quarta-feira, 30 de março de 2011

Agustina Bessa-Luís: O Resgate

«Os sábios experimentados da ciência da morte sabem que os moribundos têm de ser mantidos despertos e em plena consciência dos sintomas do seu fim. Doutro modo, eles não poderiam reconhecer a Luz Fundamental na sua realidade. A vida dos poetas assemelha-se a esse estado de confrontação em que o espírito se equilibra como uma agulha sobre um delgado fio; movida pelo sopro dos desejos egoístas e a força do eu, a agulha cai e a vida é arrastada de novo para a sua roda de padecimentos. Bardo significa entre dois estados; quer dizer, situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. Os lamas chamam bardo ao estado imediato à morte; o corpo bárdico começa então a usar as suas faculdades supranormais e pode atingir diversos graus duma nova existência. O bardo celta, ligado à função sacerdotal, manifesta-se pela poesia lírica ou heróica, e provavelmente teve origem na escola búdica, que ensina que tudo o que o homem pode aprender pode crer também. As imagens semeadas no seu pensamento durante a vida são fecundas no espírito que o acompanha na morte. O poeta ocidental, o que resta do bardo celta ou do seu mísero canto de cego e de vagabundo, contém a mentalidade do sonhador, baseada em experiências humanas incomensuráveis; é um produto intemporal que subleva a própria força de viver e a vontade de acreditar, de amar e de criar um mundo». (Agustina Bessa-Luís)

Infelizmente, Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922) encontra-se nessa situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. O povo português é ingrato e cruel para com os seus intelectuais mais brilhantes e originais, reservando-lhes o esquecimento em vida e também depois da morte. O esquecimento ganha a forma de um homicídio intencional quando se trata de uma figura intelectual da Cidade do Porto: a inveja que as almas medíocres e saloias nutrem pelo espírito cultural da Cidade Invicta leva-as a adulterar e a falsificar a história da literatura portuguesa e do pensamento lusófono. Agustina Bessa-Luís agravou o seu exílio interior ao envolver-se voluntariamente com as forças partidárias da Direita: este seu compromisso político gerou desconfiança no espírito daqueles poucos homens libertos que poderiam fazer renascer a sua imensa obra literária e ensaística, ligando-a ao grande legado da tradição ocidental que luta pela emancipação do homem. As falsas amizades que rodearam Agustina Bessa-Luís foram fatais para a recepção da sua obra: as suas cores cinzentas eclipsaram o brilho e a luz que emanam da sua obra. Quem escreve deve saber escolher os seus amigos, e os bajuladores oportunistas são os piores inimigos que um autor pode escolher, porque no seu espírito mesquinho e atrofiado nada germina. Os pseudo-amigos de Agustina Bessa-Luís criaram um abismo entre a sua obra e os seus potenciais leitores inteligentes: eles secaram a fonte, não no sentido de se apropriarem da sua «mensagem» e do seu mundo, mas no sentido de a privarem do seu poder de fecundação em espíritos preparados para lhe dar continuidade. As sementes cognitivas lançadas por Agustina Bessa-Luís não germinaram nestas terras estéreis que são as terras portuguesas: a prova disso reside no facto de não termos ao nosso dispor um único estudo sério e profundo sobre o seu universo literário. A alma lusitana é, cultural e filosoficamente, estéril: Sampaio Bruno esboçou a evolução do romance na civilização europeia, mas o seu esforço teórico não surtiu nenhum efeito positivo sobre a alma estéril dos portugueses vindouros que preferem fingir que conhecem as últimas modas parisienses ou estrangeiras, em vez de actualizarem e de reinventarem o legado histórico da cultura portuguesa, em diálogo produtivo e dinâmico com as tradições literárias mundiais.

Porém, apesar deste eclipse em vida da obra de Agustina Bessa-Luís - aliás o destino de todas as mentes brilhantes portuguesas e das suas obras, podemos resgatar a sua obra para a posteridade, libertando-a dessa prisão política e ideológica e trazendo-a - sozinha sem o halo cinzento que a obscurece - à nossa presença: a obra deve ser lida sem a mediação obscura dessas figuras cinzentas que lhe negaram a germinação espiritual. A densidade psicológica das personagens dos romances de Agustina Bessa-Luís - por exemplo, Quina e Germa do romance A Sibila de 1954 - contrasta fortemente com a pobreza da vida psicológica dos seus leitores portugueses. Como já se tornou evidente, estou a «utilizar» a teoria da recepção para mostrar que a indigência mental e cognitiva dos leitores portugueses empobrece o universo de sentido das obras literárias e filosóficas: «No triângulo formado pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um elemento passivo, que apenas reagiria em cadeia, mas antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história. A vida da obra na história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se dirige. É a sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade de um horizonte dinâmico de experiência, na qual se opera a permanente passagem de uma recepção simples a um comportamento crítico, de uma recepção passiva a uma recepção activa, e das normas estéticas reconhecidas a uma produção nova» (Hans Robert Jauss). Os textos literários são processos de significação que só se materializam e se concretizam na prática da leitura produtiva: quer dizer que sem a participação activa do leitor - e do seu acervo de conhecimentos prévios - não há obra literária (Wolfgang Iser). O leitor inteligente deve preencher as indeterminações - os hiatos e as lacunas - da obra literária, através da formulação de hipóteses construtivas sobre o seu significado e da sua revisão permanente: a leitura não é, portanto, um movimento linear e progressivo, mas antes um movimento para trás e para a frente (Roman Ingarden), no decorrer do qual as nossas suposições iniciais que geraram um quadro de referência para a interpretação do que vem a seguir estão constantemente a ser revistas e reformuladas pelo que se segue até alcançarmos a inteligibilidade da harmonia da sua totalidade orgânica. A teoria da recepção, pelo menos na versão de Iser e de Ingarden, implica o circuito fechado entre o leitor e a obra e, no plano social e ideológico, reflecte a condição fechada da instituição académica da Literatura: a abertura da obra é gradualmente eliminada à medida que o leitor consegue construir uma hipótese de trabalho capaz de reduzir o seu potencial polissémico a alguma forma de ordem - o texto fechado - que garanta o eu unificado do leitor. A agudeza da consciência histórica que atravessa a obra de Agustina Bessa-Luís permite romper com o modelo normativo - e funcionalista, no sentido das partes estarem adaptadas coerentemente ao todo - de Iser que bloqueia e refreia o potencial ilimitado da linguagem, situando desde logo as obras literárias num horizonte histórico: a obra literária é produzida num determinado contexto de significados culturais que o leitor crítico deve conhecer para poder em seguida explorar as suas relações variáveis com os horizontes históricos de todos os seus leitores históricos, de modo a produzir um novo tipo de história da literatura, centrada não nos autores, mas na literatura tal como foi definida e interpretada pelos seus diversos momentos de recepção histórica (Hans Robert Jauss). Nesta perspectiva, as obras literárias e as tradições literárias não permanecem constantes ao longo do tempo: elas sofrem modificações activas, de acordo com os diversos horizontes históricos dentro dos quais são recebidas, interpretadas e apropriadas. Se toda a obra literária encerra em si mesma um leitor implícito, como defendeu Sartre, então a obra de Agustinha Bessa-Luís exige um leitor dotado de uma consciência histórica suficientemente profunda para lhe permitir operar uma fusão de horizontes (Hans-Georg Gadamer). Ora, os leitores portugueses não se enquadram dentro do perfil geral do leitor posicionado na história: a escola portuguesa, sobretudo depois do 25 de Abril, com a emergência das novas pedagogias do atrasado mental, ensinou-os a fingir que descobrem os textos no vácuo social e cognitivo. Como é que criaturas destituídas de conhecimentos prévios podem interpretar e compreender correctamente obras literárias? Os zombies fabricados em série pela escola portuguesa são desafiados pelos seus professores a opinar arbitrariamente sobre os textos, sem terem aprendido que estão social e historicamente situados e que o modo pelo qual interpretam as obras literárias é profundamente marcado e condicionado por esse facto. Entre a obra literária e o público português não há faísca capaz de desencadear um diálogo produtivo, ou seja, uma leitura activa capaz de catalisar uma visão mais crítica das próprias identidades dos leitores: além de não ser capaz de preencher as lacunas do texto que está a ler, por falta de conhecimentos prévios, o leitor português não adquire através da prática da leitura um auto-conhecimento enriquecido. Ele compra as obras e coloca-as nas prateleiras da estante - lá de casa ou do gabinete de trabalho - para indicar aos outros um pretenso status cultural que não é efectivamente o seu. Em Portugal, a cultura é uma simulação mentirosa, um mero jogo de sociedade.

(Recomendo a leitura da trilogia O Princípio da Incerteza de Agustina Bessa-Luís: Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003).)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 29 de março de 2011

Prós e Contras: E agora Portugal?

«O exílio do homem é a ignorância; a sua pátria, a ciência». (Honorius d'Autun).

A escolha deste quadro de António Macedo - A Mudança - não é inocente: o seu título revela o caminho a seguir por Portugal para resolver a crise - a mudança de sistema social, mas, como o debate Prós e Contras de hoje (28 de Março) foi um debate entre universitários, tendo como palco a Aula Magna da Universidade de Lisboa, a própria universidade portuguesa não fica imune à exigência de mudança qualitativa: Portugal precisa de uma revolução universitária que liberte todas as instituições de ensino da mediocridade e da mentira organizada que as domina. A frase de Honorius d'Autun que sintetiza a sede de conhecer da Escola de Chartres do século XII, deve seduzir os universitários que zelam pela manutenção do seu posto de trabalho, a título de divisa profissional, genuína no caso dos verdadeiros sábios ou falsa no caso dos professores portugueses, mas a ideologia profunda que reflecte e que nos conduziu até a este terrível modelo de «sociedade dos sábios» precisa ser queimada. As ambiguidades e as contradições detectadas entre as narrativas dos convidados derivam do facto de nenhum deles ter meditado seriamente sobre a realização histórico-efectiva desta ideologia do esclarecimento. Maria Mota chamou-lhes paradoxos sem compreender que o seu próprio discurso era um paradoxo conspurcado pelo "có-có dos cães dos vizinhos" e pela ideologia do cientismo míope: o deslumbramento pela riqueza falsa - a que derivou do endividamento externo - e a fragilidade do self dos portugueses fecha-lhes a mente ao mundo e bloqueia o pensamento independente. A confusão imperdoável que Lídia Jorge estabeleceu entre o suposto carácter definitivo da história (?) e o carácter mutável do Ser (?) mostra até que ponto os portugueses deslumbrados odeiam a história - precisamente o reino da possibilidade no reino da necessidade. O autismo cognitivo de Lídia Jorge opõe-se à história e à mudança, impedindo-a de compreender e, sobretudo, de oferecer uma orientação política à Manifestação da Geração à Rasca: Lídia Jorge interpreta a sua recusa de liderança partidária como ausência de luta ideológica. Ora, ao assumir o discurso neoliberal do fim das ideologias, Lídia Jorge revela a sua satisfação com a ordem social vigente: a crise financeira e económica é vista como um mal passageiro nessa caminhada contínua e progressiva em direcção a uma civilização do ter que tudo devora à sua volta em nome do niilismo aniquilador. Lídia Jorge não é uma intelectual literária empenhada e comprometida: tal como a maioria da população portuguesa que foi configurada e programada a aceitar a irracionalidade da sociedade estabelecida, ela recusa-se a operar a passagem da consciência falsa para a consciência verdadeira, do interesse imediato para o interesse real. Lídia Jorge e a auto-intitulada geração à rasca estão condenadas ao fracasso político enquanto não aprenderem a viver com a necessidade de modificar o seu estilo de vida e de recusar o positivo: a sociedade portuguesa vigente reprimiu esta necessidade de modificação radical do estilo de vida configurando desde o berço até ao caixão a mente e o corpo dos seus agentes sociais em função da cultura do consumismo (João Salgueiro). O incêndio - a iminência da bancarrota - que temos à porta não se combate com a energia de sobrevivência (Lídia Jorge) ou mesmo com o contacto dos corpos nas ruas (José Gil), esse imenso espaço neutro que não pertence a ninguém, excepto aos mendigos, aos toxicodependentes e aos vagabundos sexuais: o neovitalismo subjacente a estas propostas é mais amigo do regresso do fascismo do que da construção esclarecida de uma democracia adulta. O neovitalismo de Lídia Jorge e de José Gil corre o sério risco de se converter na apologia do reino do animal metabolicamente reduzido - esse enorme tubo digestivo que abdicou da sua humanidade e da tarefa de pensar a realidade para a poder transformar, tendo em vista a construção cooperativa de um mundo melhor.

João Salgueiro defendeu - em nome dos factos positivos (?) - a tese segundo a qual os portugueses foram configurados desde pequenos na e pela ideologia neoliberal - profundamente darwinista - do "ganhar mais para consumir mais" nas novas catedrais do nosso tempo indigente: os centros comerciais e as suas praças da alimentação. António Hespanha responsabilizou a comunicação social, em especial a TV, por este "excesso de formatação" que força os portugueses a pensar de modo monótono: a acção conjugada das agências de socialização, em especial da escola e dos mass media, tem como efeito a produção em massa de indivíduos que perderam o sentido da realidade e, sobretudo, da individualidade rebelde, fazendo deles "espelhos uns dos outros" (José Gil). À palavra de ordem desta ideologia economicista que deforma e tolda a consciência política dos portugueses vedando-lhes o acesso esclarecido à dimensão histórica das figuras do possível - Bendita a riqueza!, Tolentino Mendonça (teólogo) opôs outra palavra de ordem - Bendita a pobreza! O positivismo darwinista de João Salgueiro não lhe permite ver para além dos factos positivos - isto é, ideologicamente construídos - gerados pelos "novos sacerdotes" - os economistas - para moldar a realidade em função dos interesses do capital e das suas ambições profissionais. As épocas de crise profunda são épocas que fomentam a esperança: a possibilidade histórica de operar uma ruptura radical com o modelo irracional de sociedade que nos conduziu ao abismo e ao limiar da pobreza generalizada e de construir uma sociedade nova. Porém, a alternativa deve situar-se para além da riqueza e da pobreza: a teoria marxista anseia pela justiça plena e recusa-se a fazer a apologia da pobreza tal como foi realizada pelos mendicantes - em especial pelos dominicanos e franciscanos - no século XIII. A apologia da pobreza procede daquele ascetismo que, como observou Max Weber, significa recusa do mundo, portanto pessimismo face ao homem e à natureza: a pobreza enquanto estado de necessidade permanente que impede o homem de participar no mundo comum deve ser abolida pelo movimento revolucionário de construção de um mundo melhor. Mas a construção permanente deste novo mundo - qualitativamente diferente do mundo vigente - deve libertar-se da velha narrativa económica e tecnológica do crescimento contínuo e ascendente: os homens podem realizar a sua humanidade e desfrutar uma vida sem angústia para além da falsa riqueza que lhes é oferecida pela sociedade de consumo financiada pelo crédito ao consumo. A este propósito, o grande medo de 1789 que se apoderou dos franceses nas vésperas da Grande Revolução (Georges Lefebvre) mostra-nos que a fome gerada pela actual crise financeira e económica pode converter-se em docta spes: o encarecimento do pão - o aumento do IVA preconizado pelo PSD de Passos Coelho - que conduziu ontem a canalha urbana francesa à contestação pode hoje levar os portugueses apáticos e resignados a operar a passagem da falsa consciência para a consciência verdadeira da sua situação objectiva e subjectiva no seio de uma sociedade injusta que lhes nega a dignidade humana da vida. Ao contrário do que pensam Lídia Jorge e José Gil, o protesto contra o status quo precisa da ideologia de esquerda - a utopia concreta - para ser politicamente eficaz: José Reis viu isso quando afirmou ser necessário olhar para a história e para o mundo global em busca de alternativas, dando voz aos silêncios que predominam em Portugal. Revelar esses silêncios significa descobrir oposições, diferenças, alternativas, que, quando galvanizadas e unificadas por forças ideológicas e políticas de esquerda, se convertem rapidamente em movimento organizado contra a ordem social vigente. A "profecia" de que precisamos (Tolentino Mendonça) não é a da apologia da pobreza que entrega o destino dos pobres nas mãos dos poderosos, mas a do derrube do modelo de sociedade - precisamente a sociedade da falsa afluência - que gera a pobreza, as desigualdades sociais, o abuso de poder, a exploração e a injustiça social. Demonizar a pobreza é fazer da fome um impulso para a revolução: à fome enquanto condição objectiva que prepara o terreno para o salto qualitativo é preciso acrescentar e adicionar de fora o elemento subjectivo que, ao contrário do que preconizou José Gil, não pode ser "neutro" - o espaço de ninguém é o espaço do poder vigente! - se quiser ter eficácia política. António Nóvoa inscreveu - e bem - a formação deste elemento subjectivo no espaço da universidade.

Ao rejeitar a utopia concreta em nome do pensamento positivo que glorifica os factos, como se estes não pudessem ser transcendidos pela praxis política esclarecida, João Salgueiro não só introduziu uma aporia no seio do seu discurso, como também incentivou a animosidade anti-economicista dos outros intervenientes. Aquilo que João Salgueiro disse em relação aos políticos - o facto da classe dirigente europeia não estar à altura das exigências do momento - foi-lhe devolvido - a si e aos seus colegas economistas - por Eduardo Paz Ferreira, António Feijó e António Nóvoa (Reitor da Universidade de Lisboa): libertar as instituições da burocracia (António Nóvoa) e do excesso de pragmatismo (António Feijó), que colidem com a função verdadeiramente educativa da universidade, foram palavras de ordem que os universitários ergueram contra o discurso economicista de João Salgueiro que tem colonizado todas as instituições da sociedade portuguesa nas últimas três décadas. António Nóvoa reconheceu que a universidade não soube apresentar um outro modelo de desenvolvimento para resolver a crise: em vez de ser uma "cascata de reflexão", a universidade portuguesa foi vítima da "cascata de senso comum" (António Hespanha) que força todos os portugueses a pensar de modo monocórdico e monótono. António Hespanha foi mais longe quando afirmou que a universidade portuguesa não está ao serviço do desenvolvimento do país, e isto por causa do cunhismo que se infiltrou no seu sistema de recrutamento: em vez de "pessoas qualificadas", a universidade portuguesa recruta os "afilhados" medíocres das figuras embrutecedoras que a dominam. Ora, esta anti-universidade que predomina em Portugal presta-se a tudo, excepto a desempenhar efectivamente a sua função que António Hespanha definiu nestes termos: «ensinar as coisas permanentes». Com esta definição da função da universidade, António Hespanha quis afirmar a sua autonomia, livrando-a do destino fatal que lhe atribuem os economistas neoliberais: ser uma espécie de "serviço social das empresas". Porém, para evitar o conservadorismo subjacente a esta expressão, é preciso colocar entre as «coisas permanentes» o cultivo da capacidade humana de transcender as situações de facto, mediante a abertura de novos horizontes para o mundo: o legado da tradição crítica deve ser constantemente actualizado, tendo em vista a restituição integral da história da humanidade. Infelizmente, quando optou pelo recrutamento de figuras pardacentas, a universidade portuguesa perdeu o contacto com o conhecimento crítico e com a sabedoria: as forças criativas de Portugal estão fora da universidade e contra a universidade que sacrifica a mudança no altar da conservação do emprego de homens mental e cognitivamente subnutridos. A ausência de projectos alternativos significa o fracasso total da universidade: o capitalismo é visceralmente contra a cultura e, depois da queda do Muro de Berlim, começou a investir contra a cultura. A indigência mental e cognitiva do nosso tempo é fruto desse capitalismo triunfante que sempre-já partiu à conquista do mundo global.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 26 de março de 2011

Pietro Pomponazzi e a Filosofia do Renascimento

«Na Idade Média, as duas faces da consciência, a face objectiva e a face subjectiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O véu que envolvia os espíritos era tecido de fé e de preconceitos, de ignorância e de ilusões; o mundo e a história apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia como raça, povo, partido, corporação, família ou sob uma outra forma geral e colectiva. Foi a Itália a primeira a rasgar o véu e a dar o sinal para o estudo objectivo do Estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objectos, desenvolve-se o aspecto subjectivo; o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado. Deste modo, se elevava outrora o Grego em face do mundo bárbaro, o Árabe em face de todas as outras raças asiáticas. Não será difícil provar que foi a situação política que teve o maior papel nesta transformação». (Jacob Burckhardt)

A historiografia burguesa da Filosofia tem desprezado a Filosofia do Renascimento, abordando-a como uma mera introdução ao assunto principal, Descartes, cuja expressão Cogito, ergo sum deu início à Filosofia Moderna. Porém, como demonstrou Engels, há uma longa pré-história antes de Descartes: «Quando a Europa saiu da Idade Média, a classe média urbana em ascensão era o seu elemento revolucionário. A reconhecida posição que conquistara dentro do regime feudal da Idade Média era já demasiado limitada para a sua força em expansão. O livre desenvolvimento desta classe média, a burguesia, já não era compatível com o regime feudal: este tinha de se desmoronar inevitavelmente. Mas o grande centro internacional do feudalismo era a Igreja Católica Romana. Ela unia toda a Europa ocidental feudalizada, apesar de todas as suas guerras intestinas, numa grande unidade política, antagónica tanto ao mundo cismático grego como ao mundo maometano. Rodeou as instituições feudais do halo da graça divina. Também ela havia erguido a sua hierarquia segundo o modelo feudal e era, no fim de contas, o maior de todos os senhores feudais, pois possuía, pelo menos, a terça parte de toda a propriedade territorial do mundo católico. Antes de poder dar combate, em cada país e nos diversos terrenos, ao feudalismo secular, seria necessário destruir a organização central santificada. A pouco e pouco, com a ascensão da burguesia, produzia-se o ressurgimento da ciência. Voltava-se a cultivar a astronomia, a mecânica, a física, a anatomia, a fisiologia. A burguesia necessitava, para o desenvolvimento da sua produção industrial, de uma ciência que investigasse as propriedades dos corpos físicos e o funcionamento das forças naturais. Mas até então a ciência não havia sido mais do que a humilde servidora da Igreja, não lhe sendo permitido transpor as fronteiras estabelecidas pela fé: numa palavra, havia sido tudo menos uma ciência. Agora, a ciência revoltava-se contra a Igreja: a burguesia precisava da ciência e lançou-se com ela na revolta» (Engels). Sem entrar na análise engelsiana das três grandes insurreições da burguesia contra o poder feudal santificado pela Igreja - a Reforma de Lutero, o Calvinismo e a Revolução Gloriosa, podemos definir a filosofia do renascimento como a transposição revolucionária das fronteiras estabelecidas pela fé, isto é, como a revolta contra o poder exercido pela Igreja sobre todos os aparelhos repressivos e ideológicos de Estado da sociedade feudal. O seu motivo ideológico - o seu elemento revolucionário - reside no facto de servir os interesses da burguesia urbana em ascensão: a filosofia do renascimento destrói pouco a pouco a organização central santificada e, deste modo, prepara no terreno da luta ideológica a ascensão da burguesia ao poder. Assim, nesta perspectiva engelsiana, a pré-história da Filosofia Moderna - anterior a Descartes - é a época de Telésio, Patrizzi, Pomponazzi, Giordano Bruno e Campanella (Itália), de Paracelso e Jacob Böhme (Alemanha), e de Francis Bacon (Inglaterra), mas também é a época de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, do direito natural burguês e das suas grandes teorias políticas: Althusius, Grócio, Maquiavel, Bodin e Hobbes. Jacques Le Goff esboçou a história do renascimento do século XII - o primeiro renascimento (Jean Gimpel) até ao outono da Idade Média (século XIV), destacando o papel de Chartres como centro científico do século, mas o seu esboço histórico já tinha sido antecipado por Karl Marx quando situou o berço do materialismo na Grã-Bretanha, em torno das figuras nominalistas de Duns Escoto (falecido em 1308) e de Guilherme de Occam (falecido em 1349): «Já o seu escolástico Duns Escoto se interrogara, "se a matéria não poderia pensar". Para fazer esse milagre, recorreu à omnipotência de Deus, isto é, forçou a própria teologia a pregar o materialismo» (Marx).

Aristóteles foi - durante a Idade Média - o filósofo medieval da Igreja e, com o objectivo de lutar contra o escolasticismo aristotélico, o Renascimento procurou descobrir o verdadeiro Aristóteles, libertando-o dos seus disfarces medievais (Windelband) e devolvendo-o à sua matriz pagã: Pietro Pomponazzi (1462-1525) renovou Aristóteles a partir da interpretação e dos comentários de um dos últimos representantes da escola peripatética, Alexandre de Afrodísia, que ensinou em Atenas entre 198 e 211. Dos seus comentários aquele que teve maior impacto sobre o pensamento da Idade Média - escolástica árabe e latina - e do Renascimento refere-se à teoria do intelecto activo. Alexandre de Afrodísia distingue três intelectos: o intelecto físico ou material que é o intelecto potencial (1), o intelecto adquirido que é a capacidade de pensar (2), e o intelecto activo que opera a passagem do intelecto potencial para o intelecto adquirido (3). O intelecto activo não pertence à alma humana: ele age sobre ela de fora, sendo a própria causa primeira, isto é, Deus. O abismo cavado por Aristóteles entre a sensibilidade e o espírito obrigou-o a supor um duplo entendimento ou intelecto: o intelecto passivo que é a alma sensitiva enquanto recipiente das representações que recolhemos através das nossas experiências, e o intelecto agente que é a faculdade activa e criadora do nosso espírito que abstrai das imagens a essência ideal ou conceito. Para Aristóteles, o intelecto agente é imortal, ao passo que o intelecto passivo perece com a morte do corpo. Alexandre de Afrodísia e Averróis compreenderam Aristóteles no sentido de que só há um intelecto agente, que realiza esta abstracção em todos os homens, e, por isso, negaram a imortalidade individual: a morte significa a aniquilação do indivíduo; o que sobrevive é a inteligência universal, em virtude da qual se exerce a actividade pensante em todos os homens. Para garantir a imortalidade individual, Tomás de Aquino (falecido em 1274), o Doctor communis, seguindo de perto Aristóteles, atribuiu a cada homem um intelecto agente próprio, porque cada homem pensa algo distinto. Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494) e Pomponazzi lutaram contra a imortalidade da alma, tendo sido acompanhados nesta luta pelo filósofo judeu português, Uriel da Costa (falecido em 1640), que, dentro do espírito do averroísmo latino, negou a imortalidade da alma defendida por outro judeu português, Samuel da Silva. No seu célebre escrito De immortalitate animae (1516), Pomponazzi nega não só a sobrevivência da alma, mas também o destino das almas no inferno, no purgatório ou no céu. Esta luta contra a imortalidade individual supõe um impulso anti-ideológico dirigido contra o poder penitencial da Igreja que dominou e torturou os homens até ao século XVIII. Confrontado com este poder terrível das chaves - as do escudo do vigário de Cristo - sobre a céu e o inferno que a Igreja arrogava deter, o homem temia mais a segunda morte - o inferno - do que a primeira morte. Segundo a velha religião dos judeus, não havia vida depois da morte: os mortos iam para o scheol, que era uma espécie de inconsciência. A crença na imortalidade individual só apareceu no mundo bíblico muito mais tarde, com o profeta Daniel, que a articulou com o sentido da justiça: os homens malvados devem perdurar para que possam receber o seu castigo, e os homens eleitos devem perdurar para presenciar a sua vitória. Porém, no decorrer da Idade Média, a noção de sobrevivência da alma para fins de justiça foi convertida em instrumento ideológico para garantir e perpetuar o poder da Igreja dos Papas e do Clero. Ao ler Aristóteles no original, Pomponazzi interpreta-o neste sentido: a alma é a enteléquia do corpo que desaparece com a morte do corpo. É certo que o espírito humano universal sobrevive - em Aristóteles, mas não de um modo pessoal: as nossas recordações e o nosso destino pessoais cessam completamente com a morte. Assim, nós não pagamos pelas nossas faltas pessoais e não somos premiados pelos nossos méritos pessoais. Os homens fenecem e findam como os animais, mas o entusiasmo desencadeado pela teoria de Pomponazzi não se deve tanto a esta afirmação da cessação total da vida, mas sobretudo ao facto da não-sobrevivência depois da morte ficar liberta do medo do inferno fomentado pelos membros do clero. A Igreja foi obrigada a opor-se a este entusiasmo geral provocado pela obra de Pomponazzi, que negava tanto a imortalidade pessoal como também a reduzida imortalidade da parte mais universal da alma, preconizada por Avicena e por Averróis: o seu poder penitencial estava colocado em questão a partir do momento em que se libertou a morte do inferno.

Florença - a da corte de Cosme e de Lourenço - foi o centro da nova Academia Platónica: Cosme de Médicis fundou-a a pedido do filósofo neoplatónico Georgios Gemistos Plethon (1355-1453). A Academia Platónica promoveu o amor a Platão, não só no seio de toda a Itália mas também em toda a Europa, como testemunham as obras humanistas de Girolamo Cardano (1501-1576), Luis Vives (1492-1540), Johann Reuchlin (1455-1522) e Desiderius Erasmus de Roterdão (1465-1536): o seu expoente máximo foi Marsílio Ficino (1433-1499), que traduziu para o latim as obras de Platão e de Plotino, mas a sua figura mais conhecida continua a ser Pico Della Mirandola que glorificou o homem - a dignidade do homem - como centro do universo, como vínculo dos mundos terreno, astral e divino, enfim como Deus que caminha sobre a terra para libertar os homens da escravidão e das imagens angustiantes impostas pela astrologia. Os platónicos de Florença converteram-se finalmente em neoplatónicos: ao voltar a reintroduzir o mundo do além, o neoplatonismo acabou por entregar a verdade ao inimigo contra o qual lutava. Pádua descobriu outro caminho para evitar esta entrega da verdade ao inimigo: o renascimento do autêntico Aristóteles. O centro do novo movimento aristotélico foi durante muito tempo a Universidade de Pádua. Entre os aristotélicos de Pádua, houve duas tendências: os averroístas, que, com Augustinus Niphus (1473-1546), defendiam a interpretação de Averróis, e os alexandrinos, que, sob a orientação de Pomponazzi, preferiam os comentários de Alexandre de Afrodísia. A disputa entre estas duas tendências filosóficas girava em torno da imortalidade da alma. Apesar de ambas negarem a imortalidade individual, os averroístas admitiam pelo menos a imortalidade da alma universal humana - o intelecto agente -, à qual retornavam depois da morte todas as almas, ao passo que os alexandrinos recusavam toda a forma de sobrevivência da alma. Para os filósofos árabes, Avicena e Averróis, a humanidade é uma árvore - a árvore da humanidade, que na primavera cresce somando folha a folha e que no outono fica despida de folhas: os homens - tal como as folhas, ao morrer, voltam ao estado de humanidade. Pomponazzi rejeita esta teoria mitológica do averroísmo e, em vez da retirada para a humanidade geral, defende o regresso à matéria universal. A matéria enquanto doadora de formas não precisa da cooperação de uma forma transcendente para gerar todos os fenómenos do mundo: a matéria gera a partir de si mesma todos os fenómenos do mundo, que, por sua vez, retornam a ela quando perecem. Esta concepção materialista da esquerda aristotélica alia-se no caso dos árabes e dos seus seguidores de Pádua à noção da imortalidade geral do homem na árvore da humanidade - noção rejeitada enfaticamente por Patrizzi (1520-1597) e Pomponazzi. Porém, dado que a negação da imortalidade colidia com a doutrina da Igreja, Pomponazzi elaborou a teoria da dupla verdade: assim como um tubarão e um leão não podem encontrar-se, porque um vive no oceano e o outro no deserto, assim tão-pouco podem encontrar-se os filósofos e os teólogos. A filosofia e a teologia têm «objectos» ou domínios completamente diferentes: os filósofos têm o reino da natureza e os teólogos, o reino da graça, os filósofos têm o reino de cá e os teólogos, o reino do além. Daqui resulta que algo pode ser verdade em teologia e falso em filosofia e vice-versa. No foro da dupla verdade, temos uma forma interessante do velho credo quia absurdum, credo quia ineptum, de Tertuliano, segundo o qual o teológico não só não é natural como também é antinatural, isto é, não só supera o entendimento como também está contra ele. A Igreja - o papa Pio X - rejeitou esta doutrina, cabendo a Tomás de Aquino a tarefa de a liquidar no plano da argumentação teórica. Para a doutrina oficial da Igreja, os mistérios não são antinaturais; são supra-racionais no sentido da razão humana não alcançar a parte profunda da razão divina. Pomponazzi utiliza a teoria do absurdo da fé, característica dos primeiros tempos da Igreja ascendente, para denunciar a Igreja decadente do seu tempo em transição. Pádua foi o palco não só das lutas entre averroístas e alexandrinos, mas também do ensino da anatomia. No seu magnífico teatro anatómico, havia sobre a mesa de autopsias um púlpito e, enquanto o professor seccionava e dissecava o cadáver, um monge rezava a missa no púlpito pela alma do defunto. A investigação anatómica só era autorizada pela Igreja nesta condição de ser acompanhada por uma missa. Pomponazzi formulou a sua teoria da dupla verdade para proteger a abertura da ciência natural em curso: o seu fruto mais precioso foi - a longo prazo - libertar a investigação anatómica da missa. O renascimento libertou-nos da missa e da tirania da teologia e, neste sentido, foi um bastião do esclarecimento.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 22 de março de 2011

Prós e Contras: O Destino das Cidades

«Em Garden Cities of Tomorrow, Howard reintroduziu no urbanismo o antigo conceito grego do limite natural de crescimento de qualquer organismo ou organização, restabelecendo, ao mesmo tempo, a medida humana da nova imagem da cidade. Para chegar a isso, introduziu também o uso grego, que fora reformulado em termos novos por Robert Owen e Edward Wakerfield, de colonização por meio de comunidades plenamente equipadas, desde o início, para levar a cabo todas as funções urbanas. Ao congestionamento de massa e sem propósito da grande metrópole, com os seus cortiços, a sua poluição industrial e as suas jornadas cada vez mais longas para o trabalho, Howard opôs um tipo de cidade mais orgânico: uma cidade limitada, desde o princípio, em número de habitantes e densidade de habitações, numa área limitada, organizada para realizar todas as funções essenciais de uma comunidade urbana, negócios, indústria, administração, educação; equipada também com um número suficiente de parques públicos e jardins privados, a fim de guardar a saúde e manter a suavidade de todo o ambiente». (Lewis Mumford)

Fátima Campos Ferreira trouxe o debate Prós e Contras (21 de Março) até à Cidade do Porto, tendo escolhido como palco o lindo Teatro Rivoli: António Costa (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa) e Rui Rio (Presidente da Câmara Municipal do Porto) conversaram sobre o destino das duas metrópoles portuguesas e, na segunda parte, sobre a crise política iminente. Na iminência de uma grave e preocupante crise política, promovida pela gula da Direita irresponsável que sacrifica o interesse nacional ao interesse partidário e pessoal, a escolha de dois políticos de quadrantes ideológicos diferentes - que, apesar disso, partilham ideias estruturantes - é susceptível de uma leitura política: mostrar o descontentamento e a desconfiança em relação aos principais protagonistas da crise política iminente e, ao mesmo tempo, apresentar novos protagonistas políticos capazes de interpretar correctamente o interesse nacional. De certo modo, o sentido desta leitura vai ao encontro do principal desejo dos portugueses: o desejo secreto - nem sempre bem expresso e bem tematizado - de se livrarem de José Sócrates, Passos Coelho e Paulo Portas, bem como das «alcateias» que os rodeiam. Quando definiu os dois problemas que Portugal precisa de resolver - o endividamento externo e a credibilidade política, Rui Rio reconheceu que os portugueses desconfiam da capacidade do actual regime político - uma democracia paralisada pelos interesses corporativistas - para levar a cabo as mudanças estruturais necessárias ao desenvolvimento integrado do país. Embora tenha tentado exorcizar a imagem do político como potencial corrupto, Rui Rio usou uma outra terminologia para reforçar a mesma ideia: a captura do poder político pelos interesses privados organizados implica necessariamente a existência de corrupção. O regime democrático português é medíocre, corrupto e cleptocrático e, enquanto nada for feito para pôr termo a esta situação de roubo legitimado, Portugal está condenado à miséria. António Costa usou uma bela imagem que aponta no sentido da responsabilização política dos agentes políticos que tudo fazem para promover a crise política: ao contrário das catástrofes naturais, as crises políticas são evitáveis. Apesar de ser um adepto da economia de mercado, António Costa revela aqui a sua dívida para com a filosofia marxista da história: a ordem social é histórica, no sentido de poder ser transformada qualitativamente pela praxis consciente, livre e responsável dos homens. Quando define a passagem da «pré-história» para a história como um salto qualitativo do reino da necessidade para o reino da liberdade, Marx não só afirma que são os homens que fazem a história em determinadas circunstâncias por eles não escolhidas, como também aponta para a possibilidade real da história ser feita com consciência, tendo em vista a construção de um mundo melhor. A Direita reifica - naturaliza - a história, porque não deseja mudar a ordem social vigente, moldada em função dos interesses das classes favorecidas que representa na arena política. O consenso estrutural desejado por António Costa e por Rui Rio é, face a esta circunstância política antagónica, utópico: o programa neoliberal de privatizações do PSD - e a sede irracional de poder que move os seus militantes e dirigentes - é absolutamente avesso a qualquer tentativa de mudança qualitativa da sociedade portuguesa. O BPN constitui a cristalização mais evidente da praxis política congelada do PSD. O discurso fatalista do PSD é contrário à construção de uma sociedade desenvolvida em Portugal: o fatalismo do PSD visa manter e conservar a sociedade tal como foi moldada nas últimas décadas pelos interesses privados organizados que negam o futuro aos portugueses. António Costa tem toda a razão quando afirma que o PSD pretende chumbar as novas medidas de austeridade - PEC 4 - propostas pelo governo, sem as discutir racionalmente no parlamento e propor novas medidas alternativas, para desencadear eleições legislativas antecipadas, e, no caso de as vencer, impor medidas idênticas ou medidas mais radicais ditadas pelo FMI: o que move o PSD não é o interesse nacional, mas a sede do poder. A praxis política do PSD revela a podridão do regime democrático vigente: o partido sem projecto alternativo ambiciona ser poder, não para interpretar o interesse nacional, mas para distribuir cargos pela sua clientela oportunista. A crise política assim gerada vai fazer com que as agências de rating penalizem cada vez mais Portugal. O consenso estruturante defendido por Rui Rio e António Costa deve ser alcançado pelos dirigentes políticos, competentes e sérios, que saibam interpretar o verdadeiro interesse nacional, independentemente da lógica partidária. O desenho da reforma administrativa depende do modelo de regionalização que se pretende implementar em Portugal (António Costa). A vida política portuguesa precisa de um saneamento global e a comunicação social deve ser responsabilizada pela sua degradação: a terapia linguística ensaiada por António Costa revela a morbidade do discurso jornalístico que reduz a política a um mero jogo de intrigas. Ou em linguagem do contrato social: em vez de promover o consenso ou o pacto de regime, a comunicação social portuguesa incentiva o estado de guerra de todos contra todos. A teoria democrática deve repensar o papel da comunicação social se não quiser ser surpreendida pela sua prática totalitária.

Servi-me do texto em epígrafe de Lewis Mumford para evidenciar que a teoria da cidade é, na sua essência, filosofia da história: «Cada civilização histórica, como há muito tempo mostrou Patrick Geddes, começa com um núcleo urbano vivo, a polis, e termina num cemitério comum de cinzas e ossos, uma Necrópolis, ou cidade dos mortos: ruínas chamuscadas pelo fogo, edifícios aluídos, oficinas vazias, montões de lixo sem significação, a população massacrada ou conduzida à escravidão». A desertificação dos centros históricos pode ser vista como uma consequência - ou manifestação - da pós-história: as cidades e as suas instituições firmaram um compromisso com o homem pós-histórico - essa criatura mental e cognitivamente indigente que devora o mundo como se fosse o último homem a habitar a Terra, que, em nome do controlo e do automatismo, ameaça penhorar todos os atributos da vida e da condição humana. A tarefa de descobrir uma nova forma para a cidade exige a ruptura com esse compromisso: a reabilitação dos centros históricos e o seu repovoamento abrem as portas à recriação histórica e cultural do Porto e de Lisboa. Porém, em Portugal, o abandono das centralidades históricas do Porto e de Lisboa reflecte um outro fenómeno psicológico de base que os fundos estruturais da União Europeia e o endividamento externo permitiram desabrochar em pleno num contexto de promiscuidade entre o poder político e o poder económico, como se os portugueses fossem sempre-já homens pós-históricos: o carácter saloio ou provinciano do português leva-o a assimilar o «moderno» em detrimento do histórico para afastar magicamente da consciência o seu primitivismo mental e cognitivo. O ódio nacional pela história reflecte o desprezo que o português nutre por si próprio e pelas suas criações: o saloio que não quer ser saloio veste a pele da modernidade que importa do exterior para esconder dos outros e de si próprio a sua profunda indigência interior. Por causa deste seu traço psicológico de base, provavelmente de origem neuro-genética, o português é levado a preferir a mentira à verdade: a fantasia modernista e futurista de Portugal é a grande responsável pela criação contínua da mentira organizada que somos no presente e que fomos no passado. O saloio é uma figura intemporal de todos os tempos que procura usufruir aquilo que não produz e que não conhece: a frivolidade do seu estilo de vida leva-o a exibir exteriormente aquilo que não tem interiormente. O saloio é um vazio existencial que passa pelo mundo sem lhe acrescentar mais-valia ontológica: o ódio que nutre pela história faz dele um apátrida, não tanto por não ter uma pátria, mas sobretudo por não sentir orgulho pela sua pátria e pela sua história. Por detrás da embalagem e dos adornos que exibe para os outros, não há nele nenhum vestígio de humanidade, a não ser um mero animal que se amedronta facilmente com a presença de animais hierarquicamente superiores. Para evitar um desenvolvimento teórico abstracto, vou exemplificar com duas situações sem no entanto pretender criticar os seus protagonistas: João Cepeda (Time Out) nasceu no Porto - a sua terra natal - mas vive em Lisboa há cerca de 20 anos. A sua relação com o Porto é uma relação estranha: enquanto aqui viveu nunca tinha reparado na beleza da Cidade Invicta que trocou por Lisboa. Só depois de ser atraído pelo alheio e de se tornar um estranho no Porto foi capaz de reconhecer que é agradável passear pelas ruas e praças da Invicta. A desvalorização da sua terra natal e a sobrevalização da terra alheia são traços típicos do saloio que, no fundo, tem vergonha de si próprio. Assim, por exemplo, o saloio vai a Paris e fica maravilhado com a cidade, mas o que o maravilha em Paris é aquilo que despreza nas cidades portuguesas: o seu património histórico e cultural. Quando Fátima Campos Ferreira confrontou Rui Rio com o destino do Cinema Batalha, este descartou-se da sua responsabilidade pelo património alegando que se trata de propriedade privada: quer dizer que, se os seus proprietários resolveram fazer o mesmo que foi feito no Cinema Águia d'Ouro, ficaremos apenas com as fachadas do edifício, privado da memória grandiosa da sua funcionalidade e do seu estilo arquitectónico. Ao lavar as mãos, Rui Rio negou a sua própria obra: requalificar o centro histórico do Porto e zelar pela sua memória. Porém, a perspectiva histórica da cidade revolta-se contra Rui Rio quando este condena a modernização da cidade: a conservação da memória da cidade - a reabilitação e a animação vital do seu núcleo histórico e identitário - não pode fechar-se à sua modernização permanente. A dialéctica entre o desenvolvimento e o crescimento das cidades é muito mais subtil do que a versão conservadora apresentada por Rui Rio: a noção de cidade-museu vivo fecha-se ao futuro e não se coaduna com a perspectiva urbana avançada por António Costa: Lisboa e Porto como activos de Portugal e como centros metropolitanos portadores de uma estratégia de desenvolvimento nacional e de afirmação da imagem nacional num mundo cada vez mais global. Se os portuenses e os lisboetas tivessem negado o crescimento das suas cidades no passado, não teríamos hoje um património - uma identidade histórica e citadina - a conservar: as cidades sempre souberam conciliar o antigo e o novo, de modo a não perder a batalha do futuro. É certo que os turistas estrangeiros procuram preferencialmente no Porto o seu núcleo histórico, aquele que lhe permite afirmar a sua identidade única no mundo, como disse Rui Rio, mas sem um desenvolvimento integrado de toda a cidade não podemos fomentar e garantir esse turismo cultural: a construção do metro do Porto, o alargamento do aeroporto, a criação de novos hotéis e de novos espaços de lazer, a Casa da Música, a Casa de Serralves e o Estádio do Dragão são estruturas modernas que reforçam a centralidade histórica do Porto, sem as quais a cidade não seria atractiva. A reabilitação do centro histórico do Porto - uma tarefa urgente! - não pode ser realizada à custa da sua modernização: o antigo e o novo devem ser articulados de modo a não fechar a cidade ao futuro. Com esta crítica, não pretendo denegrir a obra interessante de Rui Rio na requalificação do centro histórico, mas condenar a mentalidade de hiena das figuras labregas - os homens-chouriço - da cidade do Porto que, destituídas de inteligência e de cultura, pretendem negar o futuro aos portuenses, opondo-se à modernização da cidade e à construção de edifícios ousados. Estas figuras grotescas que pretendem gerir a identidade portuense - dando-lhe visibilidade pública - são a vergonha da Cidade Invicta. Quem não conhece no seu local de trabalho ou na sua área de acção um destes labregos que, pela sua redundância, não deixam os autarcas eleitos gerir de modo racional o desenvolvimento das cidades, como disse António Costa? A reforma do modelo autárquico proposta por António Costa e Rui Rio pode ajudar-nos a eliminar os labregos que bloqueiam o desenvolvimento de Portugal. Emídio Gomes - pró-reitor da Universidade do Porto - fez o elogio merecido da Universidade do Porto - a maior e a mais prestigiada Universidade de Portugal - que comemora hoje 100 anos (22 de Março), mas não disse que nela habitam muitos labregos que se identificam organicamente com os cargos que desempenham para abusar do poder e esconder a sua mediocridade. (A FLUP é um antro de idiotas!) Fátima Campos Ferreira devia realizar um outro debate dedicado exclusivamente à Universidade do Porto e ao seu centenário: os portugueses devem perder o medo, libertar-se da subserviência e ter coragem para denunciar os vícios e os esquemas escuros das suas instituições, porque os labregos que as dominam sabem gerir esse medo em proveito próprio e garantir assim a sua perpetuação nos cargos de decisão. O futuro de Portugal depende desta coragem de ser: a revolução mental de Portugal é a única revolução que nos pode abrir as portas do futuro neste tempo de crise que nos mergulha na bancarrota. (Além dos convidados referidos, participaram neste debate - Arlindo Cunha, Fernando Santo, Oliveira Fernandes e Tiago Farias.)

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 16 de março de 2011

A Filosofia na Época Helenística

«Alexandre viveu o suficiente para superar a estreita concepção de uma ascendência helénica sobre os não-helenos, em favor do ideal maior da fraternidade da humanidade. No seu contacto com os persas, reconheceu e admirou todas as virtudes que lhes permitiram governar uma grande parte do mundo por mais de duzentos anos, e passou a sonhar com um mundo governado em conjunto pelos persas e pelos helenos. Este idealista precoce, porém, era capaz de matar amigos e companheiros, em ataques de fúria alcoólica, tal como o herói homérico que o lado adolescente da sua natureza aspirava a ser. E a sua intemperança habitual foi, sem dúvida, a causa da sua morte súbita e prematura, na Babilónia, em 323 a.C. Tivera tempo de destroçar um grande império, mas apenas começava a pôr em prática os planos de reconstrução que lhe amadureciam no espírito». (Arnold J. Toynbee)

Em 1836-43, J. G. Droysen publicou a sua obra "Geschichte des Hellenismus", onde entende por helenismo a época que começa com a derrota do Império Persa pelo exército de Alexandre o Grande. O novo império criado por Alexandre - rei da Macedónia - dissipou-se rapidamente como construção política depois da sua morte em 323 a.C., mas a ideia que lhe era subjacente - a criação de uma cultura humana unitária com o selo helénico - sobreviveu em cada um dos fragmentos em que se decompôs: os Ptolomeus no Egipto, os Selêucidas na Síria e nas terras do Eufrates, os Atálidas no Pérgamo e na Ásia Menor e os Antigónidas na Península Balcânica. Esta fragmentação do Império Macedónico não implica o fracasso do sonho de Alexandre: a sua ideia de superar a distinção entre helenos e bárbaros mediante a fusão dos povos orientais e ocidentais realizou-se a par e passo durante os séculos seguintes. A posteridade viu nele não um conquistador mas o reconciliador de todos os povos que consideravam a Ecumene como a sua pátria. O conceito de Ecumene - a unidade da terra habitada - desenvolveu-se na época helenística: a vida política deixou de ter lugar nas estreitas fronteiras das cidades-estado gregas e passou a desenrolar-se no campo mundial da terra habitada. A ideia cosmopolita e humanística germinou nesta arena mundial: o elemento grego desnacionalizou-se para se tornar domínio espiritual do mundo e, no lugar da cidade-estado, instalou-se o estado mundial, cujo cidadão já não era o cidadão nacional, mas o cidadão do mundo, o cosmopolita. Neste cosmos da nova ordem mundial, formou-se um novo sentimento do mundo e da vida: o indivíduo autárquico e autosuficiente, liberto dos estreitos laços da polis, sentiu-se entregue a si mesmo e, ao mesmo tempo, inserido e articulado na ordem do mundo e na humanidade como tal. Deste modo, abriu-se o caminho para o individualismo sem limites que permitiu ao homem desenraizado do seu lugar de origem sentir-se em sua pátria em qualquer lugar da ecumene. No mundo helenístico, o que predominava não era o elemento de separação e de contraposição nacional, mas o elemento da unidade humana e o sentimento de parentesco e de conaturalidade de todos os homens: a filantropia - a amizade de princípio - impôs-se como relação natural entre os homens, em vez da estranheza e da hostilidade nacionais. Porém, a realidade desta ideia de humanitas - a que os gregos deram conteúdo e os romanos o nome - não correspondia plenamente ao ideal e, por isso, o mundo real foi forçado a justificar-se perante o tribunal daquele mundo humano ideal exigido pela razão. A filosofia grega desta época - em especial o estoicismo - constitui o fundamento e a consumação da ideia de estado mundial e da irmandade dos homens. A cultura helenística é fundamentalmente uma cultura das grandes cidades - Alexandria no Egipto, Antioquia na Síria e Pérgamo na costa ocidental da Ásia Menor, por exemplo -, que funcionavam, neste vasto mundo unido pela linguagem grega internacional - a chamada Koiné -, como centros da vida espiritual e, ao mesmo tempo, como residências dos príncipes, cujas riquezas estavam ao serviço da ciência e das artes. Porém, esta cultura helenística nunca conseguiu aprofundar-se à medida que se difundia pelo mundo e acabou assim por sucumbir ao perigo que a ameaçava desde o início - ser uma mera civilização, cujos excessos culturais desencadearam a reacção da predicação da escola cínica, a favor do regresso à natureza. O fim da época helenística pode ser datado a partir do momento da dissolução dos Estados Helenísticos no Império Romano - em meados do século II a.C., ou do seu começo, mas estes dois acontecimentos não quebraram o estilo da vida cultural e espiritual do mundo helenístico que irá continuar vivo até ao final da Antiguidade (século III da era cristã), quando a influência oriental - o poder místico da sua religião - conquistou o domínio da vida espiritual no Ocidente: Roma foi sempre uma província cultural do helenismo, no sentido da civilização romana ter sido submetida pela Filosofia ao espírito grego, ao pensamento grego e à sua dúvida, como testemunha o estoicismo de Séneca (4 a.C.-65 d.C.), Musónio Rufo e Marco Aurélio (121-180 d.C.).

Infelizmente, a filosofia do helenismo e as suas escolas filosóficas são negligenciadas nos cursos de Filosofia, pelo menos aqui em Portugal que carece de uma sólida tradição filosófica. O meu interesse súbito por estas escolas filosóficas - o epicurismo, o estoicismo e o cepticismo - não se deve tanto à leitura da tese de doutoramento de Karl Marx, mas sobretudo à semelhança estrutural que vislumbro entre este período histórico e o nosso tempo indigente. O epicurismo e o estoicismo - Stoa - são os dois sistemas filosóficos que deram forma ao novo espírito da época helenística: ambos foram fundados em Atenas pouco antes do ano 300, ambos apelam na sua física ao pensamento pré-socrático, ambos concedem a proeminência à filosofia prática - a ética, na qual elaboram e desenvolvem ideias das escolas socráticas, e ambos entregam o homem a si mesmo e procuram levá-lo à eudemonia - à serenidade e à tranquilidade interior (apatheia), embora a epicurismo a procure na separação do indivíduo da cidade e o estoicismo na união de todos os homens, aparentados por natureza: «Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor recíproco e fez-nos sociáveis» (Séneca). Ao lado destes dois sistemas filosóficos, subsistem as duas grandes escolas filosóficas antigas da Academia (Platão) e do Liceu ou Perípato (Aristóteles). O cepticismo introduz-se na Academia que, deste modo, se afasta de todas as escolas dogmáticas, e os peripatéticos fundamentam cada vez mais resolutamente a investigação na experiência, transformando-se em cientistas e abrindo o caminho à especialização das ciências. Além destas escolas que conquistaram espiritualmente o Império Romano, o cinismo ataca ferozmente a situação existente, em especial a religião, e tenta rectificar as concepções erróneas dos homens sobre os bens desta vida e o seu valor. As campanhas de Alexandre e, pouco mais tarde, o aparecimento dos imperadores romanos, com os seus sonhos de império universal, criaram no espaço do Mediterrâneo uma situação completamente nova: a ruína dos Estados pequenos, a perda da liberdade e a insegurança geral despertaram nos homens angustiados a pergunta de como poderia um homem ser feliz num mundo tão incerto. As escolas filosóficas que surgiram para lhe dar uma resposta colocam a ética - como mestra e caminho da felicidade, definida como imperturbabilidade - no centro de toda a problemática filosófica. Na sua tese sobre a diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, Marx viu que o atomismo foi na escola epicurista o complemento do individualismo da época helenística: o dissolução das cidades gregas levou os epicuristas a renunciar à sociedade que deixara de ser conforme à razão e a preconizar a autonomia do indivíduo. A própria palavra atomon significa simultaneamente «átomo» e «indivíduo»: os epicuristas fizeram os elementos do universo impacíveis e imperturbáveis, porque, numa sociedade destroçada pela discórdia, era esse o ideal que procuravam. Ao recusar a vida pública, os epicuristas esperavam libertar-se de tudo o que podia perturbar a tranquilidade do seu espírito, e, para que esta recusa fosse um acto livre, introduziram o acaso no seio do determinismo de Demócrito: «Assim, a finalidade da acção é a abstracção, a supressão da dor e tudo o que pode perturbar-nos, a ataraxia» (Marx). Os epicuristas não procuram mudar o mundo, mas retirar-se do mundo: a sua ética visa, em última análise, a autonegação do sujeito. Como é evidente, está fora dos objectivos deste texto desenvolver a filosofia do helenismo e confrontá-la com a situação da filosofia contemporânea, mas as considerações genéricas aqui explicitadas visam preparar o terreno para essa exposição sistemática das diversas escolas filosóficas que dominaram na época helenística: a colocação da ética no centro da problemática filosófica gera em mim a suspeita de que a filosofia está a tentar fugir do mundo, em vez de iluminar a praxis que visa a sua transformação qualitativa. O retiro da alma em si própria (Marco Aurélio) e a ética da resignação - «Suporta e abstém-te» (Epicteto de Hierápolis) - são incompatíveis com a tarefa de transformar o mundo, porque o homem sozinho - ainda que procure a perfeição privada na companhia dos amigos mais íntimos - não pode ser verdadeiramente «feliz» num mundo que gera a infelicidade e a miséria. Em épocas de crise profunda, retirar-se do mundo comum, refugiando-se em si próprio, em busca da sua tranquilidade anímica, significa abandonar o destino do mundo aos caprichos do poder estabelecido: a política deve ter prioridade sobre a ética e esta é uma lição - de quem? de Karl Marx? - de Aristóteles.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 15 de março de 2011

Prós e Contras: Eleições à Vista?

«O melhor processo de aumentar a inteligência dos sábios seria a diminuição do seu número. Bastaria um pequeno grupo de homens para desenvolver os conhecimentos de que temos necessidade, caso esses homens fossem dotados de imaginação e dispusessem de poderosos meios de trabalho. Desperdiçamos todos os anos grandes somas de dinheiro em investigações científicas, porque aqueles a quem elas são confiadas não possuem, em grau suficiente, as qualidades que fazem os conquistadores de mundos novos, e também porque os poucos homens que possuem essas qualidades estão colocados em condições de vida em que a criação intelectual é impossível. Nem os laboratórios, nem os aparelhos, nem a excelência da organização do trabalho científico, fornecem, por si sós, o meio que é indispensável ao sábio. A vida moderna opõe-se à vida do espírito. Os homens de ciência acham-se rodeados por uma multidão cujos apetites são puramente materiais, e cujos hábitos são inteiramente diferentes dos seus. Esgotam inutilmente as suas forças, e perdem grande parte do seu tempo na conquista das condições indispensáveis ao trabalho do pensamento. Nenhum deles é suficientemente rico para conseguir o isolamento e o silêncio que outrora cada um podia obter gratuitamente, mesmo nas grandes cidades. Não se tentou até hoje a criação, no meio da agitação da cidade moderna, de ilhas de solidão em que a meditação fosse possível. Uma tal inovação impõe-se contudo. As altas construções sintéticas estão fora do alcance daqueles cujo espírito se dispersa todos os dias na confusão dos nossos actuais modos de viver. O desenvolvimento da ciência do homem, mais ainda do que o das outras ciências, depende dum imenso esforço intelectual. Reclama uma revisão, não só da nossa concepção do sábio, mas também das condições em que se faz a investigação científica». (Alexis Carrel)

A obra de Alexis Carrel tem estado presente na minha mente - de modo distante, é certo!-, mas só hoje resolvi relê-la: o texto em epígrafe revela algumas afinidades estruturais entre a minha perspectiva da indigência mental e cognitiva do homem de hoje e a atrofia da inteligência preconizada por Carrel. O debate Prós e Contras de hoje (14 de Março) confirma o sentido da nossa preocupação comum: o futuro da civilização ocidental e a possibilidade de renovação do homem ocidental. Os participantes neste debate foram cinco figuras do Parlamento Português - a instituição democrática mais desacreditada em Portugal, cada uma das quais em representação de um partido político: Francisco Assis (PS), Miguel Macedo (PSD), Pedro Mota Soares (CDS-PP), Bernardino Soares (PCP) e José Manuel Pureza (BE). As novas medidas de austeridade - tomadas pelo governo - estão a ser usadas pela Direita para alimentar a sua sede de poder: a moção de censura está outra vez na ordem do dia. A Direita quer derrubar o governo e devolver a palavra ao povo e, depositando demasiada confiança no sentido das sondagens, já sonha com os benefícios materiais de deter o poder, não para resolver a crise nacional, mediante a apresentação de um projecto alternativo credível, mas para ter acesso - em última análise - ao dinheiro público. Como disse Carrel: «o homem moderno caiu numa completa indiferença por tudo, excepto pelo dinheiro». Muita sede de poder e de riqueza fácil e poucas ideias redentoras: eis o retrato do triste e feio debate de hoje. A presença de deputados degrada a qualidade dos debates moderados por Fátima Campos Ferreira, o que confirma a incompetência dos políticos portugueses e a corrupção que se instalou no seio dos partidos do arco do poder - a eterna tempestade amorosa da promiscuidade, o coito e a orgia da corrupção (Ver o quadro de Oskar Kokoschka, A Tempestade, 1913) - e no próprio sistema político. São políticos deste tipo zombie - analfabetos funcionais - que degradam constantemente a vida regular de todos os subsistemas que compõem a sociedade portuguesa, a começar pelo sistema educativo. O que Carrel disse em relação à imaginação científica aplica-se igualmente à imaginação política: Portugal não precisa do número excessivo de deputados incompetentes que tem no seu feio Parlamento. A Assembleia da República é o rosto visível da degradação da vida política portuguesa: a sua lógica de funcionamento - o debate parlamentar como troca de insultos e de ordinarices, por exemplo - mostra como o regime democrático pode ser usado para destruir a própria democracia. Os homens sem qualidades - hoje o político é, por excelência, o homem sem qualidades de Robert Musil! - assaltaram a Assembleia da República e estão a minar todo o sistema político: o poder político é usado em benefício próprio e a noção de serviço público esfuma-se no ar. O maior problema estrutural e histórico de Portugal é a corrupção - em sentido lato - que se instalou depois do 25 de Abril nas altas esferas do poder. Os vagabundos saloios conquistaram o poder e Portugal é refém deste bando de vagabundos que abusam do regime democrático para garantir as regalias e os privilégios sociais do seu estilo de vida artificial: emprego pornograficamente remunerado sem exigência de qualificações e sem trabalho. Portugal navega sem rumo em águas perigosas, repletas de políticos, empresários e banqueiros corruptos. A decadência estrutural de Portugal deve ser vista no âmbito da decadência geral da civilização ocidental: «Os nossos antepassados realizaram uma obra sem igual na história da humanidade. Os homens que, na Europa e na América, deles descendem, parecem ter esquecido a história» (Alexis Carrel). A existência de políticos que esqueceram a história é um crime: o discurso hipócrita da ideologia dos direitos humanos e o predomínio da temática ética articulam-se com o imoralismo e o individualismo míope da nossa época indigente.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 12 de março de 2011

Portugal: Manifestação da Geração à Rasca

A classe dirigente de Portugal - o sistema político vigente e o sistema partidário - devia ter vergonha na cara e demitir-se em bloco, responsabilizando-se pela má governação e pela corrupção dos últimos 30 anos. A manifestação de hoje - no fundo, a manifestação de um país à rasca - mostra que o Poder está nas ruas e, quando isso acontece, a Revolução está na ordem do dia. A geriatria instalada deve ser saneada, porque foi ela que gerou este país de miséria. Os rebeldes devem ter coragem e assumir a Ruptura com o sistema estabelecido sem fazer cedências a nenhum partido político. Os rebeldes já não suportam a incompetência e a má-fé dos políticos portugueses. O sistema vigente não oferece alternativa credível: o melhor é derrubar o próprio sistema e banir as suas figuras tutelares. Revolução Radical! A Luta continua!

terça-feira, 8 de março de 2011

Hipócrates e Medicina Grega

Endossando a noção cientificamente correcta enunciada por Anaxágoras, Hipócrates afirma que «do cérebro, e apenas do cérebro, surgem os nossos prazeres, alegrias, bem como as nossas tristezas, dor, pesar e lágrimas. É este mesmo órgão que nos torna loucos ou delirantes, influencia-nos com terror e medo, traz a insónia e a ansiedade despropositada». (Hipócrates)

«Quando o corpo está desperto, a alma é a sua serva e divide a sua atenção entre ouvir, ver, etc., mas quando o corpo está em repouso, a alma administra o seu próprio lar». (Hipócrates)

A tradição situa Hipócrates de Cós (460-377) em relação a Demócrito: a actividade médica de Hipócrates levou-o até a cidade natal de Demócrito - Abdera na Grécia setentrional - e a afinidade espiritual entre ambos reside no desejo comum de explicação científica dos processos naturais. Na Grécia Antiga existia uma conexão muito estreita entre a medicina e a religião e esta conexão manifestava-se na medicina dos Templos, com as suas curas milagrosas celebradas, por exemplo, nas inscrições votivas de Epidauro. É na luta contra esta medicina dos Templos, exercida nos santuários de Esculápio - Asclépios - e dos demónios médicos ou sacerdotes-curadores associados com ele, que se elabora a medicina científica de Hipócrates: quer dizer que a nova ciência médica - tal como a Filosofia - entra em cena como um protesto contra a fé religiosa tradicional. Os médicos racionalistas estavam em constante conflito com os médicos dos templos que proporcionavam curas mágicas: o debate entre dois estilos diferentes de tratamento, um racional e o outro sobrenatural, implicava também uma feroz competitividade pela conquista de pacientes. O mestre de Hipócrates que o iniciou na arte médica foi Heródico de Selimbra que, opondo-se à escola médica de Cnido, insistia na dietética e definia a medicina como a «educação científica para a vida natural»: a causa da doença era para ele o desvio dessa vida natural. A escola médica de Cós confrontou-se com outras duas escolas médicas (Cf. J. Ilberg, 1894, 1924; J. Jouanna, 1974; H. Grensemann, 1975; W. Smith, 1973; A. Thivel, 1977; Bourgey, 1953; V. di Benedetto, 1980): a escola de Cnido que praticava uma medicina empírica ou pragmática, preocupada fundamentalmente com a eficácia terapêutica, e a escola dogmática que promovia uma medicina teórica ou especulativa, apoiando as suas doutrinas médicas nas teorias filosóficas. A escola de Cós protagoniza uma medicina racional e positiva que não só rejeita a tradição religiosa da medicina, como também reclama a sua autonomia em relação à filosofia. A separação da medicina da filosofia - operada pela medicina hipocrática, com a ajuda da sofística - constitui o primeiro exemplo importante de autonomização das ciências particulares. Um escrito intitulado Sobre a Medicina Antiga - que não pode ser atribuído a Hipócrates pelo facto de ignorar a medicina meteorológica e de recusar toda a «hipótese», rendendo homenagem ao empirismo puro - inverte completamente as relações entre a filosofia e a medicina: em vez de ser a medicina a aprender da Filosofia, é a filosofia a aprender da Medicina, a única investigação - segundo o seu autor - a «conseguir um verdadeiro conhecimento da natureza». Apesar da distância temporal que separa a medicina grega da medicina dos tempos modernos, a ambição da primeira encontra-se ainda presente na obra de Paracelsus (1493-1541), que procurou criar uma nova Filosofia capaz de incluir a terapêutica: o médico - para Paracelsus - é sempre um mestre do pensamento filosófico e, dado ser superior às outras coisas, ele deve «saber mais» e ser «um pai da Filosofia». A medicina hipocrática entrelaçou-se com elementos sofísticos e gnósticos, abrindo-se às tendências antropológicas da Filosofia Antiga, através do princípio "Conhece-te a ti mesmo" do oráculo de Delfos e do logos de Heráclito - "Investiguei-me a mim mesmo": a noção de médico como «pai da Filosofia» avançada por Paracelsus retoma o dito de Hipócrates sobre o iatros philosophos isotheos - o médico digno de ser considerado filósofo deve ser denominado divino, no qual se idealiza visivelmente o auto-projecto na imagem do deus da cura, Apolo, aliás evidenciado no Juramento Hipocrático.

A nova ciência médica elaborada por Hipócrates pode ser caracterizada por dois traços fundamentais - além da sua rigorosa etiologia: a consideração do homem, da sua saúde e da sua doença, em relação não só com todo o seu organismo, mas também com toda a natureza que o rodeia, e até mesmo com o cosmos no seu conjunto, em especial com os fenómenos meteorológicos, donde resultou a designação medicina meteorológica dada ao seu método (1), e o profundo respeito pela natureza que define de modo quase religioso o grande médico, bem como a sua profunda compreensão racional da natureza (2). O Juramento de Hipócrates ajuda a compreender a adesão do médico ao habitus antropológico: a intervenção médica, com a sua tendência a melhorar a condição vital do homem e a curar, desperta no seio da ciência médica o problema da concepção do homem, cuja saúde se pretende restaurar. O ideal do meio com a função de uma mediação necessária no processo de restauração da saúde desempenha um papel fundamental na medicina hipocrática e na cultura médica antiga: a Fisiologia hipocrática elementar e a Patologia humoral - um contributo do genro de Hipócrates, Polibo (Vide Sobre a Natureza do Homem) - exibem uma orientação cosmológica, e o homem - enquanto natureza biológica, physis - está orientado para um nomos sociologicamente estilizado, atribuindo-se à medicina funções harmonizadoras. O corpo humano como imitação do universo é um pequeno mundo com todas as relações lábeis de equilíbrio, tais como as que são produzidas pela mudança das estações, pela circulação dos elementos, e pela mudança do clima: «Quem quiser aprender bem a arte de médico - escreve Hipócrates - deve proceder assim: em primeiro lugar há-de ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os efeitos dos diversos géneros de água. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo sabor, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico - o médico ambulante ou nómada - chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais, a posição que ela ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência - a ciência da Jónia, claro -, mas quem tal pensar pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima» (Sobre os Ventos, a Água e os Lugares). A physis que garante a estrutura cósmica é uma força que age por trás sem se apresentar como pura força natural; pelo contrário, a physis apresenta o homem como um ser repleto de deficiências. A função da terapêutica é compensar essas deficiências do homem, de modo a devolver-lhe a saúde: «A arte dos médicos liberta apenas da dor, eliminando desta forma o que torna a pessoa doente e restituindo-lhe a saúde. Também a natureza pode fazer isto, aliás por si mesma, sem ser instruída por ninguém e produzindo sempre o que é correcto» (Hipócrates). Neste sentido, a medicina é essencialmente formação do homem, isto é, antropoplástica, e a sua techne therapeutike - arte terapêutica - consiste no cuidado privado do corpo e num serviço público em prol da saúde (politike). De acordo com esta concepção, a saúde como critério de equilíbrio ou simetria das forças na proporção adequada - a noção de isomoiria de Sólon, isto é, a ideia de que o estado são e normal depende da proporção idêntica entre os elementos fundamentais de um organismo e da natureza no seu conjunto - refere-se sempre à natureza, ao mesmo tempo que a ultrapassa para englobar todas as condições de vida e da sociedade, incluindo a luz e o ar, a comida e a bebida, o trabalho e o descanso, o sono e o estado de vigília, as excreções e as eliminações ou até mesmo os afectos da alma. Além do regime alimentar, incluem-se aqui - juntamente com a Dietética - as influências ou os efeitos do ar e da água, os grandes ritmos do trabalho e do lazer, do estar acordado e do sono, os exercícios corporais e a higiene sexual, o domínio das paixões, enfim tudo o que pode ser útil à saúde e capaz de recuperar o justo meio termo (mesotes) perdido pelo homem doente: o verdadeiro temperamentum é, pois, orientar o homem para uma Ortobiótica e para uma Macrobiótica, para a arte de prolongar a vida, dando-lhe maior profundidade, enriquecendo-a e imprimindo-lhe sentido.

O chamado Corpus Hippocraticum (Cf. E. Littré, 1839) reúne cinquenta e três escritos, mas nem todos eles são da autoria de Hipócrates: só os escritos mais antigos podem ser atribuídos a Hipócrates e, destes últimos, os mais notáveis são Sobre a Doença Sagrada e Sobre os Ares, a Água e os Lugares. Os três tipos de medicina identificados por Bourgey encontram-se presentes nesta colecção hipocrática, mas é relativamente fácil distinguir os escritos da escola de Cnido dos escritos da escola de Cós no que se refere aos tratados sobre as Doenças - ou Enfermidades. Além dos escritos já referidos, o Prognóstico, os livros I e III das Doenças, os escritos cirúrgicos - Sobre a Fractura dos Ossos e Sobre a Redução das Luxações ou da articulação dos membros - e a colecção dos Aforismos são geralmente atribuídos a Hipócrates (Cf. K. Deichgraeber, 1933). A ciência médica que surge na Hélade não está separada da vida geral do espírito e, à semelhança do que a Filosofia e a Poesia faziam, procura conquistar um lugar firme dentro da vida cultural, dirigindo-se ao homem como tal. Para alcançar este objectivo, os médicos gregos esforçam-se conscientemente por comunicar às pessoas os seus conhecimentos e por encontrar os meios e as vias necessárias para os tornar inteligíveis: as suas obras falam muito de leigos e de profissionais. A palavra leigo era usada pela Igreja medieval para designar os não-clérigos e mais tarde, em sentido lato, os não-professos. A palavra grega que exprime a mesma ideia é idiotes e, por causa da sua origem político-social, era usada para designar o indivíduo que não está enquadrado no Estado e na comunidade humana, vivendo a seu bel-prazer. O médico define-se por oposição ao idiotes como um demiurgo, isto é, como um homem de acção pública no plano social, e como um homem cuja actividade demiúrgica tem como objecto os leigos ou membros do demos, no plano técnico. O nomos hipocrático estabelece claramente esta distinção religiosa entre o profissional e o leigo, o iniciado e o não-iniciado: «Só aos homens consagrados se revelam as coisas consagradas; é vedado revelá-las aos profanos, enquanto não estiverem iniciados nos mistérios do saber». O corporativismo médico subjacente a esta distinção entre dois tipos de homens não levou o grupo profissional dos médicos - detentor de uma «ciência oculta» - a fechar-se à comunidade dos homens. Ao lado de uma literatura profissional à qual pertence a maior parte dos tratados médicos gregos, surgiu uma literatura médica especial que se destinava ao ensino dos leigos - ao grande público - e à própria propaganda médica. Os livros Sobre a Medicina Antiga, Sobre a Doença Sagrada, Sobre a Natureza do Homem, Sobre a Arte e Sobre a Dieta pertencem a este último grupo literário que tenta realçar a importância pública da profissão médica: «Esta techne - diz o autor Da Medicina Antiga - deve estar mais atenta do que outra qualquer à preocupação de falar aos profanos em termos inteligíveis». Aristóteles e Platão destacaram outra distinção entre o investigador profissional da natureza e a pessoa culta em matéria de ciência natural - o cidadão livre medicamente informado, mas coube a Platão ver na paideia médica, baseada num esclarecimento a fundo do doente, o ideal da terapêutica científica. Nas Leis, Platão distingue dois tipos de médicos - o médico dos escravos e o médico dos homens livres - em função do modo como cada um deles procede para com os seus doentes: «Se um destes médicos - dos escravos que correm duns pacientes para os outros sem fundamentar os seus actos - ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados dos das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se à natureza de todos os corpos, perder-se-ia certamente de riso e diria o que a maioria das pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: o que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico».

Sobre a Doença Sagrada. Na Grécia Antiga predominava a crença de que determinadas doenças que se manifestam em perturbações espirituais ou psíquicas, nomeadamente a epilepsia e as fobias, se deviam à acção dos deuses ou de demónios: os pacientes que as exibiam eram vistos como se estivessem possuídos pelos demónios e a sua cura só podia ser realizada por meios religiosos ou mágicos. Hipócrates luta ferozmente contra esta representação religiosa da epilepsia no seu escrito Sobre a Doença Sagrada: a epilepsia não é, para Hipócrates, uma doença «mais divina nem mais sagrada do que as restantes doenças», mas uma doença que, tal como as outras, «tem uma causa natural que a produz». Os homens viram nela um acontecimento divino, «porque estavam indefesos perante ela e se espantavam com as suas diferenças em relação às outras doenças». Após ter recusado a natureza sagrada da epilepsia, Hipócrates ataca ferozmente os métodos terapêuticos religiosos usados nos templos para curar os doentes supostamente possuídos ou loucos, tais como exorcismos mágicos, cerimónias rituais, penitências e todo o dispositivo supersticioso com o qual se procurava expulsar os demónios. Todos estes dispositivos religiosos e mágicos usados para combater a epilepsia aniquilam o divino ao tentar submetê-lo. Tal como as outras doenças, a epilepsia é plenamente natural, sendo causada por uma enfermidade do cérebro, provavelmente provocada por um excesso de ar e, sobretudo, pelas mucosidades. Os seus sintomas mais evidentes são as convulsões, a espuma na boca, a agitação das pernas e dos braços, os dentes cerrados, os olhos revirados, a falha da voz, a sensação de afogo e o desmaio. Todos estes sintomas, e, em especial, o excesso e o defeito de movimentos, têm a sua causa numa doença do «órgão central» - o cérebro - em que intervêm também os fenómenos atmosféricos, «o aumento ou a diminuição do frio e do calor solar e a mudança das correntes de ar»: «Isto é o divino. Não se pode, pois, separar esta doença das demais doenças e considerá-la mais divina do que elas, pois todas as doenças são divinas e todas são humanas. Cada uma delas tem em si a sua natureza e a sua força», cabendo ao médico «saber estabelecer no homem, mediante a dieta, o seco e o húmido, o quente e o frio», e «reconhecer o momento correcto» para curar estas doenças por métodos naturais, «sem cerimónias de purificação e magia».

Sobre os Ventos, a Água e os Lugares. Este escrito divide-se em duas partes. Na primeira parte, Hipócrates expõe a sua teoria da medicina meteorológica: antes de iniciar a sua actividade numa cidade, o médico ambulante deve informar-se sobre o seu clima, a sua atmosfera e a natureza das suas águas, porque todos estes factores exercem grande influência sobre a constituição física e psíquica dos seus habitantes. Para Hipócrates, a meteorologia está intimamente ligada à medicina: o homem integra-se e insere-se plenamente na conexão cósmica que Hipócrates estuda minuciosamente na segunda parte do livro. O horizonte geográfico e etnológico de Hipócrates abarcava, além da Grécia e do Império Persa, o mundo mediterrânico desde o Norte de África até às costas orientais e setentrionais do mar Negro. A segunda parte deste escrito estuda a relação entre natureza e cultura nos diversos povos que visitou e, de certo modo, pode ser vista como uma antecipação da etnomedicina tal como hoje se pratica. Segundo Hipócrates, o clima moderado - a feliz «mistura das estações» - é o mais favorável à saúde e ao rendimento físico, ao temperamento e às faculdades psíquicas e cognitivas dos habitantes da região em que predomina. A comparação entre a Ásia e a Europa permite a Hipócrates mostrar a sua preferência - médica e cultural - pela Europa por causa do seu clima moderado. Apesar da fertilidade da Ásia, o seu clima é muito menos favorável à saúde: os seus habitantes debilitam-se facilmente e são menos guerreiros. Na Europa, o trabalho duro exigido pelo cultivo do solo torna as suas populações mais fortes e educa-as para serem resistentes e guerreiras. Hipócrates reconhece a influência do costume (nomos) - o despotismo na Ásia e a liberdade política na Europa - sobre a manifestação do comportamento bélico. As descrições das construções lacustres dos escitas - citas - da Cítia na vertente setentrional do Cáucaso e dos escitas nómadas das estepes do Sul da Rússia são admiráveis. Hipócrates chamou macrocéfalos aos escitas do mar de Azov, porque, quando nascem as suas crianças, eles praticam uma deformação do crânio para obter uma forma alongada considerada mais formosa. Além desta descrição dos crânios alongados, Hipócrates explica de um modo puramente natural a doença escita: o contínuo cavalgar dos escitas tem como efeito essa doença que consiste numa frequente impotência sexual dos homens. Com esta explicação natural da doença escita Hipócrates recusa a origem divina que lhe era atribuída.

Doenças. Independentemente de serem ou não da autoria de Hipócrates e dos médicos da escola de Cós, os livros das Doenças podem e devem ser definidos como tratados de patologia das doenças internas (medicina interna), que, ao nível puramente formal, realizam uma exposição pormenorizada das doenças, uma a uma, seguindo um esquema muito preciso: etiologia, sintomas, prognóstico e terapêutica. Cada um dos escritos desenvolve mais uma parte do que outra, podendo omitir alguma das partes canónicas, mas, de um modo geral, as partes do prognóstico e, logo a seguir, da etiologia são muito reduzidas, a parte da semiologia limita-se a descrições de sintomas muito esquemáticas, e a parte da terapêutica é, sem dúvida, a mais desenvolvida por causa da importância que tinha para a medicina grega. Os escritos da escola de Cnido distinguem-se dos escritos da escola de Cós pelo facto de privilegiarem a terapia, seguida pela semiologia, neste esquema dos quatro ingrenientes, a saber - terapia, sintomas, causas, prognóstico, sem explicitarem as relações entre causa>sintomas>cura. Os tratados da escola de Cnido reflectem uma medicina pragmática - a medicina dos médicos praticantes - que se preocupa fundamentalmente com a relação sintomas>tratamento por causa da necessidade de localizar uma doença e poder curá-la. Os tratados da escola de Cós reflectem, pelo contrário, uma medicina científica e positiva que, fazendo uso de abordagens teóricas gerais sobre as questões da medicina, procura elucidar a relação causa>sintomas. Porém, com o desenvolvimento dos conhecimentos fisiológicos, a etiologia acabou por modificar os tratamentos tradicionais usados pelos médicos da escola de Cnido e substituí-los por novos métodos terapêuticos - a medicina dietética, por exemplo, forçando-os a adoptá-los. Os livros 1 e 3 das Doenças pertencem a Hipócrates, uma vez que encontramos neles a medicina meteorológica: o homem insere-se não só no meio ambiente imediato, mas também no cosmos no seu conjunto. As doenças - o seu aparecimento, o seu decurso e o modo como a natureza do indivíduo reage às influências externas ou às perturbações orgânicas internas - devem ser observadas no quadro desta conexão natural determinada localmente. A terapia baseia-se sempre nesta observação da conexão natural. Os livros 2, 4 e 6 das Doenças são posteriores aos livros 1 e 3, mas - por causa do respeito pela natureza que evidenciam - é provável que procedam do legado de Hipócrates. Estes livros estão repletos de frases que expressam esse respeito pela natureza e exaltam a sua capacidade autónoma de sarar, tais como «a natureza descobre por si mesma e sem vacilação os seus próprios caminhos» ou «as constituições naturais são os médicos das enfermidades». Comparada com o imenso poder curativo da natureza, a eficácia terapêutica da arte do médico é muito débil e modesta. Vejo aqui o arqui-gérmen não só da ideia de auto-regulação vital mas também da noção de imunidade: quando agredido por factores externos ou internos, a natureza do organismo reage e descobre os seus próprios caminhos para restabelecer o tal ponto de equilíbrio que define o estado de saúde. Além desta exaltação do poder curativo natural, Hipócrates evidencia a relação entre a situação do corpo e os afectos da alma, celebrando o parentesco entre a serenidade do ânimo (eutimia) e a vida física equilibrada (medicina psicossomática), à semelhança do ensinamento de Demócrito. Para terminar esta secção, convém referir que Hipócrates elabora nestes livros breves histórias clínicas, onde nos informa sobre o desenvolvimento das doenças em certos pacientes e sobre o êxito ou o fracasso dos tratamentos administrados.

Prognóstico. Neste escrito, Hipócrates discute a questão de saber se o médico pode - e como - prever o desenrolar de uma doença e, especialmente, se a doença pode ser curada ou se conduz à morte, bem como a questão da determinação com base na experiência dos «dias críticos» de certas doenças. Tal como o vidente, o médico deve saber e poder dizer «o que foi, o que é e o que será», cada um deles utilizando os seus próprios «signos» ou «sinais». Porém, a diferença entre o vidente e o médico é descomunal, porque, enquanto o primeiro utiliza os signos traçados pelos pássaros para ler a vontade dos deuses e, deste modo arbitrário, prever os acontecimentos futuros, o médico utiliza os sintomas de uma doença para identificar e reconhecer as suas causas, a sua natureza e o seu decurso. No caso do vidente, não há qualquer tipo de conexão causal, mas, no caso do médico, o seu conhecimento pressupõe uma ordem natural firme e uma «lei», um cosmos. Com o surgimento da medicina hipocrática, o pensamento mítico cedeu o seu lugar ao pensamento científico.

Escritos Cirúrgicos. Os principais escritos cirúrgicos atribuídos a Hipócrates são, como já vimos, Sobre a Fractura dos Ossos e Sobre a Redução das Luxações. Convém ter presente que os médicos gregos, tanto os da escola de Cnido como os da escola de Cós, só recorriam à intervenção cirúrgica como «remédio alternativo» quando as outras terapias não obtinham o resultado esperado. O recurso alternativo à cirurgia visava devolver o membro desarticulado à sua situação natural - à sua «correcta natureza», através de uma «correcta intervenção»: a doutrina hipocrática sobre os métodos de cura estabelece-se «como uma lei justa». O conceito de «recto» ou «adequado» - «justo» - aplica-se sistematicamente à natureza e a actividade do homem só merece este qualificativo quando se orienta pelas pistas da natureza.

Aforismos. Os aforismos hipocráticos resumem em poucas palavras certas ideias-força que se adaptam a várias circunstâncias patológicas: os aprendizes da arte médica tinham de os aprender de cor e recitá-los em coro, numa época em que o material se reduzia ao pergaminho para os educadores e à cera para os alunos. Os aforismos de Hipócrates foram ensinados até ao século XVIII e muitos professores de medicina continuaram a estabelecer fórmulas fáceis de reter informação até ao século XIX, à semelhança do grande mestre da escola médica de Cós. Entre os inúmeros aforismos desta colecção hipocrática, destaco apenas o primeiro: «A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o juízo difícil. É necessário não só fazer aquilo que é conveniente, mas também esforçar-se para que o doente, os assistentes e as circunstâncias externas se conjuguem». A ciência médica é aqui vista - pela primeira vez na história do conhecimento racional - como um empreendimento interpessoal, que excede e ultrapassa o breve lapso da vida de um homem, isto é, como uma unidade espiritual construída por diversas gerações ao longo de grandes períodos de tempo, em constante ampliação do conhecimento da natureza e correcção das anteriores concepções erradas.

J Francisco Saraiva de Sousa