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terça-feira, 1 de maio de 2012

As 10 Melhores Postagens de Abril

Sou Eu: J Francisco Saraiva de Sousa
«Penso que o modo como as pessoas são hoje educadas tende a diminuir a sua capacidade para sofrer. Presentemente, uma escola considera-se boa "se as crianças se divertem". E esse não costumava ser o critério. Além disso, os pais querem que os seus filhos cresçam como eles (só que mais), mas sujeitam-nos, contudo, a uma educação muito diferente da deles. - A resistência ao sofrimento não é muito cotada, porque não deve haver sofrimento; de facto, está fora de moda». (L. Wittgenstein)

Veja aqui as 10 melhores postagens do mês de Abril de 2012, a selecção mensal do blogue O Fazedor: Wanderson Lima escolheu o meu texto Ocaso da Literatura. O aforismo de Wittgenstein reforça a hipótese que explicitei no meu texto. Já agora aproveito a oportunidade para partilhar mais três aforismos de Wittgenstein: «No âmbito do espiritual, o projecto de uma pessoa não pode em geral ser continuado por outra, nem o deverá ser. Estes pensamentos fertilizarão o solo para uma nova sementeira». «Quase todos os meus escritos são conversas privadas comigo mesmo. Coisas que a mim próprio digo face a face». «Deixa ao leitor tudo o que ele pode fazer sozinho». O modo como articulei estes aforismos deixa transparecer uma ironia. Neste nosso tempo indigente, sou forçado a conversar comigo mesmo, porque já não há leitores inteligentes, capazes de cuidar da minha sementeira sem se apropriar indevidamente dela, como se pudessem pensar os meus próprios pensamentos. Chamei-lhes comunas-replicadores pelo facto de fazerem próprio o pensamento alheio. A escola está morta!

A minha amiga Letícia Valle, a Florbela Brasileira, acaba de publicar este post A Beleza do Porto (1), um belo poema intitulado Francisco. Eis o poema de Letícia Valle - e mais outro aqui:

Ai, Dr. Francisco,
De Santo, Doutor, Poeta e Louco
Tens um pouco.
Por que não me vens curar
Dessa dor,
Que se alastra
Desterra-me
Para além-mar...

Guardo teu retrato
Debaixo da renda do criado-mudo
E o lencinho no meu peito
Tem bordadas as tuas iniciais.
Já perco saúde e juízo
De esperar a ama anunciar:
“Sinhazinha, é chegado o Dr. Francisco!!!”

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle

Capitania hereditária de Pernambuco, 
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira

Recife, XXX/IV/MMXII.

O outro poema da Letícia Valle intitula-se São Francisco e diz:

Francisco,
uma beleza
que só santo tem.
faz um milagre
só para mim.


Vem, meu
branquinho
de faiança,
de louça,
numa mesa de festa.

Tu,
da brancura
de uma toalha de linho
lavada na pedra do rio
alvejada pelas minhas mãos.

Acendo-te uma
vela
mas, hoje,
vem
só para mim.

Letícia d'Albuquerque Maram. Valle

Capitania hereditária de Pernambuco,
do ilustre Dom Duarte Coelho Pereira.
Reyno de Portugal, do Brasil e das Terras d'Aquém e d'Além-mar.

Recife, XXX/IV/MMXII.

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 15 de abril de 2012

Ocaso da Literatura

Porto: Casa da Música
«Deste modo, o problema prático mais importante da nossa época é justamente o de saber em que direcção agir, que atitude tomar, de forma a contribuir para dar à evolução social uma orientação diferente da que ela parece estar a adquirir espontaneamente - uma orientação que permitisse modificar uma evolução que corre o risco de suprimir o elemento qualitativo e a personalidade humana, ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente o nível de vida e as possibilidades de consumo dos indivíduos e cria assim uma situação de que já uma vez caracterizei o elemento paradoxal no plano da cultura, escrevendo que corremos o risco de acabar por ter uma produção considerável de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos - para a substituir por uma orientação para uma estrutura social capaz de assegurar efectivamente um desenvolvimento harmonioso, tanto do sujeito libidinal, como da personalidade intrasubjectiva e socializada, um desenvolvimento harmonioso do indivíduo e da personalidade.» (Lucien Goldmann)

Ontem ofereceram-me uma enorme mala cheia de livros sobre teatro, peças e ensaios, entre os quais estava, talvez por engano, um romance de Paulo Coelho, um escritor que nunca quis ler. O romance de Paulo Coelho intitula-se Veronika Decide Morrer: folheei-o e li algumas partes, mas acabei por desistir da leitura integral, porque o achei "fora de prazo" e profundamente patético. Retomei depois a releitura das obras de Lucien Goldmann, cuja sociologia da criação cultural foi injustamente esquecida pela crítica académica. O seu conceito de estreitamento da esfera da consciência possível ajuda a compreender o ocaso da literatura - e da arte - no nosso tempo indigente. Convém retomar o elemento paradoxal introduzido pelo capitalismo tecnocrata no plano da cultura - a produção massificada de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos, previsto por Goldmann, e associá-lo ao próprio declínio da cultura, através desse fenómeno terrível que é o estreitamento da personalidade. Deste modo simples, formulei uma hipótese que permite abrir um novo horizonte de pesquisa futura, onde se joga a renovação da teoria marxista e a formulação de uma nova praxis política. O desenvolvimento desta hipótese exige a análise detalhada das causas e das consequências da crise financeira de 2008, tarefa que não vou levar a cabo aqui. No entanto, devo dizer que aquilo que os marxistas ocidentais julgaram estar ultrapassado na teoria de Marx está - depois desta crise profunda do capitalismo - na ordem do dia: a teoria da pauperização que o actual governo português converteu em programa político. De certo modo, os marxistas ocidentais, colocados entre duas paredes, a dos adversários liberais do marxismo e a do próprio marxismo soviético, não conseguiram reescrever O Capital, de forma a formular uma teoria forte do desenvolvimento do capitalismo: cederam lá onde Marx é actual e profundo. Mas esta cedência precipitada e impensada que enfraqueceu o projecto político da Esquerda, fazendo-a seguir numa direcção errada e suicida, pode ser corrigida à luz dos ensinamentos da actual crise económica, como já tentei demonstrar noutros textos. Depois da morte de Marx e talvez durante os seus últimos doze anos de vida, o marxismo foi mal-pensado: a prioridade dada ao materialismo sobre a dialéctica foi fatal, tanto para o marxismo ocidental como para o marxismo soviético. E, quando hoje procuramos dar o lugar de destaque à dialéctica, somos obrigados a abandonar o materialismo, o maior erro de todos os tempos. Quando formulou o estruturalismo genético que suporta a sua "sociologia dialéctica", Goldmann estava consciente disso, mas não foi capaz de se livrar de vez da tentação positivista, presente no seu projecto de uma sociologia dialéctica elucidada por oposição à sociologia positivista. Combateu a tecnocracia sem ter suspeitado da sua presença nas próprias ciências sociais e humanas, cujo desenvolvimento contribuiu mais para a adaptação social do que para a mudança social qualitativa. A teoria do equilíbrio que retomou de Jean Piaget é absolutamente estranha à dialéctica, como o demonstra o facto de N. Bukharin a ter usado para apresentar o "materialismo histórico" como "sociologia geral": Goldmann comete o mesmo erro que critica no marxismo soviético, apesar de ter referido o nome de Dilthey que nos reconduz directamente ao idealismo transcendental de Schelling como fio condutor capaz de orientar a pesquisa filosófica sobre a tipologia das concepções do mundo. O materialismo bloqueou o desenvolvimento da teoria marxista e desviou-a da sua verdadeira praxis política: o aumento do nível de vida de um número considerável de pessoas no mundo ocidental, o impulso materialista realizado, não trouxe consigo qualidade de vida e muito menos aperfeiçoamento da humanidade. Opor a autogestão - a célebre experiência da Jugoslávia - à tecnocracia não constitui um programa político adequado para a Esquerda. A dialéctica implica uma nova ontologia fundamental que, uma vez elucidada, impõe limites à formulação de novas políticas. Como é evidente, não posso explicitar aqui todas estas ideias, nem sequer posso elucidar a relação entre sociedade e literatura preconizada por Goldmann. No entanto, para explicitar a minha hipótese do ocaso da literatura, vou socorrer-me dos ensaios de Goldmann, onde ele esboça uma crítica inteligente da psicanálise.

Goldmann esboçou uma periodização da história já demasiado longa do mundo capitalista ao nível da economia, distinguindo três períodos de desenvolvimento capitalista, a cada um dos quais correspondem determinadas formas de filosofia e de literatura. Quando elaborou esta periodização do capitalismo, Goldmann, discípulo de Lukács, encontrava-se em diálogo produtivo com Marcuse e com a Escola de Frankfurt. Ora, a influência de Marcuse, sobretudo da sua teoria do homem unidimensional, implicava um ajuste de contas filosófico com a sua obra anterior. A estética da Escola de Frankfurt fê-lo mudar de perspectiva em relação ao Nouveau Roman, levando-o a reconhecer mais tarde a pobreza e a secura dessa criação cultural: «Porque é certo que, se a unidade destas obras é rigorosa, o outro pólo, a integração nessa mesma unidade das possibilidades e das virtualidades das realidades humanas que ignora ou cujo sacrifício exige, ocupa nelas um lugar relativamente restrito», como o demonstra o primeiro romance de Robbe-Grillet, Les Gommes. Embora sejam obras autênticas e representativas, «elas exprimem um empobrecimento geral da criação literária e cultural, análogo e paralelo àquele que Herbert Marcuse assinalou como característico do mundo moderno ao constatar que, das duas dimensões da existência que caracterizam o homem, o real e o possível, a última, na qual se baseia o essencial da criação literária, tende a desaparecer progressivamente das consciências, conduzindo àquilo a que ele chamou o homem unidimensional». Na sua derradeira obra publicada em vida, A Dimensão Estética, Marcuse tenta elaborar uma estética marxista, mediante a impugnação da sua ortodoxia predominante que interpreta a «qualidade e verdade de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes», isto é, que considera a obra de arte como expressão dos interesses e da visão do mundo de determinadas classes sociais de um modo mais ou menos preciso. Não é preciso avançar muito mais na explicitação da crítica de Marcuse à ortodoxia estética do marxismo para compreender que um dos seus alvos é precisamente a estética esboçada por Goldmann em Le Dieu Caché. A concepção da obra de arte como expressão de uma visão do mundo coerente, isto é, do máximo de consciência possível de uma determinada classe social, é impugnada por Marcuse, em nome de dois princípios da teoria marxista: a análise da arte no contexto das relações sociais prevalecentes, de forma a podermos atribuir-lhe uma função política, e a defesa da autonomia da arte perante essas mesmas relações sociais. A estética de Marcuse visa salvaguardar a subjectividade da depreciação ou desvalorização a que foi sujeita pela ortodoxia marxista e da sua dissolução na consciência de classe: «as qualidades radicais da arte, ou seja, a sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem (schöner Schein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais dominantes». Daqui resulta que a universalidade da arte não radica na visão do mundo de uma determinada classe social, como pressupõe Goldmann, mas sim na humanidade concreta - universal - que, não podendo ser personificada por uma classe particular, luta pela libertação das potencialidades reprimidas do homem e da natureza, abrindo assim no seio da própria totalidade repressiva uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjectividade rebelde. Hans-Dietrich Sander analisou os contributos de Marx e de Engels para uma teoria da arte, chegando à conclusão de que a ortodoxia marxista é uma inversão total da perspectiva dos fundadores do marxismo. Que pena Marx não ter cumprido o seu projecto de escrever um livro sobre Balzac e o capitalismo, para o qual contribuiu mais tarde Lukács: o autor de O Capital lia atentamente A Comédia Humana de Balzac, descobrindo nela afinidades com o seu próprio pensamento. 

Capitalismo concorrencial e romance de personagem problemática. O primeiro período da história do capitalismo estende-se até ao ano de 1910 e, no plano económico, corresponde ao capitalismo liberal. Goldmann caracteriza-o como «período individualista, no qual a ideia de conjunto, de totalidade, tende a desaparecer da consciência». No plano do pensamento filosófico, o período liberal do capitalismo exprime-se pelas «duas formas de filosofia individualista radical que são o racionalismo e o empirismo, as duas grandes correntes da chamada filosofia clássica, e, no plano da literatura, entre outros, pelo romance clássico, o romance de personagem problemática». Goldmann considera que, na história da cultura ocidental, existe quase sempre uma relação de homologia rigorosa entre as grandes tendências e correntes filosóficas e as grandes criações literárias. Assim, por exemplo, pares homólogos de universos imaginários criados por escritores e de sistemas conceptuais elaborados por filósofos são as obras de Pascal e de Racine, de Descartes e de Corneille, de Gassendi e de Molière, de Kant e de Schiller e de Schelling e dos Românticos. A título de exemplo, destaca-se particularmente a colaboração entre escritores e filósofos nos círculos literários e de amizade de Jena, da qual resultou a elaboração do romantismo de Jena, cuja concepção romântica era determinada pela filosofia idealista de Schelling, em especial pela sua filosofia da natureza. O órgão de difusão da concepção romântica foi o periódico Athenaeum (1798-1800): o romantismo de Jena resultou da colaboração próxima entre Novalis, os irmãos Schlegel, Goethe, Schleiermacher e Schelling. Goldmann detestava de tal modo o estruturalismo não-genético de Althusser que se descartou da sua teoria do todo complexo a-dominante, sem ter visto que ela podia ajudá-lo a estabelecer as homologias entre sistemas filosóficos e criações literárias, levando em conta os desfasamentos das temporalidades de cada uma das estruturas da totalidade social em relação às outras. O período liberal é de tal modo longo que Goldmann teve dificuldade em descobrir um escritor cuja obra correspondesse rigorosamente ao racionalismo: o par formado por Descartes e Corneille é diferente dos restantes pares referidos, porque só um certo número das peças de Corneille parece ser a expressão literária da posição racionalista de Descartes que marcou toda a cultura ocidental. O romance de personagem problemática é o género literário que corresponde ao período do capitalismo liberal. Goldmann confronta-se aqui com o problema do romance de personagem problemática não ser homólogo nem ao empirismo nem ao racionalismo, nem à Filosofia das Luzes, porque este romance é, ao mesmo tempo, uma forma literária crítica, que implica o elemento positivo da afirmação do indivíduo e do valor individual, e uma crítica social extremamente rigorosa: o romance da personagem problemática mostra que a sociedade em que vivem os seus heróis não permite ao indivíduo desenvolver-se e realizar-se. Ora, este problema liga-se à problemática da crítica e da revolta na literatura moderna, embora ele não exista à luz da estética da Escola de Frankfurt, para a qual toda a grande obra de arte é recusa da ordem estabelecida. Goldmann nunca conseguiu «reconciliar» a sua obra anterior sobre a sociologia do romance e sobre a visão trágica do mundo com a problemática da crítica, tendendo a ser mais afirmativo - a cultura afirmativa de Marcuse - do que crítico. Numa obra anterior, Pour une Sociologie du Roman, Goldmann tinha retomado a tipologia do romance de Lukács, distinguindo quatro tipos de romance: o romance do idealismo abstracto (D. Quixote de Cervantes e O Vermelho e o Negro de Stendhal, por exemplo), caracterizado pela actividade do herói e pelo seu conhecimento muito estreito em relação à complexidade do mundo; o romance psicológico ou do romantismo da desilusão (A Educação Sentimental de Flaubert, por exemplo), orientado para a análise da vida interior e caracterizado pela passividade do herói e pelo seu conhecimento muito amplo para o levar a encontrar satisfação no âmbito do mundo da convenção; o romance educativo (Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe, por exemplo), consumado por uma auto-limitação - a maturidade viril de Lukács - que, sendo uma espécie de renúncia à pesquisa problemática, não é nem uma aceitação do mundo nem um abandono da escala implícita dos valores; e, por fim, uma quarta possibilidade que, surgindo em 1920, se exprime nos romances de Tolstoi, orientados para a epopeia. Como é que Goldmann articula esta tipologia do romance com a sua perspectiva posterior? Ele deixou de falar dela nas obras posteriores, integrando os três primeiros tipos de romance sob a designação geral de romance de personagem problemática. As peripécias da personagem ao longo da história da literatura moderna permitem-lhe acompanhar de perto o destino do indivíduo ao longo dos três períodos de evolução do capitalismo: o eclipse da personagem no romance corresponde ao eclipse do indivíduo na sociedade. Esta é uma ideia extremamente produtiva que merece ser desenvolvida, até porque vai ao encontro de uma das preocupações fundamentais da teoria crítica da Escola de Frankfurt. E é esta ideia brilhante que estou a utilizar para elucidar o eclipse da literatura no nosso tempo indigente.

Capitalismo em crise, imperialismo e romance da comunidade. O segundo período da história do capitalismo é o período imperialista, cuja origem se situa por volta de 1910-1911. Goldmann destaca outras datas significativas para mostrar a dificuldade de estabelecer o equilíbrio económico e social durante este período imperialista: em 1914, a Primeira Guerra Mundial, a partir de 1917-1918, uma profunda crise social e política, entre 1929 e 1933 a grande crise económica, em 1933 a tomada do poder por Hitler, e, entre 1939 e 1945, a Segunda Guerra Mundial. O carácter provisório e instável dos equilíbrios económicos e sociais alcançados durante este período explica-se, em parte, pelo facto do mecanismo de regulação através do mercado, essencial para a economia do período liberal, ter sido perturbado pelo desenvolvimento dos monopólios e dos trustes. Goldmann é muito esquemático na caracterização económica dos períodos, negligenciando neste caso os contributos económicos fundamentais de Lenine, de Rosa Luxemburgo, de Sweezy e de Baran. Além disso, como veremos já a seguir, ao omitir a Revolução de Outubro de 1917, talvez para se distanciar do marxismo soviético, tende a esquecer a literatura que surgiu dessa revolução e do movimento operário: o realismo socialista também é a expressão de uma determinada visão do mundo, de resto bem explicitada pela obra de Maximo Gorki. Os pensadores marxistas que viveram nesta época estavam convencidos de que ela representava a crise final do capitalismo: a perspectiva de queda do capitalismo e de passagem ao socialismo - alimentada pela frequência das crises sociais e económicas que culminam com a crise de 1929 - justifica a designação de capitalismo em crise dada pelos marxistas a este período. No plano filosófico, ao período imperialista - infelizmente um período de transição - corresponde a filosofia existencialista (Heidegger, Sartre, Jaspers, por exemplo) que, apesar de reter elementos individualistas do período liberal, já não tem por centro nem a razão (racionalismo) nem a percepção (empirismo), mas sim os limites do indivíduo, em especial o limite por excelência que é a morte. O existencialismo tomou por centro, no plano psíquico, o sentimento que se desenvolve a partir da consciência dos limites e da morte: a angústia. O facto de Sartre ter sido filósofo e escritor mostra que, no período imperialista, a literatura estava muito próxima da filosofia: as obras de Kafka (A Metamorfose, América), Musil (O Homem Sem Qualidades), Sartre (A Náusea) e Camus (O Estrangeiro) mostram a dificuldade do indivíduo em se adaptar ao mundo social que o rodeava. O tema da dificuldade do indivíduo em se adaptar à sociedade já estava presente no romance de personagem problemática: ele foi retomado para elucidar o choque do romance com o problema da personagem que determinará a sua evolução futura. No plano económico, a passagem do capitalismo liberal ao capitalismo monopolista foi marcada pela perda de importância económica e social do indivíduo, a qual explica o enorme sucesso da psicanálise nos Estados Unidos: «Ora o escritor não pode dar forma senão ao que é essencial na realidade a partir da qual elabora a sua obra e, tendo o desenvolvimento económico diminuído a importância do indivíduo, teria sido difícil criar uma grande obra literária contando a história de uma personagem, uma biografia que, no plano da realidade, mais não apresentava que um carácter anedótico». No campo do pensamento socialista e na sua proximidade, houve tentativas de substituir a personagem pela colectividade e escrever romances de personagem colectiva, como testemunham Les Thibault de Roger Martin du Gard, os romances da família de Thomas Mann (Budenbrooks) e de John Galsworthy (The Forsyte Saga) e o romance da comunidade revolucionária de Malraux (La Condition Humaine). Porém, como a revolução socialista não conseguiu transformar substancialmente a sociedade ocidental, o romance da comunidade não se tornou uma forma literária predominante. É fácil captar as semelhanças e as diferenças entre as perspectivas de Lukács e de Goldmann: toda a obra sociológica e filosófica de Goldmann é tributária da estética de Lukács, embora tenha tentado analisar aquilo que Lukács condenou, a literatura de vanguarda.

Capitalismo de organização, revolta das letras e Nouveau Roman. O terceiro período do desenvolvimento do capitalismo iniciou-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sendo marcado pela concentração considerável do poder de decisão nas mãos de um grupo relativamente pouco denso de tecnocratas e pelo aparecimento de técnicos com um nível de conhecimentos muito elevado na sua especialidade profissional para poderem executar as decisões tomadas pelo grupo restrito dos tecnocratas. Esta caracterização genérica do terceiro período capitalista justifica a designação de sociedade tecnocrática que lhe foi atribuída. Goldmann retoma outras designações, tais como sociedade de consumo, capitalismo de organização e sociedade de massas, sublinhando que cada uma delas destaca um dos aspectos principais da sociedade que se estruturou depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A articulação de todos esses aspectos numa totalidade não é suficiente para elaborar uma teoria marxista do capitalismo de organização, cuja ausência explica a trajectória suicida seguida pela Esquerda europeia. O chamado capitalismo de organização caracteriza-se pelo aparecimento de mecanismos conscientes de auto-regulação: a classe dirigente tomou consciência da totalidade e dos problemas de organização global da economia e da sociedade, pelo menos ao nível da vontade e do comportamento dos seus membros, de modo a evitar a sucessão de crises verificada no período imperialista. A introdução dos mecanismos de regulação reforçaram a integração social e cultural do conjunto da sociedade, através do aumento do nível de vida que, de certo modo, neutralizou os efeitos do esquema da pauperização das classes médias proposto por Marx. Ora, uma das consequências psicológicas do aumento do nível de vida da maioria da população, incluindo a classe trabalhadora, foi o enfraquecimento significativo das forças de oposição tradicionais. A sociedade de consumo foi até agora uma sociedade altamente integrada que, além de enfraquecer a oposição tradicional, preparou o terreno para a hegemonia ideológica do neoliberalismo, que se consuma plenamente após a Queda do Muro de Berlim. A crítica aristocrática da cultura de massas (Ortega y Gasset) e a crítica do sistema de indústria cultural (Adorno, Horkheimer, Marcuse) alertaram para os efeitos nefastos do processo de integração social e cultural, mas o mocinho satisfeito - a consciência feliz de Marcuse - preferiu continuar a pensar mais com a marmita estomacal do que com a cabeça. Porém, com o triunfo do neoliberalismo à escala global a crise voltou a ocupar o lugar central da agenda: a crise financeira e económica de 2008 acordou brutalmente o mocinho satisfeito, o Zé-Ninguém da marmita, do seu sono metabolicamente reduzido, o sono sem sonhos de um mundo melhor (Bloch). A miséria regressa assim à ordem do dia e, acossado pela mera sobrevivência, o mocinho satisfeito não sabe o que fazer, até porque ele já não sabe pensar de modo autónomo. Mas antes de retomar este tema, convém analisar uma contradição da sociedade tecnocrática: o aumento da competência não conduz a grande maioria dos indivíduos a participar nas decisões essenciais e, o que é mais preocupante, reduz consideravelmente a sua vida psíquica e atrofia os seus órgãos cognitivos. Ora, como demonstrou Goldmann, aliás na peugada de Marcuse, a sociedade de organização é a sociedade dos especialistas analfabetos ou, de modo mais provocante, dos doutores analfabetos: o seu elevado nível de qualificação profissional e de competência técnica choca frontalmente com a sua atrofia mental e cognitiva. À era tecnocrática dos gestores e dos economistas corresponde a miséria da "ciência económica", uma mera técnica ideológica de adaptação social incapaz de integrar uma visão de conjunto da sociedade, da cultura e da economia, bastando folhear os manuais de economia para confirmar essa fragmentação: a instrumentalização da razão, a perda de visão da totalidade e a liquidação do indivíduo constituem aspectos de um mesmo processo de liquidação da realidade e de regressão civilizacional do Ocidente. Marcuse demonstrou que, antes do advento da sociedade de consumo, o homem se definia por duas dimensões fundamentais nas quais se desenvolviam a sua vida psíquica e o seu comportamento: a dimensão da adaptação ao real e a dimensão da transposição do real em direcção ao possível, a um outro princípio de realidade que os homens deverão criar pelo seu próprio comportamento. Goldmann articula estas duas dimensões do homem através da teoria do equilíbrio que, de certo modo, eclipsa a teoria da revolução. Apesar do seu mérito, Sciences Humaines et Philosophie é uma obra falhada, no sentido de não ter resistido dialecticamente às seduções da sociedade de consumo: a Filosofia não precisa das ciências humanas para pensar o possível - contra a fragmentação da totalidade social operada pelas ciências sociais. Goldmann lembra a definição do homem de Pascal - o homem como ser infinitamente maior do que aquilo que é, para lhe dar uma perspectiva dialéctica: o homem é maior do que aquilo que é por ser puro devir e estar continuamente a construir um mundo novo. O seu optimismo não lhe permitiu ver que a perda da dimensão do possível implica uma regressão antropológica fatal: o homem reconduzido à sua animalidade, isto é, o homem como animal metabolicamente reduzido.

A análise da sociedade contemporânea de Marcuse é infinitamente superior à de Goldmann. Quando escreveu os ensaios que estou a comentar, Goldmann estava convencido de que a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa ao nível da miséria nem ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim ao nível do estreitamento da consciência: «O estreitamento da personalidade e da individualidade, o qual constitui um fenómeno inquietante, já mesmo no período de transição que vivemos (sic), corre assim o risco de se tornar cada vez mais grave se a evolução social se orientar efectivamente para uma adaptação perfeita dos homens a uma sociedade em que, na maior parte, eles se tornarão simples executantes bem pagos, tendo um nível de vida elevado e férias mais ou menos longas, e vivendo cada vez melhor enquanto técnicos especializados, mas com a consciência restringida». Como já vimos, a crise financeira de 2008 alterou completamente este quadro, pondo na ordem do dia os três níveis referidos por Goldmann. No entanto, como o nível do estreitamento da consciência se agravou cada vez mais com a produção em massa de diplomas atribuídos a indivíduos que nada fizeram para os merecer, excepto apropriar-se ilicitamente do pensamento dos outros, como se fossem "comunas-replicadores", continuarei a acompanhar a análise de Goldmann no que se refere às suas implicações na criação cultural. A elaboração hegeliana do fim da arte consumou-se literalmente no nosso tempo indigente: o aumento do número de diplomados não trouxe consigo a intensificação da criatividade cultural; pelo contrário, degradou-a de forma brutal. Qual é a filosofia que corresponde melhor ao terceiro período do desenvolvimento capitalista? Goldmann não respondeu a esta questão, embora tenha retomado a crítica do positivismo elaborada pela Escola de Frankfurt para demarcar a sua sociologia dialéctica da sociologia positivista: «a grande diferença (entre ambas) consiste precisamente no facto de a primeira (a sociologia positivista) se contentar em desenvolver uma fotografia tão exacta, tão minuciosa quanto possível da sociedade existente (ou uma modelação da sociedade em função de modelos prévios?), enquanto que a segunda (a sociologia dialéctica) tenta desenredar, na sociedade que estuda, a consciência, as tendências virtuais que estão prestes a desenvolver-se e que estão orientadas para a sua superação. Em resumo, a primeira tenta dar conta do funcionamento da estruturação existente, a segunda tem por centro as possibilidades de variação e de transformação da consciência e da realidade sociais». Ao analisar o pensamento unidimensional, isto é, a filosofia positiva, Marcuse esboçou uma primeira resposta a esta questão. Henri Lefebvre e Alfred Schmidt levaram essa análise mais longe quando associam o estruturalismo à tecnocracia. E, pouco mais tarde, Alex Callinicos acusa justamente o pós-estruturalismo (Derrida, Deleuze, Foucault) e os discursos da pós-modernidade (Lyotard, Jameson) de fazerem o jogo do neoliberalismo. É certo que Goldmann criticou severamente os estruturalismos não genéticos de Lévi-Strauss e de Althusser, mas, em vez de estabelecer uma homologia entre o estruturalismo e o Nouveau Roman, deslocou o problema, dizendo que, contrariamente a Marcuse, «creio que existem tendências para a superação desta situação e que o homem de uma única dimensão representa apenas um único termo da alternativa diante da qual se encontram as sociedades industriais contemporâneas». Goldmann descobre essa alternativa na revolta no interior da criação cultural, o que não constitui uma novidade para quem conheça bem a obra filosófica de Marcuse: o que é novidade é a distinção de dois aspectos diferentes e complementares dessa revolta das letras, a saber o aspecto da revolta formal de uma arte que, não aceitando uma sociedade, encontra formas de expressão para a recusar, e o aspecto do próprio tema da revolta no interior da obra de certos escritores e artistas. O primeiro aspecto manifesta-se no Nouveau Roman, e o segundo, nas peças de teatro de Sartre e, sobretudo, de Jean Genet. Esta distinção não faz muito sentido à luz da estética da Escola de Frankfurt e não se compreende bem a razão que levou Goldmann a introduzi-la na criação cultural do terceiro período da história do capitalismo, quando na verdade ela já podia ter sido introduzida nos períodos anteriores. Jean-Pierre Sarrazac lembra que o teatro tem sido acusado de não ter acompanhado as grandes tendências da literatura moderna, como se tivesse ficado parado no tempo, mas, quando abordaram os temas da luta de classes, da revolta e da revolução, Genet e Sartre passaram ambos do romance ao teatro. O teatro de Sartre que tem por tema a revolução - Les Mouches e Les Séquestrés d'Altona, por exemplo - aborda-o ainda na perspectiva da filosofia clássica, em termos de relação antagónica entre o indivíduo e a realidade social exterior, isto é, de conflito entre a ética e a história. Genet aborda o mesmo tema - nas suas quatro grandes peças de teatro que são Les Bonnes, Le Balcon, Les Nègres e Les Paravents - em termos de conflito entre dominados e dominadores: as personagens são colectivas, o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso, e os valores autênticos são os do ritual realizado pelos dominados. Pelo facto de abordar os temas da luta de classes, da revolta e da revolução numa sociedade tecnocrática na qual as forças de contestação foram enfraquecidas, Jean Genet é visto por Goldmann como o maior escritor da revolta na literatura francesa: o seu teatro reage a esse enfraquecimento da oposição tratando nas próprias obras a revolta dos dominados dentro da e contra a sociedade que recusam e contando a história das forças de contestação quando estas ainda não existem ou estão prestes a desaparecer. Ora, de acordo com as categorias da estética de Marcuse, para romper o nexo social da destruição e da submissão, de modo a tornar possível a libertação dos homens e da natureza, não é preciso tematizar a própria revolução, como sucede nas obras esteticamente mais perfeitas, onde a necessidade da revolução constitui o a priori da arte. Ao contrário do que pensa Goldmann, a tematização da revolução pela obra não faz dela necessariamente uma verdadeira obra de arte: «A literatura pode ser revolucionária num determinado sentido, só em referência a si própria, como conteúdo tornado forma. O potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a praxis é inexoravelmente indirecta, mediatizada e frustrante. Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objectivos radicais e transcendentes de mudança. Neste sentido, pode haver mais potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud que nas peças didácticas de Brecht». Estas palavras de Marcuse não são dirigidas contra o teatro de Genet que admirava, mas sim contra a preferência de Lukács pelo realismo como modelo da arte progressista, preferência essa que levou os marxistas ortodoxos a difamar o romantismo, a denunciar a arte decadente e a condenar todas as manifestações literárias e artísticas que não expressassem os interesses e a visão do mundo de uma classe ascendente. (Marcuse acusa a estética soviética de ter imobilizado a dialéctica da libertação.) Mas esta diferença entre Marcuse e Goldmann que deriva, em última análise, de concepções diferentes da relação entre sociedade e literatura, entre teoria social e teoria estética, e do problema das mediações, abordado por Sartre em Questions de Méthode, não deve levar-nos a descartar o contributo fundamental de Goldmann à teoria marxista da arte e da literatura, até porque a sua análise nos ajuda a compreender o ocaso da criação cultural e artística na sociedade contemporânea, retomando o conceito de homem unidimensional de Marcuse. Na sociedade contemporânea na qual o indivíduo perdeu importância e as forças de oposição foram enfraquecidas, o grande escritor que queira dizer o essencial sobre a situação do homem na sociedade estabelecida, esbarra com um duplo obstáculo. Por um lado, o escritor não pode já colocar os grandes problemas da situação do homem numa sociedade que afunila a sua consciência e o priva da sua relevância social e psicológica, ao nível de uma história imediatamente perceptível, isto é, ao nível da biografia de uma personagem central, porque, se o fizer, se arrisca a permanecer prisioneiro de factos casuais sem significação essencial. Mas, por outro lado, se tentar pôr os problemas de conjunto, é forçado a situar-se num nível que, sem ser conceptual, se torna de tal modo totalizante que perde cada vez mais a relação com aquilo que é imediatamente perceptível e vivido. Ao situar-se a este nível mais abstracto, o escritor arrisca-se a não ser compreendido pelos leitores das suas obras, os quais, devido ao estreitamento psíquico e intelectual, são cada vez menos aptos a discernir os fenómenos a este nível de abstracção e de generalização. Goldmann dá-nos o exemplo de uma passagem do romance La Jalousie de Alain Robbe-Grillet: «O calçado ligeiro, de sola de borracha, não faz o mínimo ruído nos ladrilhos do corredor». Os leitores, incluindo um professor americano, não compreendem o sentido essencial desta passagem, interpretando-a em termos de experiência vivida, como se Robbe-Grillet tivesse escrito "um homem caminha em pés-de-lã", em vez de "o calçado ligeiro (...) não faz o mínimo ruído". O que o leitor não compreende é que Robbe-Grillet foi obrigado a contar as coisas de uma maneira diferente, não por ser ridículo, mas porque as próprias coisas se tornaram de tal modo diferentes que não podem ser ditas da maneira consagrada. Para dizer o essencial da sociedade tecnocrática, Robbe-Grillet é obrigado a substituir a forma consagrada - "o homem avança" - por uma nova forma - "o calçado avança": «A história de um homem ciumento é apenas um facto casual, enquanto que as solas que arrastam o homem se tornaram o fenómeno central da vida quotidiana de todos nós, quer disso estejamos conscientes ou não». Deste modo, ao procurar exprimir a ausência de deuses (valores) no mundo moderno, Robbe-Grillet denuncia a reificação vigente, responsável pelo facto de serem realmente as solas quem avança e arrasta o homem, um fenómeno que Goldmann analisou em Recherches Dialectiques. A arte da recusa fala, pois, uma nova linguagem, operando aquilo a que Goldmann chama revolta formal na arte, que, sem a ajuda da crítica, corre o risco de não ser compreendida pelo público: «Quase toda a arte contemporânea é uma arte da recusa que se interroga sobre a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se a um nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num acontecimento vivido, porque o próprio indivíduo não é já um elemento essencial na sociedade contemporânea, como o era na época de Stendhal, de Balzac ou de Flaubert». Porém, quando reconhece que o Nouveau Roman exprime um empobrecimento geral da criação cultural e literária, Goldmann caminha na direcção do pessimismo que impregna a arte autêntica, advertindo contra a consciência feliz da praxis radical. O caminho que vai do estreitamento da consciência até ao ocaso da literatura, passando pela liquidação do indivíduo, curvou-se sobre si mesmo e fechou-se. A mudança social exigida pela arte não está garantida. E os homens com acesso facilitado às praças da alimentação dos Shoppings deixaram de ser criadores e receptores inteligentes de obras de arte: a afluência - acompanhada pela intolerância ao sofrimento e pela incapacidade de sentir alegria - significa regressão mental e cognitiva, a grande doença do nosso tempo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 7 de março de 2012

Eurípides, o Filósofo do Teatro

Eurípides
«Medeia: Saí de casa, ó mulheres de Corinto, para que nada me censureis. Porque eu sei que muitos dentre os mortais são arrogantes, uns longe da vista, outros à porta de casa; outros, atravessando a vida com passo tranquilo, hostil fama ganharam de vileza. Porque não há justiça aos olhos dos mortais, se alguém antes de bem conhecer o íntimo do homem, o odeia só de o ver, sem ter sido ofendido. Força é que o estrangeiro se adapte à nação; tão-pouco louvo o cidadão que é acerbo para os outros, por falta de sensibilidade. /Sobre mim este feito inesperado se abateu, que a minha alma destruiu. Fiquei perdida e tenho de abandonar as graças desta vida para morrer, amigas. Aquele que era tudo para mim (bem o sei) no pior dos homens se tornou - o meu esposo. /De quanto há aí dotado de vida e de razão, somos nós, mulheres, a mais mísera criatura. Nós, que primeiro temos de comprar, à força da riqueza, um marido e de tomar um déspota do nosso corpo - dói mais ainda um mal do que o outro. E nisso vai o maior risco, se o tomamos bom ou mau. Pois a separação para a mulher é inglória, e não pode repudiar o marido. Entrada numa raça e em leis novas, tem de ser adivinha, sem ter aprendido em casa, de como deve tratar com o companheiro de leito. E quando o conseguimos com os nossos esforços, invejável é a vida com um esposo que não leva o jugo à força; de outro modo, antes a morte. O homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o coração do desgosto (ou voltando-se para um amigo, ou para um companheiro). Para nós, força é que contemplemos uma só pessoa. Dizem: como nós vivemos em casa uma vida sem risco, e eles a combater com a lança. Insensatos! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de batalha a ser uma só vez mãe! /Mas a vós e a mim não serve a mesma argumentação. Vós tendes aqui a vossa cidade e a casa paterna, a posse do bem-estar e a companhia de amigos. E eu, sozinha, sem pátria, sou ultrajada pelo marido, raptada duma terra bárbara, sem ter mãe, nem irmão, nem parente, para me acolher desta desgraça. /Apenas isto de vós quero obter: se alguma solução ou processo eu encontrar para fazer pagar ao meu marido a pena deste ultraje (e ao que lhe deu a filha que ele desposou), guardarei silêncio. Aliás, cheia de medo é a mulher, e vil perante a força e à vista do ferro. Mas quando no leito a ofensa sentir, não há aí outro espírito que penda mais para o sangue.» (Eurípides)

«Monólogo de Medeia: Ide, ide. Já não estou em estado de olhar mais para vós, que sou dominada pelo mal. E compreendo bem o crime que vou perpetrar (matar os filhos), mas, mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais». (Eurípides)

Sócrates assistia com admiração e prazer às representações das tragédias de Eurípides, «o mais trágico de todos os poetas» trágicos, segundo Aristóteles. A tese que pretendo defender prende-se ao papel crucial desempenhado por Eurípides na Ilustração Grega, não só testemunhado pela sua ligação intelectual a Sócrates, à filosofia jónica e aos sofistas, mas também reconhecido por Aristóteles quando afirma que «a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular». Apresentar Eurípides como um poeta-filósofo não constitui novidade, tanto para os seus admiradores, antigos e modernos, como para os seus críticos, que desde Aristófanes até ao Romantismo o acusaram de ser realista, racionalista e imoralista. (:::/:::)


Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Walter Benjamin e Bertolt Brecht: o Teatro Épico

Bertolt Brecht (1898-1956)
Numa carta dirigida de Londres a Walter Benjamin, datada de Março de 1936, Theodor W. Adorno aconselha o seu amigo a levar a cabo na sua obra «a liquidação total dos temas brechtianos», não tanto os temas da dialéctica em estado de detenção, do empobrecimento da experiência e da preferência pela narração oral, mas sobretudo as infiltrações de método do "marxismo vulgar", em especial o realismo e o carácter popular da arte, traços que Brecht defendeu na famosa polémica em torno do debate sobre o expressionismo promovido pela revista Das Wort em 1937-38, no qual participaram Georg Lukács e Ernst Bloch: «Popular significa: compreensível para as grandes massas, adoptando e enriquecendo a sua forma de expressão, aceitando o seu ponto de vista, consolidando-o e corrigindo-o, representando o sector progressista do povo de tal modo que ele possa assumir o comando, ligando-se às tradições e continuando-as, transmitindo ao sector do povo que luta pelo poder as conquistas do sector que neste momento detém o poder. (...) Ser realista significa: revelar o complexo de causalidade social, desmascarar as opiniões dominantes como opiniões daqueles que dominam, escrever do ponto de vista da classe que dispõe das soluções mais amplas para os problemas mais urgentes com que a sociedade humana se debate, acentuar o factor evolução, ser concreto e abrir possibilidades de abstracção» (Brecht, Formalismo e Realismo). Benjamin que dependia financeiramente dos trabalhos publicados na revista que o Instituto de Pesquisa Social (Frankfurt) lhe pagava, foi colocado no meio do campo de ódio cerrado que Adorno e Horkheimer nutriam por Brecht, aliás um ódio recíproco, com o último a acusar Horkheimer de ser um "milionário" que comprou a cátedra na Universidade de Columbia para cobrir a actividade revolucionária no seu Instituto. Apesar da precariedade da sua existência faminta, Benjamin nunca deixou de admirar Brecht, não só o homem como também a obra, tendo-lhe dedicado diversos estudos, dos quais destaco os seguintes: O Que é o Teatro Épico?: Um estudo sobre Brecht (primeira versão), O Que é o Teatro Épico? (segunda versão publicada em 1939), Estudos sobre a Teoria do Teatro Épico, Comentário a Brecht (publicado em 1930), Um Drama de Família no Teatro Épico (publicado em 1932), O país em que não se permite nomear o proletariado (publicado em 1938), Comentários aos poemas de Brecht (alguns publicados em 1939), A Novela de Quatro Quartos de Brecht, O Autor como Produtor e Conversações com Brecht. Como é que Benjamin definiu a novidade revolucionária do teatro épico de Brecht? Benjamin repete muitos parágrafos de um ensaio para outro. Por isso, optei por citar um extracto do Autor como Produtor, onde ele resume a sua perspectiva sobre Brecht, sabendo eu que toda a citação de um texto «implica interromper o seu contexto». Também o teatro épico usa o procedimento da interrupção para suspender a acção, de modo a favorecer o distanciamento do público em relação a ela e do actor em relação ao seu papel. Eis o texto de Benjamin:

«Continuam a escrever-se tragédias e óperas que dispõem aparentemente de um aparelho cénico consagrado pela experiência, quando, na realidade, estas obras não fazem mais do que fornecer um aparelho cénico caduco. "A falta de esclarecimento acerca da sua situação, que reina entre músicos, escritores e críticos", diz Brecht, "tem consequências tremendas que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho que na realidade os possui, que já deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio contra os produtores". E uma das razões principais por que este teatro de maquinarias complicadas, de enorme aparato de figurantes, de efeitos refinados, se tornou um meio contra os produtores foi o facto de os tentar aliciar para a luta de uma concorrência sem sentido, na qual o cinema e a rádio o enredaram. Este teatro - quer se trate do teatro "sério", quer do teatro de entretenimento: ambos são complementares, ambos se completam um ao outro - é o teatro de uma camada social saturada, para a qual tudo aquilo em que põe a mão se torna excitante. A sua causa é uma causa perdida. Não se passa o mesmo com um teatro que, em vez de entrar em concorrência com aqueles recentes instrumentos de publicação, os tenta aplicar e aprender com eles; numa palavra, um teatro que procura entrar em confronto produtivo com esses instrumentos. O teatro épico empenhou-se neste confronto. Comparado com o grau de desenvolvimento actual do cinema e da rádio, é este o teatro do nosso tempo.

«Com vista a tornar esse confronto produtivo, Brecht voltou-se para os elementos primitivos do teatro. Contentou-se, de certo modo, com um estrado. Renunciou a acções de grande complexidade. E assim conseguiu transformar a relação funcional entre o palco e o público, o texto e a representação, o encenador e o actor. Mais do que desenvolver acções, o teatro épico deve, segundo Brecht, apresentar situações. Chega a essas situações, como iremos ver, fazendo interromper as acções. Lembro aqui as canções, cuja função principal é interromper a acção. Deste modo - recorrendo ao princípio da interrupção -, o teatro épico retoma, como se vê, um processo que nos últimos anos se nos tornou familiar através do cinema e da rádio, da imprensa e da fotografia. Refiro-me ao processo da montagem: o elemento introduzido na montagem interrompe o contexto em que está inserido. Mas permitam-me chamar brevemente a vossa atenção para o facto de este processo ter aqui uma justificação especial, se não mesmo a sua verdadeira justificação.

«A interrupção da acção, devido à qual Brecht designou de épico o seu teatro, impede constantemente uma ilusão do público. Uma tal ilusão é, evidentemente, inútil para um teatro que pretende tratar os elementos do real no sentido de uma série de experiências. Mas é no fim e não no princípio desta experiência que se encontram as situações. Situações que, sob esta ou aquela forma, são sempre as nossas situações. Não se procura aproximá-las do espectador, mas sim distanciá-las dele. Ele reconhece-as como as verdadeiras situações, não com presunção, como no teatro do naturalismo, mas com espanto. O teatro épico não reproduz, pois, situações, antes as descobre. A descoberta das situações processa-se através da interrupção do fio da acção. No entanto, a interrupção não tem uma função de excitação, mas sim organizadora. Faz parar a acção em curso, e com isso obriga o ouvinte a tomar posição perante o acontecimento, o actor a tomar posição perante o seu papel. Vou mostrar-vos, com um exemplo, como a descoberta e a elaboração do elemento gestual por Brecht não é mais do que uma nova transformação dos métodos da montagem, decisivos na rádio e no cinema, que ele reconverte fazendo de um procedimento muitas vezes apenas utilizado, porque está na moda, um acontecimento humano. Imagine-se uma cena de família: a mulher está em vias de pegar numa estatueta de bronze para a atirar à filha; o pai, a abrir a janela para chamar por socorro. Neste momento entra um estranho. A acção foi interrompida; o que aparece em vez dela é a situação com que depara o olhar do estranho: caras transtornadas, a janela aberta, móveis destruídos. Mas há um olhar perante o qual as cenas mais banais da vida de hoje se apresentam de uma forma não muito diferente. É o olhar do dramaturgo no teatro épico.

«À obra dramática total ele contrapõe o laboratório dramático. Retoma de uma maneira nova o velho grande trunfo do teatro: fazer sobressair e pôr à prova o que se está a passar diante dos nossos olhos. No centro das suas experiências está o ser humano, o homem de hoje: portanto, um ser humano limitado, neutralizado num meio hostil. Mas, como não dispomos de outro homem, temos interesse em conhecê-lo. É submetido a provas, a juízos de valor. O que daqui resulta é o seguinte: os acontecimentos não são transformáveis no seu clímax, através da virtude e da decisão, mas apenas no seu desenrolar estritamente habitual, através da razão e da prática. Construir, a partir dos mais ínfimos elementos dos modos de comportamento, o que na dramaturgia aristotélica se designa por "acção" - é este o sentido do teatro épico. Os seus meios são, pois, mais modestos do que os do teatro tradicional; e também os seus objectivos. Pretende, não tanto encher o público com sentimentos, mesmo que sejam os da revolta, mas antes distanciá-lo de uma maneira duradoura, através da reflexão, das situações em que vive. Diga-se, apenas de passagem, que não há melhor ponto de partida para a reflexão do que o riso. E que a vibração do diafragma costuma ser um melhor estimulante do pensamento do que as vibrações da alma. O teatro épico só é exuberante nas ocasiões de riso que oferece» (Walter Benjamin).

O texto de Benjamin é de tal modo «claro» que dispensa o comentário. No entanto, para terminar, não posso deixar de referir a figura de pensamento usada por Benjamin para definir o teatro épico, precisamente aquela que me seduz: o teatro épico de Brecht é um teatro não-aristotélico, no mesmo sentido em que a geometria de Riemann é uma geometria não-euclidiana. Com efeito, Brecht contrapõem-no, ao caracterizá-lo como épico, ao teatro dramático de Aristóteles, suprimindo nele a purificação aristotélica, a libertação das paixões por meio da compenetração com a emotiva sorte (sina) do herói, cujo élan arrasta o público consigo, do mesmo modo que Riemann tinha suprimido na sua geometria o postulado das paralelas. Avançando de modo parecido às imagens de uma película cinematográfica, o teatro épico assume como forma fundamental o "shock", a experiência do choque mediante a qual as diferentes situações da peça se encontram umas com as outras. A partir daqui é possível retomar todos os temas brechtianos pensados por Benjamin. (No nosso tempo indigente, já nem teatro temos. Aqui na cidade do Porto - e não só! - o teatro tende a produzir no palco uma cena de nudismo. Enfim, teatro-pornografia barata, um mero prolongamento da vida diária consumida em múltiplos encontros sexuais casuais!)

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 3 de dezembro de 2011

Prólogo à História da Iluminação do Porto

A Noite do Porto na Festa de S. João
«Porque é que a noite é negra? /É a expansão do universo que nos fez passar do período do céu brilhante para o período presente. É a este título, estritamente, que ela se torna responsável pela existência da noite. A obscuridade da noite esclarece-nos, portanto, sobre a expansão do universo.» (Hubert Reeves)


A História da Iluminação da Cidade do Porto está por fazer: o único historiador português que dedicou algum tempo ao estudo da iluminação das cidades portuguesas foi, tanto quanto sei, Joel Serrão. O meu projecto dos Quadros Portuenses exige o conhecimento do domínio técnico que a cidade e os seus habitantes exerceram sobre a noite ao longo do tempo, mas, quando fui à sua procura, não encontrei nada, excepto dois escritos de Joel Serrão que, apesar de centrados sobre a iluminação da noite lisboeta, não são suficientes para reconstruir a própria história da iluminação de Lisboa. O meu interesse pelo processo histórico de iluminação da noite portuense é anterior ao próprio projecto dos Quadros Portuenses. Devo confessar que sou, por natureza, um ser nocturno e, como tal, prefiro o Porto Nocturno com a sua iluminação única. Mas a noite portuense que amo não a partilho com os autores que dão rosto aos Quadros Portuenses: eu nasci já em plena era da electricidade, sem ter conhecido qualquer outra forma de iluminação pública ou domiciliária, enquanto eles viveram a transição da iluminação a azeite e a gás para a iluminação eléctrica, usando em casa mais outras fontes de energia. O seu Porto era infinitamente mais escuro do que o meu Porto de hoje, que, à noite, é uma Cidade-Luz. Segundo Joel Serrão, por volta de 1770, «os moradores da Rua Nova, ou dos Ingleses, lançaram mãos à empresa colectiva da iluminação pública da sua rua». A. de Magalhães Basto conta que, em 1816, se calculou quanto custariam os 800 lampeões que se consideravam necessários, assim como o custo do respectivo combustível. O orçamento do custo da iluminação pública do Porto em 1816 era proibitivo: os lampeões custariam 16 480$000 réis e consumiriam por ano cerca de 30 105$000 réis. Ora, tal despesa estava acima das posses dos seus habitantes. A intervenção do governo só chegou em 1824 no que se refere à iluminação a azeite. Convém lembrar que Paris conheceu um esboço de iluminação a partir de Luís XIV, o qual só foi melhorado a partir de 1765. Em 1855, operou-se a instalação de sistemas de iluminação pública a gás, e, em 1895, foi introduzido o carro eléctrico no Porto. No entanto, a iluminação pública eléctrica só foi instalada no início do século XX, embora a sala e o palco do Teatro Sá da Bandeira já fossem iluminados com luz eléctrica em 1899. A instalação da iluminação eléctrica, tanto nas vias públicas como nas casas privadas, não só libertou o homem dos seus medos nocturnos, como também lhe permitiu prolongar as suas actividades - intelectual, fabril, domiciliária e lazer - pela noite dentro. O impacto da instalação de sistemas públicos de iluminação sobre a vida das pessoas só pode ser apreendido através da elaboração da história da vida quotidiana na cidade do Porto. Se os portuenses começaram a deitar-se mais tarde, como é que eles ocupavam esse tempo nocturno roubado ao sono? O Porto Oitocentista era um Porto Culto e Trabalhador. Deste modo esquemático, estabeleço uma distinção social: a ocupação do tempo roubado ao sono varia de classe social para classe social. Aqui vou destacar unicamente o estilo de vida da burguesia portuense, deixando os trabalhadores nas tabernas a beber as suas canecas de vinho e as mulheres da vida nas ruas e ruelas escuras à espera dos seus clientes. O Porto Mental que me interessa é claramente descrito pelos ilustres portuenses. Júlio Dinis e Sampaio Bruno destacam os temas dos serões e das tertúlias realizadas à volta da lareira, muitas vezes nas cozinhas, como se não houvesse animação nocturna fora dos fogos domésticos. Os cafés e os teatros animavam as noites portuenses. Na segunda metade do século XIX, após um início terrível marcado pelas invasões francesas e pelas guerras liberais que culminaram com o Cerco do Porto (1832-33), o Porto conseguiu entrar numa época de grande dinamismo: a malha urbana adensou-se e expandiu-se, ao mesmo tempo que o seu casario assumia diversas formas e dimensões, desde as pequenas casas operárias e os seus aglomerados chamados ilhas às casas da burguesia e às imponentes casas dos brasileiros. Durante este período de crescimento acelerado, surgiram no Porto muitas das construções que ainda hoje marcam a sua paisagem urbana, embora algumas delas tenham desaparecido: o Mercado do Anjo (1839), o Mercado do Bolhão (1837), o Jardim de São Lázaro (1834), o Jardim da Cordoaria (1866), a Praça do Infante (1885), o Cemitério de Agramonte (1855) e a Arquitectura do Ferro representada pelo Palácio de Cristal (1865) e pelo Mercado Ferreira Borges. Os sistemas de  abastecimento de água a domicílio e de saneamento foram instalados em 1887, e, em 1840, fundou-se o Liceu Central do Porto. Para a travessia do Rio Douro, sucederam-se a Ponte das Barcas (1806), a Ponte Pênsil ou Ponte D. Maria II (1843), a Ponte (ferroviária) Maria Pia (1877) e a Ponte D. Luís I (1886). O Real Teatro de São João já tinha sido edificado em 1794. Porém, depois do incêndio de 1908, foi reconstruído, com projecto de Marques da Silva (1911), inaugurado em 1920 e adquirido pelo Estado Português em 1922. Entretanto, em 1855, foi inaugurado o Teatro-Circo, o qual foi demolido em 1887 e substituído pelo actual edifício do Teatro Sá da Bandeira (1870), nome dado em 1910 para substituir o seu nome anterior: Teatro-Circo do Príncipe Real. O Teatro Sá da Bandeira era tão - ou mesmo mais - importante como o Teatro Nacional de São João. Os teatros, a imprensa, os cafés, enfim as revistas ajudaram a criar a esfera pública portuense: os burgueses reuniam-se para debater as novas ideias que vinham do estrangeiro e para pensar a modernização do país. O Porto Culto (1912) e Portuenses Ilustres (1907-08) de Sampaio Bruno, obras consideradas "menores", devem ser lidas como tentativas de esboçar o perfil do portuense de 1870 que lia, estudava, concebia sonhos generosos e traçava largos planos de acção redentora, ao mesmo tempo que conspirava contra a monarquia. O Porto Culto era o Porto que lia tudo o que recebia do estrangeiro, em especial de Inglaterra e de França, e que - reunido em pequenos grupos nos cafés, no atelier de arte de algum pintor revolucionário ou nas casas privadas - discutia o futuro do país. Muitos dos ilustres portuenses liam à luz da Lua, da candeia de azeite ou ao canto do fogão, nos seus serões de trabalho. Alguns tiveram o privilégio de ver a iluminação eléctrica destronar sem clemência a luz do gás, o candeeiro de petróleo e a vela de estearina. Para construir o objecto da história da iluminação do Porto, devemos colocar esta questão: Como reagiram a imprensa e os ilustres portuenses à inovação do controle técnico da noite, desde a iluminação a azeite de oliveira e a iluminação a gás à iluminação eléctrica? Guilherme de Azevedo, poeta lisboeta, declara que, com o sucesso eléctrico ocorrido no Chiado (1848), a Humanidade conseguiu «apoderar-se do segredo da aurora. A luz eléctrica metida num globo de porcelana reduz toda essa fonte de poesia a um processo de extrema simplicidade, e dentro em pouco todos nós poderemos ter o pálido astro da noite (a Lua) ou o formoso astro do dia (o Sol) - simples diferença de abat-jour - no nosso quarto de dormir à razão de trinta réis a hora!» Com a descoberta da electricidade e a sua comercialização, o homem libertou-se do império da noite. Guilherme Braga, poeta portuense forjado na maré alta da crença no progresso, canta o triunfo da noite técnica quando pergunta e responde: «- Donde vens? - "venho das trevas" /- Onde vais? - "vou para a luz"» (Heras e Violetas). (:::)


Tenho muita dificuldade em imaginar as noites do Porto sem a sua iluminação eléctrica, porque, quando falha a electricidade, a vida pará e aguarda impacientemente à luz das velas a chegada da luz. Não me lembro de nenhum apagão geral na cidade do Porto e, se ele vier a ocorrer nos tempos próximos, serei tomado pela sensação de rapto. Sem luz, sou prisioneiro, não do medo e do perigo que habita a negritude da noite, mas da inactividade. Consigo produzir produtos teóricos de valor equivalente tanto de dia como à noite, embora à noite esteja geralmente mais inspirado. Todos os meus grandes pensamentos são nocturnos e, se pudesse, trocava alegremente a vida diurna pela vida nocturna, dormindo de dia e trabalhando à noite. Uma apagão geral roubaria de mim o meu próprio pensamento, levando-me ao desespero. A experiência das falhas de electricidade é completamente distinta da experiência que faço da cidade quando ela é coberta pelo nevoeiro cerrado. O Porto coberto de nevoeiro cerrado cativa a minha alma, levando-a a gerar imagens fluídas de corpos espectrais e de cenas de crime. O nevoeiro cerrado não me retém em casa; pelo contrário, desafia-me a sair para a rua para fazer a experiência da redescoberta da minha cidade, através das silhuetas espectrais do casario portuense que consigo vislumbrar à medida que me aproximo dos sinais de luz que o nevoeiro encobre. De certo modo, o nevoeiro cerrado rouba-me a cidade: olho ao meu redor mas não vejo a cidade que sei lá estar escondida pelas sombras que procuro rasgar com o meu olhar activo. Eu preciso de saber-ver-ler que o Porto existe para eu próprio existir: o nevoeiro que o rouba ao meu olhar obriga-me a ir à sua procura, como se fosse um detective a tentar encontrar indícios de um crime - o crime da existência - num terreno nebuloso que os esconde. O Porto-Fantasma, o Porto-Espectral, não desencadeia medo em mim e, muito menos, saudade, como sucede quando tenho de viver durante longos períodos em Lisboa ou noutra cidade do mundo. Eu que não nasci no Porto, quero morrer no Porto que conquistou a minha alma, mais pela imponência do seu casario verticalmente erguido e construído do que pelos seus habitantes, que, salvo raras excepções, tendo a desprezar. O Porto-Espectral que redescubro nas noites de nevoeiro é precisamente o conjunto arquitectónico das silhuetas do seu casario sem os habitantes. Por isso, falei de corpos espectrais e de cenas de crime. Nas noites de nevoeiro cerrado, sonho acordado - e em movimento - a existência do Porto que o nevoeiro encobre, cometendo um crime: privo-o dos seus habitantes, cujas vozes - quando as ouço - me interpelam a partir do túmulo de espessas paredes de betão, onde as sempre-já sepultei. Há vozes portuenses vivas que quero sepultar, privando-as de todos os seus vestígios existenciais: quero devolvê-las à morte que tudo devora e esquece. Mas, quando elas teimam em desencantar o meu sonho activo de redescoberta da existência do Porto, só me resta uma fantasia criativa: olhar para as silhuetas do velho casario, fingindo escutar as vozes espectrais que me interpelam do passado.


Em construção lenta. J Francisco Saraiva de Sousa 

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Pascal e a Visão Trágica do Mundo

«Quando medito na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade que precede e na que segue, o pequeno espaço que preencho e mesmo que vejo, abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, assusto-me e admiro-me de me ver aqui, e não ali, pois não há razão nenhuma para estar aqui, e não ali. Porquê no presente, e não noutro tempo? Quem me pôs aqui? Por ordem e acção de quem este lugar e este tempo me foram destinados, a mim? Memoria hospitis unius diei praetereuntis. /O silêncio eterno destes espaços infinitos apavora-me». (Blaise Pascal)

«La tragédie est un jeu, un jeu de l'homme et de sa destinée, un jeu dont Dieu est le spectateur. Mais il n'est que spectateur, et jamais ni ses paroles ni ses gestes ne se mêlent aux paroles et aux gestes des acteurs. Seuls ses yeux reposent sur eux. /Peut-il encore vivre, l'homme sur lequel est tombé le regard de Dieu?». (Georg Lukács)

«O homem é visivelmente feito para pensar. É essa toda a sua dignidade e todo o seu mérito. E todo o seu dever é pensar com acerto. Ora a ordem do pensamento é começar por si mesmo, e pelo seu autor e o seu fim. /Ora em que pensa o mundo? Nunca em tais coisas; mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em correr à argola, etc.; em bater-se, em fazer-se rei, sem pensar no que é ser rei e ser homem.» (Blaise Pascal)

A tragédia está na ordem do dia, pelo menos para aqueles que se sentem estranhos neste mundo que caminha, a passos acelerados, para a catástrofe e para o ocaso. Jean-Marie Domenach fez do retorno do trágico uma filosofia da história, mas coube a Georg Lukács pensar a metafísica da tragédia a partir da obra de Paul Ernst: a vida trágica opõe-se à vida empírica quotidiana, tal como a vida autêntica se opõe à vida inautêntica na ontologia fundamental de Heidegger. Infelizmente, a evolução do pensamento filosófico de Lukács ainda não foi estudada: a Escola de Budapeste, fundada por Lukács, foi injustamente eclipsada pela Escola de Frankfurt, donde resultou o fatídico esquecimento da obra dos seus continuadores, tais como Agnes Heller, György Márkus, Lucien Goldmann e Joseph Gabel. Em termos de concepção do homem, captamos facilmente a sequência de três visões do homem: a visão do homem trágico, desenvolvida na História da Evolução do Drama Moderno (1911) e no Diário inédito (1910-11), que apresenta o suicídio como forma de solução do conflito trágico; a visão do homem utópico, elaborada em Sobre a Pobreza de Espírito (1911), A Alma e as Formas (1910), Cultura Estética (1913), Estética de Heidelberg (1912-1916) e A Teoria do Romance (1916), que descobre no refúgio estético a possibilidade utópica de transcender o círculo trágico; e a visão do homem socialista, explanada em História e Consciência de Classe (1923), A Destruição da Razão (1954), Estética (1963) e Ontologia do Ser Social (1971). Cada um destes períodos da evolução filosófica de Lukács revela «variações» e tensões internas e, se confrontarmos a última Estética com a Estética de Heidelberg, constatamos que Lukács reteve na maturidade o essencial do seu pensamento de juventude, que esboça de modo superior a primeira versão do existencialismo - o de Heidegger, por exemplo - no quadro da Filosofia do século XX. O refúgio da teoria crítica no estético foi tematizado pela primeira vez pelo jovem Lukács: a teoria estética de Adorno herda-o sem no entanto superar o seu «momento» individualista de retiro, a manifestação da impossibilidade trágica de descobrir uma solução para a possibilidade humana dentro das formas capitalista de vida. A dialéctica está próxima e, ao mesmo tempo, distante do pensamento trágico: a dialéctica transcendental de Kant (Crítica da Razão Pura) ajuda a compreender a relação ambígua entre a dialéctica e a tragédia. O abandono da reconciliação - e da síntese - devolve à dialéctica o seu momento trágico: a dialéctica trágica - a recusa incondicional do mundo capitalista - é a única figura do pensamento adequada ao momento de catástrofe iminente que vivemos. A dialéctica trágica não abdica do projecto de construção de um mundo melhor. Porém, tal como a aposta pascaliana, a perspectiva futura de um mundo melhor não é uma certeza absoluta, até porque o processo histórico entregue à sua própria lógica imanente avança pelo seu «lado mau» (Marx): o futuro novo e melhor deve ser criado continuamente pela acção consciente dos homens que optaram pelo «socialismo» em detrimento da barbárie (Lenine). Os homens devem escolher entre o «socialismo» - a sociedade que luta permanentemente pela liberdade e pela justiça - e a barbárie e, se optarem pela construção de um mundo melhor, devem destruir a barbárie reinante que mata a aventura biológica na terra. Este elemento de destruição criadora faz da dialéctica trágica uma dialéctica sem perdão: os carrascos não podem nem devem ser perdoados, porque perdoar é esquecer o sofrimento passado. O trágico é o próprio homem. (Há aqui uma dialéctica complexa entre o trágico, o utópico e o ridículo, que é necessário recuperar para o marxismo. Enfim, precisamos de uma nova Fenomenologia do Espírito para renovar o marxismo. E, em Portugal, é impossível pensar: a malvadez dos portugueses é inimiga do espírito. Portugal é uma maldição!)

A luta permanente pela construção de um mundo melhor tem dois adversários de peso que ajudam a reproduzir as condições subjectivas e objectivas que garantem a perpetuação da injustiça e da escravidão: o fluxo do tempo e o homem velho e resignado. (:::) Em Sobre a Pobreza de Espírito, Lukács narra, em forma de diálogo, o seu próprio suicídio: a principal personagem deste diálogo (Lukács) encara o suicídio como a única possibilidade de adequação com o tipo de vida que transcende toda a forma, enquanto o autor (Lukács) descobre na possibilidade de dar forma à sua vivência, na criação da obra, a razão para não se suicidar. O suicídio é uma categoria da vida, que o autor utiliza para dizer que matou em si há muito tempo o homem velho para que pudesse nascer o homem novo, o homem criador da obra através da qual se manifesta o espírito. É este suicídio espiritual - muito próximo do suicídio empírico - que permite ao homem transcender a casta comum e a casta ética e integrar-se na casta estético-religiosa ou metafísica, cujo fruto é a obra. (:::) (Bem, vai ser difícil tematizar aqui a ideia de que a Esquerda tem sido o seu próprio coveiro: a dialéctica trágica deve elaborar todas as estruturas conceptuais necessárias para redefinir o seu projecto político - uma das quais é todo o movimento de temporalização. De momento, inscrita na conjuntura presente, a dialéctica deve tentar resgatar e salvar todo o passado, sem colonizar e hipotecar o futuro: abertura é o conceito que tenho utilizado para designar este movimento. É evidente que estes pensamentos dialécticos não se dirigem aos zombies vigaristas portugueses. Portugal merece o seu colapso. )

Conforme demonstrou Lucien Goldmann na sua obra Le Dieu Caché, a nobreza de toga desenvolveu em França - no século XVII - a visão trágica do mundo, em que o homem aparece despedaçado e dilacerado entre duas exigências contraditórias que o mundo não permite reconciliar: os Pensamentos de Pascal e as tragédias de Racine sistematizam esta visão trágica, mostrando que o homem é, ao mesmo tempo, grande e pequeno. Grande pela sua consciência, pela sua exigência de totalidade e de absoluto, e pequeno pela insuficiência das suas forças para realizar esta exigência. Segundo Pascal, «o homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante». «O pensamento faz a grandeza do homem» (Pascal): quer dizer que a única grandeza da criatura mais fraca da natureza é a recusa do compromisso e, implicitamente, a recusa do mundo e a crença na existência de um Deus - o Deus absconditus - e de uma eternidade que não são seguros. (:::)

(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Lucien Goldmann: O Teatro de Jean Genet

«Ora, a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa já ao nível da miséria nem mesmo ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim no estreitamento do nível de consciência e, por isso mesmo, na tendência à redução dessa dimensão fundamental do homem que é a do possível. Tal como diz Marcuse, se a evolução social não mudar de orientação, o homem não viverá e não agirá senão cada vez mais numa única dimensão, a da adaptação à realidade, e não na outra, a da superação». (Lucien Goldmann)

A evolução social do capitalismo seguiu o rumo unidimensional previsto por Marcuse, o do estreitamento do nível de consciência do possível, mas com a realização de uma condição social objectiva não prevista pela teoria crítica da sociedade: o regresso da pobreza. Herbert Marcuse foi vítima daquilo a que chamo a alucinação da economia mágica: as mentes reduzidas vivem ou, pelo menos, viveram até aqui no mundo mágico do cartão de crédito. A crise financeira de 2008 quebrou o feitiço do cartão de crédito e da vida falsa que ele permitia comprar, devolvendo os indivíduos unidimensionais à sua miséria cognitiva e material: os portadores do pensamento unidimensional - resultante do estreitamento da consciência do possível - não sabem lidar com os efeitos nefastos e adversos da crise financeira e económica. Os animais metabolicamente reduzidos - aqueles indivíduos passivos que só sabem consumir e devorar o mundo, vivendo para não morrer - tornaram-se incapazes de pensar novas alternativas sociais e de as realizar pela praxis revolucionária: destituídos de personalidade e privados de instrumentos teóricos, eles aceitam sem revolta o seu destino como uma fatalidade. A indigência mental e cognitiva destas novas máquinas desejantes que se comportam como zombies coloca um sério desafio à teoria crítica: a teoria da reificação já não é suficiente para pensar a situação de alienação do homem no mundo capitalista e o projecto político que dela deriva deve ser completamente repensado. O que está em causa é a perda da humanidade: os homens que abdicaram da sua humanidade para se entregar completamente às trocas metabólicas com a natureza devastada estão aquém da História. A regressão consumada inviabiliza o potencial político revolucionário da teoria da alienação: onde já não há homens humanos alienados, não pode haver salvação. O elemento regressivo tematizado pela teoria do desenvolvimento de Engels e de Lenine triunfou fatalmente no mundo capitalista tardio, revelando o seu carácter necrófilo: a dupla-face do progresso não permite fechar e concluir definitivamente a História, como defende a sua representação simplista que coloniza e sacrifica o futuro; em vez disso, convida os homens a conquistar o sentido da sua história que permanece aberto. O sentido da História deve ser conquistado pelos homens, porque ele não está escrito previamente num destino e num determinismo: o possível e o impossível enfrentam-se na arena da história e o possível pode fracassar. A ironia da história reside precisamente na distância que se estabelece em cada geração entre o desejado e o realizado. Enquanto movimento de abertura total que medeia entre os opostos, a dialéctica recusa-se a fechar a história e a despedir-se do passado como algo morto: a abertura da dialéctica realiza-se não só na busca de um mundo melhor - um mundo cuja possibilidade real não está garantida, mas também na renovação contínua da herança. Ao olhar para trás, a dialéctica procura libertar o futuro. A conquista do futuro implica o resgate e a redenção integral do passado: aquilo que o neoliberalismo se apressou a enterrar deve ser trazido à nossa presença se quisermos tentar salvar a aventura humana neste planeta.

No ensaio «Le Théâtre de Genet: essai d'étude sociologique», Lucien Goldmann (1970) - discípulo de Georg Lukács - analisou quatro peças de teatro de Jean Genet: Les Bonnes (As Criadas), Le Balcon (A Varanda), Les Nègres (Os Negros) e Les Paravents (Os Biombos). Estas quatro peças de teatro têm uma estrutura comum, isto é, partilham os seguintes elementos: as personagens são colectivas (1), as relações entre estas personagens são relações de oposição - o conflito entre dominados e dominantes (2), o conflito implica dois elementos sentimentais contraditórios - o ódio e a fascinação dos dominados pelo universo dos dominantes, restando-lhes no final a realização do ritual (3), e o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso quando confrontado com os valores autênticos do ritual imaginário (4). A acção histórica constitui o tema fundamental destas peças de Genet e, por isso, as forças activas não são os indivíduos mas sim os grupos sociais. Com excepção de Saïd em Les Paravents, as personagens são colectivas: o Senhor e a Senhora e Solange e Claire em Les Bonnes, a Varanda e a gente humilde que vem à Casa das Ilusões em Le Balcon, os Negros e os Brancos em Les Nègres, e os Colonizadores, os Revoltosos e os Mortos, sem falar do Exército e das Prostitutas, em Les Paravents. As relações entre estas personagens colectivas são relações de oposição que tomam a forma do conflito entre dominados e dominantes, e os sentimentos dos dominados para com os dominantes compõem-se de dois elementos contraditórios - o ódio e o fascínio que geram e garantem a coerência do universo de cada uma das peças de teatro. Assim, por exemplo, as Criadas querem matar a Senhora mas não conseguem fazê-lo e os Revoltosos querem subverter a ordem estabelecida mas não conseguem destruí-la: o fracasso das tentativas dos dominados para liquidar os dominantes justifica o seu fascínio face ao poder dos opressores. A única coisa que os dominados podem realizar é o ritual, mediante o qual fingem matar os dominantes e, ao mesmo tempo, ser os dominantes. O ódio inspira o elemento da destruição, enquanto o fascínio conduz ao elemento da identificação deste ritual: as Criadas fingem ser a Senhora e matar a Senhora, e a Gente Humilde finge ser os poderosos e destruir os poderosos pela revolução. Neste universo das peças de teatro de Genet, o mundo real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso: quer dizer que só a aparência contém a verdade. Investido nos e pelos valores autênticos, o imaginário do ritual é absolutamente humano e válido em si mesmo, embora não seja bem sucedido na transformação da realidade. Cada uma das peças de teatro de Genet enfrenta a problemática da passagem do imaginário ao real. Porém, a impossibilidade dessa passagem não permite às personagens comprazer-se nesse universo imaginário, o que gera o seu desespero: o suicídio das Criadas, a mutilação de Roger (A Varanda) ou o final inusitado de Les Paravents: o tiro de espingarda, disparado por um dos novos Senhores, que mata Saïd - o herói que começa a Revolta contra a ordem antiga sem no entanto ser reconhecido pela nova ordem.

Como é evidente, a análise do universo das quatro peças de teatro de Genet não pode eclipsar a análise das diferenças: cada peça institui um mundo e Lucien Goldmann abordou as diferenças entre os quatro mundos. Em As Criadas, Genet coloca no centro a autenticidade do imaginário em oposição ao carácter sórdido da vida real. Numa passagem da peça, as Criadas e a Senhora dizem a mesma coisa - o seu amor pelo Senhor e o facto de o seguirem até ao desterro, mas a fala das Criadas é sempre autêntica, dramática e humana, enquanto a fala da Senhora é ridícula e odiosa. As Criadas fingem - todas as tardes - ser a Senhora e matar a Senhora, retomando o ritual em que Claire interpreta o papel de Senhora e Solange o papel de Claire: elas afirmam amar o Senhor com um amor autêntico e querer segui-lo no caso de ser deportado. No entanto, foram elas que denunciaram o Senhor, fazendo com que fosse preso. Mas, como o Senhor foi libertado, as Criadas correm o risco de ser presas por falsa denúncia: o seu ritual quotidiano é interrompido e elas são forçadas a reconhecer a sua derrota. Tentam em vão envenenar a Senhora, mas esta é demasiado forte para ser destruída: as Criadas destroem-se a si próprias para triunfar no imaginário. No final da peça, a Senhora é de tal modo magnânima que lastima a morte da pobre Claire, envenenada pela malvada Solange. E esta responde-lhe: «Deixei de ser a criada, eu sou Mademoiselle Solange». A peça A Varanda segue o mesmo esquema: À varanda encontram-se os poderosos - o Chefe da Polícia e Madame Irma, a proprietária, e, por baixo, a Gente Humilde que vem à Casa das Ilusões representar o papel daqueles que imagina serem poderosos - o papel de General, o papel de Bispo e o papel de Juiz. A peça narra uma evolução social que ocorreu efectivamente na sociedade ocidental depois da ameaça revolucionária dos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial e da derrota das forças favoráveis à revolução. As cenas da Casa das Ilusões em que a Gente Humilde interpreta os papéis do Bispo, do Juiz e do General mostram que o ritual se estrutura de maneira homóloga ao de As Criadas: as essências autênticas destas três figuras são incompatíveis com a nova realidade. As figuras reais não realizam as suas essências imaginárias, e a Gente Humilde é levada a tomar consciência do novo poder instalado na Casa das Ilusões no decurso da Revolta. Após a morte do bispo, do juiz e do general reais, os verdadeiros poderosos da Varanda - o Chefe da Polícia e Madame Irma - aproveitam a Gente Humilde para os substituírem, fazendo deles realmente um bispo, um juiz e um general. Porém, no final da peça, as pessoas que iam à Casa das Ilusões para representar essas três figuras começam a pedir para interpretar o papel de Chefe da Polícia, a força organizacional todo-poderosa que derrotou a Revolta: Roger, o chefe revolucionário, exige a organização e opõe-se aos que defendem o sonho, a espontaneidade e a autenticidade. Mas depressa compreende que é apenas o Chefe da Polícia na aparência, quando na verdade pretendia ser realmente o Chefe do Executivo. Ao compreender esta discrepância entre o imaginário e o real, Roger mutila-se, isto é, suicida-se, e o Chefe da Polícia real - o poder da organização contra-revolucionária - fica «livre» para reinar mais outros dois mil anos.

Como já vimos, as quatro grandes peças de teatro de Genet mostram o seu alinhamento político à Esquerda Radical que se operou quando começou a gravitar à volta de Jean-Paul Sartre e da revista Les Temps Modernes (Gallimard): a descoberta da luta de classes é transposta poeticamente para a sua obra, introduzindo nela a crítica social e o elemento da revolta contra o sistema estabelecido e do não-conformismo. Em Os Negros, Genet coloca à varanda os Brancos: o Militar, o Magistrado, o Eclesiástico, a Rainha e o Criado. O tema central da peça é a oposição radical entre os dominados - os Negros - e os dominantes - os Brancos. No início, os Negros representam o ritual periódico do assassinato de uma mulher branca, pelo qual foram condenados pelos Brancos. Os Negros acabam por matar simbolicamente um outro Negro que os traiu, e, quando Ville de Saint-Nazaire volta à cena, anuncia que, após essa execução, virá um novo chefe que conduzirá os Negros à vitória. A partir deste momento, o ritual dos Negros altera-se substancialmente e a peça termina com a destruição imaginária dos Brancos. Apesar de ser uma mera vitória no plano do ritual do imaginário, ela existe e substitui a derrota. Os participantes Negros não querem interpretar o papel que lhes cabe no ritual do assassinato, mas Archibald consegue convencê-los a participar: Vertu e Village explicam-lhe que se amam e que o seu amor lhes basta, não sentindo por isso necessidade de participar no ritual. Archibald responde-lhes, dando-nos a chave da peça: «Vocês não podem amar-se por não poderem fazê-lo senão com palavras brancas. Ora, para poderem usá-las, vocês deveriam estar não na cena mas na sala, entre os brancos que não vos aceitam. Vocês são Negros, e é impossível amar-se entre negros, entre dominados, no mundo daqueles que vos dominam e com palavras que não são as vossas. É necessário, antes de tudo, um novo mundo e, correspondendo a esse mundo, uma nova linguagem, para poderem realmente viver um amor que seja vosso, um amor negro». No final da peça, quando o ritual está consumado e os brancos foram executados, Vertu e Village permanecem em cena e, no momento em que Village deseja ser abraçado, trocam estas palavras: «VERTU (a Village). Todos os homens são como tu: imitam. Não poderás inventar outra coisa? /VILLAGE. Por ti, inventaria tudo: frutos, palavras mais frescas, carros de mão com duas rodas, laranjas sem caroços, camas de três lugares, uma agulha que não picasse, mas gestos de amor, isso é mais difícil... enfim, se insistes... /VERTU. Ajudar-te-ei. O certo é que, pelo menos, não poderás enrolar os teus dedos nos meus longos cabelos louros». Este final só é possível porque a situação se alterou: «Existe um novo dirigente negro e o ritual insere-se numa luta que conduzirá talvez à vitória» (Goldmann). Embora não opere a passagem da derrota dos dominados à sua vitória real e à derrota dos dominantes, a peça mostra a possibilidade virtual dessa vitória dos dominados, razão pela qual pode aparecer no amor heterossexual entre Vertu e Village a esperança de encontrar novas palavras que lhe permitam realizar-se enquanto amor negro.

A peça Os Biombos merece um destaque especial, não só por causa da sua complexidade intrínseca, mas também pelo facto de reintroduzir novamente o elemento da homossexualidade que esteve ausente nas outras três peças de Genet. O tema central de Os Biombos é a oposição entre os dominados e os dominantes, entre os Colonizados e os Colonizadores, mas o assunto é, desta vez, a vitória dos dominados. No decurso da acção da peça, aparecem claramente definidas três ordens: a ordem dos dominados e dos dominantes, já nossa conhecida, a ordem dos revoltados vitoriosos e a ordem dos mortos. A estas três ordens opõe-se um grupo não-idêntico e hierarquizado, o grupo formado por Saïd, a sua mulher, Leïla, e a sua mãe. Este grupo opõe-se a todas as ordens que encontra no decurso da acção, tal como sucede com os outros dois sectores da peça que enquadram a acção principal: o Bordel e o Exército. Mas, antes de abordar as acções paralelas do Bordel e do Exército, convém elucidar a estrutura da acção principal. Inicialmente, temos a ordem da opressão na qual a autenticidade só existe no imaginário. Segue-se a revolta começada por Saïd que recusa aliar-se com os outros rebeldes, permanecendo isolado para salvar o seu não-conformismo e a sua autonomia individual. E, por fim, temos a vitória dos revoltosos: os revoltosos tornam-se dominantes após a vitória e ocupam o lugar dos antigos poderosos, cuja ordem da opressão é substituída por uma nova ordem que deveria construir um mundo livre. Porém, os novos senhores questionam o estatuto de Saïd na nova ordem: estão dispostos a perdoar, aceitando Saïd e apagando o passado. Ommou, uma personagem colectiva e simbólica, lembra-lhes que o perdão não é suficiente para justificar a nova ordem que eles estão prestes a criar: a revolta só pode ser justificada pela construção de um mundo livre, onde o não-conformismo tenha o seu direito e a sua função reconhecida. Mas os novos senhores não compreendem esta perspectiva e um deles dispara um tiro de espingarda que mata Saïd. Saïd sempre foi mais «anarquista» e radical do que Leïla e a sua Mãe, a última das quais participou efectivamente na resistência e na revolta. Após ter entrado no reino dos mortos, a Mãe aguarda a chegada de Leïla e do seu filho. Como não aceitam o reino dos mortos, Leïla e Saïd recusam entrar nele, mas, enquanto Leïla envia o seu véu, Saïd não envia nenhum sinal, passando directamente ao nada: o seu não-conformismo radicalizado abre uma esperança de futuro, afirmando o mundo da liberdade no seio de um mundo não-livre.

A acção principal da peça Os Biombos - as relações entre o grupo de Saïd e as três ordens - é enquadrada por duas acções paralelas: a do Bordel e a do Exército. A história do Bordel acompanha de perto a sucessão das três ordens e as duas transformações que operam a passagem de umas às outras. Na ordem da opressão, o Bordel é o universo do ritual e do imaginário, onde os colonizados encontram a única autenticidade essencial que pode existir num mundo onde os dominados são explorados e oprimidos pelos dominantes: Warda é a prostituta que representa no Bordel o universo do imaginário autêntico. Posteriormente, as prostitutas comprometem-se com a luta revolucionária, sendo respeitadas, cumprimentadas e recebidas pelos outros combatentes como membros da sociedade. A sua função social na luta contra a ordem da opressão torna-se real: o combate revolucionário substitui o imaginário e Malika encarna a resistência no Bordel. Porém, após a vitória dos rebeldes e o aparecimento da ordem dos mortos, a nova sociedade nega todo o valor ao Bordel: Warda é morta, Malika é esquecida e uma prostituta chegada do Norte apodera-se do lugar que elas ocupavam no Bordel. Como já vimos, a revolta dos resistentes criou um mundo que recusa o não-conformismo e o imaginário: os revoltosos tornados poderosos comportam-se como os soldados que combatiam em defesa dos interesses dos antigos dominantes. A nova ordem que deveria instaurar o reino da liberdade fecha-se ao imaginário da autenticidade e não tolera o não-conformismo. Algo semelhante poderia ser dito em relação à acção paralela do Exército, mas o que importa aqui destacar é a relação homossexual entre o Tenente e o Sargento do Exército: o episódio da peça que mais escandalizou os críticos literários puritanos. O tema da homossexualidade encontra-se presente nos romances de Genet - Le Journal du Voleur (Diário de um Ladrão), Notre Dame des Fleurs (Nossa Senhora das Flores) e o famoso Querelle de Brest (Amar e Matar), por exemplo, bem como na sua primeira peça de teatro, aliás medíocre: Haute Surveillance. Em As Criadas, A Varanda e Os Negros, os amores importantes são amores heterossexuais: os amores das Criadas pelo Senhor (amor autêntico) ou pelo Leiteiro (amor sórdido), o amor de Roger por Chantal, e o amor de Village por Vertu. Em Os Biombos, ao lado do amor heterossexual de Saïd por Leïla, aparece o amor homossexual do Tenente pelo Sargento do Exército. Durante o período pré-teatral, Genet estruturou o seu universo literário com valores - amor, coragem, amizade, etc. - que eram reconhecidos pela sociedade estabelecida, e, para tornar as suas obras não-conformistas e inaceitáveis aos olhos puritanos da sociedade existente, foi obrigado - por razões puramente estéticas e não apenas biográficas - a acrescentar a essa estrutura de fundo uma outra dimensão, a dimensão oblíqua, como lhe chamou Goldmann: «amor sem dúvida, mas amor homossexual; coragem, mas coragem para o crime; amizade, mas amizade no vício e nos comportamentos que a sociedade condena e assim por diante». Porém, a partir do momento em que descobre o universo da luta de classes de Karl Marx, Genet já não precisa desta dimensão oblíqua para tornar a sua obra inaceitável para a sociedade estabelecida: a homossexualidade desaparece bruscamente nas suas obras de teatro - As Criadas, A Varanda e Os Negros - para reaparecer novamente no Exército de Os Biombos. Nesta peça de teatro, o Exército perdeu a guerra e, como já não luta pela vitória, limita-se a celebrar um ritual - o da guerra imaginária. Esta situação dá-lhe um valor positivo e autêntico e, para evitar a valorização excessiva da instituição militar que existe ainda na sociedade, Genet introduz novamente a dimensão oblíqua. Para salvaguardar o ambiente familiar da sua pátria, cada um dos militares do Exército não deve morrer sozinho num mundo estrangeiro e, por isso, quando o Tenente morre, os outros soldados sacrificam os valores que tinham conservado para tornar menos dolorosa e menos solitária a morte do Tenente e a sua própria morte. O romantismo patético desta cena é neutralizado pela introdução da homossexualidade, que permite valorizar a autenticidade dos dominantes vencidos sem no entanto ceder ao poder normalizador da sociedade vigente. Uma sociedade livre só será verdadeiramente humana quando aceitar o não-conformismo em todas as suas esferas: o amor heterossexual deve libertar-se do heterosexismo e deixar ser - ao seu lado - o amor negro e o amor homossexual. A obra de Genet abre as portas à grande esperança que, na qualidade de docta spes, alimenta e orienta a luta pela construção permanente de um mundo melhor.

J Francisco Saraiva de Sousa