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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pensamentos nos limites da Ciência

Atlântida
Como estou cansado de discutir a situação política portuguesa, resolvi mudar de assunto. Eis alguns pensamentos nos limites da ciência partilhados no Facebook:

1. A Teoria do Astronauta Ancestral explora as dificuldades da ciência oficial e reduz a história da humanidade a um contacto civilizacional com extraterrestres provenientes de Oríon ou de Sírio. Porém, não consegue explicar a tecnologia extraterrestre que supera a velocidade da luz - uma impossibilidade à luz da nossa física - e o tipo de agenda civilizacional trazida aos humanos pelos extraterrestres. As civilizações desaparecidas referidas pelos seus adeptos legaram-nos grandes construções, dignas de admiração, mas a sua cultura religiosa, intelectual e política não é admirável e está muito aquém da nossa própria cultura. Não podemos admirar incondicionalmente civilizações que exibiam barbárie.

2. A arqueologia não pode pretender ser "a" ciência do Homem: as culturas andinas pré-colombianas colocam desafios que a arqueologia não sabe resolver, deixando assim a porta aberta aos invasores da teoria do astronauta ancestral. Exemplos de culturas que superam a imaginação arqueológica: Cultura de Caral-Supe, Cultura Nazca, Cultura de Tiahuanaco e Cultura Puma Punku. Sem documentos escritos ou tradição oral disponível, a arqueologia pouco pode fazer: o enigma permanece.

3. O recurso aos portais por parte da Teoria do Astronauta Ancestral para explicar um vestígio material - uma construção, por exemplo - por um enigma não é uma explicação científica: a teoria pressupõe um acontecimento estranho que, face à ciência disponível, é uma miragem. Podemos defender certas hipóteses de trabalho adiando a sua "solução", mas não devemos recorrer a uma quimera para explicar determinados acontecimentos ou construções das culturas desaparecidas.

4. Será necessário criar uma teoria antropológica para explicar o interesse da humanidade pela existência de extraterrestres? A NASA disponibilizou uma página onde se podem ver OVNI'S a circular nas proximidades dos satélites ou de naves de estudo: as "luzes" circulam. Ainda ninguém conseguiu explicar esse fenómeno. A humanidade parece temer estar sozinha no universo: Será este medo suficiente para explicar a crença em extraterrestres que nos visitam desde o passado distante? O fenómeno da religião não pode ser reduzido a um único enunciado: os deuses adorados pelos homens são extraterrestres que visitaram no passado distante a humanidade.

5. A Ciência não pode continuar a ignorar as hipóteses elaboradas pelos adeptos da teoria do astronauta ancestral e da ovnilogia. A verdade é que não sabemos explicar a função das Pistas de Nazca ou a monumentalidade de Puma Punku que, em língua Aymar, significa "A Porta do Puma". Como é que construíram os seus templos, palácios e túmulos homens que, tanto quanto sabemos, só conheciam um metal - o ouro? A cerâmica analisada pela arqueologia é, por vezes, tosca.

6. Os portugueses nunca foram bons etnógrafos. As únicas culturas desenvolvidas com as quais entraram em contacto foram a indiana, a chinesa e a japonesa. De resto, contactaram com as culturas da Amazónia e as culturas africanas, uma mais desenvolvidas do que outras. Ora, os documentos que nos legaram desses contactos interculturais são escassos e pouco objectivos. O português é uma raça de horizontes cognitivos estreitos. Por onde passam os portugueses fica o esquecimento.

7. A obra de poesia e a vida de Florbela Espanca são o testemunho derradeiro da alma desalmada dos portugueses: Ela temia depois de morta - a primeira morte - ser morta segunda vez pelos seus intérpretes ou estudiosos. Os portugueses com os seus estudos toscos e medíocres matam os poucos que ousaram pensar neste ermo mental que é Portugal. O testemunho derradeiro de Florbela Espanca que condena os portugueses: «Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me». Florbela deseja ser resgatada por uma alma que a compreenda porque, em vida, foi isolada pelos seres sem alma - zombies - que a rodeavam. Ora, esses seres sem alma foram - e são - homens portugueses que nunca lhe deram amor e compreensão: Eles adormeciam ao seu lado, usando-a como um manto que encobria dos outros a sua "sexualidade". Porém, noutros monólogos descosidos, Florbela teme que seja morta segunda vez quando esses mesmos homens tentarem compreender a sua vida e obra. Ora, todos nós sabemos que os estudos portugueses matam a obra dos grandes vultos do pensamento português, privando-os da publicidade merecida. Os portugueses são homicidas intelectuais: Eles matam a obra que tocam com a sua perversidade.

8. Hoje vou tratar da origem atlante da Cidade do Porto há 10 500 e 10 000 anos A.C.. O mapa da Península Ibérica não era o mesmo de hoje: abrangia apenas a Galécia dos mapas já partilhados no Facebook. O Porto foi fundado pelos sobreviventes da Atlântida após o dilúvio. Uma civilização desenvolvida estabeleceu-se nas margens do Rio Douro: os sobreviventes da Atlântida submergida pelas águas do dilúvio. Algures a uma grande profundidade dos subsolos do Porto há vestígios ocultos da fundação do Porto por uma humanidade anterior à nossa.

9. A História oficial não consegue explicar os grandes enigmas da Humanidade. Chegou a hora de encarar de frente essa dificuldade da história oficial e de elaborar novas hipóteses de trabalho. No que se refere à origem atlante do Porto, Platão, a Bíblia e talvez Homero fornecem as ideias fundamentais: o Porto foi fundado depois do dilúvio pelos sobreviventes da civilização da Atlântida. Ora, se eles foram iluminados pela inteligência de extraterrestres vindos das estrelas, então o Porto esteve e está na rota das estrelas nocturnas.

10. A Hipótese da Origem Atlante do Porto - o porto que acolheu os sobreviventes da destruição da Atlântida - tem um precursor: o antiquário António Cerqueira Pinto que, no Proémio à edição de 1742 do Catálogo dos Bispos do Porto de D. Rodrigo da Cunha, defende que o Porto foi fundado por Noé. Segundo Cerqueira Pinto, Noé entrou aqui no Douro com as suas galés. O dilúvio - tal como Tróia - não é um mito, mas um acontecimento catastrófico - provocado pelo choque de um asteróide com a Terra - que destruiu a Atlântida: alguns sobreviventes desta grande civilização entraram no Rio Douro e fundaram o Porto. A Cidade Invicta merece o nome que tem porque foi o porto-de-abrigo dos habitantes da Atlântida que sobreviveram à destruição da sua civilização. Os portuenses devem orgulhar-se de serem os descendentes remotos dessa humanidade desaparecida. O símbolo do Porto deve ser uma Pirâmide, a porta de contacto com o seres que vieram das estrelas.


11. A Hipótese da Origem Atlante do Porto pode parecer demasiado fantástica e encantadora, mas é uma hipótese que procura esclarecer elos perdidos, em especial o elo que liga a actual humanidade à uma humanidade anterior desaparecida, no nosso caso à humanidade que construiu a civilização da Atlântida. Os mitos da Idade do Ouro têm um fundo de verdade: a História é uma sucessão catastrófica de Humanidades. Quando a civilização de uma delas é destruída por uma catástrofe, os sobreviventes ajudam uma nova humanidade a descobrir a civilização. O Norte da Península Ibérica foi, algures no passado, uma zona civilizacional desenvolvida sob o impulso dos sobreviventes da Atlântida. Quem sabe se os genes arcaicos detectados nas suas populações não são genes dessa humanidade desaparecida! Há portanto uma Idade do Ouro do Porto a descobrir! O Imaginário Atlante do Porto está presente nas suas grandes construções: os portuenses não têm consciência de que as esculturas colossais que suportam o edifico da CMP são Atlantes. Podemos recorrer aos arquétipos de Jung para explicar esta sobrevivência da Atlântida no imaginário portuense.

12. Todas as figuras aladas do Porto são figurações de extraterrestres. A Arquitectura Urbana do Porto vista do céu corresponde a uma determinada constelação de estrelas: é necessário criar uma arquitectura astronómica para compreender o passado longínquo do Porto e a sua origem atlante. Nós não sabemos construir as Pirâmides do Egipto (10 mil anos A.C.) que provavelmente não foram construídas pelos egípcios, mas também não estamos a usar todas as técnicas fornecidas pela ciência para compreender as nossas origens. As origens remotas do Porto perdem-se nalguma constelação de estrelas que iluminam a nossa noite.

13. A Origem Atlante e, portanto, estelar do Porto faz dela uma Cidade-Estado, cujo destino não pode depender do capricho de uma humanidade inferior sediada em Lisboa. Os portuenses são descendentes da humanidade superior da Atlântica e, como tais, são filhos das estrelas. O Porto é o campo que liga a Terra ao Céu e aos seus viajantes estelares.

14. A minha imaginação poética paralisa o teu cérebro diminuto? Pois, fica a saber que nem todos os portugueses são idiotas como tu. O céu das estrelas destinou o Porto para uma grande missão e, para a cumprir, é necessário reinstituir a sociedade portuense como Cidade-Estado que escuta a voz oracular de uma constelação estelar longínqua.

15. O fundo existencial obscuro do Porto fala-nos através de pequenos vestígios que urge decifrar para iluminar a sua origem atlante. Utilizei aqui uma expressão conceptual forjada por Ernst Bloch para justificar a permanência do nosso núcleo existencial depois da morte. O encanto que o Porto exerce sobre os humanos prende-se com a força desse fundo existencial obscuro que persiste apesar da voracidade de cronos.

16. Platão descreveu a Atlântida. Este mapa (em cima) situa-a no oceano Atlântico: a Pirâmide dos Açores pode ajudar a apurar a verdade desta localização. O mapa a que tive acesso apresenta outra configuração geológica da Península Ibérica. O que interessa destacar aqui é que os atlantes sobreviventes estabeleceram-se no Porto.

17. Nos contos de Platão, Atlântida era uma potência naval localizada "na frente das Colunas de Hércules", que conquistou muitas partes da Europa Ocidental e África 9.000 anos antes da era de Solon, ou seja, aproximadamente 9600 a.C.. Após uma tentativa fracassada de invadir Atenas, Atlântida afundou-se no oceano "em um único dia e noite de infortúnio".

18. Os portuenses deviam ler a "Nova Atlântida" de Francis Bacon. A descrição da Atlântida de Platão recua atrás no tempo para descobrir a Idade do Ouro; Bacon retoma o tema mas projecta-o algures no futuro: trata-se de uma utopia técnica que projecta luz sobre o destino do Porto Cidade-Estado. Ou melhor, as utopias renascentistas são regressivas no sentido de retomarem um modelo de cidade ideal do passado; porém, Bacon elenca uma série de descobertas técnicas que lançam luz sobre o futuro.

19. A Hipótese da Origem Atlante do Porto implica uma conversão dos portuenses: uma mudança radical de perspectiva e de concepção do mundo. Os portuenses são convidados a romper com o imaginário efectivo e a criar novas significações para o seu mundo social, de modo a instituir o Porto como Cidade-Estado e a gerar novas instituições sociais.

20. Um arqueólogo português diz ter descoberto algures nas profundezas oceânicas construções e esculturas da Atlântida. Deixa ver as fotografias mas mantém tudo em segredo. A Pirâmide dos Açores é fundamental para a localização atlântica da Atlântida. A necessidade de pensar o passado do Porto leva-me a abandonar a teoria de J. V. Luce. O oceano Atlântico banha o Porto e o Rio Douro desagua nele. A vertigem apodera-se do pensamento: Olhar para o passado remoto é tentar ver numa tela escura.

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O Triplo AAA de Portugal

Descobrimentos, viagens e explorações portuguesas
Hoje as Agências de Rating classificam Portugal como LIXO, esquecendo que Portugal é o único país do mundo que merece o triplo AAA, uma classificação antiga que lhe foi dada pelo Padre António Vieira para apresentar a expansão portuguesa como Luz do Mundo. António Vieira pregou o Sermão de Santo António (1682) em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, na ocasião em que o marquês das Minas, embaixador extraordinário de Portugal, fez a embaixada de obediência ao Papa Clemente X (1670). Eis um extracto desse Sermão:

«É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas nesse cantinho de terra pura e mimosa de Deus (...), nesse cantinho quis o Céu depositar a Fé, que dali se havia de derivar a todas as vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores, e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja, debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória.

«Medindo-se Portugal consigo mesmo, e reconhecendo-se tão pequeno à vista de uma empresa tão imensa, pudera dizer o que disse Jeremias, quando Deus o escolheu para profeta das Gentes: Et Prophetam in gentibus dedi te. E que disse Jeremias? Et dixit: A, A, A, Domine Deus, quia puer ego sum. A, A, A, Deus meu, onde me mandais que sou muito pequeno para tamanha empresa?

«O mesmo pudera dizer Portugal. Mas tirando-lhe Deus da boca estes três AAA, ao primeiro A, escreveu África; ao segundo A, escreveu Ásia; ao terceiro A, escreveu América; sujeitando todas três ao seu império, como Senhor, e a sua doutrina, como Luz: Vos estis Lux mundi» (António Vieira).

J Francisco Saraiva de Sousa

Pêro Vaz de Caminha: Um portuense no Brasil

A primeira Missa nas terras de Vera-Cruz, 1500
Pêro Vaz de Caminha, filho do mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto, nasceu no Porto em 1450, e morreu na Índia em 1501. Sucedeu ao pai no cargo de mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto em 1476, sendo cavaleiro da Casa de D. João II e de D. Manuel. Em 1497, foi encarregado pela Câmara do Porto da redacção dos capítulos a serem apresentados nas cortes de 1458 em Lisboa. Viajou até à Guiné antes de 1500, ano em que acompanhou Pedro Álvares Cabral na viagem que os levou à descoberta do Brasil. A sua missão era assumir o cargo de feitor da Índia, onde morreu no ano seguinte, em virtude de um ataque dos mouros à feitoria. Eis um extracto da Carta do Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500), carta enviada a el-rei D. Manuel para lhe dar notícia do achamento da terra do Brasil:

«(...) E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 dias de Abril, topámos alguns sinais de terra (...). E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra.

«Primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas, ao Sul dele, e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs mone o Monte Pascoal, e à terra a Terra da Vera-Cruz.

«(...) Ali ficámos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos adiante (...), até meia légua da terra, onde todos lançámos âncoras, em direito da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro.

«Ali lançámos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, e ali falaram. E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, quando dois, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijos para o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos. E eles os depuseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde, e não poder deles haver mais fala por azo do mar.

«A noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela (...). E sendo nós pela costa, obra de dez léguas donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada; e meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobre eles. E um pouco ante o sol-posto amainaram, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

«E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou em uma almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

«A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir ou mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e, metidos por eles cada um seus ossos de osso, brancos, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, e agudos na ponta com um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o que lhes fica entre o beiço e os dentes é feito como de roque-de-xadrez. E em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão, nem lhes estorva a fala, nem o comer nem o beber.

«Os cabelos seus são corredios, e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura, e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de aves, amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas (...).

«O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira, e uma alcatifa aos pés, por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço (...). E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão, pela alcatifa. Acenderam tochas. E eles entraram. E não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão, nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do capitão, e começou a acenar com a mão para a terra, e depois para o colar, como que nos dizia que em terra havia ouro; e também viu um castiçal de prata, e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata.

«Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz: tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha: quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram, como espantados. Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, fartéis de mel e figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes  água em uma albarrada; tomaram cada um o seu bocado e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora.

«Viu um deles umas contas de rosário, brancas. Acenou que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. e depois tirou-as e enrolou-as no braço; e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo (...)

«Sábado pela manhã, mandou o capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga, e alta de seis e sete braças. E entraram todas as naus dentro e ancoraram-se em cinco, seis, ancoragem dentro tão grande e tão formosa e tão segura que podem jazer nela mais de duzentos navios e naus (...). À tarde, saiu o capitão-mor em seu batel, com todos nós outros, e com outros capitães das naus em seus batéis, a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o capitão não querer, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu ele, com todos nós, em um ilhéu grande, que na baía está, e que na baixa-mar fica mui vazio (...).

«Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele, e assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esparavel e, dentro dele, levantar um altar mui bem corregido. E ali, com todos nós outros, fez dizer missa; a qual disse o Padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, da parte do Evangelho.

«Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta, e nós todos lançados por essa areia; e pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos; o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

«Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente (...), a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço (...).

«E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o Sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para melhor ser vista. E ali assinalou o capitão o lugar onde fizessem a cova para a chantar. E enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, abaixo do rio, onde ela estava. Trouxemo-la dali, com esses sacerdotes e religiosos diante, cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta. E quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela (a) ajudar-nos. Passámos o rio, ao longo da praia, e fômo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Ali andando nisto, viriam bem cento e cinquenta, ou mais.

«Chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza (...), armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada (...). Ali estiveram connosco, a ela, obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de giolhos assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos de pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco, e alçaram as mãos, estando assim até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós (...). E, acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos (...). E houveram por bem que lançassem a cada um sua, ao pescoço. Pelo que se assentou o Padre Frei Henrique ao pé da cruz, e ali, um a um, atada em um fio ao pescoço, lançava a sua, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta (...)» (Pêro Vaz de Caminha).

Na sua obra Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda (1958) defende uma tese curiosa sobre a América Portuguesa que merece ser repensada: a obsessão do ouro tolheu a mente dos portugueses quando receberam na nau os dois mancebos índios, como se eles fossem capazes de entender uma cultura que os transcendia, logo eles que faziam parte de uma tribo antropofágica. O grande acontecimento da história mundial realizado pelos portugueses foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia em 1498 pela frota de Vasco da Gama. Arnold Toynbee usou-o para formular uma nova periodização da história da humanidade, dizendo haver uma época pré-gâmica e outra pós-gâmica: quer dizer que uma é anterior ao feito maior dos navegadores portugueses, a outra posterior. Ora, nesta viragem decisiva da história, a primeira globalização, participaram portuenses, depois de terem contribuído para o desenvolvimento da arte de navegar, não só o Infante D. Henrique, mas também Tomé Lopes, autor das Navegações às Índias Orientais, e Pêro Vaz de Caminha, autor da famosa Carta do Achamento do Brasil, para só referir estes nomes. Cristóvão Colombo deu nome às civilizações ditas pré-colombianas, mas nós também podemos falar das culturas pré-cabralinas da América Portuguesa, duas das quais são as culturas tribais dos Tupinambás e dos Tupiniquins, dois grupos tribais rivais que se tornaram mais agressivos entre si a partir do momento em que os tupiniquins apoiaram os portugueses contra os tupinambás e os seus "aliados": os piratas franceses. Os historiadores brasileiros já utilizam essa designação quando falam da história pré-cabralina do Brasil. A historiografia do Brasil teve como pai fundador Pêro Vaz de Caminha, um cidadão do Porto, a cidade portuguesa que impulsionou o desenvolvimento da cultura urbana brasileira no período em que o Brasil acordava para a independência. As ligações entre o Porto e o Brasil são de tal modo profundas que podemos falar de um Porto Brasileiro - Júlio Dinis falou dele! - e de um Brasil Portuense.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Padre António Vieira: Os Escravos Negros e a Devoção do Rosário

Padre António Vieira (1608-1697)
«Uma das grandes coisas que se vê hoje no Mundo, e nós pelo costume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América. A armada de Eneias, disse o príncipe dos poetas que levava Tróia a Itália: Illium in Italiam portans; e das naus, que dos portos do mar Atlântico estão sucessivamente entrando nestes nossos, com maior razão podemos dizer que trazem a Etiópia ao Brasil.

«Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias, salvando com tiros e fumos de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato; entra uma nau de Angola e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. Os Israelitas atravessaram o mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar Oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos (...). Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras, do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela, o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias!

«Já se, depois de chegados, olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam seus senhores, o que se viu nos dois estados de Job é o que aqui representa a fortuna, pondo juntas a felicidade e a miséria no mesmo teatro. Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferro; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espectáculos de extrema miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à fé, que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, vossa justiça e providência! Estes homens não foram resgatados com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?

«E se as influências da sua estrela são tão contrárias e nocivas, como se não comunicam ao menos aos trabalhos de suas mãos, e como maldição de Adão, às terras que cultivam? Quem pudera cuidar que as plantas regadas com tanto sangue inocente houvessem de medrar, nem crescer e não produzir, senão espinhos e abrolhos? Mas são tão copiosas as bênçãos de doçura, que sobre elas derrama o Céu, que as mesmas plantas são o fruto, e o fruto precioso, abundante e suave, que ele só carrega grandes frotas, ele enriquece de tesouros o Brasil e enche de delícias o mundo. Algum grande mistério se encerra logo nesta transmigração (...).

«Estas são as considerações que eu faço, e era bem que fizessem todos, sobre os juízos ocultos desta tão notável transmigração e seus efeitos. Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dois Infernos: um nesta vida, outro na outra. Mas quando os vejo tão devotos e festivais diante dos altares da Senhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma Senhora, já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda (...).

«Eis aqui, irmãos do Rosário pretos (...), eis aqui o vosso presente estado, e a esperança que ele vos dá do futuro (...). Neste estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal, vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda transmigração, que é a da liberdade eterna. Isto é o que vos hei-de pregar hoje para vossa consolação. E reduzido a poucas palavras será este o meu assunto: que a vossa irmandade da Senhora do Rosário vos promete a todos uma carta de alforria, com que não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira. Em lugar das alvíssaras que vos devera pedir por esta boa nova, vos peço me ajudeis a alcançar a graça com que vos possa persuadir a verdade dela (...)». (Padre António Vieira, Sermão Vigésimo Sétimo, 1688, pregado na Baía à Irmandade dos Pretos de um Engenho.)

Verdade seja dita: os Sermões do Padre António Vieira ainda não foram alvo de uma hermenêutica subtil e profunda. O Sermão Vigésimo Sétimo faz parte da série Maria, Rosa Mística, devendo ser lido em ligação com o Sermão Décimo Quarto da mesma série, também ele pregado na Baía à Irmandade de Pretos de um Engenho em 1633. O conjunto aponta antecipadamente para uma teologia da libertação, como demonstraria uma hermenêutica demorada das duas transmigrações do Evangelho: In transmigratione Babylonis - a transmigração que levou os filhos de Israel da sua pátria para o cativeiro da Babilónia, e Et post transmigrationem Babylonis - a transmigração que os levou do cativeiro para a sua pátria. (A descrição das desigualdades sociais realizada por António Vieira no terceiro parágrafo deste Sermão traz à memória os textos célebres de Marx e de Engels sobre a exploração e a luta de classes!) Há, portanto, uma ambiguidade produtiva no modo como António Vieira trata as duas transmigrações bíblicas quando as usa para compreender a escravatura dos negros: a carta de alforria promete e garante a liberdade eterna - como consolação ao sofrimento terreno, sem fechar completamente a porta à possibilidade de uma libertação temporal do cativeiro. No entanto, embora fosse sensível à causa da Irmandade dos Pretos e solidário com o seu sofrimento, António Vieira vacila quando logo a seguir realça que o sangue, o suor e as lágrimas dos escravos negros de Angola alimentam e sustentam o Brasil, que não pode - na sua perspectiva - dispensar o seu trabalho forçado, sob qualquer pretexto: o trabalho escravo «enriquece de tesouros o Brasil e enche de delícias o mundo». E, tal como Bartolomeu de Las Casas, António Vieira defende que, para assegurar a liberdade dos Ameríndios, afinal os únicos indígenas brasileiros protegidos pelos jesuítas, é necessário aumentar a importação de escravos negros da África Ocidental. O Sermão da Epifânia de 1662 combate os preconceitos raciais, mas não rompe com a justificação ideológica da escravatura dos negros que trabalhavam nos engenhos de açúcar, com recurso a uma teoria engenhosa da recompensa adequada no Paraíso: «Trabalhemos e rezemos, do ar viveremos, no céu comerão bolos os que vivem como tolos». (Oh, infelizmente, hoje são os portugueses que vivem como tolos sem saber se comerão bolos amanhã! A conversa informal entre Vítor Gaspar, ministro das finanças português, e Wolfgang Schauble, ministro das finanças alemão, foi simplesmente humilhante para Portugal! Sádico em Portugal, Vítor Gaspar é masoquista no exterior, exibindo uma submissão digna de açoite!)

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 16 de outubro de 2011

Sérgio Buarque de Holanda: A Imaginação Geográfica dos Portugueses

«C'est l'extraordinaire faculté d'extension du concept de l'Inde à tout pays fabuleux quel qu'il soit dans la géographie médiévale, qui permit ao royaume du Prêtre-Jean d'être aussi aisément déplacé vers le Congo. Les Portugais l'ont cherché sur la côte occidentale de l'Afrique, et Vasco de Gama fit voile dans cette direction, passa au large du cap de Bonne-Espérance, découvrit en mer non pas le prêtre-roi mais bien les véritables Indes orientales. /Que l'espace nécessaire à une terre nouvelle se trouve sur cette terre, et que non seulement le temps, mais aussi l'espace porte son utopie en soi, c'est ce que sous-entendent les fondements d'un monde meilleur, du point de vue de la recherce de l'Eldorado-Eden géographique.» (Ernst Bloch)

Infelizmente, ainda não consegui adquirir nenhum dos livros de Sérgio Buarque de Holanda: o que quer dizer que tenho um conhecimento em segunda mão da sua obra. Além da sua obra Raízes do Brasil (1936), aquela que mais me interessa é, sem dúvida, Visão do Paraíso: Os motivos edénicos no descobrimento e colonização do Brasil (1959). Numa nota de rodapé, Silva Dias descarta-se da hipótese elaborada por Sérgio Buarque de Holanda sobre as correlações dos Descobrimentos e da Utopia: a mente de Silva Dias é, filosoficamente, atrofiada, perversa e maldita. O seu complexo de inferioridade leva-a a atribuir aos descobridores portugueses um complexo de superioridade que tenta minar, acusando-os de não terem feito aquilo que os outros - os franceses - fizeram. Mas quem é Silva Dias para rejeitar a autoridade de Ernst Bloch? Silva Dias deve reduzir-se à sua própria mediocridade e usar umas orelhas de burro, até mesmo depois de morto. Não sei se ele consultou efectivamente toda a bibliografia que apresenta nas suas obras, mas de uma coisa estou certo: Silva Dias não possui estofo intelectual para compreender a novidade radical que se revela nas obras seminais dos intelectuais portugueses dos Descobrimentos. A chave de leitura que usa é demasiado arcaica e simplicista para merecer qualquer tipo de atenção: a mente de Silva Dias situa-se aquém da mente dos intelectuais portugueses dos Descobrimentos que conheciam muito bem a literatura antiga. Os historiadores portugueses empobrecem a História de Portugal. É por isso que admiro a ousadia teórica de alguns historiadores brasileiros, entre os quais destaco Sérgio Buarque de Holanda e Afonso Arinos de Mello Franco: ambos trataram de dois mitos - o do Éden e o do Bom Selvagem - que não são estranhos um ao outro, como o próprio Silva Dias reconhece. A Utopia Geográfica encontra a sua forma mais completa n'Os Lusíadas de Camões: «Eis o mundo de Camões que ele, ao longo do Poema, define no seu tríplice aspecto, geográfico, naturalístico e humano. /E aqui chegados, bem podemos concluir que esta não é, essencialmente, a epopeia da imitação greco-latina: mas a que anuncia os Tempos Modernos. Este não é o poema do Renascimento. Os Lusíadas são o poema do Nascimento. Dum Novo Génesis. Duma Nova Idade. Ainda agora o Espírito flutuava sobre as águas; e já o mundo se ergue do Caos. O Poeta animou com o sopro da inspiração a multidão caótica dos factos, das coisas, das ideias novas, e deu-lhes vida, sentimento, continuidade com o passado e projecção no futuro. Nas páginas do Poema passa o frémito augusto, a singularidade do milagre, a aparição sublime e por vezes terrífica da Criação. /Não: Os Lusíadas não representam a cultura dum passado morto, mas a soma imensa de experiências, de sofrimentos, de conceitos, colhidos ao longo de todos os mares e de todos os continentes, que educaram, poliram, prepararam o Homem para uma vida mais embebida de espírito e humanidade» (Jaime Cortesão). Infelizmente, Ernst Bloch não conhecia em primeira mão esta obra da epopeia dos feitos portugueses, a epopeia da «fusão do Homem com o Universo» (Jaime Cortesão): o seu conhecimento ter-lhe-ia permitido articular todas as utopias geográficas - Éden e Eldorado - numa única Casa do Homem - toda a Terra como pátria do Homem (Heimat, terra natal, lar, pátria). (Wanderson Lima publicou um post sobre este historiador brasileiro: veja aqui.)

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Portugueses e o Mito do Bom Selvagem

The Death of General Wolfe (1771):
o índio norte-americano idealizado.
«Corre mundo desde longa data a teoria da participação portuguesa na génese do mito do "bom selvagem". Numa forma ou noutra, tornou-se quase um dogma histórico da cultura luso-brasileira. Do jornalismo passou ao ensaio; e agora mandarina nas dissertações e nas cátedras. Tal é o prestígio dos grandes mitos! E os mitos científicos, sobretudo pseudo-científicos, não fazem excepção à regra do lugar comum oficioso... /Não foi importante ou representativo o papel desempenhado pelos portugueses - e sobretudo pelos seus intelectuais - na formação do mito do "bom selvagem". Nem Duarte Pacheco Pereira, nem João de Barros, nem André de Resende, nem Damião de Góis ou Jerónimo Osório, nem Francisco de Andrade, nem António Galvão ou Fernão Mendes Pinto, e nem mesmo Gaspar Correia, Diogo do Couto, Fr. João dos Santos, ou qualquer outro da sua estirpe, tiveram olhos para esse mito ou, no mínimo, para os pressupostos desse mito. /Verificou a lusa gente a existência de variadíssimas crenças religiosas na superfície do globo. E sem dúvida que a verificação poderia levar ao conceito de religião natural. Assim repercutiu nalguns intelectuais e observadores de outros países. O certo, porém, é que não desembocou nesse resultado logo às primeiras, como a simples cronologia o documenta. E em todo o caso, é positivo que apenas induziu os portugueses ao reconhecimento da inferioridade das populações distantes.» (J. S. da Silva Dias)

Em 1937, Afonso Arinos de Mello Franco publicou a sua obra O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, onde elabora a hipótese da participação portuguesa na génese do mito do bom selvagem. A visão do índio esboçada por Mello Franco é demasiado romântica, como se o índio fosse um ser naturalmente bom. J. S. da Silva Dias impugna esta visão, alegando que, além de confundir os planos históricos dos séculos XVI e XVIII, erra quando atribuí ao índio brasileiro um papel na formação do mito do bom selvagem na mente política de Jean-Jacques Rousseau. Silva Dias até pode ter alguma razão quando defende a marginalidade portuguesa ao mito, mas o seu conceito da frustração cultural da expansão portuguesa retrata mais a sua própria incapacidade para elucidar o mito do bom selvagem do que a surdez lusitana às ressonâncias do pensamento vindas de além-Pirenéus: ele esquece que o mito do bom selvagem está por detrás de uma das maiores filosofias políticas do Ocidente. Há muitas maneiras de interpretar e de avaliar o mito do bom selvagem, o qual não funciona do mesmo modo em Montaigne (1592), em Lafitau (1740), em Diderot (1784) e em Rousseau (1778). Os portugueses quinhentistas não elaboraram um mito do bom selvagem, no sentido de terem descoberto nos povos primitivos algum princípio que lhes permitisse realizar uma crítica da civilização: os portugueses foram sempre mais difusores do que críticos da civilização. Silva Dias opõe ao mito do bom selvagem a ideologia colonialista do mau selvagem que atribui aos portugueses, sobretudo aos jesuítas. No plano em que se situa este confronto, somos forçados a louvar o realismo português: os índios brasileiros não eram seres inocentes, vivendo num estado natural avesso à guerra e aos actos de agressão. Mas qual é a função desempenhada pelo índio no mito do bom selvagem tal como o analisou Rousseau? Acreditaria Rousseau no seu bom selvagem? Silva Dias trabalha com uma cronologia ampla, que vai do século XVI até ao século XVIII, mas, quando ataca as posições dos outros, tende a estreitá-la de modo a descontextualizar as teses adversárias. Os intelectuais portugueses dos Descobrimentos não podem ser racionalmente acusados de não terem antecipado a obra filosófica e política de Rousseau ou de não terem escrito os Ensaios de Montaigne: eles escreveram outras obras fabulosas sobre o descobrimento do mundo, dos seus habitantes indígenas e dos seus costumes, sobre os quais forneceram imagens-retratos que reflectem diversas tonalidades em função do seu nível de desenvolvimento cognitivo e social. Abraçando a cronologia de Silva Dias, no fundo a cronologia do desenvolvimento do mito moderno do bom selvagem, verificamos que os portugueses não elaboraram sempre o mesmo retrato do "selvagem" como ser "bárbaro". Silva Dias esquece que, «antes de ser descoberto, o selvagem foi primeiro inventado» (G. Cocchiara, 1948): o mito moderno do bom selvagem mais não é do que a revalorização, radicalmente secularizada, de um mito muito mais antigo, o mito do Paraíso Terrestre e dos seus habitantes nos tempos fabulosos que precederam a História (Mircea Eliade). Seria este último mito estranho aos portugueses quando se lançaram à descoberta do mundo? Basta ler a obra do padre António Vieira - o homem que defendeu a "causa" dos índios brasileiros - para constatar o contrário. E, se lermos Camões, reencontramos esse mito - numa versão mais erótica, é certo! - no canto IX d'Os Lusíadas. A utopia erótica de Camões deve ser colocada ao lado das grandes utopias da Renascença: ela desmente a tese de que os portugueses eram insensíveis às belezas naturais e humanas - ou, como se dizia na altura, às formosuras - dos Trópicos. A História de Portugal está cheia de buracos: os historiadores e os intelectuais portugueses projectam a sua indigência mental e cognitiva sobre o passado histórico dos portugueses, esquecendo que estes entraram em contacto com outras culturas e civilizações sem complexos de inferioridade: eles protagonizavam a história universal. A mente lusitana do nosso tempo é de tal modo raquítica que empobrece invejosamente todo o passado de Portugal: a rememoração - a anamnese de Platão que prolonga o mito arcaico - tornou-se um exercício de auto-flagelação. Toda a obra de Silva Dias sobre a cultura portuguesa do século XVI é, filosoficamente falando, medíocre: as limitações intelectuais de Silva Dias - o homem que simula imitar o pensamento vindo de além-Pirenéus - não podem ser atribuídas, através do contágio retrospectivo da inveja, aos intelectuais portugueses dos Descobrimentos, cujas obras ainda não foram analisadas por uma inteligência superior: os intelectuais franceses tão invejados por Silva Dias fizeram com os seus "antepassados" aquilo que Silva Dias foi incapaz de fazer com os seus - valorizaram-nos, reactualizando o seu pensamento e integrando-o na corrente das ideias: o que quer dizer que admiro mais a ousadia do empreendimento de Mello Franco do que a cobardia intelectual de Silva Dias, embora saiba que o índio subjacente ao mito do bom selvagem não era o índio brasileiro mas o índio norte-americano, na terra do qual esse mito se transformou em teoria do progresso.


Bibliografia de alguns dos intelectuais portugueses dos Descobrimentos:


1. Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de situ Orbis, Lisboa, 1905.
2. João de Barros, Décadas, 9 vols., Lisboa, 1777-78.
3. André de Resende, De Antiquitatibus Lusitaniae coeteraque historica, quae extant, opera, 2 vols., Coimbra, 1790.
4. Damião de Góis, Opúsculos Históricos, Porto, 1945.
5. António Galvão, Tratado dos Descobrimentos, Porto, 1944.
6. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, 2 vols., Lisboa, 1996.
7. Garcia da Orta, Colóquio dos Simples e das Drogas e cousas da Índia, 2 vols., Lisboa, 1891.
8. Gomes Eanes da Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Coimbra, 1915.
9. Gomes Eanes da Zurara, Crónica dos Feitos de Guiné ou Crónica da Conquista de Guiné, Porto, 1972.
10. Rui de Pina, Crónica d'el-rei D. João II, Coimbra, 1950.
11. Livro da Côrte Imperial, 2 vols., Porto, 1910.
12. Padre António Vieira, Obras Escolhidas: Cartas & Sermões, 12 vols., Lisboa, 1997.
13. Pêro Vaz de Caminha, Carta de Achamento do Brasil, Lisboa, 1940.
14. Luís de Camões, Os Lusíadas, Lisboa, 1928.
15. Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil e mais escritos, Coimbra, 1955.
16. Novas Cartas Jesuíticas, São Paulo, 1940.
17. Carlos Malheiros Dias, dir., História da Colonização Portuguesa do Brasil, 3 vols., Porto, 1921-26. (Monumental e repleta de excelentes documentos.)
18. D. João de Castro, Roteiro de Goa a Suez ou do Mar Roxo, Lisboa, 1940.
19. D. João de Castro, Roteiro de Lisboa a Goa, Lisboa, 1940.
20. D. João de Castro, Roteiro de Goa a Diu, Lisboa, 1940.
21. Abel Fontoura da Costa, Às Portas da Índia em 1484, Lisboa, 1935. (Contém boa documentação.)
22. Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, 4 vols., Coimbra, 1949-55.
23. Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia, 4 vols., Coimbra, 1924-33. (Monumental e repleta de informação.)


J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Descobrimentos Portugueses

Planisfério de Cantino (1502), a mais antiga carta náutica portuguesa conhecida, mostrando o resultado das viagens de Vasco da Gama à Índia, de Colombo à América Central, de Gaspar Corte Real à Terra Nova e de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, com o meridiano de Tordesilhas assinalado. (Biblioteca estense universitária de Modena.)

Passei quase toda a tarde a pesquisar a bibliografia disponível sobre o Império Colonial Português e aproveito a ocasião para limar algumas arestas relativas ao comportamento etnográfico dos portugueses. Tive hoje nas mãos diversas etnografias de Timor, Angola, Guiné, Goa e Moçambique: consultei-as e reconheço a qualidade de algumas delas. Muito antes de surgir a moda das etnociências, já os portugueses editavam muitos estudos ultramarinos sobre temas etnocientíficos, tais como etnobotânica, etnozoologia, etnofarmacologia ou mesmo etnografias da saúde. Porém, tenho razão quando acuso os portugueses de hoje de serem negligentes e "burros": toda esta vastíssima e preciosa documentação é como se não existisse. E duvido que se possa formar uma equipa de especialistas para fazer o seu inventário crítico e recuperar os melhores estudos, dando-lhes visibilidade pública.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Culturas Indígenas do Brasil

Caciques Caiapós, Amazónia, Brasil
«A enorme extensão territorial e a desigualdade de desenvolvimento das suas várias regiões fazem do Brasil um país de violentos contrastes, em que as tribos indígenas virgens de contacto com a civilização são contemporâneas de grandes metrópoles modernas. Aquilo que para o Brasil litorâneo é a história mais remota, só registada nos documentos da colonização, para o Brasil interior é crónica actual. /O Brasil de que (Darcy Ribeiro trata na sua obra Os Índios e a Civilização) é, principalmente, este Brasil interior, de matas e campos indevassados, que só agora vão sendo integrados ao sistema sócio-económico nacional. Ali, índios e civilizados defrontam-se e chocam-se hoje em condições muito próximas daquelas em que se deram os primeiros encontros da Europa com a América indígena. De um lado, são índios armados de arco e flechas que, do recesso de suas matas, olham o brasileiro que hoje avança sobre as suas terras, tal como o Tupinambá quinhentista olhava as ondas de europeus que se derramavam das naus portuguesas. De outro lado, são brasileiros engajados nas frentes de expansão da sociedade nacional, que avançam por uma terra que consideram sua e vêem no índio uma ameaça e um obstáculo». (Darcy Ribeiro)

Hoje acordei a pensar na Civilização Inca: o meu objectivo era criticar a tese desenvolvida por Louis Baudin (1928) na sua obra L'Empire Socialiste des Inka. Mas, quando estava a tomar os meus cafés da manhã, ao consultar um livro de arqueologia das culturas pré-colombianas, fiquei surpreso com o facto do autor dedicar pouca atenção às culturas amazónicas, limitando-se a referir brevemente quatro estilos da sua cerâmica. Foi então que, mudando de tarefa, resolvi rever a magnífica obra de Betty J. Meggers (1971), Amazonia: Man and Culture in a Counterfeit Paradaise, onde esta arqueóloga analisa as populações indígenas da Amazónia numa perspectiva ecológica. (Há tradução brasileira, com apresentação de Darcy Ribeiro: Amazónia, a ilusão de um paraíso.) E, de livro em livro, resolvi escrever este texto para dar início a um novo tópico dedicado às culturas indígenas do Brasil, aliás um tópico muito desprezado em Portugal. Porém, o livro que mais chamou a minha atenção foi a obra de Anton Lukesch (1976), Mito e Vida dos Índios Caiapós. Não é habitual num mundo dominado pela literatura antropológica anglófona ou mesmo francófona, prestar atenção às monografias etnográficas alemãs. No entanto, tenho há muito tempo a obra de Anton Lukesch destacada e deslocada da estante, para me fazer lembrar que ela permite elaborar a "filosofia primitiva" dos índios Caiapós. Também não será desta vez que irei tentar sistematizar a filosofia caiapós, mas posso - desde já - avançar com uma conjectura: tal como os ilhéus de Dobu, os índios caiapós têm uma cosmovisão antropocêntrica de cariz marcadamente pessimista, cujo elemento estruturador articula o medo da morte violenta, da doença fatal e dos inimigos (outros homens, seres estranhos ou maus e feras da selva), a impotência face à catástrofe e o abandono, desde logo evidenciado no mito do Homem. A Carta de Pêro Vaz de Caminha (Porto Seguro, 1 de Maio de 1500), redigida para o rei D. Manuel para lhe comunicar o descobrimento do Brasil, constitui o primeiro documento etnográfico e histórico do Brasil: Jaime Cortesão dedicou-lhe muitas páginas da sua obra, mas, apesar disso, tanto quanto sei, ninguém a submeteu a uma leitura etnológica, antropológica e filosófica sistemática, fazendo dela a primeira etnografia dos índios do Brasil: duas culturas com desenvolvimentos desiguais entraram em confronto-diálogo, a cultura portuguesa e a cultura índia. A cultura índia do Brasil era, de todas as culturas conhecidas pelos descobridores portugueses, a mais primitiva de todas, que, além de desconhecer a agricultura, a idolatria e a adoração, e de ter medo das galinhas, não possuía a noção de distância hierárquica, o que colheu de surpresa os portugueses, sobretudo Álvares Cabral e o seu escrivão, Pêro Vaz de Caminha. Quando descreve os dois mancebos de Vera Cruz, Pêro Vaz de Caminha não os compara com o Europeu ou com o Asiático, mas com o negro da Guiné, o que prova que ele estava ciente dos caracteres etnográficos - físicos e culturais - que faziam dos indígenas de Vera Cruz uma raça nova, habitando um novo meio - um novo continente - até então desconhecido: «A feição deles é serem pardos, maneiras de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos». A cor e a forma do rosto, principalmente a forma do nariz, são aqui contrastadas com as do negro, de maçãs salientes, beiços grossos e proeminentes e, sobretudo, nariz largo e chato. A seguir, Pêro Vaz de Caminha contrasta os cabelos "corredios" dos índios - "muito pretos, compridos, pelas espáduas" - com a carapinha crespa dos Guinéus. E termina dizendo que os dois mancebos não são circuncisos ("fanados"), como os guinéus islamizados. Para colonizar Moçambique, os portugueses travaram - com ou sem ajuda de outras tribos indígenas - algumas batalhas ferozes com o Império do Monomotapa e, depois, com o Império de Gaza, tendo derrotado ambos, com a derrota de Maguiguane (1897) a marcar o seu domínio efectivo a Sul do Save. Não vale a pena os nacionalistas moçambicanos acentuarem muito as guerras de resistência contra o domínio português, até porque a descolonização e a independência de Moçambique (1975) não resultaram de uma derrota militar de Portugal. Aliás, duvido muito que as forças militares portuguesas fossem derrotadas pelos guerrilheiros da Frelimo: ao contrário da França, Portugal não tem muitas derrotas na sua história militar, e uma das nossas vitórias foi precisamente contra os exércitos de Napoleão que queriam anexar o nosso território e sacar os tesouros da Sé-Catedral do Porto. A Frelimo praticou um tipo de guerrilha demasiado violento, que não faz parte do código genético dos militares portugueses: cheguei a ver álbuns de fotografias que exibiam colonos brancos e africanos aliados degolados e com os órgãos sexuais espetados num pau ou pendurados algures nos ramos de um arbusto. E, até mesmo já no período de descolonização, muitos portugueses foram presos, torturados e assassinados, alguns amarrados a troncos de árvores enquanto as mulheres e/ou as filhas eram violadas. Um dia será necessário repor a verdade no seu devido lugar e fazer justiça a todos aqueles - brancos e negros - que foram barbaramente assassinados em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Este desvio pela Guerra do Ultramar pretende evidenciar algumas das diferenças entre a colonização de África e a colonização do Brasil. No entanto, convém frisar que a colonização portuguesa nunca foi desumana, tanto no Brasil como em África. O confronto-diálogo dos portugueses com os indígenas do Brasil está mais estudado do que o seu confronto-diálogo com os indígenas africanos: a narrativa das guerras dos portugueses com as tribos africanas tende a esquecer o outro lado da colaboração e das alianças, mesmo nas batalhas contra outros invasores europeus, como por exemplo os holandeses. Os verdadeiros adversários de Portugal nunca foram os povos colonizados, mas os outros colonizadores europeus, mais interessados na exploração económica do que no desenvolvimento interno das colónias. A lógica da colonização foi sempre uma lógica capitalista: o confronto entre as maiores potências europeias pelo domínio do mundo. Esquecer o papel desempenhado pelo capitalismo na conquista do mundo é não compreender nada do colonialismo. Os brasileiros herdaram um traço terrível dos portugueses que dirigiram contra os próprios portugueses: o falso espírito estrangeirado que, com excepção da obra de Gilberto Freyre, deforma a sua perspectiva do contacto entre índios e brancos. A bibliografia brasileira e estrangeira sobre os contactos entre índios e brancos é demasiado extensa, mas posso destacar algumas obras fundamentais: Aculturação Indígena de Egon Schaden (1965), Os Índios e a Civilização de Darcy Ribeiro (1970), A Sociologia do Brasil Indígena de Roberto Cardoso de Oliveira (1972), e O Índio na História do Brasil de Berta Ribeiro (1983). Quatro obras fabulosas que, apesar do seu mérito intrínseco, são vítimas de preconceitos básicos, nomeadamente do preconceito contra o português, que as leva, pela mão do tal espírito estrangeirado, a acreditar num discurso inocente. A verdade é que, apesar dos índios de Vera Cruz não saberem o que era o ouro, os descobridores portugueses se renderam aos papagaios e aos encantos do novo mundo: a Carta de Pêro Vaz de Caminha é muito mais sincera e lúcida do que muitos discursos antropológicos que foram precipitadamente elaborados para criar uma discórdia étnica lá onde ela nunca existiu verdadeiramente - no Brasil.

O universo indígena do Brasil é deveras desconcertante: A Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira de Herbert Baldus (1954, 1968) indica 2834 obras publicadas até ao ano de 1967 que tratam de algum modo dos índios do Brasil. Em 1984, Thekla Hartmann publica os três volumes da sua Bibliografia Crítica da Etnologia Brasileira que arrolam 4600 publicações, cada uma delas comentada. Mas não é só a extensão da bibliografia que assusta: os índios do Brasil estão distribuídos em 143 grupos tribais (Darcy Ribeiro, 1957) e ainda falta informação suficiente para caracterizar com precisão determinadas populações como tribos ou subtribos, apesar da população índia não ser suficiente em número para ocupar todo o Estádio do Maracanã. O rótulo geral de índio - uma invenção portuguesa - encobre uma enorme diversidade biológica, linguística (Aryon Dall'Igna Rodrigues, 1987) e cultural (Eduardo Galvão, 1960), que desafia a imaginação antropológica dos etnólogos brasileiros. Infelizmente, as universidades do nosso tempo indigente funcionam mais como centros de emprego do que como centros de ensino e de investigação: os cursos de Humanidades perderam toda a sua credibilidade. Um licenciado ou pós-graduado em antropologia, filosofia, história, geografia, línguas e literaturas modernas, ciências políticas ou sociologia, não sabe absolutamente nada, e, para confirmar esta triste realidade, basta consultar os seus currículos e as suas teses de mestrado ou de doutoramento, prestando especial atenção à "escolha" dos temas abordados ou leccionados. As universidades andam a diplomar ignorantes que falam de tudo sem saber do que falam: o seu único objectivo é arranjar um emprego sem trabalho que lhes garanta o sustento e um estilo de vida frívolo. O distanciamento é amigo do pensamento que procura dizer a verdade. Hoje temos o distanciamento, mas não temos pensadores à altura da missão de pensar a verdade. Paradoxalmente, a colonização acordou o mundo para uma nova fase de desenvolvimento e de formação económica da sociedade, ao passo que a descolonização - salvo as raras excepções - mergulhou vastas zonas do mundo na miséria mais abjecta. Mas o pior é que a regressão mental e cognitiva que ocorreu nos países desenvolvidos do Ocidente - em virtude da miragem que foi a sociedade afluente e das suas políticas neoliberais - nos priva da massa cinzenta necessária para descobrir novas soluções para os graves problemas gerados pela civilização industrial e novas alternativas sociais: o nosso mundo sombrio está situado à beira de um enorme precipício. Na minha perspectiva, qualquer mudança de paradigmas passa, em primeiro lugar, pela re-escritura da História da Civilização Ocidental e da Humanidade: precisamos urgentemente de uma nova Filosofia da História, capaz de inventar um novo futuro para a Humanidade Unificada (Jaime Cortesão) num mundo cada vez mais global. Em nome da Utopia Igualitária, os intelectuais ocidentais ajudaram a destruir aquilo que é mais sagrado para o Ocidente - a cultura superior, sem a qual somos incapazes de resolver os nossos próprios problemas e os problemas das culturas indígenas. Lá onde se realiza mais uma etapa da Utopia Igualitária - ela implica sempre o fenómeno de regressão cognitiva e de atrofia dos órgãos mentais: o mundo fica mais pobre, não só em termos materiais, mas também em termos cognitivos e mentais. Nivelar a sociedade por baixo é abdicar do futuro: a ideologia igualitária alia-se ao neoliberalismo na tarefa de destruir o mundo. Já devem ter reparado que estou a criticar as novas gerações de pseudo-intelectuais portugueses, brasileiros, americanos e europeus, gerações rascas que fazem do sofrimento dos outros o seu sustento e o seu emprego, fingindo que estão preocupadas com as causas dos índios ou da Amazónia. Em vez de derramar lágrimas de crocodilo, os "intelectuais" deviam primeiro aprender aquilo que nunca aprenderam nas universidades, durante os seus cursos e pós-graduações da treta, e segundo investigar as novas realidades à luz de novos paradigmas teóricos que impliquem uma outra visão da própria história. Mas, como não acredito na regeneração da maior parte dos analfabetos diplomados que povoam as nossas universidades e os nossos centros de investigação, resta-me referir - neste texto introdutório - mais algumas obras etnológicas e sócio-antropológicas do passado que merecem a minha atenção, na certeza de que precisam ser reformuladas na sua problemática teórica:


1. Josué Camargo Mendes, Conheça a Pré-História Brasileira, São Paulo, 1970.
2. Betty Meggers, América Pré-Histórica, Rio de Janeiro, 1972.
3. Julio Cezar Melatti, Índios do Brasil, Brasília, 1986.
4. Anthony Seeger, Os Índios e Nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras, Rio de Janeiro, 1980.
5. Alcida Rita Ramos, Sociedades Indígenas, São Paulo, 1986.
6. Alfred Métraux, A Religião dos Tupinambás e suas Relações com as das demais Tribos Tupi-Guaranis, Brasília, 1979.
7. Florestan Fernandes, Organização Social dos Tupinambá, São Paulo, 1949.

J Francisco Saraiva de Sousa