quebrando o tabu homossexual. (Um efeito perverso pode ser o desejo de auto-amputação e a erotização do membro amputado!) Os homens de hoje fazem aquilo que os homens de ontem desejavam fazer: "curtem a sua própria masculinidade". Este comportamento homo-erótico está presente em muitas sociedades arcaicas, onde a iniciação permite a prática institucional de relações homossexuais. A homossexualidade institucionalizada não é apenas uma invenção indo-europeia, bem exemplificada no caso grego (Bernard Sergent, K. J. Dover), mas uma prática presente nas mais diversas áreas culturais (G. Herdt, R. C. Kirkpatrick), bem como nas nossas instituições masculinas totais. Não sei se desejo retomar a minha investigação sobre determinação sexual e diferenciação sexual do cérebro e do comportamento: prefiro explorar outras áreas do conhecimento, embora reconheça a importância desta área da pesquisa sexual. Escusado será dizer que, ao fazer estas observações, estou a tentar mostrar que o que é surpreendente não é a homossexualidade mas a própria heterossexualidade. Ou seja, estou a problematizar a própria heterossexualidade. Quando realizei a minha investigação estava consciente disso, mas não soube dar-lhe expressão. Afinal, por que os homens são heterossexuais? Não estará o sucesso do futebol ligado à sua natureza homossexual? Não será a tribo do futebol uma tribo gay que revive nos nossos dias os rituais da caça ancestral? Ontem, quando os portugueses festejavam os golos do Cristiano Ronaldo, olhei-os de outra forma: vi que eles lá no fundo de si próprios eram e são "paneleiros". Depois dei-me ao trabalho de observar atentamente os sites nórdicos "Anti-Cristiano": o que observei? Observei que os nórdicos redescobriram o facto do "paneleiro" ser uma figura latina. As amostragens americanas já levam em conta esta classificação. Compreende-se agora a razão que leva os homens latinos a mascarar-se de prostitutas nos cortejos carnavalescos: eles são "travecas" exímios que aproveitam o Carnaval para dar expressão à mulher de má-vida que habita neles. (A nossa aliança - ego-alemães - é estritamente política: derrubar as políticas de direita da chanceler!)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 8 de maio de 2012

Virginia Woolf & Bertrand Russell

Virginia Woolf (1882-1941)
Bertrand Russell deve ser o filósofo mais referenciado na literatura científica e filosófica e, no entanto, o seu pensamento filosófico raramente é analisado a sério. Lembrei-me ontem dele, não por causa do seu programa logicista ou do seu atomismo lógico, mas sim por causa da ligação estreita entre o realismo da filosofia inglesa e os escritores do grupo de Bloomsbury, entre os quais se destacam Virginia Woolf e E. Morgan Forster, cujo tema comum é a busca da realidade. Auerbach já tinha chamado a atenção para esta ligação e S. P. Rosenbaum traçou o paralelo entre a literatura e a filosofia inglesas, dando especial destaque ao realismo filosófico de Virginia Woolf: G. E. Moore exerceu uma poderosa influência sobre os críticos de arte de Bloomsbury e sobre as suas concepções estéticas. Nem todas as línguas europeias conhecem um episódio deste género, em que filósofos e escritores colaboram entre si, de modo a forjar programas estéticos. Assim, por exemplo, o ponto fraco de toda a literatura em língua portuguesa é a ausência de pensamento filosófico: as ligações de Soeiro Pereira Gomes com o realismo socialista e de Vergílio Ferreira com o existencialismo confirmam essa falta de colaboração dos escritores portugueses com os filósofos. As filosofias que influenciaram as suas obras foram tomadas de empréstimo de outras áreas culturais: os chamados filósofos portugueses são criaturas medíocres que não sabem escrever a língua portuguesa. É uma fatalidade nascer nesta terra de burros malvados que é Portugal: a problemática existencial é estranha ao povo português que, em vez de exprimir angústia diante do nada, nutre inveja pelos seus vizinhos. Ser português é cobiçar aquilo que pertence aos outros. Ora, o português-prótese que cobiça ser aquilo que o outro é e tem revela-se - como tal - até mesmo na esfera dos comportamentos sexuais: o português deseja enfiar o seu "badalhoco" lá onde outro enfiou o seu, de modo a sentir ainda a presença húmida e odorífera do outro, cujo "badalhoco" quer incorporar em si próprio. Os homens portugueses precisam do futebol para evitar uma sessão de masturbação em grupo: o seu medo "colorido" da homossexualidade traduz a repressão do seu desejo secreto de ver, tocar e saborear o "badalhoco" dos outros. Não admira que o sexo oral constitua a grande fantasia sexual dos portugueses: ela possibilita a incorporação da essência vital do outro. Até parece que estou a especular, mas isto que estou a denunciar com profunda tristeza encontra-se patente na literatura portuguesa, cuja "filosofia" é tornar próprio aquilo que pertence ao outro. A "filosofia de ladrão" dá expressão a este desejo oral de incorporar o outro na sua própria carne: o português é aquele ser que deseja ser o outro, mesmo que não o compreenda. O verbo "mamar" exprime a essência do português. Como é que, num país em que todos andam à procura das tetas uns dos outros, poderia emergir um pensamento filosófico autónomo? O povo português é um dos poucos povos europeus que não tem metafísica, isto é, filosofia: Hegel nomeia-o na sua filosofia da história, mas não pode conferir um lugar de destaque no palco mundial da história a um povo sem metafísica. "Mamar" é um verbo anti-metafísico.

Os auto-intitulados "filósofos portugueses", "amigos da filosofia analítica" (sic), são as criaturas mais burras de Portugal, bastando ler as suas traduções das obras dos filósofos analíticos. Como é que criaturas que se hospedam nas casas dos alunos, para partilhar os "badalhocos", podem filosofar ou, como elas preferem dizer, argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que pedem aos "colegas" a casa-de-banho emprestada, para tomarem banho, podem argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que fogem das mulheres que os sustentaram durante um período considerável das suas vidas indigentes podem argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que, para darem aulas noutra cidade, precisam de se hospedar na casa de alguém, dando como pagamento o seu "badalhoco", podem argumentar com rigor? Como é que criaturas que, nas suas deslocações às universidades estrangeiras, prestam serviços sexuais aos visitados, com conhecimento dos seus parceiros nacionais de mentira, podem argumentar com rigor lógico? A comunidade dos chamados filósofos analíticos portugueses - responsável pela corrupção dos programas de filosofia - é uma comunidade sexual: os seus membros usam a desculpa da troca de argumentos racionais para trocar fluídos corporais uns com os outros. No seu triste e pobre universo mental, argumentar tornou-se sinónimo de troca de serviços sexuais. Toda a sua oralidade é sexual. Não adianta interpolá-los sobre os seus conhecimentos filosóficos e lógicos. Ficam ofendidos e respondem que não aceitam que os seus conhecimentos sejam testados. Quem os queira testar só o poderá fazer pela via do sexo. Em Portugal, o "filósofo analítico" (sic) é aquela criatura cuja suposta "genialidade" - entenda-se: genitalidade! - se testa no campo da performance sexual. Ser "bem-dotado" e ter "boa" performance sexual são traços que valem dinheiro no mercado da indústria pornográfica. Ainda cheguei a sugerir a um empresário a contratação dos filósofos analíticos portugueses, mas qual o meu espanto quando ele - depois de ter feito uma pesquisa de mercado - me disse que eles não tinham qualquer valor sexual: quase todos os parceiros sexuais dos "analíticos" portugueses estavam insatisfeitos com o seu desempenho sexual. A sua arrogância intelectual quebra-se contra a sua impotência sexual: o teste sexual a que se submetem de bom grado acusa falta de imaginação e excesso de dependência de próteses sexuais. Resta-nos concluir que a evidência empírica disponível mostra que, em Portugal, a "filosofia analítica" é uma tremenda mentira que se propaga por contacto sexual. Usada como rótulo, a filosofia analítica permite aos seus portadores circularem pelo espaço universitário sem terem sido testados no plano dos conhecimentos, bastando-lhes os contactos sexuais para garantir os seus postos de trabalho. (As universidades portuguesas são mentiras institucionais.) Mas, se em Portugal a filosofia analítica é uma mentira, nos países anglo-saxónicos ela foi a vanguarda de muitas gerações de filósofos e de escritores.

A obra de Georg E. Moore que mais marcou a estética de Bloomsbury e o seu realismo filosófico não foi Principia Ethica (1903), a primeira ética analítica, cujo título inspira Principia Mathematica de Russell e Whitehead (1910), onde se leva a cabo o projecto de fundar a matemática sobre uma base puramente lógica, a única susceptível de garantir a sua objectividade, mas sim o pequeno ensaio Refutação do Idealismo (1903), conforme reconhece o próprio J. M. Keynes. A essência do moorismo, aquilo que constitui a sua abordagem dos problemas filosóficos, não reside tanto na sua temível pergunta "O que quer dizer exactamente com isso?", como acreditava Keynes, mas sobretudo na forma que assumia uma resposta a tal pergunta. Segundo Moore, o critério decisivo de realidade é a minha experiência imediata: o apoio na experiência é fundamental tanto na epistemologia como na teoria do significado. A Refutação do Idealismo critica severamente o solipsismo de Berkeley, mostrando que, em qualquer experiência, é preciso distinguir o objecto dessa experiência da própria experiência: o objecto, pelo menos na experiência directa, é uma parte da realidade objectiva e não uma mera representação de um objecto real.

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Anúncio: Porto Gay, Lisboa Gay

Eu sou um cientista-filósofo que realizei uma pesquisa intensiva dos comportamentos sexuais em Portugal. No entanto, os dados recolhidos só foram processados em termos exclusivamente biológicos. Tenho recebido muitos e-mails a pedir que divulgue esses dados, de modo a contribuir para a história das homossexualidades em Portugal. A minha investigação cobriu todo o território nacional e, a título particular, resolvi recolher informação adicional que não tinha relevância para o meu trabalho. Infelizmente, depois de concluída a investigação e a tese, nunca mais voltei a dar atenção aos dados e ao material recolhido durante a pesquisa de campo. Seria mais fácil partilhar esse material adicional a título de uma etnografia portuguesa dos comportamentos homossexuais. Mas o blogue não se presta à divulgação de milhares de páginas. Por isso, procurarei satisfazer o vosso pedido, tentando esboçar a história das homossexualidades em Portugal em duas secções dedicadas aos dois centros metropolitanos nacionais: Porto e Lisboa. Proponho de momento dois títulos, podendo os períodos de tempo ser alargados até ao presente e recuar mais no passado mediado pela memória dos homens homossexuais mais velhos:

1. Porto Gay (1989-1993).
2. Lisboa Gay (1989-1993).


Bem, devo justificar o facto de ser receptivo a partilhar publicamente esse material: a parte mais significativa da minha investigação foi realizada através da comunicação mediada por computador e da Internet. Sobre esta ciberpesquisa, já partilhei aqui alguns resultados. No entanto, como uma tal pesquisa deixa vestígios digitais, tenho realizado visitas rápidas para confirmar a autenticidade desses vestígios. No decorrer dessas visitas, tenho recolhido informação suficiente para reforçar uma hipótese apresentada como promessa de pesquisa futura: a da relação entre homossexualidade e patologia. O que tenho observado ultimamente são cloacas comportamentais, e alguns elementos da minha amostra participam activamente nelas, o que me leva a ter em conta o factor do envelhecimento. Se reescrevesse hoje o meu texto originário, não hesitava em classificá-los no grupo disfuncional. O conceito de homossexualidade disfuncional deve ser recuperado e, em 2012, é isso que vou fazer retomando a minha investigação em novos moldes. De momento, seguindo um velho princípio genético, o que posso afirmar é o seguinte: o grau de disfuncionalidade homossexual tende a agravar-se à medida que o seu portador envelhece. O facto de ser jovem levou-me a negligenciar o factor envelhecimento: tinha consciência dos grupos etários e das relações que estabeleciam entre si, mas a tentação foi pensar em tudo isso em termos de sincronia. É caso para dizer que só o tempo permite corrigir esses erros naturais que cometemos no decorrer de uma pesquisa que tem os seus próprios prazos a cumprir. Lá onde ontem via algum "valor" hoje vejo "lixo". Portugal é lixo, como dizem as agências de rating.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 3 de setembro de 2011

Introdução à Leitura da Poesia de António Botto

António Botto (1897-1959)
Este ensaio sobre a poesia gay de António Botto reúne dois outros textos que já tinham sido editados. A História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e de Óscar Lopes é de tal modo homofóbica que despreza o contributo ímpar e singular de António Botto para a literatura portuguesa: cantar abertamente o amor entre homens é algo que, para os seus autores, não é digno de ser estudado e divulgado. António Botto tentou sair do armário, assumindo publicamente a sua condição homossexual, mas os falsificadores da literatura portuguesa não lhe perdoaram a ousadia do gesto e baniram-no da sua história. A literatura portuguesa é refém da miopia intelectual de homens sombrios e pardacentos que, no caso de António José Saraiva e de Óscar Lopes, toma a forma de uma espécie de inquisição positivista. A masculinidade deficiente destes falsificadores leva-os a empobrecer tudo aquilo em que tocam. Qual seria a sua reacção se tivessem lido a colectânea de contos - Military Sex - de Stewart Chatwick? Há uma vasta literatura gay e, em Portugal, pelo menos na sua versão publicamente assumida, o seu berço encontra-se na obra de António Botto. O que é a literatura gay? A literatura gay é, antes de tudo, uma literatura de género: uma literatura produzida por homens e para homens. Mas é algo mais do que isso: Fernando Pessoa e José Régio definiram-na como uma literatura que exalta a beleza masculina, o que equivale a dizer que se trata de uma literatura produzida por homens homossexuais e para homens homossexuais. Utilizámos a definição de pornografia de Alfred C. Kinsey para definir a literatura gay como uma literatura produzida por homens e para homens. Porém, a literatura gay não é necessariamente pornográfica: a literatura é pornográfica quando excita, e nem toda a literatura gay tem a excitação erótica do leitor como o seu objectivo deliberado, principal ou único. Assim, por exemplo, os contos recolhidos por Stewart Chatwick dão visibilidade e publicidade a certos devaneios hiper-masculinos que visam excitar os seus leitores, não todos os leitores, mas os leitores masculinos que são atraídos eroticamente por outros homens e/ou que se excitam facilmente com estímulos eróticos. A poesia de António Botto não tem conteúdo pornográfico: Fernando Pessoa captou o seu "ideal estético" quando disse que ela funcionava como «arma contra a opressão do nosso ambiente», isto é, contra a opressão imposta pela sociedade heterosexista e homofóbica. Tal como qualquer outra forma superior de arte, a literatura gay denuncia a homofobia que, segundo as palavras enfáticas de António Botto, «quebra destinos», isto é, recusa aos homens homossexuais o "direito à felicidade": a grande literatura gay é uma literatura da emancipação gay. António Botto devolve aos inimigos o seu próprio veneno: quem quebra o destino do outro, pelo facto de ser diferente, não tem direito à felicidade.


(Primeira Parte)


"Quanto, quanto me queres?, - perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.


Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora a luz do sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...


Beijámo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vai-vem
Dos corpos que se entregam sem pensar...


Não perguntes, não sei, - não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder". (António Botto, Adolescente, 16)

Intróito I: Decadência Sexual e Anti-Cultura. Houve um tempo em que a homossexualidade masculina era associada a um nível elevado de inteligência e de cultura. Mas, neste nosso tempo indigente e decadente, os homens homossexuais desistiram do cultivo da sua mente, preferindo deambular pelos urinóis, pelas estações de serviço, pelas dunas das praias periféricas e por outros lugares escuros, onde se entregam ao sexo ocasional. Os homens homossexuais já não são agentes culturais, mas vagabundos sexuais que desconhecem a obra dos seus antepassados com a mesma orientação sexual. O capitalismo tardio embruteceu de tal modo a sociedade e os seus membros que liquidou não só a imaginação que permite sonhar novos mundos para o homem, mas também a memória que zela pela lembrança do sofrimento passado. Um sistema social vagabundo como o capitalismo - governado por essas mulheres travestidas de homens que são os economistas! - gera os seus próprios vagabundos que o deixam reproduzir-se em paz, como se fossem zombies desmemorizados e destituídos de imaginação. O capitalismo só conhece um tempo: o tempo da gratificação imediata que permite aos seus zombies viver o presente como uma sucessão contínua de momentos de gratificação. A busca do lucro a curto prazo leva o capitalismo a esquecer o passado e a não ser capaz de antecipar o futuro: o capitalismo é auto-destrutivo. E, desde que entraram na via do consumo, os portugueses ficaram mais burros do que já eram nos tempos sombrios de Salazar. As "bichas" hetero, homo e bi - empenhadas na busca frenética de novos parceiros sexuais - já não lêem, tendo por isso perdido o contacto com a poesia gay produzida em Portugal, tanto por António Botto como pelas músicas de António Variações. Os "mariquitas" portugueses tornaram-se inúteis e, caso Portugal venha a ser invadido, eles, em vez de pegar em armas para combater o inimigo, irão oferecer-lhe o buraco enorme que é Portugal. Portugal é uma imensa bunda que perdeu a sensibilidade! Oh, que bunda feia, hirsutista, insensível e insaciável, onde tudo cabe sem a saciar!


Excurso I. «Se a generalidade dos homens acha mais belo o corpo da mulher que o do homem, é talvez porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. Se alguns homens anormais (por excepcionais) acham mais belo o corpo do homem, é talvez ainda porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. A preferência estético-sexual do homem pela beleza feminina é explicada pelo génio da espécie: pela previsão da natureza. Só do abraço da mulher e do homem nascerão filhos do homem. A preferência estético-sexual de alguns homens pela beleza masculina ainda não foi explicada; apesar das várias hipóteses. Mas é facto existir, e ser tão natural a esses homens como à generalidade deles a preferência oposta. Em uns e em outros, o desejo sexual perturba a sensualidade puramente estética. Uns e outros são homens. Nem duns nem de outros se pode esperar um juízo imparcial de esteta. (...) Na base da Arte magnífica de António Botto está toda a sua fatalidade de homem. (...) Tanto mais que falo dum Poeta que ousou ser como é (isto é, homossexual): O que sempre louvo num verdadeiro Poeta - porque o verdadeiro Poeta eleva tudo em que fala; e de resto, é sempre o que é quer o queira quer não». (José Régio)

Não conheço a fundo a poesia de António Botto, mas sei que ela nos fala do lugar da homossexualidade masculina. José Régio e João Gaspar Simões dedicaram-lhe dois estudos interessantes, tendo publicado alguns dos seus poemas na revista Presença. O estudo de José Régio, do qual saquei a citação em epígrafe, é deveras surpreendente e importante, mais pelo seu contributo à psicologia das masculinidades do que pelo seu contributo propriamente estético. José Régio aborda as atracções sexuais masculinas em termos muito actuais: o seu conceito de preferência estético-sexual corresponde àquilo a que chamamos hoje orientação sexual. Em termos estritamente estéticos, José Régio parece exigir um juízo estético imparcial que esteja para além e acima da atracção sexual pela beleza feminina ou pela beleza masculina. Mas a sinceridade de António Botto cativou-o: o poeta ousou dizer o nome do seu amor, sendo na sua obra o que foi na sua vida: um homem homossexual que cantou a beleza do corpo masculino jovem. Hoje, na biociência do comportamento, é usual dizer que as sexualidades de género masculino são mais rígidas do que as sexualidades de género feminino. Os estudos confirmam esta diferença sexual, mas as anomalias que começam a ser observadas nos estudos de campo apontam noutra direcção, como se hoje compreendêssemos melhor a homossexualidade masculina do que a própria heterossexualidade masculina. A homossexualidade masculina, pelo menos o tipo mais efeminado, é mais rígida do que a heterossexualidade masculina: os homens heterossexuais são mais fluídos nas suas experiências sexuais do que os homens homossexuais. Noutros textos, tentei tematizar de forma provocante esta diferença inter-masculina dizendo que os homens portugueses tendem a ser "paneleiros" ou, como preferia chamá-los Natália Correia, "mariquitas", independentemente da sua orientação sexual. Esta hipótese pode ser generalizada com segurança a todos os homens latinos: a busca de suporte empírico para esta hipótese é fundamental para a clarificação futura dos mecanismos genéticos e neuro-hormonais responsáveis pela orientação sexual. O facto da atracção sexual do homem pela beleza feminina ser explicada pelo génio da espécie rouba-lhe logo à partida a sua potencial carga erótica, o que, no cenário da vida contemporânea, pode significar que a libertação das mulheres está a afastar os homens delas, levando-os a explorar novas fontes de prazer sexual. (A libertação das mulheres poderá ter libertado os homens da heterossexualidade normativa que castrava a sua expressão sexual omnívora!) Os fenómenos de dissociação sexual-afectiva começam a ser muito frequentes, exibindo uma grande variedade de combinações exóticas. Fiquei com a impressão - que ainda não sei explicar - de que José Régio considera que toda a exaltação masculina da beleza feminina é pura hipocrisia. De facto, a análise de conteúdo dos léxicos eróticos masculinos revela que o corpo que os homens mais admiram é o próprio corpo masculino, o seu ou o dos outros, e das estruturas desse corpo a mais admirada é o pénis: o homem (sexo masculino) é o ser que, por natureza, está apaixonado pelo seu próprio pénis (De Sousa, 2006). Há nesta apreciação um interesse claramente homossexual: o narcisismo psico-sexual converte-se em homossexualidade quando o homem deixa de manifestar interesse sexual no sexo oposto. Forjei o termo heterossexuais exóticos para designar esses homens heterossexuais - auto-intitulados "bicuriosos" - que fazem sexo com outros homens: quanto maior o número de atributos hipermasculinos - corporais e comportamentais - revelados pelos homens, maior será a sua propensão para variar e diversificar a sua "ementa sexual". (O culto de corpos musculados é já uma indicação de claro interesse homossexual. Que o digam os brasileiros que povoam os ginásios portugueses! Os homens gay têm razão quando chamam "barbies" aos homens musculosos, porque eles - tal como as mulheres - se comportam como se fossem "mercadorias-fetiches" muito desejadas no mercado sexual que valoriza os seus atributos-maquilhados-artificiais. Na hora da verdade, em vez de exibir o instrumento masculino, exibem as nádegas, para frustração total dos seus parceiros sexuais. Como estou divertido, vou contar uma pequena "história-caso": Ontem, no decorrer da minha ciberpesquisa, conheci um homem gay dos Açores. Ele exibia o seu físico e, como simpatizou comigo, pedi-lhe para mostrar a "língua marota". Puro veneno de pesquisador! Ele mostrou e acabou também por mostrar a cara: o olhar confirmou a minha suspeita. O homem-músculo era mais passivo do que activo, ou, como dizem, versátil. Mas bastou usar um perfil do tipo "homem-activo" para a sua versatilidade se converter em pura passividade, de resto já visível na exibição das nádegas. Curiosamente, este homem gay passivo tinha um corpo masculino, exibindo pilosidade corporal abundante e barba espessa bem amparada, para já não falar das mãos e das dimensões do pénis: o que sugere a existência de abundante testosterona livre durante o desenvolvimento pré-natal que masculinizou as estruturas corporais, sem ter acesso - como é evidente! - ao cérebro que permaneceu feminino. Suspeito que, se fosse vivo, Kees van Dongen pintaria hoje, preferencialmente, a artificialidade de mulher da vida das barbies masculinas! Pelo menos, já pintei dois quadros onde mostro esse mundo!) A hipótese que formulei - e para a qual já tenho evidência empírica disponível - tende a destacar o carácter masculino da sexualidade e do erotismo, o que já foi confirmado por centenas de estudos experimentais e estatísticos. Mas, tal como Abel Salazar, tendo a achar que há "algo" na mulher latina que não atrai os homens, como se elas funcionassem como um tampão que se coloca entre eles e a sua própria masculinidade. Serão as mulheres latinas castradoras da masculinidade dos "seus" próprios homens? Para todos os efeitos, a exaltação latina da beleza feminina é hipocrisia!.


II (Segunda Parte)

"A mulher que vai ao clube
Passa por ser desonesta
Até lhe chamam perdida;
Só se vê nela o desejo
Decadente de viver
O fundo inútil da vida.

Ninguém procura ver nela
Mais que a mentira de um beijo
À margem de outra mentira;
Um cigarro que se fuma,
Ou palavra que se perde
Na voz de alguém que delira...

Se os olhos enche de pranto,
E com ele os olhos lava
- Reflexo de uma agonia, -
Quantos não dizem: - Fiteira,
Quer comprar alguma jóia
E o ourives não lha fia.


E a mulher por mais rameira
Não tem somente por norte
Atraiçoar ou mentir:
Nela, há tesoiros de amor
Que valem mais que a fortuna
Maior que possa existir!

Porque nós é que a levamos
Ao pecado que deprime
E ao bordel da perdição;
Triste odisseia da carne
Que se canta e se amortalha
Nos versos de uma canção!

Mas, como a verdade é uma,
Embora digam que há muitas,
E cada qual tem a sua,
Na mulher não queiram vê-la
Simplesmente quando beija
E apenas quando está nua." (António Botto, Canção)

"Era uma vez uma boneca
Com meio metro de altura.

Insinuante, bonita,
Mas, pobremente, vestida.

Um ar triste, - uma amargura
Diluída no olhar...
- Grandes olhos de safira,
E um sorriso combalido
Como flor que vai murchar.

Quási a meio da vitrine
Lá daquela capelista
Essa boneca de trapos
A ninguém dava na vista!

Ninguém via o seu sorriso!

Ninguém sequer perguntava:
- Quanto vale a "marafona"?
Quanto querem p'la "Princesa"?...

Passaram anos. - Com eles,
Foi-se a minha mocidade
E cresce a minha tristeza.

- Quem é que dá p'la Boneca
Que os meus olhos descobriram
Lá naquela capelista
Quási à esquina do Jardim?...

- Quem dá por Ela? Ninguém.

E quantas almas assim!" (António Botto, História Breve de uma Boneca de Trapos)

Intróito II: Bonecas, Homossexuais e Economistas. Estes dois poemas de António Botto permitem-me denunciar a "mulher-dona-de-casa" - mulher fútil, mulher rameira, mulher tirana, mulher fiteira, mulher ladra, mulher estéril - que há dentro de cada economista neoliberal e de cada gestor. Nesta fase tardia do capitalismo, o triunfo da economia e do seu discurso implica o triunfo do Homem-mulher à frente dos destinos colectivos dos povos da Terra. À era dos homens políticos sucedeu a era do Homem-mulher - encarnado pelos economistas e figuras afins. Os gregos que nos legaram a matriz da nossa civilização nunca deram especial destaque à esfera económica: a economia dizia respeito à esfera privada e doméstica, não merecendo destaque na esfera pública, a não ser sob a forma larvar de economia política. No nosso tempo indigente, num movimento contínuo cujos traços começaram a desenhar-se ainda antes da II Guerra Mundial, as más-fadas do lar - os Homens-mulheres cujos testículos os abastecem de testosterona decadente e afectada - saíram do seu mundo fechado e invadiram o mundo público, reduzindo o debate político a uma discussão de receitas económicas caseiras: o mundo público tornou-se fatalmente um prolongamento ampliado do mundo doméstico. A tirania doméstica instalou-se em todas as esferas da vida social e pública: as crianças que ontem brincavam nas despensas das mães, anotando as entradas e as saídas dos géneros alimentícios, entre outros produtos de uso doméstico, são hoje os Homens-mulheres que reduzem a nossa vida a um cálculo empobrecedor e brutal das nossas trocas metabólicas com a natureza. Seres que cresceram num ambiente fechado, pobre em estímulos, não conseguem adaptar-se a um mundo aberto a não ser ampliando o seu universo fechado à escala global: o mundo global conspirado por estas criaturas mental e cognitivamente estreitas mais não é do que a ampliação do seu pequeno e triste universo doméstico. Os contabilistas da despensa caseira não conseguem pensar no Homem sem o reduzir a um produtor-consumidor de bens, ou melhor, a um tubo digestivo dotado de uma boca para comer e de um ânus para evacuar os produtos que o mercado disponibiliza. Com a sua supervisão, o capitalismo conseguiu colonizar todas as esferas da personalidade, da sociedade e do mundo da vida, de modo a reduzi-las à sua dimensão metabólica: a sociedade metabolicamente reduzida é uma invenção destes Homens-mulheres que são os economistas, cujas vidas adultas reflectem a estreiteza da sua infância vivida na clausura da despensa. A vida sexual dos economistas que conquistaram lugares de destaque vacila entre a agressão sexual e a sexual bondage, para já não falar da luxúria, da promiscuidade sexual, da prostituição de luxo, da homossexualidade envergonhada ou de certas parafilias. Um caso mediático recente exemplifica a primeira situação que se repete a um ritmo alucinante nos espaços fechados ocupados por estas criaturas dotadas de vida mental pobre, mas a segunda situação é mais típica, porque revela a miséria mental dos economistas e, sobretudo, a sua passividade encoberta pela ideologia do sucesso. Quando chegam ao fim do dia, depois de terem sacado o dinheiro dos outros e gerido a sua vida de modo a empobrecê-la, estes Homens-mulheres estão de tal modo "anestesiados" que precisam ser humilhados, açoitados e espancados para se sentirem vivos. Hoje as bolsas e os mercados de capitais desempenham as funções dos manicómios de outrora; aliás estas instituições financeiras são os manicómios do nosso tempo: o que quer dizer que estamos a ser governados por loucos e por perturbados mentais, cuja "racionalidade" é a do tubo digestivo e da retenção de fezes. Com efeito, os estudos disponíveis (Janus et al., 1977) demonstraram que estes profissionais de colarinho-branco - a necessidade compulsiva de esconder a sua pobreza psicológica por detrás de um fato! - recorrem regularmente ao serviço de prostitutas para os dominar. Os Homens-mulheres que ocupam posições dominantes na nossa sociedade decadente são, tendencialmente, homens submissos que, devido à dificuldade de encontrar mulheres heterossexuais dominantes (Baumeister, 1988; Weinrich, 1987), recorrem ao negócio emergente denominado "dominatrix", para descobrir mulheres dominadoras (dominatrices) especializadas na satisfação das necessidades sexuais de homens submissos-receptivos, supostamente não-homossexuais (Scott, 1983). Quer sejam prostitutas ou não, estas mulheres dominadoras podem atar ou acorrentar os seus clientes de colarinho-branco, dar-lhes palmadas ou chicotadas, açoitá-los, dominá-los e humilhá-los. Muitas destas práticas são suficientes para satisfazer as necessidades dos seus clientes, que também podem masturbar-se durante a sessão de submissão sexual. Baumeister (1988) interpretou este desejo de desempenhar um papel submisso-receptor na sexual bondage como um sinal evidente de masoquismo, portanto, como um desejo de eliminar a liberdade de acção e a iniciativa, que, nalguns casos observados por mim, aponta no sentido da auto-destruição ou da auto-mutilação corporal (De Sousa, 2006). Assim, o indivíduo que pratica a submissão sexual é aliviado ou liberto da iniciativa, da escolha e da responsabilidade por actos sexuais que, de outro modo, poderiam gerar conflito interno. A submissão sexual constitui uma espécie de fuga ou de escape aos elevados níveis de consciência do self: a sua prática evita que o Homem-mulher tome a decisão e assuma a responsabilidade pelos actos praticados. Ao ser amarrado ou limitado, o self do Homem-mulher promove um baixo nível de auto-consciência imediata e concentra a sua atenção sobre o desamparo e a vulnerabilidade. Porém, os indivíduos que apreciam a sexual bondage raramente se envolvem em episódios de coerção sexual. Este último comportamento está intimamente relacionado com o narcisismo (Bushman et al., 2003; Baumeister et al., 2002). Os narcisistas acreditam cegamente nos mitos convencionais da violação, vêem as vítimas como culpadas (Reparem: o actual governo português responsabiliza os pobres pela sua pobreza!) e sentem menos empatia pelos outros (Reparem: ontem o Ministro das Finanças revelou a sua inumanidade cruel!). Além disso, são muito favoráveis aos filmes com cenas de descrição de violações e, na realidade, reagem muito negativamente à rejeição das mulheres. Por isso, como não aceitam facilmente que as parceiras recusem os seus avanços sexuais, podem recorrer à força para fazer sexo não-consentido. (Quem é que acredita na inocência de Dominique Strauss-Kahn?) Malamuth (1996) falou mesmo de uma síndrome de masculinidade hostil, caracterizada por um forte desejo de controlar as mulheres e por uma atitude insegura mas hostil em relação a elas. Esta síndrome combina-se com a preferência por sexo anónimo e a agressão sexual (De Sousa, 1998, 2006, 2007). Mas, quer sejam agressores sexuais ou submissos sexuais, homossexuais ou não-homossexuais, os economistas e afins estão a destruir a civilização ocidental com a sua racionalidade da marmita e da retenção solipsista das fezes: os servidores da economia doméstica do capital financeiro não têm estofo intelectual ou mesmo humano para assumir os destinos colectivos dos povos da Terra. As suas fantasias fatais de Homens-mulheres - rameiras e fiteiras - produziram o pior mundo de que há memória na história da humanidade: o predomínio do capital financeiro - o principal responsável pela liquidação da economia real - esteve sempre ligado às situações de crise europeia profunda. A nossa época indigente precisa de Homens-Políticos exigentes, tribais e "selvagens", que tenham coragem para reter os economistas e afins na despensa ou mesmo na retrete, o seu lugar de origem, donde nunca deviam ter saído. A salvação provisória da Humanidade e do Planeta que sustenta a Vida implica a ruptura radical com a visão da História-Acumulação: adiar esta revolução histórica - o maior salto qualitativo alguma vez dado pela Humanidade ao longo da sua história - é caminhar a passo acelerado para a catástrofe. Hoje a Grande Política define-se por oposição à racionalidade necrófila e destrutiva dos economistas neoliberais e do seu amo, o capital financeiro. A cultura dos Homens-mulheres - as rameiras-mentirosas do capital financeiro - é cultura das fezes e do lixo que o sistema produz continuamente. Aceitar esta "cultura" é aceitar a redução do homem à sua condição de animal doméstico, gerado e criado num imenso aviário supervisionado por um Estado capturado pelo capital financeiro. Depois deste longo desvio pelo universo decadente e patológico dos economistas, proponho a leitura dos dois poemas de António Botto, sobre os quais farei um comentário lateral.

Excurso II. «Acusam a obra de António Botto de cantar o amor masculino impudicamente, desassombradamente,sinceramente. Reparem: acusam António Botto de ser sincero; reparem melhor: acusam-no de ser artista. Escrevi: acusam António Botto de ser artista porque é sincero e, sendo sincero, canta o amor masculino. Evidentemente, que quero dizer: é o amor anormal que constitui o fundo estético (o estimulante estético) da sua personalidade. Contudo, a este fundo acrescem outros muitos atributos artísticos: dom verbal, acento lírico, facilidade imaginativa, exactidão intelectual, talento de sugerir, poder de criação cenográfica, sobriedade expressiva, etc. Estes, porém, são os atributos complementares. Sem eles não podia António Botto ser o admirável poeta que é; só com eles arriscar-se-ia a não passar dum poeta interessante. É a predisposição íntima para um certo desvio e a perturbação psicológica desse desvio resultante - que faz de António Botto um poeta original e superior». (João Gaspar Simões)

Os dois poemas de António Botto articulam-se pela ordem inversa àquela em que foram apresentados: o menino chamado António Botto cresceu a sonhar com uma boneca de trapos que não lhe deram na infância, e, quando já adulto, ele revê-se não numa mulher qualquer, mas na mulher que desejou ser quando olhava para a boneca da capelista: a prostituta capaz de satisfazer o desejo de todos os marinheiros, essas figuras caricaturais que noutros tempos encarnaram o máximo possível da masculinidade intumescida tão cobiçada pelos homens homossexuais. António Botto foi durante toda a sua vida um dandy gay que frequentava assiduamente os bairros boémios e as docas marítimas de Lisboa, em busca de marinheiros - com a barba por fazer - suficientemente masculinos, promíscuos e encharcados nas suas próprias "munições" contidas - mas prontas a disparar a qualquer instante - para satisfazer os seus desejos e fantasias de "mulher escondida". Parece que estou a descrever o desenvolvimento psico-sexual de um transsexual masculino. Os mecanismos biológicos que determinam o transsexualismo e a homossexualidade masculinas são diferentes, mas tanto os transsexuais como os homossexuais masculinos partilham alguns traços comuns. Um desses traços é a infância sexualmente atípica: as crianças que se tornam mais tarde heterossexuais tendem a viver infâncias sexualmente típicas, enquanto as crianças que mais tarde se tornam homossexuais tendem a viver infâncias sexualmente atípicas. Os homens homossexuais e os transsexuais masculinos viveram geralmente infâncias sexualmente atípicas. No caso dos rapazes, os traços infantis que indicam a sua orientação sexual quando adultos incluem comportamentos tais como não apreciar jogos rudes ou desportos de equipa, preferir a leitura, preferir a companhia de meninas,brincar com bonecas em vez de camiões e, sobretudo no caso dos rapazes mais efeminados, gostar de vestir roupas de menina ou de mulher. Os pais julgam que, comprando os brinquedos sexualmente adequados para os seus filhos, estão a zelar pela sua futura heterossexualidade, mas estão enganados: as crianças de ambos os sexos revelam precocemente uma preferência por determinados brinquedos, cada um dos sexos escolhendo os seus próprios brinquedos. É, por isso, que a atipicidade desta preferência - moldada pelas interacções pré-natais entre os esteróides gonadais e o cérebro - pode revelar antecipadamente a futura atracção sexual por pessoas do mesmo sexo: meninos que preferem brincar com bonecas e meninas que preferem brincar com camiões são sexualmente atípicos e, geralmente, serão homossexuais na vida adulta. Os pais nada podem fazer para modificar a futura orientação sexual dos filhos: privá-los dos brinquedos preferidos, impondo-lhes os brinquedos sexualmente adequados, não irá alterar a sua futura orientação sexual; pelo contrário, poderá dificultar seriamente a sua expressão sexual saudável. A homossexualidade masculina é, como dizia António Botto, um "fado", mas o fado gay e o fado transsexual são distintos, no sentido dos homens homossexuais, incluindo mesmo os mais efeminados, não expressarem disforia de género, como sucede sempre no caso dos transsexuais. A expressão - uma mente feminina presa num corpo masculino - usada para definir o transsexual masculino não se aplica aos homens homossexuais: o transsexual que exiba elevado grau de atipicidade sexual é, desde a infância mais remota, uma figura sexualmente discordante que nutre uma aversão pelo seu próprio pénis e, especialmente, pelo seu uso em actividades sexuais. Os homens homossexuais são seres que curtem a sua própria masculinidade e a masculinidade dos outros: o sentimento que acompanha a sua identidade de género - o sentimento da sua masculinidade - é igual ao dos homens heterossexuais: o tamanho do núcleo cerebral responsável por este sentimento não varia entre os homens heterossexuais e os homens homossexuais. É certo que os homens homossexuais mais efeminados tendem a não usar o seu pénis nas actividades sexuais, mas este comportamento - que indica quanto muito a sua preferência pelo papel receptor - não é suficientemente poderoso para os levar a procurar tratamentos hormonais e cirurgia de reconstrução para alterar o seu corpo tornando-o tão feminino quanto possível, como fazem os transsexuais masculinos. António Botto que, durante a sua infância, sonhou com uma boneca de trapos, desejando vir a ser uma bela mulher desejada pelos homens, não conseguiu escapar ao seu próprio destino neuro-hormonal: ele não se tornou mulher, mas também não conseguiu ser heterossexual, apesar de ter casado com uma mulher. António Botto não se auto-amputou e é provável que nunca tenha pensado nisso: o que quer dizer que a sua luta simulada e ritualizada foi contra a sua própria homossexualidade, que procurou "iludir" ou "parodiar" casando com uma mulher. O facto de ter casado com Carminda Silva Rodrigues leva-me a supor que, quando interagia sexualmente com outros homens, desempenhava preferencialmente o papel receptor: um menino que cresce a sonhar com uma boneca de trapos e que deseja vir a ser uma boneca grande quando adulto tende a torna-se mais tarde homossexual passivo. Os homens gay pensam precipitadamente que todos os homens bissexuais são activos, mas as suas próprias interacções sexuais com esses homens casados heterossexualmente desmentem esta crença. Como é possível ser activo com a mulher e passivo com outros homens? A diversidade sexual desafia a imaginação científica. Mas o desafio que me preocupa aqui é o desafio lançado pela poesia gay de António Botto, em especial pelo seu belo poema "O Fado" que tenho estado a comentar de fora e à distância do olhar científico. A riqueza interior desta poesia desmente a crença heterosexista, segundo a qual os homens homossexuais desconhecem a linguagem afectiva e emocional do amor, como se fossem amputados afectivos. Convém lembrar aos membros da seita fanática heterosexista que os homens homossexuais e as lésbicas se apaixonam perdidamente. Muitos homens homossexuais formam casais, muitos separam-se e muitos voltam a procurar outro companheiro. Os homens homossexuais e as lésbicas vivem as mesmas sensações e emoções em termos de amor romântico que são descritas pelos indivíduos heterossexuais, e lutam exactamente com os mesmos problemas criados por esses laços românticos. Annie Proulx imortalizou - ainda recentemente - O Segredo de Brokeback Mountain: o amor-paixão entre Jack Twist e Ennis, mostrando toda a lógica emocional subjacente aos laços românticos que unem dois homens rudes. Mas as figuras que o cinema de Hollywood imortalizou como encarnações vivas da masculinidade intumescida, os cowboys, também foram os protagonistas das maiores paixões homossexuais: os homens de fronteira viveram intensas aventuras homossexuais que não podem ser justificadas pelo facto de viverem em acampamentos distantes das pequenas cidades a um ou dois dias de viagem, onde não havia mulheres. Os poemas desse período da história dos USA mostram como era comum dois "homens rudes" formar um casal diferenciado e tornarem-se "companheiros" para toda a vida. Quanto mais rude for a masculinidade de um homem, maior é a sua propensão para viver intensamente paixões homossexuais. Obrigados a viver no armário durante séculos de perseguição, os homens homossexuais sempre encontraram refúgio e consolo nos oásis dos homens rudes: todo o imaginário gay envolve homens rudes, tais como os marinheiros, os vaqueiros, os cowboys, os mineiros, os pescadores, os madeireiros, os prisioneiros, os operários, os militares, os infiéis, os boémios, os peões da rua, os estrangeiros exóticos, os emigrantes, os camionistas, enfim os homens selvagens. (Em Portugal, os homens mais "felizes" são os camionistas, que, em cada paragem, encontram sempre algum gay para lhes sugar o membro viril.) A homossexualidade é tão velha quanto a humanidade: o amor entre homens está inscrito no genoma humano. As páginas mais belas da poesia e da literatura ocidentais foram escritas por homens homossexuais: os leitores heterossexuais tendem a omitir esse facto ou, pelo menos, alegam algum tipo de justificação para continuar a rever as emoções do seu amor lá onde elas exprimiam os estados de paixão homossexual. Mas o facto de ser possível rever o amor heterossexual no amor homossexual indica que as emoções que lhes são subjacentes se desenvolveram há muito tempo. Os homens homossexuais são profundamente românticos, mas os laços românticos que estabelecem uns com os outros tendem a dissolver-se rapidamente, até porque a sociedade não lhes fornece quadros positivos de referência. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro que também desejaram ser mulher não ousaram cantar o amor entre homens por temer a perseguição homofóbica: António Botto não só assumiu publicamente a sua homossexualidade, como também ousou cantar o amor gay, tal como o fizeram Walt Whitman e Oscar Wilde. A coragem de ser tem o seu preço, sobretudo neste ermo inóspito que é Portugal: Oscar Wilde foi preso, sendo acusado de pedofilia, e António Botto foi despedido da função pública, procurando refúgio no Brasil, primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, onde morreu na miséria e na desgraça: «Hoje não posso ouvir-te; adeus, não sei/ Que transição foi esta que me deu -/ Pra não poder sequer uma palavra/ Ouvir da tua boca! A chama arrefeceu./ Não sei se passa, este sentir de agora./ O teu amor/ Despiu-se daquela fantasia luminosa/ Que me lançou no árido alarido/ De uma febre brutal, tumultuosa.../ Vai; quero ficar na realidade /Dos que provaram do amor o amargo travo/ E lutam na miséria e na descrença/ De não saber se há mais fatalidade.../ Deixei de olhar-te desejando a posse/ E o latejar da tua carne quente./ - Deixei de achar sabor ao vício fundo/ De articular palavras no delírio/ De te vencer e amar perdidamente» (António Botto, Canção). Quem é que não deseja amar perdidamente, mesmo sabendo que «a vida não deve Ser vivida com paixão» (António Botto)? Quem é que não gostaria de passar uma noite agitada com Querelle de Brest para ser esfaqueado ao amanhecer? Jean Genet, outra alma vagabunda, descobriu uma estranha relação entre assassínio, marinheiros e homossexualidade masculina, que aqui vou retomar num outro sentido: «A ideia de assassínio evoca muitas vezes a ideia de mar, de marinheiros. Mar e marinheiros, não se apresentam então com a nitidez de uma imagem, é antes o assassínio que faz a emoção rebentar em nós, por vagas. Se os portos são teatro repetido de crimes, a explicação é fácil, mas numerosas são as crónicas em que se revela que o assassino era um navegador, falso ou verdadeiro, e, sendo falso, o crime tem ligações mais estreitas com o mar. O homem que veste a farda de marujo não obedece somente à prudência. O disfarce provém do cerimonial que preside sempre à execução dos crimes premeditados. (...) À ideia de mar e assassínio junta-se naturalmente a ideia de amor ou de voluptuosidade - e, melhor, de amor contra natura. É indubitável que os marinheiros transportados pelo desejo e pela necessidade de assassínio pertencem, antes de tudo, à marinha mercante» (Jean Genet). A vida destas almas vagabundas que são os homens homossexuais na sua peregrinação na Terra é um suicídio premeditadamente impensado. António Botto e Fernando Pessoa, bem como Jean Genet, partilham a mesma condição ou o mesmo sonho de serem "embarcados", aliás um traço específico da condição humana que eles viveram enquanto homens homossexuais: «Desde pequeno/ - O meu Sonho/ Era chegar a ser homem /E ser marujo! - embarcar...» (António Botto, O Fado). O ser-embarcado deriva do ser-sem-abrigo que define ontologicamente a humanidade do Homem: o ser que embarca para se descobrir a si próprio e ao mundo que lhe nega um abrigo permanente e definitivo parte para a aventura, sabendo que nesse percurso acidentado está em-risco. O ser-em-risco cristaliza-se na condição homossexual. Lançado num mundo hostil que lhe impõe a conspiração psicológica do silêncio, o homem homossexual está constantemente em risco. Tendo o risco como fado, o homem homossexual - se conseguir chegar à velhice - olha para trás, vendo que a vida o susteve no seu "declive": «Sentado à minha varanda, /Contemplo a noite que desce/ E a rosa/ Que puseste no meu peito./ E, largo tempo,/ Ficando silencioso,/ Oiço uma voz que me fala.../ - Que voz é esta,/ Tão incisiva, tão pura,/ Que me pede que acredite/ E tenha fé no destino?/ Inclino a fronte, - medito/ No altíssimo desejo/ Que anda comigo/ E sobe a cada momento!/ Nas ramas do arvoredo,/ O vento,/ Passando, diz qualquer coisa./ A sombra cai,/ De repente, volumosa./ Mal distingo as minhas mãos./ E ao pé de mim/ Tomba o corpo/ Fino e frágil dessa rosa...» (António Botto, Canção sobre um eterno motivo). A actual prática de sexo anal sem protecção - barebacking - é suficiente para mostrar que, depois da libertação, os homens homossexuais continuam a arriscar constantemente a sua vida para satisfazer os seus interesses sexuais. Muito antes de Jean Genet, Mário de Sá-Carneiro já tinha identificado o homem homossexual como uma espécie de "criminoso", no sentido de violar as normas de género impostas pela sociedade heterosexista que o obriga a viver na clandestinidade ou à margem do espaço central da visibilidade pública, e, sobretudo, no sentido de negar essa parte da sua vida íntima para agir em conformidade com as normas de género que asfixiam a sua expressão sexual mais própria e genuína. Mas o que ontem foi um grito de revolta - selfdisclousure - é hoje um acto criminoso: contagiar premeditamente outros com o vírus da Sida ou mesmo com o vírus da Hepatite B é assassiná-los. Os adeptos da prática do sexo anal sem protecção fazem amor com os outros para os matar e, quando isso ocorre com o consentimento de todos os envolvidos, estamos diante de uma espécie de suicídio colectivo. Depois de se terem libertado da clausura, os homens homossexuais tornaram-se os maiores inimigos da homossexualidade e de si próprios: a libertação que os entregou à sua própria escravidão sexual está a liquidá-los. As orgias gay são cerimónias que respondem "SIM" à questão que tinha sido colocada anteriormente: os homens gay - libertos mas escravos da sua própria promiscuidade sexual - aceitam fazer "sexo" com Querelle de Brest para no final serem "esfaqueados" por ele. Ora, estes homens homossexuais que facilitam a propagação das doenças sexualmente transmissíveis já não fazem poesia: o seu universo mental encolheu ou invaginou-se de tal modo que, no seu lugar, vemos apenas um "cu largo", para usar a expressão consagrada por Aristófanes. Hoje, os homens homossexuais são "cus largos" - fendas abertas pelo cio permanente e insaciável - que se exibem sem vergonha em todos os sítios e lugares, incluindo os oásis eróticos virtuais que são os sites Web-cam. Para dar vivacidade a este pensamento que visa confrontar a concepção autónoma com a concepção heterónoma da homossexualidade, proponho um exercício de imaginação: imaginem Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e António Botto com os respectivos rabos voltados para cima, numa postura de submissão e de apaziguamento, algures numa doca marítima de Lisboa (ou no Aeroporto da Portela?), aguardando pela chegada dos viris marinheiros (ou dos burocratas da troika?): a "mulher" que havia dentro de cada um deles desejava ser possuída à bruta por todos os marinheiros, mesmo correndo o risco de ser espancada ou assassinada por um deles. No Porto, os homens homossexuais frequentavam, pelo menos na primeira metade do século XX, as docas de Matosinhos, em busca de pescadores, mas, por vezes, eram surpreendidos pelas mulheres, e apanhavam valentes tareias. (É muito provável que o marido de Florbela Espanca, Mário Pereira Lage, frequentasse este circuito de engate gay!) Além disso, tanto quanto sei, algumas vezes pagavam pelos serviços sexuais prestados pelos pescadores, os antepassados recentes dos actuais gigolos do Sul de Portugal: o pagamento evitava a agressão das mulheres, tal como ainda acontecia até bem recentemente na Costa da Caparica e noutras zonas piscatórias. A imagem de "ser possuído" por uma masculinidade intumescida alheia (isto é, heterossexual) impregna quase toda a poesia gay latina, como se todo o homem homossexual fosse um ser passivo que precisa de recorrer aos serviços sexuais de homens heterossexuais para se realizar sexualmente. Esta dependência sexual dos homens homossexuais em relação aos homens heterossexuais foi quebrada - no plano artístico - tanto por Whitman como por Genet, para já não falar da fotografia de Robert Mapplethorpe, cuja contrapartida heterossexual é a fotografia de Helmut Newton: eles não estigmatizaram a homossexualidade passiva; pelo contrário, devolveram-lhe um toque de masculinidade, sujeitando-a às normas de autonomia sexual da comunidade gay. Homens latinos fermentados nos meios católicos homofóbicos nunca poderiam dar início à tarefa plástica de devolver a masculinidade de couro à homossexualidade: a sua inclinação mais genuína é, como se observa nos cortejos do Carnaval de Torres Vedras e de Ovar, para parodiar a "mulher", mais especificamente a prostituta. A imagem interiorizada da Virgem Maria leva-os a preferir a sua eterna adversária: a mulher da má-vida - a Nossa Senhora das Flores de Genet! - que se entrega a todos os homens a troco de determinadas quantias de dinheiro. Ser homem é, para os homens latinos, introduzir o seu membro viril dentro de qualquer buraco, a vulva da mulher ou o ânus/boca de outro homem, constituindo esta última introdução-acção a apoteose máxima da sua masculinidade. O carácter omnívoro da sexualidade masculina latina agrada, como é evidente, aos homossexuais passivos: os homens heterossexuais satisfazem mais o seu desejo-feitiço-de-mulher-anal do que os homens homossexuais activos que condenam a sua passividade extrema. Com a libertação gay, a homossexualidade passiva converteu-se em problema sério de saúde: os homossexuais passivos não só são excluídos da comunidade gay, como também não são bem-vindos nos meios virtuais ou reais onde os homens de todas as orientações sexuais e tendências parafílicas partilham e curtem a sua própria masculinidade intumescida. Os homens são dotados da capacidade de exercer um poder hipnótico uns sobre os outros e essa capacidade muito masculina revela toda a sua eficácia em ambientes fechados ou isolados. Num momento de solidão íntima, longe da agitação da vida social e do assédio feminino, qualquer homem é capaz de descobrir o seu desejo proibido, despertado e lançado cá para fora pelo outro homem com quem está a privar: estes contactos homossexuais ocorrem com muita frequência, mas são geralmente silenciados. O universo poético de Jean Genet revela a fluidez das fronteiras entre orientações sexuais masculinas: o poder hipnótico é um poder de sedução permanente que conduz à transgressão dos tabus sexuais. As relações sociais trazem, pois, a marca natural da homossexualidade, não da homossexualidade efectiva, mas da homossexualidade ritualizada, como demonstrou Luc De Heusch a partir da obra de Lévi-Strauss: os homens de todos os tempos e de todas as culturas usaram as mulheres para impressionarem os outros homens e para chamar a sua atenção. Quando um homem beija a sua mulher na rua, olhando para outro homem, o seu desejo de reconhecimento dirige-se a esse outro homem e não à mulher que usa para impressionar o outro. A fragilidade biológica do homem (sexo masculino) só pode ser compensada por uma sociedade de homens, que, nas sociedades primitivas, tomou a forma institucional da Casa dos Homens, cujo acesso era vedado às mulheres: privar o homem da companhia de outros homens, como acontece hoje em dia no mundo ocidental, é lançá-lo no abismo, isto é, no ocaso catastrófico da masculinidade que inventou a cultura e a civilização. Os homens (sexo masculino) são seres que, por natureza, procuram o reconhecimento entre os seus pares do mesmo sexo e não entre as mulheres: o homem que procura o seu reconhecimento entre as mulheres é, por definição, um "paneleiro". (E o homem-mulherengo é o mais "paneleiro" de todos os homens.) O homem português que encarna tão perfeitamente esta figura masculina decadente deve a sua impotência de criar a essa doença fatal que o priva da sua própria masculinidade criadora. O eterno presente de Portugal deve ser visto como o destino fatal da civilização ocidental, se nada for feito para evitar o seu ocaso. A portugalização do ocidente é a maior ameaça que paira no ar: o domínio das mulheres e das suas cópias masculinas, os homens-paneleiros, só pode ocorrer numa civilização que já entrou em decadência acelerada, sendo vulnerável às invasões por parte de culturas mais jovens dominadas por homens. A masculinidade latina é, portanto, uma masculinidade histérica ou, como lhe chamaram Teixeira de Pascoaes e Cunha Leão, emotiva: o carácter histérico ou emotivo dos homens portugueses é sobejamente conhecido e, por isso, o espírito briguento e ordinário de António Botto não deve causar espanto. A ordinarice materializada na palavra oral e na expressão corporal é um traço típico dos transsexuais masculinos, sendo particularmente evidente nos transsexuais latinos. A feminilidade de António Botto não lhe permitiu escapar a esta ordinarice que os homens homossexuais efeminados tendem a partilhar com os transsexuais masculinos. Geralmente, os homens homossexuais efeminados identificam-se com a definição social do maricas, vivendo a sua homossexualidade como se fossem mulheres frágeis e receptivas às investidas sexuais dos machos. E, como a sua presença era e é relativamente bem tolerada em certos nichos de homens rudes, eles nunca tomaram a iniciativa de elaborar um pensamento próprio para orientar a luta pela libertação gay: António Botto assumiu publicamente a sua homossexualidade sem a ter libertado do esquema tradicional do sexo. O seu esquema de acesso aos machos foi sempre o velho esquema usado pelas mulheres, sobretudo pelas mulheres do bordel: António Botto estava de tal modo satisfeito com o papel-função que a sociedade heterosexista lhe atribuía que nunca ousou pensar, afirmando-a, a masculinidade rude dos homens homossexuais, tal como fizeram Whitman, Genet e Mapplethorpe. Pelo uso que fazem do seu corpo, tanto António Variações como Ney Matogrosso - talvez mais o segundo do que o primeiro! - enquadram-se neste tipo fatal de homossexualidade que interiorizou o opressor. Ainda há nos nossos dias homens homossexuais portugueses que não conseguem incluir-se na categoria de Homem: os "homens verdadeiros" são os heterossexuais; eles são caricaturas do sexo feminino - ou como dizem: "bichas, bichonas, trichas" - que coexistem com outras figuras sexuais marginais em determinados nichos periféricos da sociedade. Nos sites Web-cam, podemos ver os homossexuais ultra-passivos reagir à exibição de um falo portentoso com estas palavras: "Quero engravidar de ti" ou "Quero ter filhos teus". O sentimento de masculinidade destes homossexuais passivos está cronicamente em depressão: os homens verdadeiros são "aqueles que penetram"; o resto - mulheres e homossexuais masculinos - são "coisas" que, tal como os cães de Pavlov que começavam a salivar quando ouviam o toque de uma campainha, salivam abundantemente ante as exibições fálicas, antecipando uma cena de violação. Esta auto-percepção era precisamente a de António Botto que frequentava o submundo da prostituição feminina, as docas marítimas e os bairros boémios de Lisboa. António Botto quis ser um "homossexual passivo" no mundo dos outros, sem suspeitar que era preciso alterar radicalmente esse mundo para poder ser um homossexual visível. Depois de ter sido despedido da função pública, exilou-se no Brasil: o seu sonho de vida fracassou (não o seu sonho poético), não tanto por causa da homofobia católica reinante, mas sobretudo por causa da sua própria homofobia interiorizada. António Botto não ousou ser um Homem (masculino) gay. O fracasso - ou melhor, o naufrágio - de uma vida consumida no perdulário do instante - como foi a de António Botto - é dito neste poema de Mário de Sá-Carneiro: «Atapetemos a vida/ Contra nós e contra o mundo./ - Desçamos panos de fundo/ A cada hora vivida!/ desfiles, danças - embora/ Mal sejam uma ilusão.../ - Scenários de mutação/ Pela minha vida fora!/ Quero ser Eu plenamente:/ Eu, o possesso do Pasmo./ - Todo o meu entusiasmo,/ Ah, que seja o meu Oriente!/ O grande doido, o varrido,/ O perdulário do Instante -/ O amante sem amante,/ Ora amado, ora traído.../ Lançar as barcas ao mar -/ De névoa, em rumo de incerto.../ Pra mim o longe é mais perto/ Do que o presente lugar./ ...E as minhas unhas polidas -/ Ideia de olhos pintados.../ Meus sentidos maquilados/ A tintas desconhecidas.../ Mistério duma incerteza/ Que nunca se há de fixar -/ Sonhador em frente ao mar/ Duma olvidada riqueza.../ - Num programa de teatro/ Suceda-se a minha vida -/ Escada de Oiro descida/ Aos pinotes, quatro a quatro!...» (Canção do Declínio).

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Anúncio: O Resgate de António Botto

António Botto
Estava com a ideia de concluir a navegação desta onda estética do mês de Agosto com o esboço de uma filosofia da música, em diálogo com os ensaios presencistas de Fernando Lopes Graça. Porém, como me ofereceram as primeiras edições dos livros de António Botto, resolvi folheá-los e, de repente, sou confrontado com um grande poeta que foi maldosamente esquecido por estes zombies que são os portugueses. Quando estava a tomar café, agora à noite, levei comigo As Canções de António Botto e resolvi resgatá-lo, trazendo-o de novo à nossa presença. Vou fazer com António Botto aquilo que já tinha feito com Guerra Junqueiro: libertá-lo dessa prisão que é a História da Literatura Portuguesa e das leituras que dele fizeram Fernando Pessoa e José Régio. Não aprecio o fingimento de homens que encobriram a sua verdadeira orientação sexual, fazendo da dos outros uma espécie de esteticismo sensual. Os dois textos que dediquei à poesia lírica de António Botto respeitaram o "poetizado", mas a tarefa de resgate exige um confronto com a própria poesia e com aquilo que nela é dito. A estética da expressão tal como foi praticada pelos presencistas traz a marca da bisbilhotice portuguesa: a vida de António Botto foi devassada e o resultado dessa devassa perversa foi o seu exílio no Brasil. Não me comprometo com uma data: pensar a poesia e elucidá-la exige tempo e, sobretudo, um trabalho onírico que escapa ao meu controle. Geralmente, não perco tempo a pensar. Quando o pensamento estiver preparado, ele convoca-me e as minhas mãos dão-lhe expressão. Um dia destes acordo com a elucidação da poesia de António Botto pronta para passar à escrita. Até lá deixo aqui alguns poemas de António Botto:


Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.


Guarda -
Para outro momento,
Teu viril corpo trigueiro.


O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...


A névoa da noite cai.
Já mal distingo a côr fulva
Dos teus cabelos, - És lindo!


A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!


Dá-me o teu braço: - não ponhas
Êsse desmaio na voz.


Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós? (Adolescente, 1)


Busco a beleza na forma;
E jamais
Na beleza da intenção
A beleza que perdura.


Só porque o bronze é de boa qualidade
Não se deve
Consagrar uma escultura. (Piquenas Esculturas, 1)


Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!


O sol encharca-o de luz,
E o mar de rojo tem rasgos
De luxúria provocante.


Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto... A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso...


Anda nu - saltando e rindo,
E sôbre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; - e os seus olhos,
Amedrontados, recusam
Fixar os meus... - Entristeço...


Mas nesse olhar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço. (Ciúme, 1)


Na última carta
Chamavas-me decadente;
E eu achei graça,
Fêz-me rir
A tua carta.


Quiseste insultar-me,
E afinal,
Conseguiste ser gentil.


Os homens
- Ou os povos,
Saturados
De tudo compreenderem,
Decaem
Quando preferem
Ao gôsto austero de criar,
O estéril
E fino deleite
De contemplar o que está feito.
- Não te distraias, não fujas...,
E o prazer
É uma filosofia
Bem profunda,
Mesmo até - guarda êsse riso!
A mais firme e encantadora.


Agora, - aproxima-te de mim;
Quero beijar-te, sentir
A tua carne trigueira.


Recusas-te? - Vou-me embora!


É a única maneira... (Dandysmo, 17)


Hoje - sou eu que te peço
Que me dês uma notícia,
Que me digas qualquer coisa.


Fala-me de ti;
Perdoa aquêle rir desdenhoso
Quando quiseste beijar-me,
- Tu bem vês o meu amor!
Sou um doido; um caprichoso!


E se êsse sorriso
Foi o único motivo
Da tua separação
- Francamente!, não encontro
Que tenhas tanta razão.


Mal a tua mão ergueste,
Serena, tôda estendida,
E sem mais nada
Marcaste
O frio da despedida,
A minha alma,
Anda enfêrma,
Tão febril, sobressaltada...,
- E o meu sorriso caiu
Como bandeira molhada. (Dandysmo, 10)


Basta. Não digas mais nada.


Disseste já o bastante
Para te ver claramente
À luz da minha ansiedade!...


Desfez-se o mal-entendido
Em que eu andei construindo
Castelos imaginários!


Bem haja a tua verdade!


Só lamento que ela venha
Depois de ter envolvido
Nas malhas fatais do amor
A minha tranqüilidade,
A minha vida, - o meu nome,
Tudo quanto me fêz grande
À margem do anonimato...


Contigo - 
Desafiei a má língua
Dessas várias trabuquetas
Onde se enterram os brilhos
Das grandes reputações
No lixo miserável das sargetas...


Mas, enfim!: êsse bafio,
Há-de perder-se ou passar...
E eu ficarei como dantes:
- Canção alada e nocturna
Dos párias e dos amantes!


Aumentar mais o meu drama
Nas palavras que eu dissesse
E que eu sentisse -
Não construía mais nada...


Isto, afinal, para mim,
Foi um alto ensinamento;
Embora seja, também,
Uma espécie de sorriso
Com laivos de sofrimento. (Toda a Vida, 6)


J Francisco Saraiva de Sousa