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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Anotações sobre Humor

Os filósofos têm elaborado diversas teorias sobre o fenómeno do humor, das quais se destacam as teorias de Freud, Bergson e Plessner. Como já analisei a teoria de Plessner, vou concentrar-me nas interpretações de Freud e de Bergson. Freud e Bergson interpretam o humor como a apreensão de uma discrepância fundamental entre as exigências do superego e da libido, no caso de Freud, e entre o organismo vivo e o mundo mecânico, no caso de Bergson. Aquilo que me interessa nestas duas teorias do humor é o seu aspecto comum: ambas encaram o cómico como uma discrepância ou incongruência: «Uma situação é invariavelmente cómica quando pertence ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos inteiramente independentes e é capaz de ser interpretada em dois sentidos completamente diferentes ao mesmo tempo» (Bergson). Dado ser um conceito nuclear da antropologia filosófica, interpreto o humor como fenómeno especificamente humano, o que me permite enunciar diversas novas teses filosóficas que restringem a qualidade cómica às situações humanas. Eis as teses que proponho:

Tese 1: O Homem é o único ser capaz de se rir - e chorar! - de si mesmo, dos outros e de certas situações. (Daqui decorre que a qualidade cómica se refere sempre a situações humanas: os animais só são cómicos quando lhes atribuímos características humanas.)

Tese 2: A discrepância constitui o ingrediente fundamental de todas as piadas. Existem diversos tipos de discrepância - as incongruências propostas por Freud e Bergson - mas todos eles nos reconduzem à discrepância fundamental entre o homem e o cosmos. É esta discrepância antropocosmológica fundamental que faz do cómico um fenómeno especificamente humano. Daqui se segue nova tese.

Tese 3: O cómico reflecte o aprisionamento do espírito humano no mundo, sobretudo no mundo abandonado pelos deuses: «A alma é um estranho na terra» (Georg Trakl). Esta tese já é conhecida desde a Antiguidade Clássica. A concepção de ironia como a mais alta liberdade possível do homem num mundo sem Deus - exposta pelo Jovem-Lukács - relaciona-se com esta tese.

Tese 4: A distinção entre tragédia e comédia esquece que ambas são comentários sobre a finitude radical do homem: a noção existencial de homem como náufrago ou ser-sem-abrigo coaduna-se com esta tese filosófica.

Tese 5: Ao aceitarmos a última tese, somos forçados a encarar o cómico como uma dimensão objectiva da realidade humana: o humor mais não é do que o reconhecimento da cómica discrepância da condição humana.

Estas teses são suficientes para elaborar uma nova teoria filosófica do humor. Poderia acrescentar outras teses, talvez para mostrar que é muito difícil relativizar o humor, mas prefiro concluir enunciando uma tese que clarifica a teoria que tenho em mente.

Tese 6: A negação da metafísica conduziu ao triunfo da trivialidade: o humor que se faz actualmente perdeu a graça. Fechado em si mesmo e neste mundo intra-empírico, o homem tornou-se incapaz de encontrar o seu próprio caminho de fuga. O mundo trivial em que vivemos deixou de ser engraçado. A perda de graça é proporcional à invasão do mundo pelo homem: o cansaço da humanidade de Nietzsche pode ser compreendido à luz desta nova perspectiva. 

Anexo. Um colega brasileiro criticou o meu recurso a uma teoria da natureza humana, acusando-me de ser liberal em vez de marxista. Os rótulos não me incomodam: aqui direi apenas que o conceito de natureza humana me permite compreender o homem do passado mais distante ou do presente mais próximo. Afinal, o homem de todos os tempos ri e chora. Ora, este facto fundamental mostra que há uma natureza humana fundamental que nos une a todos e que nos une aos nossos antepassados. Além disso, uma tal teoria veda-me o caminho dos disparates políticos. A Filosofia é um empreendimento teórico sério.

J Francisco Saraiva de Sousa 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Igor Sousa Paintings: As Artes entre as Letras


Notícia no jornal do Porto "A Arte entre as Letras", edição publicada a 16 de Janeiro de 2013, Exposição Colectivarte "The United State of International Artists", patente até ao dia 2 de Fevereiro de 2013, na Olga Santos Galeria.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Igor Sousa Paintings: Exposição Internacional de Pintura


INAUGURAÇÃO da EXPOSIÇÃO COLECTIVARTE "The International Sate of Artists", na Olga Santos Galeria, Porto, dia 11 de Janeiro de 2013 às 21:30.

Inauguração da Exposição de Pintura.


Igor Sousa: Dunas, Óleo sobre tela, 2010
Igor Sousa: Porto Fashion, Óleo sobre tela, 2010 




terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Igor Sousa Paintings

Preparativos para a Exposição Colectiva de Natal 2012
Igor Sousa: Fuga da Cidade, 2012, óleo s/ tela
Igor Sousa: Fuga da Cidade, 2012, óleo s/ tela
Igor Sousa: Narciso, 2012, óleo s/ tela
Exposição Colectiva de Natal 2012 na Galeria Olga Santos, Porto

Estes dois quadros - Fuga da Cidade e Narciso (Óleo sobre tela) - foram pintados para a Exposição Colectiva de Natal 2012, a qual pode ser vista na Galeria Olga Santos situada na Praça da República, PORTO. O meu nome artístico é Igor Sousa. 

sábado, 2 de junho de 2012

10 melhores postagens do mês de Maio


Porto: Ponte D Luís I, e as bases da antiga Ponte Pênsil

Veja aqui as 10 melhores postagens do mês de Maio de 2012, a selecção mensal do blogue O Fazedor: Wanderson Lima escolheu o meu estudo Etologia: Agressão e Natureza Humana. Recomendo a leitura dos 10 textos escolhidos pelo meu amigo Wanderson Lima. E já agora aproveito a oportunidade para reconduzir o leitor para um texto brilhante de Wanderson Lima: A Virada Cultural e a Crise dos Estudos Literários.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 8 de maio de 2012

As Fatalidades de Agustina Bessa Luís

Agustina Bessa Luís: Escritora Portuense
«A extraordinária presença de António Inácio, a graça, que era nele uma espécie de investimento da ilusão, tornaram José Matildes no que ele era realmente: um homem só em busca de integração no grupo social. Subitamente produziu-se nele o curto-circuito estratégico, e foi buscar ao imaginário da economia política e da ciência a linguagem; e tecnocrata apareceu muito de um materialismo próprio em que a máquina social se move sem qualquer intervenção da ideologia moral, religiosa ou filosófica. O seu casamento com Rosamaria deu-se nesse tempo, em parte porque ela era o travesti do seu primo António Inácio, em parte porque toda a decisão de alcance económico começa por uma tomada de posição ao nível da vida privada. Amava Rosamaria tanto mais seriamente quanto ela registava o seu domínio de classe, isto é, supremacia da concepção masculina, visão técnica da procriação». (Agustina Bessa Luís)

Um confronto entre Mrs. Dalloway de Virginia Woolf e Os Meninos de Ouro de Agustina Bessa Luís revela a existência de um abismo entre as duas escritoras: Agustina Bessa Luís nunca perde a autoridade, isto é, a omnisciência, em relação às personagens dos seus romances, donde resulta que, na sua obra, a realidade social não é representada através dos pensamentos, impressões e outras experiências imediatas das diversas personagens, como sucede nos romances de Virginia Woolf, mas sim através da omnisciência e da concepção superior da autora. A epistemologia romanceada de Agustina Bessa Luís é profundamente social. Cada personagem tem a sua própria visão do mundo, mas o processo de representação da realidade social não resulta da justaposição das diversas visões do mundo das personagens. Não há, portanto, uma representação pluripessoal da realidade nos romances da escritora portuense: a autora impõe-lhes uma perspectiva superior que permite ao leitor compreender a realidade em que se movem as suas personagens. O realismo de Agustina Bessa Luís tem mais afinidades como a teoria marxista da sociedade do que com o realismo da filosofia de Cambridge: o solipsismo metodológico de Bloomsbury é algo estranho ao universo literário e filosófico de Agustina Bessa Luís. Os seus mundos literários não são construções de um mundo comum - o mundo público de Russell - a partir de perspectivas diferentes da realidade ou mesmo de mundos privados. Virginia Woolf enfrentou um mundo em transformação violenta que tanto produzia tentativas de interpretação sintética e objectiva como as derrubava rapidamente a um ritmo alucinante. Seria demasiado fácil explicar as diferenças entre as duas escritoras alegando os diversos atrasos estruturais de Portugal, aliás evidenciados pela contemporaneidade da escritora portuense. Mas esta não é a única explicação possível. Apesar de ter nascido fatalmente em Portugal, o ermo inóspito da Europa, a terra dos loucos, Agustina Bessa Luís não perdeu o contacto com o mundo exterior, o mundo desenvolvido que sofria essas transformações sociais profundas que demoravam a chegar a Portugal. O atraso estrutural de Portugal e a pobreza mental dos seus habitantes reforçaram a omnisciência de Agustina Bessa Luís, cuja "filosofia" rejeita a construção russelliana de um universo leibniziano hipotético: a realidade social não é, para Agustina Bessa Luís, um somatório de perspectivas das mónadas de Leibniz. Agustina Bessa Luís tem uma concepção sintética e objectiva da realidade social, que ousa articular politicamente com a perspectiva da salvação: «O que significa a salvação senão aquele ponto em que os homens desistem de oprimir outros homens, e se retiram com a sua limitada perfeição?» A escritora portuense detesta o carácter narcisista da sociedade portuguesa: a sua "crónica social" tritura as personalidades públicas portuguesas e a montanha de có-có que produzem desalmadamente. Os meninos de ouro portugueses são feitos de matéria fecal: o seu narcisismo traduz-se no abuso de poder e na síndrome de hostilidade contra os outros, sobretudo contra as mulheres. Agustina Bessa Luís descobriu a síndrome masculina de hostilidade associada ao narcisismo muito tempo antes dela ter sido definida pela psiquiatria. Mais: ela descobriu que os homens portugueses - feitos de matéria fecal - não prestam: a tecnocracia é pura violência. A matéria fecal diz-se de muitas maneiras. Ora, se os homens portugueses são feitos de matéria fecal, a sua diversidade psicológica que exprime a diversidade de matéria fecal tem como princípio denominador comum o travestismo: os homens portugueses feitos de matéria fecal são travestis que partilham uma mesma concepção do mundo, a "visão técnica da procriação". (Natália Correia dizia que os açorianos eram "mariquitas". Uma vez disse-lhe que, no fundo, os homens portugueses eram "mariquitas" e ela concordou, acrescentando que também as mulheres portuguesas eram "mariquitas". J. M. Bailey defendeu recentemente o carácter travesti dos homens latinos, concepção que partilho sem reservas.) Como é evidente, estou a forçar a concepção superior da autora chamada Agustina Bessa Luís, sem no entanto a violar: a escritora portuense ousou ser no seu universo literário aquilo que não foi na vida real, a trituradora das masculinidades travestis portuguesas, cujo abuso de poder reflecte um défice de masculinidade genuína. Todos os seres verdadeiramente inteligentes que nasceram em Portugal, o país onde os homens se comem uns aos outros, real ou ritualmente, odeiam Portugal. O ódio que nutrem por Portugal exprime-se numa espécie de ciência melancólica, a filosofia subjacente a todos os grandes pensamentos partilhados pelos exilados portugueses. Os Meninos de Ouro de Agustina Bessa Luís terminam com este pensamento filosófico: «As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro «como uma gota de orvalho cintilante» - diria a meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo - e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas» (Porto, 25 de Junho de 1982).

Infelizmente, ainda não posso realizar uma análise filosófica exaustiva da obra de Agustina Bessa Luís, a maior romancista da língua portuguesa de todos os tempos, e é provável que nunca venha a realizar esse estudo, até porque não há em Portugal leitores inteligentes. Em Portugal reina a insanidade mental. Qualquer tentativa de escapar à loucura reinante é em vão: as palavras não encontram eco em mentes adormecidas e entorpecidas pelas forças da loucura. A primeira grande fatalidade de um ser inteligente é ter nascido em Portugal, o túmulo em vida de todas as individualidades que anseiam pelo seu alargamento e pela sua expansão. Agustina Bessa Luís nasceu fatalmente em Portugal, mas esta primeira fatalidade não é da sua responsabilidade. Se pudéssemos escolher a nossa nacionalidade de nascença, não escolheríamos nascer portugueses. Ser português é um estigma que se carrega para toda a vida. É uma tortura mental lidar todos os dias com criaturas burras e invejosas: os portugueses são especialistas em terrorismo íntimo e na arte de roubar a vida aos outros. Quem lida com portugueses deve saber que está a lidar com malvados. A posição de privilégio que a autora toma em relação às suas personagens "demasiado portuguesas" mostra que Agustina Bessa Luís soube distanciar-se dos portugueses, sugerindo a retirada das personalidades narcisistas da cena política. No entanto, a omnisciência que conquistou no universo literário perdeu-a no universo real da vida quotidiana: Agustina Bessa Luís rodeou-se de pessoas erradas que a levaram a tomar más decisões políticas e existenciais. A sua ligação ao PSD foi fatal para a recepção alargada da sua obra literária. A vida pública de Agustina Bessa Luís é uma sucessão de erros fatais: o PSD é uma espécie de buraco negro que suga a luz de quem se aproxima dele. A Direita não tem cultura: o PSD, o grande amigo das práticas de corrupção, sugou toda a luz de Agustina Bessa Luís, afastou os leitores cultos da sua obra, distanciou a sua vida pública do seu universo literário e não promoveu a sua obra no mundo, de modo a ser lida e admirada por um auditório universal e a garantir a entrega do Prémio Nobel da Literatura à sua autora. (Os portugueses não servem para nada, nem para ler obras!) Todos sabemos como a Direita reaccionária e inculta portuguesa reagiu à entrega do Prémio Nobel a José Saramago: Rui Rio recusou dar o seu nome a uma rua da cidade do Porto e Cavaco Silva não compareceu ao seu funeral. A Direita portuguesa é o coveiro da cultura. "Direita" e "Cultura" são duas palavras que não casam entre si: onde há Direita não há cultura e onde há cultura não há Direita, o que equivale a dizer que toda a cultura superior é de Esquerda. Para resgatar a obra literária de Agustina Bessa Luís das grilhetas incultas do PSD, é preciso conhecer muito bem a sua biografia: alguma coisa a coloca desde cedo na proximidade de um campo social nefasto, do qual a sua obra se distancia de diversos modos, usando diversas técnicas narrativas. Mas, para todos os efeitos, Agustina Bessa Luís não teve na vida real a coragem que demonstrou ter no seu universo literário: ela foi na vida real escrava de um sistema, provavelmente o sistema da "concepção masculina", com o qual o seu universo literário rompe: «A vida de família corrompe muito da originalidade humana». (Quem escreve uma tal frase deve estar cansado da estupidez da família! O arrependimento de ter constituído família?) É a própria autora que aponta aqui para uma fatalidade familiar. Jean-Paul Sartre escreveu duas belas obras, uma sobre Flaubert e outra sobre Jean Genet, nas quais pensa todas essas mediações, incluindo a mediação familiar. Algo semelhante deve ser realizado em relação à vida e obra de Agustina Bessa Luís: as homenagens ritualizadas e formais que lhe são prestadas pelos bajuladores malvados não acrescentam à sua imensa obra as determinações do conhecimento, as únicas que podem garantir-lhe a imortalidade da fama. Sei que esta tarefa teórica ultrapassa o universo mental português e, por isso, resolvi escrever este texto para dar a conhecer ao mundo a obra de uma escritora portuense chamada Agustina Bessa Luís. 

J Francisco Saraiva de Sousa 

Virginia Woolf & Bertrand Russell

Virginia Woolf (1882-1941)
Bertrand Russell deve ser o filósofo mais referenciado na literatura científica e filosófica e, no entanto, o seu pensamento filosófico raramente é analisado a sério. Lembrei-me ontem dele, não por causa do seu programa logicista ou do seu atomismo lógico, mas sim por causa da ligação estreita entre o realismo da filosofia inglesa e os escritores do grupo de Bloomsbury, entre os quais se destacam Virginia Woolf e E. Morgan Forster, cujo tema comum é a busca da realidade. Auerbach já tinha chamado a atenção para esta ligação e S. P. Rosenbaum traçou o paralelo entre a literatura e a filosofia inglesas, dando especial destaque ao realismo filosófico de Virginia Woolf: G. E. Moore exerceu uma poderosa influência sobre os críticos de arte de Bloomsbury e sobre as suas concepções estéticas. Nem todas as línguas europeias conhecem um episódio deste género, em que filósofos e escritores colaboram entre si, de modo a forjar programas estéticos. Assim, por exemplo, o ponto fraco de toda a literatura em língua portuguesa é a ausência de pensamento filosófico: as ligações de Soeiro Pereira Gomes com o realismo socialista e de Vergílio Ferreira com o existencialismo confirmam essa falta de colaboração dos escritores portugueses com os filósofos. As filosofias que influenciaram as suas obras foram tomadas de empréstimo de outras áreas culturais: os chamados filósofos portugueses são criaturas medíocres que não sabem escrever a língua portuguesa. É uma fatalidade nascer nesta terra de burros malvados que é Portugal: a problemática existencial é estranha ao povo português que, em vez de exprimir angústia diante do nada, nutre inveja pelos seus vizinhos. Ser português é cobiçar aquilo que pertence aos outros. Ora, o português-prótese que cobiça ser aquilo que o outro é e tem revela-se - como tal - até mesmo na esfera dos comportamentos sexuais: o português deseja enfiar o seu "badalhoco" lá onde outro enfiou o seu, de modo a sentir ainda a presença húmida e odorífera do outro, cujo "badalhoco" quer incorporar em si próprio. Os homens portugueses precisam do futebol para evitar uma sessão de masturbação em grupo: o seu medo "colorido" da homossexualidade traduz a repressão do seu desejo secreto de ver, tocar e saborear o "badalhoco" dos outros. Não admira que o sexo oral constitua a grande fantasia sexual dos portugueses: ela possibilita a incorporação da essência vital do outro. Até parece que estou a especular, mas isto que estou a denunciar com profunda tristeza encontra-se patente na literatura portuguesa, cuja "filosofia" é tornar próprio aquilo que pertence ao outro. A "filosofia de ladrão" dá expressão a este desejo oral de incorporar o outro na sua própria carne: o português é aquele ser que deseja ser o outro, mesmo que não o compreenda. O verbo "mamar" exprime a essência do português. Como é que, num país em que todos andam à procura das tetas uns dos outros, poderia emergir um pensamento filosófico autónomo? O povo português é um dos poucos povos europeus que não tem metafísica, isto é, filosofia: Hegel nomeia-o na sua filosofia da história, mas não pode conferir um lugar de destaque no palco mundial da história a um povo sem metafísica. "Mamar" é um verbo anti-metafísico.

Os auto-intitulados "filósofos portugueses", "amigos da filosofia analítica" (sic), são as criaturas mais burras de Portugal, bastando ler as suas traduções das obras dos filósofos analíticos. Como é que criaturas que se hospedam nas casas dos alunos, para partilhar os "badalhocos", podem filosofar ou, como elas preferem dizer, argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que pedem aos "colegas" a casa-de-banho emprestada, para tomarem banho, podem argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que fogem das mulheres que os sustentaram durante um período considerável das suas vidas indigentes podem argumentar com rigor lógico? Como é que criaturas que, para darem aulas noutra cidade, precisam de se hospedar na casa de alguém, dando como pagamento o seu "badalhoco", podem argumentar com rigor? Como é que criaturas que, nas suas deslocações às universidades estrangeiras, prestam serviços sexuais aos visitados, com conhecimento dos seus parceiros nacionais de mentira, podem argumentar com rigor lógico? A comunidade dos chamados filósofos analíticos portugueses - responsável pela corrupção dos programas de filosofia - é uma comunidade sexual: os seus membros usam a desculpa da troca de argumentos racionais para trocar fluídos corporais uns com os outros. No seu triste e pobre universo mental, argumentar tornou-se sinónimo de troca de serviços sexuais. Toda a sua oralidade é sexual. Não adianta interpolá-los sobre os seus conhecimentos filosóficos e lógicos. Ficam ofendidos e respondem que não aceitam que os seus conhecimentos sejam testados. Quem os queira testar só o poderá fazer pela via do sexo. Em Portugal, o "filósofo analítico" (sic) é aquela criatura cuja suposta "genialidade" - entenda-se: genitalidade! - se testa no campo da performance sexual. Ser "bem-dotado" e ter "boa" performance sexual são traços que valem dinheiro no mercado da indústria pornográfica. Ainda cheguei a sugerir a um empresário a contratação dos filósofos analíticos portugueses, mas qual o meu espanto quando ele - depois de ter feito uma pesquisa de mercado - me disse que eles não tinham qualquer valor sexual: quase todos os parceiros sexuais dos "analíticos" portugueses estavam insatisfeitos com o seu desempenho sexual. A sua arrogância intelectual quebra-se contra a sua impotência sexual: o teste sexual a que se submetem de bom grado acusa falta de imaginação e excesso de dependência de próteses sexuais. Resta-nos concluir que a evidência empírica disponível mostra que, em Portugal, a "filosofia analítica" é uma tremenda mentira que se propaga por contacto sexual. Usada como rótulo, a filosofia analítica permite aos seus portadores circularem pelo espaço universitário sem terem sido testados no plano dos conhecimentos, bastando-lhes os contactos sexuais para garantir os seus postos de trabalho. (As universidades portuguesas são mentiras institucionais.) Mas, se em Portugal a filosofia analítica é uma mentira, nos países anglo-saxónicos ela foi a vanguarda de muitas gerações de filósofos e de escritores.

A obra de Georg E. Moore que mais marcou a estética de Bloomsbury e o seu realismo filosófico não foi Principia Ethica (1903), a primeira ética analítica, cujo título inspira Principia Mathematica de Russell e Whitehead (1910), onde se leva a cabo o projecto de fundar a matemática sobre uma base puramente lógica, a única susceptível de garantir a sua objectividade, mas sim o pequeno ensaio Refutação do Idealismo (1903), conforme reconhece o próprio J. M. Keynes. A essência do moorismo, aquilo que constitui a sua abordagem dos problemas filosóficos, não reside tanto na sua temível pergunta "O que quer dizer exactamente com isso?", como acreditava Keynes, mas sobretudo na forma que assumia uma resposta a tal pergunta. Segundo Moore, o critério decisivo de realidade é a minha experiência imediata: o apoio na experiência é fundamental tanto na epistemologia como na teoria do significado. A Refutação do Idealismo critica severamente o solipsismo de Berkeley, mostrando que, em qualquer experiência, é preciso distinguir o objecto dessa experiência da própria experiência: o objecto, pelo menos na experiência directa, é uma parte da realidade objectiva e não uma mera representação de um objecto real.

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 1 de maio de 2012

A Beleza do Porto

Cidade do Porto e Rio Douro
A minha amiga Letícia Valle, a Florbela do Brasil, autora do blogue Litteratura Mundi et alii, publicou dois posts: A Beleza do Porto (1) e A Beleza do Porto (2). Cada um deles dedica-me um poema. O primeiro intitula-se Francisco e o segundo, São Francisco. Ambos os poemas cantam a beleza do Porto através da figura de um dos seus habitantes, neste caso eu próprio. Entre amigos, a Letícia Valle é conhecida como a Florbela Espanca do Recife. A Letícia Valle, além de ser uma jovem poetisa, é uma apaixonada pela Cidade do Porto, pelo Futebol Clube do Porto e por cavalos e cavaleiros. Na língua de Paul Celan, denken (pensar) e danken (agradecer) são palavras da mesma raiz. Na língua portuguesa, pensar e agradecer não são palavras da mesma raiz e, por isso, não posso agradecer a partir do campo semântico de gedenken (lembrar), eingedenk sein (rememorar), Andenken (recordação) e Andacht (devoção): agradeço voltando a partilhar os dois poemas da Letícia Valle, nos quais ela vai ao encontro do Outro - a cidade do Porto - através da figura desse Outro - eu próprio. Eis o primeiro poema intitulado Francisco:

Ai, Dr. Francisco,
De Santo, Doutor, Poeta e Louco
Tens um pouco.
Por que não me vens curar
Dessa dor,
Que se alastra
Desterra-me
Para além-mar...

Guardo teu retrato
Debaixo da renda do criado-mudo
E o lencinho no meu peito
Tem bordadas as tuas iniciais.
Já perco saúde e juízo
De esperar a ama anunciar:
“Sinhazinha, é chegado o Dr. Francisco!!!”

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle
Capitania hereditária de Pernambuco,
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira
Recife, XXX/IV/MMXII.

O outro poema da Letícia Valle intitula-se São Francisco e diz:

Francisco,
uma beleza
que só santo tem.
faz um milagre
só para mim.

Vem, meu
branquinho
de faiança,
de louça,
numa mesa de festa.

Tu,
da brancura
de uma toalha de linho
lavada na pedra do rio
alvejada pelas minhas mãos.

Acendo-te uma
vela
mas, hoje,
vem
só para mim.

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle
Capitania hereditária de Pernambuco,
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira.
Reyno de Portugal, do Brasil e das Terras d'Aquém e d'Além-mar.
Recife, XXX/IV/MMXII.

J Francisco Saraiva de Sousa

As 10 Melhores Postagens de Abril

Sou Eu: J Francisco Saraiva de Sousa
«Penso que o modo como as pessoas são hoje educadas tende a diminuir a sua capacidade para sofrer. Presentemente, uma escola considera-se boa "se as crianças se divertem". E esse não costumava ser o critério. Além disso, os pais querem que os seus filhos cresçam como eles (só que mais), mas sujeitam-nos, contudo, a uma educação muito diferente da deles. - A resistência ao sofrimento não é muito cotada, porque não deve haver sofrimento; de facto, está fora de moda». (L. Wittgenstein)

Veja aqui as 10 melhores postagens do mês de Abril de 2012, a selecção mensal do blogue O Fazedor: Wanderson Lima escolheu o meu texto Ocaso da Literatura. O aforismo de Wittgenstein reforça a hipótese que explicitei no meu texto. Já agora aproveito a oportunidade para partilhar mais três aforismos de Wittgenstein: «No âmbito do espiritual, o projecto de uma pessoa não pode em geral ser continuado por outra, nem o deverá ser. Estes pensamentos fertilizarão o solo para uma nova sementeira». «Quase todos os meus escritos são conversas privadas comigo mesmo. Coisas que a mim próprio digo face a face». «Deixa ao leitor tudo o que ele pode fazer sozinho». O modo como articulei estes aforismos deixa transparecer uma ironia. Neste nosso tempo indigente, sou forçado a conversar comigo mesmo, porque já não há leitores inteligentes, capazes de cuidar da minha sementeira sem se apropriar indevidamente dela, como se pudessem pensar os meus próprios pensamentos. Chamei-lhes comunas-replicadores pelo facto de fazerem próprio o pensamento alheio. A escola está morta!

A minha amiga Letícia Valle, a Florbela Brasileira, acaba de publicar este post A Beleza do Porto (1), um belo poema intitulado Francisco. Eis o poema de Letícia Valle - e mais outro aqui:

Ai, Dr. Francisco,
De Santo, Doutor, Poeta e Louco
Tens um pouco.
Por que não me vens curar
Dessa dor,
Que se alastra
Desterra-me
Para além-mar...

Guardo teu retrato
Debaixo da renda do criado-mudo
E o lencinho no meu peito
Tem bordadas as tuas iniciais.
Já perco saúde e juízo
De esperar a ama anunciar:
“Sinhazinha, é chegado o Dr. Francisco!!!”

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle

Capitania hereditária de Pernambuco, 
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira

Recife, XXX/IV/MMXII.

O outro poema da Letícia Valle intitula-se São Francisco e diz:

Francisco,
uma beleza
que só santo tem.
faz um milagre
só para mim.


Vem, meu
branquinho
de faiança,
de louça,
numa mesa de festa.

Tu,
da brancura
de uma toalha de linho
lavada na pedra do rio
alvejada pelas minhas mãos.

Acendo-te uma
vela
mas, hoje,
vem
só para mim.

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle

Capitania hereditária de Pernambuco,
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira.
Reyno de Portugal, do Brasil e das Terras d'Aquém e d'Além-mar.

Recife, XXX/IV/MMXII.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 21 de abril de 2012

Porto, Cidade Inglesa



Porto: Edifício da Feitoria Inglesa
A economia e a sociedade portuguesas estão a entrar em colapso e este facto deve ser interpretado como resultado da incapacidade inata dos portugueses, sobretudo das classes dirigentes (banqueiros, gestores, empresários, políticos), para dirigir o destino de um país. A prova está aqui no edifício da Feitoria Inglesa no Porto: projectado por John Whitehead em estilo neopaladiano, o edifício começou a ser construído em 1785, ficando concluído em 1790. Se não fosse a forte presença inglesa no Porto Setecentista e Oitocentista, responsável pelo comércio do Vinho do Porto, a cidade não teria entrado na via do desenvolvimento efectivo. Há povos que nasceram idiotas e, infelizmente, o povo português é um desses povos idiotas que precisa ser governado por uma raça superior para entrar na via do desenvolvimento efectivo e não aparente (Galbraith). O problema de Portugal são os próprios portugueses: o seu espírito idiota, imbecil, invejoso, submisso, oportunista, medroso, trapaceiro, preguiçoso, provinciano, parolo, saloio, sacana e vigarista. Na verdade, só vejo uma solução para Portugal: fragmentar o território em regiões e entregar cada uma delas à governação de um país do Norte da Europa: os portugueses nasceram para obedecer e não para mandar. (A extinção dos portugueses seria uma bênção genética para a humanidade ocidental: a queda da natalidade é já um bom indicador da libertação do território para a chegada dos povos do Norte.) A substituição das elites do poder é fundamental: o Porto precisa de elites estrangeiras.

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 15 de abril de 2012

Ocaso da Literatura

Porto: Casa da Música
«Deste modo, o problema prático mais importante da nossa época é justamente o de saber em que direcção agir, que atitude tomar, de forma a contribuir para dar à evolução social uma orientação diferente da que ela parece estar a adquirir espontaneamente - uma orientação que permitisse modificar uma evolução que corre o risco de suprimir o elemento qualitativo e a personalidade humana, ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente o nível de vida e as possibilidades de consumo dos indivíduos e cria assim uma situação de que já uma vez caracterizei o elemento paradoxal no plano da cultura, escrevendo que corremos o risco de acabar por ter uma produção considerável de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos - para a substituir por uma orientação para uma estrutura social capaz de assegurar efectivamente um desenvolvimento harmonioso, tanto do sujeito libidinal, como da personalidade intrasubjectiva e socializada, um desenvolvimento harmonioso do indivíduo e da personalidade.» (Lucien Goldmann)

Ontem ofereceram-me uma enorme mala cheia de livros sobre teatro, peças e ensaios, entre os quais estava, talvez por engano, um romance de Paulo Coelho, um escritor que nunca quis ler. O romance de Paulo Coelho intitula-se Veronika Decide Morrer: folheei-o e li algumas partes, mas acabei por desistir da leitura integral, porque o achei "fora de prazo" e profundamente patético. Retomei depois a releitura das obras de Lucien Goldmann, cuja sociologia da criação cultural foi injustamente esquecida pela crítica académica. O seu conceito de estreitamento da esfera da consciência possível ajuda a compreender o ocaso da literatura - e da arte - no nosso tempo indigente. Convém retomar o elemento paradoxal introduzido pelo capitalismo tecnocrata no plano da cultura - a produção massificada de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos, previsto por Goldmann, e associá-lo ao próprio declínio da cultura, através desse fenómeno terrível que é o estreitamento da personalidade. Deste modo simples, formulei uma hipótese que permite abrir um novo horizonte de pesquisa futura, onde se joga a renovação da teoria marxista e a formulação de uma nova praxis política. O desenvolvimento desta hipótese exige a análise detalhada das causas e das consequências da crise financeira de 2008, tarefa que não vou levar a cabo aqui. No entanto, devo dizer que aquilo que os marxistas ocidentais julgaram estar ultrapassado na teoria de Marx está - depois desta crise profunda do capitalismo - na ordem do dia: a teoria da pauperização que o actual governo português converteu em programa político. De certo modo, os marxistas ocidentais, colocados entre duas paredes, a dos adversários liberais do marxismo e a do próprio marxismo soviético, não conseguiram reescrever O Capital, de forma a formular uma teoria forte do desenvolvimento do capitalismo: cederam lá onde Marx é actual e profundo. Mas esta cedência precipitada e impensada que enfraqueceu o projecto político da Esquerda, fazendo-a seguir numa direcção errada e suicida, pode ser corrigida à luz dos ensinamentos da actual crise económica, como já tentei demonstrar noutros textos. Depois da morte de Marx e talvez durante os seus últimos doze anos de vida, o marxismo foi mal-pensado: a prioridade dada ao materialismo sobre a dialéctica foi fatal, tanto para o marxismo ocidental como para o marxismo soviético. E, quando hoje procuramos dar o lugar de destaque à dialéctica, somos obrigados a abandonar o materialismo, o maior erro de todos os tempos. Quando formulou o estruturalismo genético que suporta a sua "sociologia dialéctica", Goldmann estava consciente disso, mas não foi capaz de se livrar de vez da tentação positivista, presente no seu projecto de uma sociologia dialéctica elucidada por oposição à sociologia positivista. Combateu a tecnocracia sem ter suspeitado da sua presença nas próprias ciências sociais e humanas, cujo desenvolvimento contribuiu mais para a adaptação social do que para a mudança social qualitativa. A teoria do equilíbrio que retomou de Jean Piaget é absolutamente estranha à dialéctica, como o demonstra o facto de N. Bukharin a ter usado para apresentar o "materialismo histórico" como "sociologia geral": Goldmann comete o mesmo erro que critica no marxismo soviético, apesar de ter referido o nome de Dilthey que nos reconduz directamente ao idealismo transcendental de Schelling como fio condutor capaz de orientar a pesquisa filosófica sobre a tipologia das concepções do mundo. O materialismo bloqueou o desenvolvimento da teoria marxista e desviou-a da sua verdadeira praxis política: o aumento do nível de vida de um número considerável de pessoas no mundo ocidental, o impulso materialista realizado, não trouxe consigo qualidade de vida e muito menos aperfeiçoamento da humanidade. Opor a autogestão - a célebre experiência da Jugoslávia - à tecnocracia não constitui um programa político adequado para a Esquerda. A dialéctica implica uma nova ontologia fundamental que, uma vez elucidada, impõe limites à formulação de novas políticas. Como é evidente, não posso explicitar aqui todas estas ideias, nem sequer posso elucidar a relação entre sociedade e literatura preconizada por Goldmann. No entanto, para explicitar a minha hipótese do ocaso da literatura, vou socorrer-me dos ensaios de Goldmann, onde ele esboça uma crítica inteligente da psicanálise.

Goldmann esboçou uma periodização da história já demasiado longa do mundo capitalista ao nível da economia, distinguindo três períodos de desenvolvimento capitalista, a cada um dos quais correspondem determinadas formas de filosofia e de literatura. Quando elaborou esta periodização do capitalismo, Goldmann, discípulo de Lukács, encontrava-se em diálogo produtivo com Marcuse e com a Escola de Frankfurt. Ora, a influência de Marcuse, sobretudo da sua teoria do homem unidimensional, implicava um ajuste de contas filosófico com a sua obra anterior. A estética da Escola de Frankfurt fê-lo mudar de perspectiva em relação ao Nouveau Roman, levando-o a reconhecer mais tarde a pobreza e a secura dessa criação cultural: «Porque é certo que, se a unidade destas obras é rigorosa, o outro pólo, a integração nessa mesma unidade das possibilidades e das virtualidades das realidades humanas que ignora ou cujo sacrifício exige, ocupa nelas um lugar relativamente restrito», como o demonstra o primeiro romance de Robbe-Grillet, Les Gommes. Embora sejam obras autênticas e representativas, «elas exprimem um empobrecimento geral da criação literária e cultural, análogo e paralelo àquele que Herbert Marcuse assinalou como característico do mundo moderno ao constatar que, das duas dimensões da existência que caracterizam o homem, o real e o possível, a última, na qual se baseia o essencial da criação literária, tende a desaparecer progressivamente das consciências, conduzindo àquilo a que ele chamou o homem unidimensional». Na sua derradeira obra publicada em vida, A Dimensão Estética, Marcuse tenta elaborar uma estética marxista, mediante a impugnação da sua ortodoxia predominante que interpreta a «qualidade e verdade de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes», isto é, que considera a obra de arte como expressão dos interesses e da visão do mundo de determinadas classes sociais de um modo mais ou menos preciso. Não é preciso avançar muito mais na explicitação da crítica de Marcuse à ortodoxia estética do marxismo para compreender que um dos seus alvos é precisamente a estética esboçada por Goldmann em Le Dieu Caché. A concepção da obra de arte como expressão de uma visão do mundo coerente, isto é, do máximo de consciência possível de uma determinada classe social, é impugnada por Marcuse, em nome de dois princípios da teoria marxista: a análise da arte no contexto das relações sociais prevalecentes, de forma a podermos atribuir-lhe uma função política, e a defesa da autonomia da arte perante essas mesmas relações sociais. A estética de Marcuse visa salvaguardar a subjectividade da depreciação ou desvalorização a que foi sujeita pela ortodoxia marxista e da sua dissolução na consciência de classe: «as qualidades radicais da arte, ou seja, a sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem (schöner Schein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais dominantes». Daqui resulta que a universalidade da arte não radica na visão do mundo de uma determinada classe social, como pressupõe Goldmann, mas sim na humanidade concreta - universal - que, não podendo ser personificada por uma classe particular, luta pela libertação das potencialidades reprimidas do homem e da natureza, abrindo assim no seio da própria totalidade repressiva uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjectividade rebelde. Hans-Dietrich Sander analisou os contributos de Marx e de Engels para uma teoria da arte, chegando à conclusão de que a ortodoxia marxista é uma inversão total da perspectiva dos fundadores do marxismo. Que pena Marx não ter cumprido o seu projecto de escrever um livro sobre Balzac e o capitalismo, para o qual contribuiu mais tarde Lukács: o autor de O Capital lia atentamente A Comédia Humana de Balzac, descobrindo nela afinidades com o seu próprio pensamento. 

Capitalismo concorrencial e romance de personagem problemática. O primeiro período da história do capitalismo estende-se até ao ano de 1910 e, no plano económico, corresponde ao capitalismo liberal. Goldmann caracteriza-o como «período individualista, no qual a ideia de conjunto, de totalidade, tende a desaparecer da consciência». No plano do pensamento filosófico, o período liberal do capitalismo exprime-se pelas «duas formas de filosofia individualista radical que são o racionalismo e o empirismo, as duas grandes correntes da chamada filosofia clássica, e, no plano da literatura, entre outros, pelo romance clássico, o romance de personagem problemática». Goldmann considera que, na história da cultura ocidental, existe quase sempre uma relação de homologia rigorosa entre as grandes tendências e correntes filosóficas e as grandes criações literárias. Assim, por exemplo, pares homólogos de universos imaginários criados por escritores e de sistemas conceptuais elaborados por filósofos são as obras de Pascal e de Racine, de Descartes e de Corneille, de Gassendi e de Molière, de Kant e de Schiller e de Schelling e dos Românticos. A título de exemplo, destaca-se particularmente a colaboração entre escritores e filósofos nos círculos literários e de amizade de Jena, da qual resultou a elaboração do romantismo de Jena, cuja concepção romântica era determinada pela filosofia idealista de Schelling, em especial pela sua filosofia da natureza. O órgão de difusão da concepção romântica foi o periódico Athenaeum (1798-1800): o romantismo de Jena resultou da colaboração próxima entre Novalis, os irmãos Schlegel, Goethe, Schleiermacher e Schelling. Goldmann detestava de tal modo o estruturalismo não-genético de Althusser que se descartou da sua teoria do todo complexo a-dominante, sem ter visto que ela podia ajudá-lo a estabelecer as homologias entre sistemas filosóficos e criações literárias, levando em conta os desfasamentos das temporalidades de cada uma das estruturas da totalidade social em relação às outras. O período liberal é de tal modo longo que Goldmann teve dificuldade em descobrir um escritor cuja obra correspondesse rigorosamente ao racionalismo: o par formado por Descartes e Corneille é diferente dos restantes pares referidos, porque só um certo número das peças de Corneille parece ser a expressão literária da posição racionalista de Descartes que marcou toda a cultura ocidental. O romance de personagem problemática é o género literário que corresponde ao período do capitalismo liberal. Goldmann confronta-se aqui com o problema do romance de personagem problemática não ser homólogo nem ao empirismo nem ao racionalismo, nem à Filosofia das Luzes, porque este romance é, ao mesmo tempo, uma forma literária crítica, que implica o elemento positivo da afirmação do indivíduo e do valor individual, e uma crítica social extremamente rigorosa: o romance da personagem problemática mostra que a sociedade em que vivem os seus heróis não permite ao indivíduo desenvolver-se e realizar-se. Ora, este problema liga-se à problemática da crítica e da revolta na literatura moderna, embora ele não exista à luz da estética da Escola de Frankfurt, para a qual toda a grande obra de arte é recusa da ordem estabelecida. Goldmann nunca conseguiu «reconciliar» a sua obra anterior sobre a sociologia do romance e sobre a visão trágica do mundo com a problemática da crítica, tendendo a ser mais afirmativo - a cultura afirmativa de Marcuse - do que crítico. Numa obra anterior, Pour une Sociologie du Roman, Goldmann tinha retomado a tipologia do romance de Lukács, distinguindo quatro tipos de romance: o romance do idealismo abstracto (D. Quixote de Cervantes e O Vermelho e o Negro de Stendhal, por exemplo), caracterizado pela actividade do herói e pelo seu conhecimento muito estreito em relação à complexidade do mundo; o romance psicológico ou do romantismo da desilusão (A Educação Sentimental de Flaubert, por exemplo), orientado para a análise da vida interior e caracterizado pela passividade do herói e pelo seu conhecimento muito amplo para o levar a encontrar satisfação no âmbito do mundo da convenção; o romance educativo (Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe, por exemplo), consumado por uma auto-limitação - a maturidade viril de Lukács - que, sendo uma espécie de renúncia à pesquisa problemática, não é nem uma aceitação do mundo nem um abandono da escala implícita dos valores; e, por fim, uma quarta possibilidade que, surgindo em 1920, se exprime nos romances de Tolstoi, orientados para a epopeia. Como é que Goldmann articula esta tipologia do romance com a sua perspectiva posterior? Ele deixou de falar dela nas obras posteriores, integrando os três primeiros tipos de romance sob a designação geral de romance de personagem problemática. As peripécias da personagem ao longo da história da literatura moderna permitem-lhe acompanhar de perto o destino do indivíduo ao longo dos três períodos de evolução do capitalismo: o eclipse da personagem no romance corresponde ao eclipse do indivíduo na sociedade. Esta é uma ideia extremamente produtiva que merece ser desenvolvida, até porque vai ao encontro de uma das preocupações fundamentais da teoria crítica da Escola de Frankfurt. E é esta ideia brilhante que estou a utilizar para elucidar o eclipse da literatura no nosso tempo indigente.

Capitalismo em crise, imperialismo e romance da comunidade. O segundo período da história do capitalismo é o período imperialista, cuja origem se situa por volta de 1910-1911. Goldmann destaca outras datas significativas para mostrar a dificuldade de estabelecer o equilíbrio económico e social durante este período imperialista: em 1914, a Primeira Guerra Mundial, a partir de 1917-1918, uma profunda crise social e política, entre 1929 e 1933 a grande crise económica, em 1933 a tomada do poder por Hitler, e, entre 1939 e 1945, a Segunda Guerra Mundial. O carácter provisório e instável dos equilíbrios económicos e sociais alcançados durante este período explica-se, em parte, pelo facto do mecanismo de regulação através do mercado, essencial para a economia do período liberal, ter sido perturbado pelo desenvolvimento dos monopólios e dos trustes. Goldmann é muito esquemático na caracterização económica dos períodos, negligenciando neste caso os contributos económicos fundamentais de Lenine, de Rosa Luxemburgo, de Sweezy e de Baran. Além disso, como veremos já a seguir, ao omitir a Revolução de Outubro de 1917, talvez para se distanciar do marxismo soviético, tende a esquecer a literatura que surgiu dessa revolução e do movimento operário: o realismo socialista também é a expressão de uma determinada visão do mundo, de resto bem explicitada pela obra de Maximo Gorki. Os pensadores marxistas que viveram nesta época estavam convencidos de que ela representava a crise final do capitalismo: a perspectiva de queda do capitalismo e de passagem ao socialismo - alimentada pela frequência das crises sociais e económicas que culminam com a crise de 1929 - justifica a designação de capitalismo em crise dada pelos marxistas a este período. No plano filosófico, ao período imperialista - infelizmente um período de transição - corresponde a filosofia existencialista (Heidegger, Sartre, Jaspers, por exemplo) que, apesar de reter elementos individualistas do período liberal, já não tem por centro nem a razão (racionalismo) nem a percepção (empirismo), mas sim os limites do indivíduo, em especial o limite por excelência que é a morte. O existencialismo tomou por centro, no plano psíquico, o sentimento que se desenvolve a partir da consciência dos limites e da morte: a angústia. O facto de Sartre ter sido filósofo e escritor mostra que, no período imperialista, a literatura estava muito próxima da filosofia: as obras de Kafka (A Metamorfose, América), Musil (O Homem Sem Qualidades), Sartre (A Náusea) e Camus (O Estrangeiro) mostram a dificuldade do indivíduo em se adaptar ao mundo social que o rodeava. O tema da dificuldade do indivíduo em se adaptar à sociedade já estava presente no romance de personagem problemática: ele foi retomado para elucidar o choque do romance com o problema da personagem que determinará a sua evolução futura. No plano económico, a passagem do capitalismo liberal ao capitalismo monopolista foi marcada pela perda de importância económica e social do indivíduo, a qual explica o enorme sucesso da psicanálise nos Estados Unidos: «Ora o escritor não pode dar forma senão ao que é essencial na realidade a partir da qual elabora a sua obra e, tendo o desenvolvimento económico diminuído a importância do indivíduo, teria sido difícil criar uma grande obra literária contando a história de uma personagem, uma biografia que, no plano da realidade, mais não apresentava que um carácter anedótico». No campo do pensamento socialista e na sua proximidade, houve tentativas de substituir a personagem pela colectividade e escrever romances de personagem colectiva, como testemunham Les Thibault de Roger Martin du Gard, os romances da família de Thomas Mann (Budenbrooks) e de John Galsworthy (The Forsyte Saga) e o romance da comunidade revolucionária de Malraux (La Condition Humaine). Porém, como a revolução socialista não conseguiu transformar substancialmente a sociedade ocidental, o romance da comunidade não se tornou uma forma literária predominante. É fácil captar as semelhanças e as diferenças entre as perspectivas de Lukács e de Goldmann: toda a obra sociológica e filosófica de Goldmann é tributária da estética de Lukács, embora tenha tentado analisar aquilo que Lukács condenou, a literatura de vanguarda.

Capitalismo de organização, revolta das letras e Nouveau Roman. O terceiro período do desenvolvimento do capitalismo iniciou-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sendo marcado pela concentração considerável do poder de decisão nas mãos de um grupo relativamente pouco denso de tecnocratas e pelo aparecimento de técnicos com um nível de conhecimentos muito elevado na sua especialidade profissional para poderem executar as decisões tomadas pelo grupo restrito dos tecnocratas. Esta caracterização genérica do terceiro período capitalista justifica a designação de sociedade tecnocrática que lhe foi atribuída. Goldmann retoma outras designações, tais como sociedade de consumo, capitalismo de organização e sociedade de massas, sublinhando que cada uma delas destaca um dos aspectos principais da sociedade que se estruturou depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A articulação de todos esses aspectos numa totalidade não é suficiente para elaborar uma teoria marxista do capitalismo de organização, cuja ausência explica a trajectória suicida seguida pela Esquerda europeia. O chamado capitalismo de organização caracteriza-se pelo aparecimento de mecanismos conscientes de auto-regulação: a classe dirigente tomou consciência da totalidade e dos problemas de organização global da economia e da sociedade, pelo menos ao nível da vontade e do comportamento dos seus membros, de modo a evitar a sucessão de crises verificada no período imperialista. A introdução dos mecanismos de regulação reforçaram a integração social e cultural do conjunto da sociedade, através do aumento do nível de vida que, de certo modo, neutralizou os efeitos do esquema da pauperização das classes médias proposto por Marx. Ora, uma das consequências psicológicas do aumento do nível de vida da maioria da população, incluindo a classe trabalhadora, foi o enfraquecimento significativo das forças de oposição tradicionais. A sociedade de consumo foi até agora uma sociedade altamente integrada que, além de enfraquecer a oposição tradicional, preparou o terreno para a hegemonia ideológica do neoliberalismo, que se consuma plenamente após a Queda do Muro de Berlim. A crítica aristocrática da cultura de massas (Ortega y Gasset) e a crítica do sistema de indústria cultural (Adorno, Horkheimer, Marcuse) alertaram para os efeitos nefastos do processo de integração social e cultural, mas o mocinho satisfeito - a consciência feliz de Marcuse - preferiu continuar a pensar mais com a marmita estomacal do que com a cabeça. Porém, com o triunfo do neoliberalismo à escala global a crise voltou a ocupar o lugar central da agenda: a crise financeira e económica de 2008 acordou brutalmente o mocinho satisfeito, o Zé-Ninguém da marmita, do seu sono metabolicamente reduzido, o sono sem sonhos de um mundo melhor (Bloch). A miséria regressa assim à ordem do dia e, acossado pela mera sobrevivência, o mocinho satisfeito não sabe o que fazer, até porque ele já não sabe pensar de modo autónomo. Mas antes de retomar este tema, convém analisar uma contradição da sociedade tecnocrática: o aumento da competência não conduz a grande maioria dos indivíduos a participar nas decisões essenciais e, o que é mais preocupante, reduz consideravelmente a sua vida psíquica e atrofia os seus órgãos cognitivos. Ora, como demonstrou Goldmann, aliás na peugada de Marcuse, a sociedade de organização é a sociedade dos especialistas analfabetos ou, de modo mais provocante, dos doutores analfabetos: o seu elevado nível de qualificação profissional e de competência técnica choca frontalmente com a sua atrofia mental e cognitiva. À era tecnocrática dos gestores e dos economistas corresponde a miséria da "ciência económica", uma mera técnica ideológica de adaptação social incapaz de integrar uma visão de conjunto da sociedade, da cultura e da economia, bastando folhear os manuais de economia para confirmar essa fragmentação: a instrumentalização da razão, a perda de visão da totalidade e a liquidação do indivíduo constituem aspectos de um mesmo processo de liquidação da realidade e de regressão civilizacional do Ocidente. Marcuse demonstrou que, antes do advento da sociedade de consumo, o homem se definia por duas dimensões fundamentais nas quais se desenvolviam a sua vida psíquica e o seu comportamento: a dimensão da adaptação ao real e a dimensão da transposição do real em direcção ao possível, a um outro princípio de realidade que os homens deverão criar pelo seu próprio comportamento. Goldmann articula estas duas dimensões do homem através da teoria do equilíbrio que, de certo modo, eclipsa a teoria da revolução. Apesar do seu mérito, Sciences Humaines et Philosophie é uma obra falhada, no sentido de não ter resistido dialecticamente às seduções da sociedade de consumo: a Filosofia não precisa das ciências humanas para pensar o possível - contra a fragmentação da totalidade social operada pelas ciências sociais. Goldmann lembra a definição do homem de Pascal - o homem como ser infinitamente maior do que aquilo que é, para lhe dar uma perspectiva dialéctica: o homem é maior do que aquilo que é por ser puro devir e estar continuamente a construir um mundo novo. O seu optimismo não lhe permitiu ver que a perda da dimensão do possível implica uma regressão antropológica fatal: o homem reconduzido à sua animalidade, isto é, o homem como animal metabolicamente reduzido.

A análise da sociedade contemporânea de Marcuse é infinitamente superior à de Goldmann. Quando escreveu os ensaios que estou a comentar, Goldmann estava convencido de que a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa ao nível da miséria nem ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim ao nível do estreitamento da consciência: «O estreitamento da personalidade e da individualidade, o qual constitui um fenómeno inquietante, já mesmo no período de transição que vivemos (sic), corre assim o risco de se tornar cada vez mais grave se a evolução social se orientar efectivamente para uma adaptação perfeita dos homens a uma sociedade em que, na maior parte, eles se tornarão simples executantes bem pagos, tendo um nível de vida elevado e férias mais ou menos longas, e vivendo cada vez melhor enquanto técnicos especializados, mas com a consciência restringida». Como já vimos, a crise financeira de 2008 alterou completamente este quadro, pondo na ordem do dia os três níveis referidos por Goldmann. No entanto, como o nível do estreitamento da consciência se agravou cada vez mais com a produção em massa de diplomas atribuídos a indivíduos que nada fizeram para os merecer, excepto apropriar-se ilicitamente do pensamento dos outros, como se fossem "comunas-replicadores", continuarei a acompanhar a análise de Goldmann no que se refere às suas implicações na criação cultural. A elaboração hegeliana do fim da arte consumou-se literalmente no nosso tempo indigente: o aumento do número de diplomados não trouxe consigo a intensificação da criatividade cultural; pelo contrário, degradou-a de forma brutal. Qual é a filosofia que corresponde melhor ao terceiro período do desenvolvimento capitalista? Goldmann não respondeu a esta questão, embora tenha retomado a crítica do positivismo elaborada pela Escola de Frankfurt para demarcar a sua sociologia dialéctica da sociologia positivista: «a grande diferença (entre ambas) consiste precisamente no facto de a primeira (a sociologia positivista) se contentar em desenvolver uma fotografia tão exacta, tão minuciosa quanto possível da sociedade existente (ou uma modelação da sociedade em função de modelos prévios?), enquanto que a segunda (a sociologia dialéctica) tenta desenredar, na sociedade que estuda, a consciência, as tendências virtuais que estão prestes a desenvolver-se e que estão orientadas para a sua superação. Em resumo, a primeira tenta dar conta do funcionamento da estruturação existente, a segunda tem por centro as possibilidades de variação e de transformação da consciência e da realidade sociais». Ao analisar o pensamento unidimensional, isto é, a filosofia positiva, Marcuse esboçou uma primeira resposta a esta questão. Henri Lefebvre e Alfred Schmidt levaram essa análise mais longe quando associam o estruturalismo à tecnocracia. E, pouco mais tarde, Alex Callinicos acusa justamente o pós-estruturalismo (Derrida, Deleuze, Foucault) e os discursos da pós-modernidade (Lyotard, Jameson) de fazerem o jogo do neoliberalismo. É certo que Goldmann criticou severamente os estruturalismos não genéticos de Lévi-Strauss e de Althusser, mas, em vez de estabelecer uma homologia entre o estruturalismo e o Nouveau Roman, deslocou o problema, dizendo que, contrariamente a Marcuse, «creio que existem tendências para a superação desta situação e que o homem de uma única dimensão representa apenas um único termo da alternativa diante da qual se encontram as sociedades industriais contemporâneas». Goldmann descobre essa alternativa na revolta no interior da criação cultural, o que não constitui uma novidade para quem conheça bem a obra filosófica de Marcuse: o que é novidade é a distinção de dois aspectos diferentes e complementares dessa revolta das letras, a saber o aspecto da revolta formal de uma arte que, não aceitando uma sociedade, encontra formas de expressão para a recusar, e o aspecto do próprio tema da revolta no interior da obra de certos escritores e artistas. O primeiro aspecto manifesta-se no Nouveau Roman, e o segundo, nas peças de teatro de Sartre e, sobretudo, de Jean Genet. Esta distinção não faz muito sentido à luz da estética da Escola de Frankfurt e não se compreende bem a razão que levou Goldmann a introduzi-la na criação cultural do terceiro período da história do capitalismo, quando na verdade ela já podia ter sido introduzida nos períodos anteriores. Jean-Pierre Sarrazac lembra que o teatro tem sido acusado de não ter acompanhado as grandes tendências da literatura moderna, como se tivesse ficado parado no tempo, mas, quando abordaram os temas da luta de classes, da revolta e da revolução, Genet e Sartre passaram ambos do romance ao teatro. O teatro de Sartre que tem por tema a revolução - Les Mouches e Les Séquestrés d'Altona, por exemplo - aborda-o ainda na perspectiva da filosofia clássica, em termos de relação antagónica entre o indivíduo e a realidade social exterior, isto é, de conflito entre a ética e a história. Genet aborda o mesmo tema - nas suas quatro grandes peças de teatro que são Les Bonnes, Le Balcon, Les Nègres e Les Paravents - em termos de conflito entre dominados e dominadores: as personagens são colectivas, o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso, e os valores autênticos são os do ritual realizado pelos dominados. Pelo facto de abordar os temas da luta de classes, da revolta e da revolução numa sociedade tecnocrática na qual as forças de contestação foram enfraquecidas, Jean Genet é visto por Goldmann como o maior escritor da revolta na literatura francesa: o seu teatro reage a esse enfraquecimento da oposição tratando nas próprias obras a revolta dos dominados dentro da e contra a sociedade que recusam e contando a história das forças de contestação quando estas ainda não existem ou estão prestes a desaparecer. Ora, de acordo com as categorias da estética de Marcuse, para romper o nexo social da destruição e da submissão, de modo a tornar possível a libertação dos homens e da natureza, não é preciso tematizar a própria revolução, como sucede nas obras esteticamente mais perfeitas, onde a necessidade da revolução constitui o a priori da arte. Ao contrário do que pensa Goldmann, a tematização da revolução pela obra não faz dela necessariamente uma verdadeira obra de arte: «A literatura pode ser revolucionária num determinado sentido, só em referência a si própria, como conteúdo tornado forma. O potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a praxis é inexoravelmente indirecta, mediatizada e frustrante. Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objectivos radicais e transcendentes de mudança. Neste sentido, pode haver mais potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud que nas peças didácticas de Brecht». Estas palavras de Marcuse não são dirigidas contra o teatro de Genet que admirava, mas sim contra a preferência de Lukács pelo realismo como modelo da arte progressista, preferência essa que levou os marxistas ortodoxos a difamar o romantismo, a denunciar a arte decadente e a condenar todas as manifestações literárias e artísticas que não expressassem os interesses e a visão do mundo de uma classe ascendente. (Marcuse acusa a estética soviética de ter imobilizado a dialéctica da libertação.) Mas esta diferença entre Marcuse e Goldmann que deriva, em última análise, de concepções diferentes da relação entre sociedade e literatura, entre teoria social e teoria estética, e do problema das mediações, abordado por Sartre em Questions de Méthode, não deve levar-nos a descartar o contributo fundamental de Goldmann à teoria marxista da arte e da literatura, até porque a sua análise nos ajuda a compreender o ocaso da criação cultural e artística na sociedade contemporânea, retomando o conceito de homem unidimensional de Marcuse. Na sociedade contemporânea na qual o indivíduo perdeu importância e as forças de oposição foram enfraquecidas, o grande escritor que queira dizer o essencial sobre a situação do homem na sociedade estabelecida, esbarra com um duplo obstáculo. Por um lado, o escritor não pode já colocar os grandes problemas da situação do homem numa sociedade que afunila a sua consciência e o priva da sua relevância social e psicológica, ao nível de uma história imediatamente perceptível, isto é, ao nível da biografia de uma personagem central, porque, se o fizer, se arrisca a permanecer prisioneiro de factos casuais sem significação essencial. Mas, por outro lado, se tentar pôr os problemas de conjunto, é forçado a situar-se num nível que, sem ser conceptual, se torna de tal modo totalizante que perde cada vez mais a relação com aquilo que é imediatamente perceptível e vivido. Ao situar-se a este nível mais abstracto, o escritor arrisca-se a não ser compreendido pelos leitores das suas obras, os quais, devido ao estreitamento psíquico e intelectual, são cada vez menos aptos a discernir os fenómenos a este nível de abstracção e de generalização. Goldmann dá-nos o exemplo de uma passagem do romance La Jalousie de Alain Robbe-Grillet: «O calçado ligeiro, de sola de borracha, não faz o mínimo ruído nos ladrilhos do corredor». Os leitores, incluindo um professor americano, não compreendem o sentido essencial desta passagem, interpretando-a em termos de experiência vivida, como se Robbe-Grillet tivesse escrito "um homem caminha em pés-de-lã", em vez de "o calçado ligeiro (...) não faz o mínimo ruído". O que o leitor não compreende é que Robbe-Grillet foi obrigado a contar as coisas de uma maneira diferente, não por ser ridículo, mas porque as próprias coisas se tornaram de tal modo diferentes que não podem ser ditas da maneira consagrada. Para dizer o essencial da sociedade tecnocrática, Robbe-Grillet é obrigado a substituir a forma consagrada - "o homem avança" - por uma nova forma - "o calçado avança": «A história de um homem ciumento é apenas um facto casual, enquanto que as solas que arrastam o homem se tornaram o fenómeno central da vida quotidiana de todos nós, quer disso estejamos conscientes ou não». Deste modo, ao procurar exprimir a ausência de deuses (valores) no mundo moderno, Robbe-Grillet denuncia a reificação vigente, responsável pelo facto de serem realmente as solas quem avança e arrasta o homem, um fenómeno que Goldmann analisou em Recherches Dialectiques. A arte da recusa fala, pois, uma nova linguagem, operando aquilo a que Goldmann chama revolta formal na arte, que, sem a ajuda da crítica, corre o risco de não ser compreendida pelo público: «Quase toda a arte contemporânea é uma arte da recusa que se interroga sobre a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se a um nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num acontecimento vivido, porque o próprio indivíduo não é já um elemento essencial na sociedade contemporânea, como o era na época de Stendhal, de Balzac ou de Flaubert». Porém, quando reconhece que o Nouveau Roman exprime um empobrecimento geral da criação cultural e literária, Goldmann caminha na direcção do pessimismo que impregna a arte autêntica, advertindo contra a consciência feliz da praxis radical. O caminho que vai do estreitamento da consciência até ao ocaso da literatura, passando pela liquidação do indivíduo, curvou-se sobre si mesmo e fechou-se. A mudança social exigida pela arte não está garantida. E os homens com acesso facilitado às praças da alimentação dos Shoppings deixaram de ser criadores e receptores inteligentes de obras de arte: a afluência - acompanhada pela intolerância ao sofrimento e pela incapacidade de sentir alegria - significa regressão mental e cognitiva, a grande doença do nosso tempo. 

J Francisco Saraiva de Sousa