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terça-feira, 7 de agosto de 2012

O Retorno a Marx

Um filme de terror ajudou-me a clarificar os meus conceitos positivos de História e de Natureza Humana. Quando o "psicopata" se dirigia em direcção das suas vítimas, com a faca na mão, pensava: mata essas criaturas que berram como leitões. Identificando-me com o "psicopata", via as vítimas como leitões que mereciam morrer. Inverti o sentido moral da narrativa: o princípio do mal era encarnado não pelo "psicopata", que se limitou a fazer o papel sujo da história, eliminando a escória pseudo-humana, mas sim pelas próprias vítimas. Só hoje quando fui tomar café é que compreendi que a minha identificação com o "psicopata" tinha algo a ver com a teoria marxista da história. Esta identificação reflecte um sentimento comum: nós - seres pensantes - estamos profundamente cansados da humanidade existente. Confesso: ver os leitões a serem degolados e esfaqueados deu-me prazer, não um prazer sádico mas sim um prazer estético, no sentido de libertar o mundo dos homens que se comportam como animais. Precisamos de espaço aberto para construir um mundo novo: o "psicopata" agiu de modo a libertar o espaço da presença desses homens - mais animais do que humanos - que bloqueiam o futuro. Sem violência não há verdadeiramente história: todos sabemos que os protestos organizados de rua não alteram o status quo. Marx e Engels sabiam isso: a violência é a parteira da história. Até aqui tenho estado a namorar com o princípio marxista da história como "hominização do homem" que é retomado por Marx no prefácio de 1859. Marx iniciou uma imensa revolução teórica que não chegou a concluir. (:::/:::)

Reler Marx - e trazê-lo à nossa presença - implica a tradução rigorosa da sua obra em língua portuguesa: as traduções existentes - tanto as portuguesas como as brasileiras - são péssimas. O desenvolvimento cultural de um país pode ser avaliado em função da sua actividade editorial e da qualidade das traduções. O atraso cultural de Portugal revela-se desde logo no desfasamento temporal entre a publicação das obras pioneiras e a sua tradução em língua portuguesa. Além disso, as grandes obras que marcaram o mundo ainda não foram traduzidas e as poucas que foram mal traduzidas estão desfasadas da sua conjuntura cultural. Mas o mais preocupante é que os leitores portugueses lêem essas obras como se elas fossem a última palavra sobre as matérias abordadas. O princípio de influência que predomina em Portugal entrava o seu próprio desenvolvimento cultural: quem não tenha uma figura influente na família não tem futuro em Portugal. Todas as instituições portuguesas, incluindo as instituições culturais, são regidas por este princípio de influência: elas são sempre-já capturadas pelas máfias reinantes. (:::/:::)

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Ditadura da Estupidez

A Europa e o mundo ocidental perderam o juízo. Há muitas formas de totalitarismo e uma delas é a perda do bom-senso. A democracia ocidental produziu nas últimas seis décadas uma sociedade inviável e, o que não deixa de ser sintomático, anti-democrática. A turba pseudo-democrática é totalitária: a ideologia nefasta dos direitos humanos produziu a ditadura da estupidez. Cada elemento da turba de cidadãos anónimos é um inquisidor. Vivemos numa sociedade inquisitorial, a pior sociedade alguma vez produzida pelos homens ao longo da sua história violenta. Platão já sabia que a democracia produz a sua própria destruição: o que ele não sabia é que a democracia banaliza o mal radical. Este é o momento oportuno para introduzir uma inflexão radical: os agentes ideais desta mudança radical devem estar para além da Direita e da Esquerda. Embora não seja um agente secreto, sou suficientemente inteligente para detectar por detrás dos sites mundiais de esquerda a presença de uma ideologia terrorista: as redes sociais são palcos de manobras obscuras, terrivelmente obscuras, algumas das quais abusam do bom nome de Karl Marx para promover o terrorismo. (E onde há x, há também y, o seu arqui-inimigo, que só se unem contra z, neste caso, a Alemanha!) As forças do bem tornaram-se impotentes perante a prepotência das forças do mal que capturaram as redes sociais. O Mal exterior e interior organizou-se para derrubar o ocidente. Se o ocidente não inflectir o seu rumo, será presa fácil das forças exteriores do mal que agem com a cumplicidade de uma população interior envelhecida, egoísta e terrivelmente inculta. Só vejo uma alternativa: a ditadura. E, quando só temos esta alternativa, já não podemos sonhar: o futuro foge do nosso controle. Eu tenho sido sincero quando digo que sou o filósofo da funda meia-noite: não há filosofia sem um público inteligente restrito. As sociedades ocidentais de hoje não são sociedades sem escola; são sociedades sem ensino e sem educação, são sociedades capturadas pela mediocridade, pela inveja e pela maldade. Infelizmente, estamos rodeados de carrascos que elegeram como inimigo a abater o pensamento independente. Uma sociedade envelhecida sem pensamento não tem futuro. O ocidente tal como o conhecemos não tem futuro. (A situação em Portugal é terrivelmente obscura. O povo português é, profundamente, estúpido, invejoso e maldoso; daí a sua incapacidade para produzir uma sociedade civilizada. Infelizmente, o 25 de Abril não produziu o efeito desejado; pelo contrário, banalizou a maldade radical do povo português. Tenho em mente uma geografia da maldade portuguesa, mas esta deixou de ser a minha luta. Portugal não é a pátria de seres inteligentes, Portugal é a pátria dos zombis anti-cognitivos e da sua brutalidade.)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 29 de maio de 2012

Etologia: Agressão e Natureza Humana

Violência Encarnada no Futebol
«O homem gosta demasiadamente de se imaginar no centro do universo, não fazendo parte do resto da natureza, mas opondo-se a ela como um ser de essência diferente e superior. Perseverar neste erro é para muitos homens uma verdadeira necessidade. Fazem ouvidos de mercador ao mais inteligente conselho que um sábio alguma vez lhes deu: o famoso "Conhece-te a ti mesmo", atribuído a Sócrates, mas de facto pronunciado por Quílon. Que impede o homem de obedecer a esta ordem? (O orgulho impede-o de se conhecer a si próprio, escondendo-lhe o facto de que ele é um produto da evolução histórica.)» (Konrad Lorenz)

Primeiro a controvérsia evolucionista, no século XIX, depois a controvérsia etológica, e, por fim, a controvérsia sociobiológica, ambas no século XX: a Filosofia tem dedicado muita atenção às controvérsias científicas, nomeadamente à controvérsia entre Samuel Clarke e Leibniz, mas nunca se concentrou seriamente sobre estas três controvérsias biológicas. O que há de comum a estas controvérsias evolucionistas que fere o orgulho do homem? O facto delas desalojarem o homem da sua posição privilegiada na «criação», fazendo dele - tanto ao nível morfológico e fisiológico como ao nível comportamental - o resultado da evolução filogenética por selecção natural. As três revoluções evolucionistas - a revolução darwinista, a revolução etológica e a revolução sociobiológica - opõem-se ao antropocentrismo egoísta do homem. Desalojar o homem do lugar privilegiado que ocupa no universo tornou-se uma tarefa da ciência desde Copérnico: a revolução copernicana desalojou o homem do centro do universo e as revoluções evolucionistas privaram-no do seu lugar central na «criação» orgânica. A destruição do cosmos operada pela ciência moderna e a perda, pela Terra, da sua situação central e singular, levaram inevitavelmente à perda, pelo homem, da sua posição singular e privilegiada no drama teocósmico da «criação», da qual o homem era até então tanto a figura central como a cena. A revolução científica deixou-nos sozinhos no mundo mudo e aterrorizante de Pascal, um mundo desprovido de sentido, no qual o homem encontra o niilismo e o desespero. Nicolau de Cusa e Giordano Bruno não sentiram o deslocamento da Terra do centro do mundo como uma degradação: ambos ficaram satisfeitos com esse deslocamento, e Bruno vai além da afirmação de Cusa de que a imutabilidade não pode ser encontrada em parte alguma de todo o universo, para afirmar que o movimento e a mutação são sinais de perfeição e não de ausência de perfeição. Um universo imutável seria um universo morto; apenas um universo vivo é capaz de se mover e de se modificar. Encontramos aqui formulada a ideia fulcral do progresso: a ideia de aperfeiçoamento, o alvo da crítica protagonizada pela revolução ecológica. No decurso do século XX, a biologia foi a ciência natural que mais contribuiu para a modificação substancial da nossa imagem do mundo e do homem, e, no entanto, a Filosofia voltou-lhe as costas, como se as ciências sociais constituíssem uma plataforma paradigmática segura para conhecer o homem. A etologia, tal como foi elaborada pelo seu fundador, Konrad Lorenz, é menos «redutora» do que a sociobiologia criada por Edward Wilson. Ambas as disciplinas biológicas são contrárias ao antropocentrismo, segundo o qual «o homem é único entre os animais» (Tinbergen). Mas divergem de algum modo quanto à estratégia seguida para conhecer as «raízes animais» do comportamento humano. Ao contrário da estratégia seguida por Wilson, toda ela dirigida à busca das semelhanças e das bases genéticas do comportamento social, a estratégia etológica vacilou muito entre a busca das semelhanças e a busca das diferenças entre o animal e o homem. A conferência de Tinbergen, pronunciada no ciclo "Estudos Sociais e Biologia" na Universidade de Oxford, a 27 de Outubro de 1964, ajuda-nos a compreender esta diferença estratégica entre a etologia humana e a sociobiologia humana, de resto bem evidenciada na obra de John Tyler Bonner (1980) sobre a evolução da cultura nos animais e na obra de W. H. Thorpe (1974) sobre a natureza animal e a natureza humana, para já não referir a obra de I. Eibl-Eibesfeldt (1973) sobre o homem pré-programado.

Quando se diz que o homem é único entre os animais, a palavra "único" pode ter dois significados ligeiramente diferentes. Pode significar: o homem não é idêntico a nenhum animal. É verdade que o homem é notavelmente diferente dos animais, mas este sentido aplica-se igualmente a todos os animais, porque cada espécie, bem como cada indivíduo, é única neste sentido. Mas também pode ter um sentido absoluto: o homem é tão essencialmente diferente que existe uma lacuna entre ele e os animais, a qual não pode ser preenchida, dado o homem ser algo totalmente novo. A utilização da palavra "único" neste sentido absoluto implica a presunção - ou melhor, o juízo precipitado, o preconceito - de que é inútil procurar as raízes animais do comportamento humano. Ora, este divórcio entre a natureza animal e a natureza humana não é uma conclusão baseada numa análise objectiva do comportamento, mas um preconceito antropocêntrico que inviabiliza qualquer tipo de estudo comparado do comportamento. Tinbergen utiliza a palavra "único" no seu sentido relativo: o homem é único por ser notavelmente diferente dos animais, embora também ele seja um animal. E, usando uma frase orwelliana, afirma que «todos os animais são únicos, mas o homem é mais único do que os demais (animais)». Toda a conferência de Tinbergen é dedicada à descoberta daquilo que no homem é realmente único. O singular do homem não reside nas suas estruturas corporais, mas no seu comportamento: o seu corpo e as suas funções são em geral muito similares às dos demais mamíferos, razão pela qual a medicina pode estudar nos animais as funções orgânicas básicas e extrapolar para o homem com certo grau de confiança. Afirmar a singularidade do comportamento humano equivale a afirmar a singularidade do cérebro humano. O homem é único porque o seu cérebro é único e funciona de uma maneira única. Para apreender o que no homem é realmente único, o biólogo recorre ao processo evolutivo: o homem evoluiu, lenta e muito gradualmente, a partir de animais ancestrais que eram muito mais similares aos outros mamíferos do que o é o homem de hoje. Tudo o que o homem é e tudo o que faz agora desenvolveu-se, mediante uma série de pequenos passos evolutivos, a partir do que os seus antepassados foram e fizeram. O homem separou-se gradualmente do tronco dos macacos para se converter no que é hoje em dia, da mesma maneira que as espécies animais modernas intimamente relacionadas se desenvolveram a partir de um tronco comum. O estudo deste processo gradual de evolução divergente implica a utilização de métodos indirectos que permitem aos biólogos reconstruir uma série de processos, cada um dos quais foi único, e de distintas etapas da evolução biológica. As propriedades estruturais podem ser estudadas com base nos fósseis, os quais podem ser datados e colocados numa escala de tempo. O registo fóssil permite-nos dizer com segurança que as baleias procedem dos mamíferos ou que os morcegos transformaram em asas os seus membros anteriores. Estes exemplos mostram que a evolução nunca produz nada realmente novo, operando, em vez disso, mudanças graduais em algo que já existia. A evolução humana não escapa a este modo de actuação da selecção natural, ao qual François Jacob chamou bricolagem: «A evolução não tira do nada as suas novidades. Trabalha sobre o que já existe, quer transformando um sistema antigo para lhe dar uma nova função, quer combinando diversos sistemas para com eles arquitectar um outro mais complexo. O processo de selecção natural não se parece com nenhum aspecto do comportamento humano. Mas se quisermos lançar mão duma comparação, deverá afirmar-se que a selecção natural actua, não à maneira dum engenheiro, mas dum engenhoqueiro (bricoleur); um engenhoqueiro que ainda não sabe o que vai fazer, mas que recupera tudo o que lhe vem às mãos (...) para daí tirar algum objecto utilizável». Além do método paleontológico, o biólogo dispõe de um segundo método, menos directo do que o primeiro: a comparação. Assim, por exemplo, se não tivéssemos fósseis dos antecessores das baleias, poderíamos concluir que elas derivam dos mamíferos terrestres fazendo duas comparações: as baleias compartilham a maioria dos seus caracteres com os mamíferos, apesar da sua semelhança superficial com os peixes; e, como a maioria dos mamíferos são terrestres, concluímos que as baleias descendem de mamíferos terrestres. O método comparativo fornece os mesmos resultados que o estudo dos fósseis, sendo frequentemente utilizado nos casos onde os fósseis são escassos ou não existem. Como os fósseis carecem de comportamento, o estudo evolutivo do comportamento só pode ser realizado com recurso ao método comparativo, o qual é mais seguro quando as diferenças entre as espécies comparadas são pequenas, e menos seguro quando as diferenças são grandes. Quando procuramos as raízes animais do comportamento humano, devemos ter em atenção que as semelhanças entre espécies diferentes podem desenvolver-se de duas maneiras totalmente diferentes. Nas espécies aparentadas as semelhanças são frequentemente o resultado de uma ligeira divergência evolutiva a partir de caracteres ancestrais comuns. Mas noutros casos, sobretudo quando os grupos animais são diferentes, as semelhanças são o resultado de uma convergência por uma adaptação comum a uma função: os padrões específicos de comportamento desenvolvem-se neste caso de maneira convergente. No primeiro caso, as semelhanças (homologias) indicam uma origem comum, enquanto no segundo caso são superficiais (analogias). Tinbergen refere outras dificuldades com as quais se confronta o estudo comparado do comportamento animal e humano, em especial a terminologia, mas quando isola os traços típicos do comportamento humano, tais como por exemplo a aptidão para a cultura, a aptidão para aprender, a capacidade de raciocínio, a linguagem, o sentido da beleza, a ética e a religião, fá-lo de modo a compreender a herança animal do homem, dando exemplos de comportamentos animais que anunciam desde logo esses mesmos traços humanos. Aquilo que parece ser especificamente humano - o comportamento novo - já se encontra pré-figurado e elaborado de algum modo na cadeia da evolução filogenética, diminuindo assim a distância entre o animal e o homem. Lorenz utilizou repetidas vezes este argumento: «Se dizemos: o homem é um mamífero e, muito especialmente, um antropóide, temos razão. Mas se dissermos: o homem na realidade não é mais do que um mamífero, estamos a blasfemar». A etologia humana, cujo programa foi traçado nessa conferência de Tinbergen, rejeita o reducionismo ontológico, de resto já acusado de ser totalmente falso por Julian Huxley que forjou o conceito de evolução psico-social - a evolução cultural de Lorenz e Tinbergen - para explicar as mudanças adquiridas através da experiência individual e transmitidas à geração seguinte por tradição.

O objectivo deste estudo é aflorar alguns aspectos da controvérsia etológica em torno da agressão. Os livros que foram alvo dos ataques brutais dos auto-intitulados humanistas foram os seguintes: A Agressão: Uma história natural do mal de Konrad Lorenz (1963), O Imperativo Territorial, O Contrato Social e African Genesis de Robert Ardrey (1966, 1970, 1961), Adventures with the Missing Link de Raymond A. Dart (1959), O Zoo Humano e O Macaco Nu de Desmond Morris (1969, 1967), A Agressividade Humana e A Destrutividade Humana de Anthony Storr (1968, 1972), e Sobre a guerra e a paz nos animais e no homem de Nico Tinbergen (1968). Estas obras são de valor científico desigual e, por isso, colocá-las ao mesmo nível é intelectualmente desonesto: as obras de divulgação de Ardrey e Morris, escritas numa linguagem jornalística, são «inferiores» - em termos científicos - às obras dos restantes autores que divulgam os resultados da sua própria prática científica. Os detractores da etologia humana - mais tarde desenvolvida por Irenäus Eibl-Eibesfeldt - usaram essa estratégia retórica para atribuir a todos os autores referidos a mesma concepção da natureza humana, a do homem como assassino. Ora, esta noção foi explicitada por Ardrey a partir dos trabalhos de Dart: «Os arquivos da história humana, salpicados de sangue e entranhas destroçadas, desde os testemunhos egípcios e sumérios mais antigos até às atrocidades da Segunda Guerra Mundial, coincidem com o universal canibalismo primitivo, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou os seus equivalentes nas religiões formalizadas, com os costumes estendidos por todo o mundo de arrancar o couro cabeludo, caçar cabeças, mutilar corpos e demais actos necrófilos da humanidade, coincidem, repetimos, em proclamar essa comum paixão sanguinária, esse hábito predador, essa marca de Caim que separa dieteticamente o homem dos seus antropóides afins e o alia melhor com os mais letais carnívoros». Ardrey expressou esta ideia com mais simplicidade dizendo que «o ser humano, nos aspectos mais fundamentais da sua alma e do seu corpo, é ainda hoje a última palavra da natureza enquanto predadores armados, e a história humana deve ler-se em tais termos». O homem emergiu do fundo antropóide por uma única razão: «porque era um assassino». Hoje, graças aos trabalhos de campo de Jane Goodall sobre os chimpanzés na Tanzânia, sabemos que o "fundo antropóide" do qual emergiu o homem não é tão inocente como julgava Ardrey: os chimpazés organizam caçadas de membros de outros grupos de primatas e da própria espécie, matam-nos e comem a sua carne. Entre os primatas, não são apenas os homens que são filhos de Caim: os nossos "irmãos menores", os chimpanzés, também são filhos de Caim. Trata-se de um modelo de antropogénese que foi desenvolvido por S. L. Washburn & Ruth Moore (1980) na sua obra Ape into Human: A study of Human Evolution, e por S. L. Washburn & C. Lancaster (1968) no artigo The evolution of hunting, bem como por outros primatólogos (Claud A. Bramblett, 1976; Craig B. Stanford, 1999) e antropólogos (Lionel Tiger & Robin Fox, 1971), cuja ideia fulcral é a seguinte: «Somos filhos de Caim. A união do cérebro grande e do sistema carnívoro produziu o homem como possibilidade genética» (Ardrey). Eibl-Eibesfeldt (1970) escreveu um livro, Amor e Ódio, para combater a perspectiva de Dart e Ardrey, segundo a qual o modo de vida predador foi a condição necessária para a evolução da agressividade no seio da espécie humana, de modo a demonstrar que o conceito de assembleia dos instintos de Lorenz não permite a redução de tudo ao instinto de agressividade. O que Eibl-Eibesfeldt parece não ter compreendido é que o modo de vida carnívoro desempenhou um papel importante na antropogénese. Os modelos de antropogénese de Lorenz e de Dart-Ardrey são diferentes, mas não são incompatíveis. Infelizmente, Eibl-Eibesfeldt que escreveu importantes obras sobre etologia humana nunca deu especial destaque nelas à antropogénese, uma das grandes preocupações do seu mestre. Lorenz esboçou o seu modelo de antropogénese em diálogo com a antropologia filosófica, em especial com a abordagem antropobiológica de Arnold Gehlen, em dois importantes estudos: O Todo e a Parte na sociedade animal e humana (1950) e Psicologia e Filogénese (1954). No entanto, tanto quanto me lembro, o conceito de mentalidade de carnívoro, retomado de Dart, a propósito dos australopitecos, só aparece reavaliado na sua opus magnum que é A Agressão, cujos últimos três capítulos são dedicados exclusivamente ao estudo biológico do comportamento agressivo do homem. Lorenz comete o erro de pensar que os carnívoros profissionais desenvolveram mecanismos de inibição da agressividade intra-específica que os impedem de matar membros da sua própria espécie: a sociobiologia dos leões demonstrou que eles são capazes de matar os seus rivais e os seus descendentes menores no seu próprio meio natural. A teoria da natureza humana de Lorenz é deveras complicada para ser exposta aqui, tendo sofrido diversas remodelações e aperfeiçoamentos ao longo da sua vida intelectual.

O que estava em causa neste debate entre etólogos e "cientistas sociais" - entre os quais destaco Ashley Montagu (The Nature of Human Aggression, 1976) e Erich Fromm (Anatomia da Destrutividade Humana, 1973) - era saber se a agressão é inata ou adquirida. A teoria da agressão de Lorenz assenta em dois pilares fundamentais: o conceito hidráulico de agressão e a ideia de que a agressão está ao serviço da vida. Ninguém pode duvidar seriamente do carácter instintivo da agressividade humana: o homem não aprende o comportamento agressivo, como sugere Montagu; o homem é, por natureza, um ser agressivo, capaz de matar não só os outros animais (agressividade interespecífica) como também os seus congéneres (agressividade intra-específica), tanto os do seu grupo (agressividade intragrupal) como os dos outros grupos estranhos (agressividade intergrupal). Li A Agressão de Lorenz pouco depois de ter entrado no curso de Medicina, e, logo nessa altura, constatei que estava diante da obra-prima da literatura etológica, que fez estremecer os débeis alicerces das ciências sociais, em particular da psicologia behaviorista americana. É de todas as obras de Lorenz aquela que avança no caminho certo para integrar as ciências sociais, de orientação filosófica, no seio das ciências naturais, mediante um conceito que, sendo usado pelos dois campos disciplinares, permite unificá-los: o conceito de ritualização que Julian Huxley utilizou pela primeira vez, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando realizava os seus estudos pioneiros sobre o comportamento do mergulhão de crista, para designar certos modos de movimento que perderam no decurso da filogénese a sua função primitiva para se tornarem cerimónias puramente simbólicas. Graças a este conceito, no seu duplo sentido de ritualização filogenética e de ritualização cultural, Lorenz não só estabeleceu uma analogia produtiva entre a evolução biológica, cujos grandes construtores são a mutação e a selecção natural, e a evolução cultural, como também esboçou uma teoria natural da cultura e da sociedade - Lorenz distingue quatro grandes sistemas sociais: o bando anónimo, livre de qualquer agressividade, mas cujos membros não se conhecem individualmente e não mostram qualquer solidariedade social (1); a vida social e familiar das garças-gorazes e de outras aves que fazem ninho em colónias, vida inteiramente fundada na estrutura local do território a defender (2); a superfamília dos ratos, cujos membros se não reconhecem enquanto indivíduos mas pelo seu cheiro tribal, de tal modo que o seu comportamento social para com os membros da própria tribo é exemplar, enquanto combatem com ódio e persistência os congéneres que pertencem a outra tribo (3); e as sociedades, cujos membros não se combatem nem ferem mutuamente, porque há, entre indivíduos, laços de amizade e de amor que a isso se opõem (4) - que permite pensar o seu confronto perigoso com a «biologia». Eibl-Eibesfeldt, W. John Smith e Wolfgang Wickler deram contributos importantes no domínio das ritualizações, mas uma das obras mais interessantes é a de Pietro Scarduelli que compara os sistemas rituais humanos a partir da sua base filogenética. Apercebendo-se da ameaça que a etologia representava para o domínio dos letrados nas ciências sociais, cujo paradigma mais não é do que a teoria ambientalista, como lhe chama Eibl-Eibesfeldt, Fromm lamentou o facto de Lorenz ter escolhido como seu herói Darwin: «Para Lorenz, e para muitos outros, a ideia de evolução tornou-se a essência de todo um sistema de orientação e de devoção. Darwin tinha revelado a verdade derradeira quanto à origem do homem; todos os fenómenos humanos que pudessem ser explicados e abordados por considerações económicas, religiosas, éticas ou políticas tinham de ser entendidos do ponto de vista da evolução. Essa atitude quase religiosa em relação ao darwinismo é evidente no emprego que Lorenz faz da expressão "os grandes construtores", referindo-se à selecção e à mutação. Fala dos métodos e dos objectivos dos "grandes construtores" de modo muito parecido com a maneira como um cristão falaria dos actos de Deus. Emprega até mesmo o singular, o "grande construtor", chegando, dessa forma, mais perto da analogia com o conceito de Deus». Aqui está um exemplo da estratégia retórica seguida pelos detractores da etologia: acusar a qualidade idolatra do pensamento do seu fundador, em vez de discutir a própria teoria da agressão de uma forma séria e objectiva. E o mais engraçado é verificar que acusam Lorenz daquilo que eles próprios não conseguem explicar, em função da teoria do meio ambiente, que Lorenz demoliu em poucas frases: «Julgavam eles que as crianças a quem se poupasse todas as frustrações e a quem se fizesse sempre a vontade seriam menos neuróticas, mais bem adaptadas ao seu meio social e sobretudo menos agressivas. Mas um método de educação americano fundado nesta hipótese limitou-se apenas a mostrar que a pulsão agressiva, como muitos outros instintos, surge "espontaneamente" do coração do homem; o resultado desse método de educação foram crianças insuportáveis, insolentes e tudo menos não agressivas. O lado trágico desta tragicomédia revelou-se quando, depois de grandes, essas crianças abandonaram a família e se encontraram, já não frente a pais indulgentes, mas à opinião pública impiedosa, por exemplo ao entrarem para as universidades. Alguns psicanalistas americanos contaram-me que, sob a pressão de uma integração social duramente conquistada, muitos desses jovens se tornaram realmente neuróticos». Com o carácter espontâneo da agressividade encontramo-nos já no âmbito do conceito hidráulico de agressão, um dos pilares da teoria de Lorenz: «A ideia totalmente errada de que o comportamento animal e humano é, em primeiro lugar, reactivo e, portanto, mesmo que contenha também certos elementos inatos, modificável pela aprendizagem, é uma ideia que tem raízes profundas, difíceis de extirpar, no nosso conhecimento defeituoso dos princípios democráticos. Esses princípios, válidos em si mesmos, impedem-nos de admitir que os seres humanos não nasceram todos iguais e que nem todos têm idênticas probabilidades de se tornar cidadãos ideais. Além disso, durante vários decénios, a reacção, o "reflexo", é o único factor de comportamento que os psicólogos sérios estudaram, ao passo que abandonavam tudo o que é "espontaneidade" do comportamento aos vitalistas e à sua interpretação sempre um tanto mística da natureza». Para Lorenz, a agressividade humana é um instinto alimentado por uma fonte de fluxo ininterrupto de energia, e não - como pensam os amigos do reflexo - o resultado de uma reacção a estímulos externos, susceptível de ser modificada pela aprendizagem: Adrian, Paul Weiss, K. Roeder e sobretudo E. von Holst «revelaram-nos que o sistema nervoso central não precisa, para responder, de esperar pelos estímulos, tal como uma campainha precisa que lhe carreguem no botão. Ele pode produzir por si próprio os estímulos, o que na verdade dá uma explicação natural fisiológica do comportamento espontâneo dos animais e dos seres humanos». A energia específica destinada ao acto agressivo acumula-se continuamente nos centros nervosos responsáveis por este padrão de comportamento. Quando se acumula energia suficiente, de modo a aumentar a prontidão para a sua descarga, pode ocorrer um disparo, mesmo sem a presença de um estímulo externo. As experiências com casais de pombos realizadas por Wallace Craig «mostram que quando um comportamento instintivo - neste caso a dança de amor - é interrompido durante um tempo prolongado, o limiar dos estímulos que o provocam diminui. É um facto tão geral e que se produz com tal regularidade que a sabedoria popular o exprime dizendo: "À falta de melhor, come-se do que há". (...) A diminuição do limiar dos estímulos pode, em certos casos, aproximar-se de zero, ou seja, o movimento instintivo em questão pode iniciar-se sem ter havido qualquer estímulo exterior». Geralmente, o animal e o homem encontram estímulos que libertam a energia contida e recalcada do impulso, sem terem de aguardar passivamente pelo aparecimento dos estímulos adequados que o provocam. Eles procuram e até podem produzir os estímulos que libertam a energia armazenada, mediante o comportamento apetitivo (W. Craig): «O recalcamento de um movimento instintivo, produzido pela supressão durante tempo prolongado dos estímulos que o determinam, não tem apenas como resultado tornar o organismo mais pronto a reagir, mas provoca transformações muito profundas que o afectam no seu conjunto. Em princípio, todo o verdadeiro movimento instintivo a que se recusa a possibilidade de ab-reacção, tal como acabamos de descrever, pode ter como efeito pôr o animal num estado de agitação e fazê-lo procurar estímulos aptos a provocá-la». Assim, quando não encontram nenhum estímulo externo, a energia do impulso agressivo acaba por explodir, sendo posta em acção in vacuo, sem estimulação externa demonstrável (actividade no vazio). A agressão é, antes de tudo, uma excitação elaborada internamente que procura ser libertada sob a forma de um acto motor, independentemente da adequação dos estímulos externos: «O que dissemos basta já para fazer compreender que o recalcamento da agressão se torna tanto mais perigoso quanto mais intimamente os membros do grupo se conhecem, e quanto mais se compreendem e gostam uns dos outros. Posso confirmar por experiência que, em tal situação, todos os estímulos que podem desencadear a agressão e o comportamento combativo intra-específico sofrem um forte abaixamento do seu limiar. Coisa que se exprime subjectivamente pelo facto de se reagir contra os pequenos movimentos dos melhores amigos, o seu pigarro ou a maneira de se assoarem, como se se tivesse recebido uma bofetada dum brutamontes bêbedo. Entender o mecanismo fisiológico deste fenómeno extremamente penoso impede-nos de assassinarmos o nosso amigo, mas não minora o nosso sofrimento. A única solução para uma pessoa razoável é, no fundo, abandonar pé ante pé a barraca e, dirigindo-se a qualquer objecto, fazê-lo voar em estilhas com o maior barulho possível. Isto ajuda sempre um bocado e é aquilo a que se chama, na linguagem da fisiologia do comportamento, redirected activity, segundo Tinbergen». O modelo psico-hidráulico de Lorenz (1950) é uma construção teórica brilhante que nos permite explicar os comportamentos instintivos, entendidos como padrões específicos, estereotipados e herdados de comportamento. Lorenz (1981) reformulou-o mais tarde quando escreveu a sua grande síntese etológica, Os Fundamentos da Etologia, articulando-o com os modelos hierárquicos, para se aproximar do parlamento dos instintos, mas nunca ninguém - incluindo Thorpe (1956) - conseguiu traduzi-lo em linguagem neuronal adequada à neurobiologia (Cf. Gordon M. Shepherd, 1983; K. Roeder, 1955; Erich von Holst, 1969-70). O carácter a-fisiológico do modelo justifica-se pelo facto dele não implicar a existência de depósitos de líquido no sistema nervoso central: o seu objectivo era apenas fornecer uma maneira conveniente de descrever as propriedades gerais que deve ter o verdadeiro mecanismo neural, o qual já pode ser interpretado em termos aceitáveis pela actual neurofisiologia do sistema nervoso central. D. S. Lehrman (1953), R. A. Hinde (1970) e, em menor grau, Peter H. Klopfer (1985) criticaram a teoria do instinto de Lorenz e Tinbergen, desvirtuando o sentido dos conceitos e da sua relação estrutural no seio do sistema teórico: o primeiro procurando mostrar que o comportamento não pode ser separado em componentes inatos e aprendidos, distintos um do outro, de modo a rejeitar completamente a ideia de um comportamento inato, inscrito no genoma e não afectado por quaisquer factores ambientais; o segundo movendo um ataque contra os conceitos de accionador e de energia, de modo a rejeitar a ideia de comportamento instintivo, com os seus componentes congénito e accionado internamente; e o terceiro deslocando a etologia para o campo da ecologia do comportamento. No entanto, apesar destas críticas, Lorenz e Tinbergen não alteraram substancialmente a sua teoria.

O conceito hidráulico da agressão diz respeito ao mecanismo (causal) através do qual se produz a agressão: falta agora analisar o carácter adaptativo dos comportamentos agressivos: «Na natureza, a guerra está omnipresente. Os comportamentos e as armas ofensivas ou defensivas postas ao seu serviço atingiram tal perfeição que parece natural atribuí-los à pressão da selecção natural, agindo no interesse da espécie». A agressão está ao serviço da sobrevivência do indivíduo e da espécie: a agressividade que se manifesta por comportamentos programados geneticamente aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio, com a atitude belicosa do adversário, com a provocação de percepções dolorosas e com a época do cio. A agressão intra-específica favorece a sobrevivência da espécie de três modos, as suas três funções: «a repartição de seres vivos semelhantes no espaço vital disponível, a selecção efectuada pelos combates entre rivais e a defesa da prole». Na época do acasalamento, a agressividade incrementa-se e leva a que sejam os machos mais fortes a procriar, transmitindo-se assim aos descendentes as melhores variações qualitativas da espécie. A agressividade que aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio e que diminui com o seu afastamento, estimula a distribuição territorial e impede a superpopulação de um espaço reduzido, a qual - a densidade demográfica elevada - constitui um factor desencadeante de stress que prejudica as qualidades individuais. Quando despertada por percepções dolorosas, a agressividade fomenta a defesa contra agentes agressores passíveis de causarem danos consideráveis. Reduzindo-se ou anulando-se com a submissão do adversário, a agressividade não provoca destruições maciças nos indivíduos mais fracos das diversas espécies animais. Além disso, a agressão intra-específica permite estabelecer uma ordem social hierárquica que atenua os seus efeitos lesivos. A agressão assume esta função de conservação da espécie tanto mais efectivamente quanto mais a agressão mortal foi transformada em comportamentos, tais como ameaças simbólicas, rituais e comportamentos de submissão ou de apaziguamento, que preenchem a mesma função sem danificar a espécie ou mesmo sem a levar à auto-destruição. Pierre Karli (1987) procura desembaraçar-se das ideias de Lorenz tentando sublinhar algumas ambiguidades, contradições e lacunas que motivam a tomada de posição de Lorenz, duas das quais seriam a sua noção de comportamento agressivo e a confusão entre a função da agressão e a função da pulsão agressiva. Não vale a pena mostrar que a confusão não reside na obra de Lorenz, mas sim na obra do próprio Karli. Lorenz define a agressividade como sendo o instinto de combate do animal e do homem - o comportamento de rivalidade - dirigido contra os seus próprios congéneres. A agressão intra-específica está no centro da obra de Lorenz: os grandes arquitectos da evolução criaram mecanismos fisiológicos de comportamento, cuja função é impedir que os indivíduos da mesma espécie se lesem ou se matem uns aos outros. A solução mais engenhosa inventada pela evolução foi canalizar a agressão para vias mais inofensivas, através da reorientação do ataque graças ao processo de ritualização. A vinculação social que se desenvolveu sobre a base do comportamento de intimidação desvia a agressividade, sem no entanto a extinguir. Nas espécies armadas, a agressividade teria conduzido à sua destruição se não fosse o desenvolvimento de programas instintivos, as inibições instintivas, cujos mecanismos desencadeadores inatos se localizam no sistema nervoso central, que impedem a concretização da destruição da espécie. Geralmente, as lutas entre machos armados - meros combates rituais - não acabam com a morte do adversário, mas com uma atitude simbólica de derrota, anunciada por determinados gestos de submissão ou de humilhação. Ora, as espécies não armadas, como é o nosso caso, não desenvolveram inibições contra matar. É nesta passagem da agressão animal à agressão humana que a tese de Lorenz adquire toda a sua pertinência: «É a espontaneidade do instinto que o torna tão perigoso», sobretudo quando a sociedade não dá oportunidades - válvulas de escape - ao homem para descarregar a sua agressividade, a não ser talvez o futebol. A inteligência do homem - o ser desprovido de armas naturais - inventou armas mortíferas, desde os machados de pedra lascada dos tempos mais remotos até ao arsenal bélico sofisticado de hoje: a bomba H como expressão inteligente do instinto agressivo! Com a fabricação de armas, utilizadas nas guerras intertribais, a agressividade humana tornou-se maligna ou, se preferirem, patológica: os três últimos capítulos da obra de Lorenz são dedicados ao homem enquanto ser-em-perigo (Gehlen), isto é, enquanto ser ameaçado pelo perigo do fratricídio generalizado: «A única esperança está em que os actos especificamente humanos do pensamento racional e da moral responsável derivada dele possam salvar a Humanidade». Mas a reavaliação da sua teoria da agressividade humana implica levar em conta pelo menos dois outros estudos, Sobre o acto de matar o semelhante (1955) e Agressividade: Propriedade tendente à conservação da espécie ou fenómeno patológico? (1977), onde Lorenz afina a sua teoria da história natural da agressão, fazendo emergir os instintos sociais, resultantes do processo de ritualização, e estabelecendo novos princípios. A extensão deste estudo preparatório não permite levar a cabo essa reavaliação: a construção de Lorenz é extremamente complexa, englobando todos os aspectos das interacções sociais e repousando sobre a existência de uma pulsão agressiva geneticamente programada. Estou convencido de que podemos melhorar substancialmente a teoria de Lorenz, mas sem descartar os seus postulados fundamentais. Ler A Agressão é um bom título para um ensaio alargado sobre a teoria da agressão de Lorenz.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Materialismo Emergentista e o Problema Mente/Cérebro

Cidade do Porto e Rio Douro à noite
«É sabido que nos últimos tempos da Idade Média, quando um novo mestre assumia a sua cátedra, os estudantes começavam formulando-lhe a mais embaraçosa das perguntas: "O que é a alma?" As respostas, na sua maioria, eram espiritualistas, como convinha ao dogma oficial. Algumas, porém, eram evasivas, o que já era arriscado; e às vezes, raramente, ouvia-se a resposta herética: "A alma é uma forma (propriedade) do corpo". (Tal heresia já tinha sido formulada por Aristóteles.)» (Mario Bunge)

Utilizei esta citação de Mario Bunge para indicar que a sua obra - The Mind-Body Problem: A Psychobiological Approach (1980) - estará no centro deste estudo. A neurofilosofia, tal como a entendo, ocupa o espaço de intersecção entre os campos disciplinares da filosofia e das neurociências. A partir do momento em que, graças ao desenvolvimento das neurociências, o problema alma/corpo foi traduzido na linguagem neurocientífica como problema mente/cérebro, a filosofia da mente perdeu terreno em relação à neurofilosofia, que, além de absorver no seu próprio campo o domínio objectual tradicional da filosofia da mente, a reduziu ao seu papel insignificante de filosofia da psicologia. Os recentes desenvolvimentos das neurociências, nomeadamente o aparecimento das neurociências sociais, em torno da hipótese do cérebro social, fazem da neurofilosofia uma disciplina nuclear da Filosofia, permitindo-lhe alargar o seu domínio de investigação a quase todas as áreas da Filosofia, sobretudo à teoria da sociedade, à filosofia da linguagem ou mesmo à filosofia da cultura. Trata-se aqui, efectivamente, do triunfo de Karl Marx no campo unificado das neurociências contra a filosofia da mente de orientação analítica praticada pelos filósofos do mundo anglo-saxónico. A nossa questão orientadora, pelo menos neste estudo, consiste em apreender a imagem do homem dada pelas neurociências, de modo a confrontá-la criticamente com o humanismo tal como surge nas grandes filosofias de Adam Schaff e de Ernst Bloch, por exemplo. Jean-Pierre Changeux captou-a na bela expressão o Homem Neuronal: «As operações com objectos mentais e sobretudo os resultados obtidos serão "percebidos" por um sistema de vigilância constituído por neurónios muito divergentes, como os do tronco cerebral, e pelas respectivas reentradas. Estes encadeamentos e encaixes, estas "teias de aranha", este sistema de regulações, funcionarão como um todo. Será lícito afirmar que a consciência "emerge" de tudo isto? Sim, se tomarmos a palavra "emerge" no sentido literal, tal como quando dizemos que o iceberg emerge da água. Mas basta-nos afirmar que a consciência é este sistema de regulações em funcionamento. O Homem não tem, portanto, nada mais a esperar do "Espírito", basta-lhe ser um Homem Neuronal». Ou então: «No plano teórico, de hoje em diante nada se oporá a que as condutas do homem sejam descritas em termos de actividades neuronais. Chegou a altura de entrar em cena o Homem Neuronal». Changeux aprendeu a lição de Jacques Monod: a biologia molecular anulou as doutrinas vitalistas e animistas e a neurobiologia anulou as teorias espiritualistas. Doravante, as possibilidades combinatórias associadas ao número e à diversidade das conexões do cérebro humano são suficientes para explicar as capacidades mentais do homem, sem recurso a esse estranho hóspede que é o Espírito: Changeux abraça a teoria da identidade entre estados mentais e estados fisiológicos ou físico-químicos do cérebro. Graças à teoria da epigénese por estabilização selectiva - o darwinismo das sinapses a substituir o darwinismo dos genes - proposta por Changeux, de resto antecipada de alguma maneira pelos trabalhos de L. S. Vygotsky e A. R. Luria, os conceitos descritivos da sociologia podem ser convertidos em conceitos explicativos: «Uma das mais-valias da divergência evolutiva que conduziram ao Homo sapiens é, bem entendido, o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si. O pensamento desenvolve-se e enriquece-se a comunicação entre os indivíduos. Os laços sociais intensificam-se e, durante o período que se segue ao nascimento, deixam no cérebro de cada indivíduo uma marca original e em larga medida indelével. À "diferença" dos genes sobrepõe-se uma variabilidade individual - epigenética - da organização dos neurónios e respectivas sinapses. A "singularidade" dos neurónios retalha a heterogeneidade dos genes e imprime em cada encéfalo humano aspectos característicos do meio ambiente onde se desenvolveu». O conceito-chave que possibilitou todo este desenvolvimento fulgurante das neurociências foi forjado por Charles Sherrington, o cérebro como órgão de relação e de união: «A mente - sempre finita e individual - está isolada em cada indivíduo e carece de vinculação directa com outras mentes. Também estas são individuais e, por sua vez, finitas e isoladas. Mediante o cérebro, mercê da vinculação que se dá entre a mente e a energia, a mente finita logra a vinculação indirecta com outras mentes finitas do meio. A energia é o meio para esta vinculação indirecta e única da mente a mente. Deste modo, supera-se o isolamento entre mentes finitas, indirectamente e através da energia. A fala, por exemplo, ilustra esta vinculação indirecta graças à energia entre uma mente finita e outra. Eu ouvi colocar a pergunta "Por que tem que ter a mente um corpo?". A resposta seria: "Para que actue de mediador entre ela e outra mente". A especulação filosófica talvez suponha que esta é a sua principal raison d'être no esquema das coisas. A energia como meio de comunicação entre mentes finitas. A isto poderia objectar-se que é uma perspectiva claramente "antropocêntrica". O "antropocentrismo" parece ser o actual objectivo do planeta, embora o homem passe e, com ele, o antropocentrismo». Ao contrário do que pensam alguns "palermas", a imagem do Homem Neuronal não é determinista: a expansão do neocórtex introduziu a «indeterminação» no comportamento humano, sendo responsável pelo facto do homem ser aquele ser-em-risco permanente, como viu bem A. Gehlen. Então, sendo assim, donde vem a segurança? Lá onde Gehlen é conservador ele é também revolucionário: as instituições sociais como válvulas-mecanismos de segurança e de estabilidade das sociedades humanas, a compensar a redução dos instintos. (Hoje só podemos pensar a filosofia de Marx dando-lhe uma outra antropologia fundamental.)

A teoria psicobiológica de Mario Bunge sobre o problema mente-cérebro move-se entre o dualismo e o monismo fisicalista ou redutor, configurando-se como materialismo emergentista. A sua teoria é materialista, porque conserva a identidade mente-cérebro, embora reformulada, e emergentista, porque, ao contrário do fisicalismo, preconiza a ruptura de continuidade entre o biológico e o mental: as propriedades mentais emergem sobre as propriedades biológicas e são irredutíveis a elas, e a fortiori à esfera da física e da química. Dois enunciados programáticos de Mario Bunge permitem definir a dupla-recusa subjacente ao seu materialismo emergentista: «A mente é uma colecção de funções cerebrais. (...) A ideia de uma entidade mental separada (do mundo físico: corpo e cérebro) não só não está garantida pelos dados disponíveis e pelos modelos psicológicos existentes, como também choca frontalmente com as ideias mais fundamentais de toda a ciência moderna». «Eu recuso a ontologia fisicalista porque não se encaixa com a variedade qualitativa da realidade, e recuso a epistemologia associada a esta ontologia porque é demasiado ingénua e fantasiosa». O primeiro enunciado recusa o dualismo, incluindo a hipótese interaccionista de Popper e Eccles, e o segundo o fisicalismo. A crítica de Bunge ao dualismo é, a todos os títulos, exemplar e, por isso, merece toda a nossa atenção. Bunge define o dualismo como a teoria segundo a qual «a mente é uma realidade imaterial onde ocorrem todos os estados e processos mentais». Esta definição deixa muito a desejar, até porque o próprio Bunge acrescenta mais tarde outro traço do conceito dualista da mente: a mente é uma entidade separada ou separável do corpo. Convém dizer que Bunge amplifica a refutação do dualismo realizada por D. M. Armstrong que retoma a teoria da identidade de Herbert Feigl designando-a como teoria do estado central. Bunge expõe e refuta os dez argumentos que constituem a espinha dorsal do dualismo tradicional, a saber:

  1. O dualismo faz parte da religião, em particular do cristianismo. Bunge rejeita este argumento, alegando que a crença na imaterialidade e imortalidade da alma humana é alheia ao judaísmo e não era defendida pelos primeiros cristãos: não há, portanto, incompatibilidade lógica entre o materialismo e a fé cristã. A exegese dos textos bíblicos comprova a veracidade da perspectiva de Bunge, bastando consultar as obras de Teologia do Antigo Testamento de Walther Eichrodt e de Gerhard von Rad - ou mesmo Moisés e o Monoteísmo de Freud - para o demonstrar. Israel desmistificou e dessacralizou a morte: o reino das sombras não tem força nem dignidade próprias; a sua realidade é uma total debilidade e os seres que o regem são as larvas e os vermes.
  2. O dualismo explica a sobrevivência pessoal e a percepção extrasensorial. O dualismo explica estes fenómenos mediante o seu conceito de realidade de mentes desencarnadas, mais precisamente de mentes descerebralizadas. Ora, uma tal suposição não só carece de evidência empírica como também não pode ser conciliada com os princípios fundamentais da ciência moderna. O programa de António Damásio de naturalizar a mente - o naturalismo biológico de Searle - expressa o mesmo horror perante a ideia de uma mente sem cérebro e independente dele. 
  3. O dualismo conserva-se como um tesouro na linguagem ordinária. A linguagem ordinária está carregada de expressões coloquiais, pré-científicas e pré-filosóficas, que garantem a transmissão do conceito dualista de mente. A linguagem ordinária é a voz do senso comum que constitui «um sistema de mitos aceites por uma comunidade». Ora, segundo Bunge, as teorias científicas têm por função criticar o senso comum, depurá-lo, corrigi-lo ou mesmo substitui-lo por um novo sistema de crenças científicas e filosóficas.
  4. O dualismo explica tudo do modo mais simples possível. É verdade que o dualismo explica tudo de modo simples, mas fá-lo ao preço de simplificações absurdas da realidade que o inabilitam para o discurso científico, no qual a simplicidade não garante de modo algum a verdade.
  5. A mente é imaterial, porque a conhecemos através de uma via distinta à usada para conhecer a matéria. Bunge contra-argumenta dizendo que as diferenças no modo de conhecer não implicam necessariamente diferenças no modo de ser, até porque o mental é hoje em dia acessível e "observável" por meios semelhantes aos utilizados para observar as outras realidades: um neurocientista equipado com instrumentos adequados pode detectar acontecimentos mentais que escapam ao auto-controle da mente consciente.
  6. Os predicados fenoménicos são irredutíveis aos predicados puramente físicos, logo a mente tem de ser substancialmente diferente. Bunge aceita a premissa mas recusa a conclusão. A premissa infere tão só a existência de «uma diferença qualitativa entre processos físicos e biológicos, particularmente quando estes ocorrem no sistema nervoso», mas não a «existência de uma entidade mental separada». Deste modo, a premissa depõe a favor do materialismo emergentista e não a favor do dualismo.
  7. Os neurónios disparam-se digitalmente (pontual ou discretamente), ao passo que aquilo que é percebido por nós é um continuum. Segundo Bunge, os acontecimentos mentais não ocorrem em neurónios singulares ou em pequenos grupos de neurónios, mas são «mudanças de estado em sistemas neuronais compostos de milhões ou biliões de neurónios». Ora, sendo assim, e como sabem os físicos, quando se acumulam grandes números num reticulado de eventos, o resultado é «um processo quase contínuo» que, para efeitos práticos, se considera «como contínuo no espaço-tempo». Assim, por exemplo, o olho humano não se apercebe de nenhuma descontinuidade nas imagens projectadas por uma película cinematográfica, que é, na realidade, um conjunto de quadros descontínuos.
  8. Há uma mente que anima a maquinaria cerebral, porque as máquinas não têm mente. Bunge rejeita a analogia cérebro-computador, observando que o maquinismo vulgar é «uma versão subtil do dualismo psicofísico». A dicotomia hardware-software sugere subrepticiamente a imagem do «génio na máquina». John R. Searle também criticou esta analogia, usando o Argumento do Quarto Chinês para demolir a defesa da versão forte da teoria da inteligência artificial realizada por Daniel Dennett.
  9. Há uma ampla base de evidência a favor do poder da mente sobre a matéria, como por exemplo o movimento voluntário e a planificação. O poder da mente sobre a matéria tem sido pensado sob as designações de causação descendente e de interacção mente-corpo. Ora, como observa Bunge, este poder da mente mais não é do que «interacção entre sistemas neuronais ou entre eles e outros subsistemas do corpo», donde resulta que todo o comportamento do homem é elucidável neurologicamente, sem ser necessário recorrer a «uma entidade superior não-corporal» para o explicar.
  10. O dualismo coincide com o emergentismo na hipótese de que a realidade está organizada segundo níveis distintos. De facto, o dualismo é o «meio mais vulgar» para formular um ponto de vista emergentista, mas não é o único meio disponível para isso, bastando supor um «pluralismo de propriedades» em vez de um «pluralismo de substâncias», como faz o dualismo. A forma de pluralismo própria do materialismo emergentista - uma só substância, mas muitas propriedades diferentes - corrige e radicaliza o dualismo ao sustentar a existência da «variedade do mundo» e as «qualidades distintivas do mental».
Depois de ter refutado estes dez argumentos a favor do dualismo, Bunge avança com mais dez argumentos contra ele, a saber:

  1. O dualismo é vago. O carácter vago do dualismo evidencia-se, primeiro, na sua incapacidade de dar uma noção precisa da realidade mente, e, segundo, na sua dificuldade em explicar a noção de correlação ou de interacção quando afirma que a mente e o cérebro interagem entre si. Esta falta de rigor coloca o dualismo à margem da ciência: «o dualismo é uma não-hipótese».
  2. O dualismo separa as propriedades e acontecimentos das coisas a que pertencem essas propriedades ou acontecimentos. Ao separar as actividades mentais do cérebro, o dualismo rejeita a regra científica segundo a qual todo o estado, processo ou acontecimento é sempre o de algum ente material.
  3. O dualismo viola a lei de conservação da energia. A questão que aqui está em jogo é a seguinte: como pode um ente não-físico produzir o físico sem transgredir as leis da termodinâmica? A interacção mente imaterial-corpo material supõe a criação ou destruição de energia, em vez da sua conservação. Por exemplo, se um agente imaterial movesse um corpo, ele libertaria uma energia que não procede dele próprio e que, por isso, teria de ser criada para essa ocasião.
  4. O dualismo rejeita a evidência empírica acumulada a favor das raízes moleculares e celulares do mental. A nossa propensão a adquirir certas habilidades e certas perturbações mentais é herdável, no sentido em que se transmite pelas moléculas de ADN. O nosso rendimento mental é muito sensível a mudanças metabólicas e hormonais. Todos estes factos da neuroquímica e da psicofarmacologia abonam a favor da tese materialista de que «o mental é uma função do sistema nervoso central», ao mesmo tempo que refutam a tese dualista de que a mente é uma «entidade independente» e separável do cérebro em acção. Bunge recorre às experiências do cérebro dividido para reforçar a tese materialista: quando um neurocirurgião separa os dois hemisférios cerebrais, surgem duas consciências, duas mentes. Ora, se um bisturi é suficiente para fazer multiplicar as mentes, então dificilmente serão estas entes imateriais: «Se o mental fosse imaterial, seria impossível influir sobre ele por meios físicos, químicos ou cirúrgicos». Mas do facto de ser influído por esses meios, até ao ponto da sua total destruição, se segue que o mental não é imaterial.
  5. O dualismo é mais conveniente ao criacionismo do que ao evolucionismo. Se a mente é algo imaterial, sobrenatural e imutável, então não pode ser afectada pelo processo evolutivo, tanto ao nível filogenético como ao nível ontogenético. Mas a biologia e a psicologia evolutiva demonstraram precisamente o contrário, donde resulta que o dualismo só pode ser criacionista. Este é um bom argumento: a incompatibilidade do dualismo com a teoria da evolução. Infelizmente, os filósofos e os neurocientistas descartaram-se do dualismo de Eccles, sem ter analisado e criticado a sua teoria da evolução do cérebro. A psicologia evolutiva de Bunge está muito distante daquela que é praticada actualmente por David M. Buss ou mesmo Craig B. Stanford, e essa distância revela-se desde logo na crítica que faz da sociobiologia de E. Wilson. 
  6. O dualismo não pode explicar as perturbações mentais a não ser como possessão diabólica. Se a mente é algo imaterial, ela deve ser imune às lesões cerebrais ou à acção das drogas, sendo afectada apenas por outros entes imateriais. Ora, o dualista que toma café para não dormir é incoerente. Sei que John Eccles, o dualista mais consequente que conheço, tem outra explicação das perturbações mentais e das doenças neurológicas que não as interpreta como formas de possessão demoníaca. No entanto, o material etno-antropológico disponível é favorável à conjectura de Bunge: os fenómenos de possessão diabólica, magnificamente analisados por E. E. Evans-Pritchard, Ioan M. Lewis e E. R. Dobb, estão associados a - ou implicam - uma visão dualista ou mesmo mentalista do mundo. Esta é uma área da filosofia que merece a atenção dos filósofos, que, no nosso tempo indigente, estão mais envolvidos em práticas de onanismo verbal do que na investigação desta área do saber, a Filosofia Primitiva, com enormes implicações no domínio da psiquiatria
  7. O dualismo é, no melhor dos casos, estéril, e, no pior, obstaculizador. O dualismo pensa resolver todos os problemas quando na verdade evita estudar o cérebro para compreender a mente. Deste modo, não contribui para o crescimento do conhecimento científico do mundo, podendo em todo o caso obstaculizá-lo ao favorecer crenças supersticiosas ou mágicas, como por exemplo as crenças sobre psicokinesis, telepatia ou premonição. Há, porém, cientistas de grande craveira intelectual, entre os quais W. H. Thorpe, Kostler, Price e Broad, que consideram estabelecida cientificamente a existência de certas formas de PES, mas como não sou especialista em parapsicologia prefiro não entrar no domínio da cognição paranormal. Mas, em princípio, não sou contrário à formulação racional de uma Filosofia do Paranormal, porque o meu desejo mais secreto - confesso-o - é liquidar cientificamente o materialismo niilista.
  8. O dualismo não sabe responder às seis questões da ciência da mente. Quais são estas seis questões da ciência da mente? O dualismo não diz o "que é" a alma, "onde" se localiza, "quando" surge, "donde" procede, "até quando" persiste e "por que" existe. Ora, ao não dar resposta a nenhuma destas questões, o dualismo é «não científico».
  9. O dualismo não é uma teoria científica, mas um dogma ideológico. Não sendo científico, devido ao facto de não responder às seis questões da ciência da mente, o dualismo mais não é do que «parte de um fardo arcaico, negativo, pré-histórico, ideológico» que herdámos do passado arcaico, ou seja, uma «opinião vulgar estabelecida com palavras imprecisas e ordinárias». Os grandes dualismos, como os de Descartes, Eccles, Popper e Thorpe, são tudo menos imprecisos ou obscuros. 
  10. O dualismo é incompatível com a ontologia da ciência. Em todas as ciências, da física à sociologia, passando pela biologia, as propriedades são sempre posse de entidades concretas. Porém, para o dualismo, as propriedades mentais estão separadas de toda a entidade material.
De facto, são mais os conhecimentos que refutam o dualismo do que os que abonam a seu favor. No entanto, apesar da escassez de evidência empírica a seu favor, o dualismo tem sido a filosofia da mente adoptada por filósofos, neurólogos e psicólogos do calibre de Toulmin, Popper, Kneale, Thorpe, Sherrington, Penfield, Sperry e Eccles, os últimos dos quais foram galardoados com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina. A razão que leva homens inteligentes a abraçar o dualismo interaccionista é sobretudo de natureza política e moral. John Eccles, para quem «o homem perdeu o seu rumo actualmente», é peremptório a este respeito: O homem «necessita alguma nova mensagem pela qual possa viver com esperança e significado. Penso que a ciência foi longe demais fazendo diminuir a crença do homem na sua grandeza espiritual e dando-lhe a ideia de que ele é meramente um insignificante ser material na frígida imensidão cósmica. (...) Creio que existe um mistério no homem, e asseguro que pelo menos é maravilhoso para o homem ter o sentimento de não ser um macaco apressadamente reformado, e que existe alguma coisa muito mais maravilhosa na sua natureza e no seu destino». Sensível a este argumento do sentido e da esperança, tão bem explicitado por Peter Berger no seu brilhante repto antropológico à teologia, Bunge dirige a sua crítica ao materialismo fisicalista ou redutor, lançando contra ele a evolução: os processos evolutivos são aqueles em que «emergem coisas absolutamente novas, isto é, entes que possuem propriedades que nunca existiram». Assim, a realidade gerada pela evolução articula-se em múltiplas «classes ou níveis de entes». Esta geração de múltiplos níveis de realidade é negada pelo materialismo redutor, para o qual não há diferenças entitativas, sendo tudo, em última análise, físico. Embora a mente seja cérebro, mais precisamente uma função do cérebro vivo, este último «difere qualitativamente de qualquer outro sistema material, em especial dos computadores». O fisicalismo considera que o sistema nervoso central é uma entidade física como as outras entidades físicas, como por exemplo os computadores, dos quais se distingue apenas no seu grau de complexidade. Mas o materialismo emergentista não se limita interpor uma diferença qualitativa entre o cérebro e as restantes entidades físicas; afirma também que o sistema nervoso central é um sistema biológico dotado de propriedades e leis peculiares, que excedem o nível fisicoquímico e o nível da biologia geral. O cérebro humano é emergente em relação ao próprio âmbito da biosfera, e, por isso, uma teoria científica da mente deve dar conta da «especificidade do mental» e distinguir o homem do seu «parente mais próximo, o chimpanzé»: «Os acontecimentos mentais são certamente emergentes em relação aos acontecimentos biológicos não-mentais». Daí que Bunge submeta a equação mente-cérebro a uma reformulação: «todo o estado mental é um estado cerebral, mas não vice-versa», donde resulta que apenas a actividade cerebral específica de certos sistemas neuronais é actividade mental. O materialismo reducionista que teima em ignorar a textura diferenciada da realidade «está condenado ao fracasso», porque a estratégia que propõe à ciência do cérebro não é uma estratégia promissora e produtiva. Bunge rejeita completamente as teses fisicalistas sobre a analogia homem-máquina: os neurocientistas que pensam poder avançar na sua prática científica valendo-se dessas analogias, como por exemplo Mackay, ignoram as propriedades intransferíveis dos sistemas neurais, o carácter espontâneo da sua actividade, a sua plasticidade e a sua criatividade. A abordagem das estruturas cerebrais através das máquinas de Turing ou dos computadores digitais é extremamente «irrealista, empobrecedora e errónea». Como é que alguém inteligente pode propor desenhar um robô «que suspire pela liberdade, que experimente autocompaixão ou indignação moral?» O materialismo emergentista apresenta-se como um pluralismo das propriedades e não como um pluralismo das substâncias: Bunge afirma que só existe uma única classe de substância, a matéria, mas esta substância material tem a aptidão para revestir propriedades rigorosamente diversas no decurso da evolução. Bunge recorre à teoria geral dos sistemas para elucidar as implicações do seu materialismo emergentista. Um sistema é uma entidade complexa, cujos componentes se relacionam uns com os outros de tal forma que a entidade se comporta como uma totalidade unitária e não como um mero agregado de elementos. A realidade organiza-se numa multiplicidade de níveis de realidades e cada um deles forma um sistema: há sistemas físicos, sistemas químicos, sistemas fisiológicos ou biológicos, sistemas psicológicos e sistemas sociais e culturais. Os sistemas possuem propriedades de duas classes: propriedades resultantes e propriedades emergentes. Uma propriedade resultante é aquela propriedade possuída pela sistema pelo facto dela pertencer a algum dos seus componentes. Uma propriedade emergente é aquela que possui o sistema sem que ela surja em algum dos seus subsistemas ou peças componentes. O fisicalismo só admite a existência de propriedades resultantes, enquanto o materialismo emergente afirma a existência de propriedades que, embora estejam enraizadas nas dos componentes, as excedem constituindo uma novidade. Todo o verdadeiro sistema tem de possuir pelo menos uma propriedade emergente. Da aplicação destas noções da teoria dos sistemas ao domínio neurocientífico resulta a ideia de que o cérebro é o biosistema a que pertencem todos os acontecimentos, estados e processos mentais. O funcionamento do cérebro pode ser explicado por três hipóteses: a primeira hipótese, o neuronismo, atribui as múltiplas operações mentais aos neurónios individuais. A segunda hipótese, o holismo, supõe que todo o cérebro é responsável por todos os estados mentais. E a terceira hipótese, o sistemismo defendido por Bunge, considera que o cérebro é «um sistema de subsistemas ou órgãos especializados» que se encarregam das diversas funções neuromentais. A propriedade emergente mais destacada de todo o sistema nervoso, aquela que faz dele um órgão único de relação, é a plasticidade neural: a sua aptidão para a auto-programação e a auto-organização, devida ao facto da conectividade intercelular ser variável, não estando pré-fixada de antemão e para sempre, excepto os circuitos neurais sujeitos aos constrangimentos do envelope genético. Todas as outras propriedades emergentes e irredutíveis do cérebro humano - e que constituem a mente humana - resultam e derivam da plasticidade: o número astronómico de combinações sistémicas e de interconexões celulares possíveis no cérebro humano permite dar conta de todo o espectro de fenómenos mentais sem recorrer à mística explicação dualista. Assim, à pergunta "O que é a mente?", Bunge responde dizendo que «a mente não é um ente separado do cérebro ou paralelo a ele ou interactuante com ele. (...) A mente é uma colecção de actividades do cérebro ou de alguns dos seus subsistemas». A mente é, portanto, uma propriedade emergente que só os animais dotados de sistemas neuronais plásticos de grande complexidade podem possuir. Deste modo, Bunge reformula o problema mente-cérebro, de modo a evitar a sua formulação original como problema das relações entre o mental e o somático: o problema mente-cérebro-corpo diz respeito às relações entre distintas partes do sistema nervoso e entre ele e o resto do corpo. Quais são as vantagens da teoria psicobiológica de Bunge? Bunge enumera seis vantagens. Em primeiro lugar, o materialismo emergentista rejeita a noção misteriosa de substância espiritual, sem negar por isso a realidade dos factos mentais. Em segundo lugar, o materialismo emergentista livra-se da vacuidade do dualismo, permitindo compreender os fenómenos mentais a partir da sua base biológica: o vocabulário mentalista adquire assim o seu sentido neurofisiológico e a psicologia torna-se neurociência. Em terceiro lugar, o materialismo emergentista não separa os estados e os acontecimentos das coisas a que pertencem, como faz o dualismo, conformando-se assim à ontologia da ciência moderna, para a qual toda a propriedade, acontecimento ou estado são sempre a propriedade, acontecimento ou estado de alguma coisa material. Em quarto lugar, o materialismo emergentista concorda com os dados da psicologia e da neurofisiologia evolutivas, admitindo a maturação paulatina do cérebro e do comportamento. Em quinto lugar, o materialismo emergentista adequa-se à biologia da evolução, retomando o conceito do carácter gradual da formação da mente ao longo da árvore filogenética. Finalmente, o materialismo emergentista reconhece a condição emergente do mental, opondo-se à brutal nivelação que o materialismo fisicalista impõe à realidade.

O materialismo emergentista de Bunge é marcadamente pluralista, mas não deixa de ser uma estratégia de investigação materialista que apela à neurologia para resolver o problema mente-cérebro. De certo modo, tal como a teoria da identidade de Feigl e a teoria do estado central de Armstrong, ele apresenta-se a si mesmo como um materialismo promissor (Popper): «o materialismo emergentista não é propriamente uma teoria», mas sim uma «hipótese programática» que promete ser no futuro mais fértil teórica e experimentalmente do que as estratégias rivais, o dualismo e o materialismo fisicalista, pelo facto de já ser a «força filosófica condutora» de toda a investigação realizada no domínio das neurociências, das quais Bunge destaca a psicologia fisiológica, a psicofarmacologia e a neurologia. Seria demasiado fácil demonstrar que o materialismo emergentista não é tão emergentista como julga ser. O materialismo emergentista trabalha com conceitos de matéria e de realidade que não estão muito distantes daqueles que operam no fisicalismo. Bunge afirma que é material «um objecto que pode estar pelo menos em dois estados, de modo que seja apto para transitar de um (estado) a outro»: o material é assim definido pela mutabilidade, isto é, pela aptidão para a mudança. Este conceito de matéria articula-se com o conceito de realidade: «Um objecto é real se, e somente se, influi sobre, ou é influído por, outro objecto, ou está composto exclusivamente de objectos reais». Ora, como só os objectos materiais podem actuar uns sobre os outros, todos os objectos materiais são reais e todos os objectos reais são materiais. Os diversos materialismos, tanto os fisicalistas como os emergentistas, convergem na ideia de que o mundo é constituído «exclusivamente por objectos materiais», embora no caso do emergentismo estes não sejam «necessariamente físicos». Ao não admitirem a existência de objectos imateriais, os materialismos harmonizam-se com a ciência moderna: ciência e materialismo partilham a mesma ontologia naturalista e a mesma epistemologia realista. O materialismo emergentista é um programa promissor de investigação num duplo sentido: funciona como um dispositivo para abrir caminho à investigação científica do cérebro-mente do homem, ao mesmo tempo que procura ajustar contas com «problemas filosóficos chave», tais como os problemas relativos ao mundo da cultura e dos valores éticos. Apesar da pobreza conceptual da sua concepção materialista dos valores e do carácter tautológico da sua noção de liberdade, Bunge abraça claramente o materialismo humanista, distanciando-se do poder de atracção exercido sobre ele pela galáxia fisicalista. O carácter humanista do seu materialismo anuncia-se desde logo na sua rejeição da analogia entre homem-máquina: a aptidão ética do homem funciona como critério de demarcação entre o homem e a máquina. A noção de homem presente no materialismo emergentista de Bunge situa-o acima dos materialismos redutores. Expressões como as usadas por Bunge - «só os seres humanos são absolutamente criativos»; «o homem é o único animal capaz de inventar mitos e teorias, de discutir sobre eles, de desenhar modelos de conduta e de revoltar-se contra outros (modelos de conduta)»; «só os seres humanos têm auto-consciência»; «só os seres humanos podem criar a linguagem»; «o homem é o supremo criador e destruidor das organizações e funções sociais»; «o homem é único (na biosfera)»,  enfim «a liberdade e a criatividade do homem», que «não é nem uma máquina programável nem um animal condicionável à vontade», mas «o único animal absolutamente criativo, o único capaz de criar uma ciência do mental e de modelar a sua própria vida - para o bem ou para mal - à luz do seu conhecimento e da sua escolha» - esboçam uma imagem do homem como ser único e superior aos restantes seres do mundo que está deveras próxima do antropocentrismo marxista, tal como o define Schaff. Esta conexão que acabo de estabelecer entre o emergentismo e a filosofia do indivíduo humano teria feito sorrir Mario Bunge, cuja epistemologia se liga ao núcleo duro do Círculo de Viena, antes da sua contaminação pelos jogos de linguagem de Wittgenstein que o conduziu à discussão de «questões triviais acerca do uso de expressões»: «A Filosofia linguística matou o Círculo de Viena a partir do seu próprio interior antes que o nazismo empreendesse a sua Blitzkrieg contra a razão». Mas o sorriso de Bunge não seria suficientemente rasgado para fazer troça do facto dele ter abraçado o emergentismo para salvaguardar a dignidade do homem, sem no entanto abandonar a ciência. O emergentismo pode ser visto como o último reduto do antropocentrismo no campo das ciências naturais. O sucesso do existencialismo e dos seus temas existenciais - os problemas socráticos - espantou de tal modo Schaff que o levou a elaborar uma filosofia (marxista) do indivíduo humano. O sucesso do existencialismo esteve ligado ao facto de ter sabido colocar uma série de problemas que interessam vitalmente ao homem, sobretudo em períodos de crise e de mudança social. As questões socráticas colocadas pelo existencialismo - tais como o sentido da vida, o valor da existência individual ou a morte - não são pseudo-problemas, como pensavam os neopositivistas lógicos encabeçados por Carnap, mas problemas reais perante os quais o filósofo não pode recuar, a menos que sofra de atrofia moral aguda. A filosofia do indivíduo humano de Schaff confronta-se com essas questões socráticas que não podem ser resolvidas em função dos parâmetros das ciências naturais. A elaboração da Filosofia do Homem de Schaff move-se num terreno ocupado por outras filosofias, o que significa que, para avançar com as suas próprias teses filosóficas, ele precisa de criticar e desalojar outras teses que ocupam o território que pretende conquistar. Depois de ter desalojado o neopositivismo lógico, negando a sua tese da unidade da ciência, com imposição exclusivista dos parâmetros das ciências objectivas da natureza a todo o tipo de prática discursiva, Schaff afronta o existencialismo, traçando uma linha de demarcação entre ele e o marxismo: a diferença entre ambos reside na concepção do indivíduo humano. O existencialismo defende uma interpretação individualista do fenómeno humano, segundo a qual o indivíduo é um ser autónomo que cria a sociedade, enquanto o marxismo encara o homem como um «produto da vida social»: o indivíduo humano enquanto «conjunto das relações sociais» escolhe socialmente, conduz-se socialmente e é socialmente determinado. O projecto de Sartre de «completar» o marxismo com o existencialismo - tal como foi elaborado na Crítica da Razão Dialéctica - está condenado ao fracasso, porque as duas concepções do homem são contraditórias. Porém, a definição do homem como «produto da vida social» não implica a sua coisificação, isto é, a negação da sua condição de sujeito histórico, porque o pensamento de Marx tem por objectivo constante a «libertação do homem». O marxismo evitou elaborar uma filosofia do indivíduo humano por temer a sua conversão numa antropologia individualista ou idealista, mas a sua noção de homem como sujeito activo do acontecer histórico permite-lhe reivindicar a condição de genuíno «humanismo socialista»: «O ideal do homem do comunismo está unido à norma de que o homem é o supremo bem para o homem, o summum bonum». A concepção do indivíduo como «criatura e criador da sociedade», como seu «ponto de chegada e de partida», faz do marxismo um humanismo - ao contrário do que defendia Althusser -, para o qual a realidade tem de ser lida antropocentricamente. Mario Bunge poderia rejeitar o modelo de libertação preconizado pelo marxismo, mas não o seu antropocentrismo, de resto bem patente no seu conceito de homem como ser único na biosfera, que faz eco do conceito de Schaff do «valor irrepetível» do ser humano. Infelizmente, a filosofia contemporânea afastou-se das problemáticas científicas das ciências da natureza, deixando assim de participar do desenvolvimento científico: a penumbra filosófica em que vive a ciência moderna deve-se, em grande parte, a este afastamento da filosofia. Há muito trabalho filosófico a realizar no âmbito das ciências, em especial das neurociências, cuja problemática científica não colide seriamente com a liberdade humana. Concluo com esta provocação filosófica: é por ser um homem neuronal que o indivíduo humano é um ser livre.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Programação de Novos Estudos

Cidade do Porto ao anoitecer
«Nós não desembarcámos neste planeta como alienígenas. A humanidade é parte da natureza, uma espécie que evoluiu ao lado de outras espécies. Quanto mais nos identificarmos com o restante da vida, mais rapidamente seremos capazes de descobrir as origens da sensibilidade humana e de adquirir o conhecimento sobre o qual fundamentar uma ética durável, um verdadeiro senso de direcção». (Edward O. Wilson)


«Gostaria de dizer ainda que o homem perdeu o seu rumo actualmente - o que poderíamos chamar de dilema da humanidade. Ele necessita alguma nova mensagem pela qual possa viver com esperança e significado. Penso que a ciência foi longe demais fazendo diminuir a crença do homem na sua grandeza espiritual e dando-lhe a ideia de que ele é meramente um insignificante ser material na frígida imensidão cósmica. (...) Creio que existe um mistério no homem, e asseguro que pelo menos é maravilhoso para o homem ter o sentimento de não ser um macaco apressadamente reformado, e que existe alguma coisa muito mais maravilhosa na sua natureza e no seu destino». (John C. Eccles)

«Para mim, agora (na hora da morte), a única realidade é a alma humana». (Charles Sherrington)

«O espírito é o homem que se conhece. Ele tem que ter continuidade através de períodos de sono e coma. Presumo então que este espírito tem de vir de uma ou de outra maneira após a morte. Eu não posso duvidar que muitos (homens) estabelecem contacto com Deus e se direccionam para se tornarem espíritos superiores. Mas estas crenças são pessoais, que cada homem deve adoptar para si próprio. Se ele possuir apenas um cérebro e não uma mente, esta difícil decisão poderia não ser dele». (Wilder Penfield)

«Se o homem é social por natureza, então ele desenvolve a sua verdadeira natureza só na sociedade». (Karl Marx)

Georg Lukács desenvolveu uma ontologia do ser social, onde faz alguma justiça a esta afirmação de Marx, mas não soube ver a sua implicação no campo da medicina ou mesmo da biologia. Vou dar continuidade aos estudos biológicos e biomédicos, mas desta vez realizados com uma preocupação antropológica: o objectivo destes estudos é preparar o terreno para a emergência de um novo paradigma do homem que deverá orientar toda a investigação no domínio da antropologia filosófica. Infelizmente, em Portugal e nos países de língua portuguesa, a antropologia filosófica nunca teve eco: interpreto esta indiferença lusófona em relação ao paradigma do homem como sintoma de uma insegurança dos utentes de língua portuguesa quanto à sua própria humanidade. Esta insegurança antropológica generalizou-se a toda a área cultural do Ocidente: o homem metabolicamente reduzido, dotado de inteligência reduzida e destituído de fibra moral e de honestidade intelectual, atribui aos animais as qualidades que deviam pertencer-lhe. (Os homens mais desonestos que conheço são os portugueses, que, como diz um amigo de São Paulo, referindo-se aos brasileiros, parasitam as sinapses dos outros, apropriando-se ilegitimamente dos pensamentos alheios sem mencionar os seus autores.) Esta transferência da humanidade do homem para o animal resulta de um processo de degenerescência genética e de degradação cultural em curso. Ao esbater as fronteiras entre o animal e o homem, a ciência biológica contribuiu para este processo, mas o grande responsável pela miséria humana é o capitalismo, cuja lógica do lucro está a devastar a terra. Uma das funções da Filosofia é denunciar o sonho totalitário que se abriga na noção de programação. (O behaviorismo antropológico não surgiu nos Estados Unidos da América por mero acaso: a programação do comportamento humano esteve sempre ao serviço da economia capitalista de mercado.) O desenvolvimento tecnológico não é, em si mesmo, inofensivo e neutral: a tecnologia é um imenso projecto de dominação total. (A ficção científica prevê um cenário futuro terrível: o homem a lutar contra um sistema - tecnológico ou alienígena - que lhe nega as suas qualidades humanas.) Eis alguns títulos previstos que parecem apontar no sentido da elaboração de uma tipologia diferencial apriorística das imagens do homem (Menschenbilder), tal como foi sugerida por Alois Dempf (1967):

1. A Imagem do Homem na Biologia de Monod.


3. O Materialismo Emergentista e o Problema Mente/Cérebro.

4. A Imagem do Homem na Ecologia: a Biodiversidade Ameaçada, o Homem Ameaçado.

5. A Imagem do Homem na Genética Molecular do Cancro.

6. Filosofia da Evolução e a Imagem do Homem.

7. Tecnologia e a Imagem da Humanidade Programada.

8. A Imagem do Homem na Medicina Legal e Forense. (Estive a pensar e cheguei à conclusão que sou mais competente a abordar - A Imagem do Homem na Patologia. A existência de uma anatomia patológica específica do homem permite ir ao encontro da antropologia da doença e do mórbido.)

Curiosidade extra-texto. Encontrei recentemente o meu projecto de juventude precoce de uma Crítica da Razão Tecnológica. Lembro-me de ter publicado alguns artigos sobre esse projecto que acabei por abandonar. Porém, ele ressurgiu neste texto programático e acho que estou mais maduro para o levar a cabo. A minha segurança intelectual revela-se no facto de saber que posso concluir qualquer projecto, lançando nova luz sobre os problemas que tento resolver. A Crítica da Razão Tecnológica foi pensada para suplantar Kant. Eu aprendi a ler lendo literatura para adultos, filosofia e ciência: quase não li nada indicado para a minha idade. Nunca me interessei por "coisas" para crianças: sacava os livros da biblioteca e lia-os. Hoje, à hora do almoço, escutei uma conversa entre pessoas vulgares e pensei: "Que pessoas burras!" O meu desejo mais básico de momento era eliminá-las: odeio mediocridade. Mas tive um outro pensamento muito calvinista: "Não há lugar na eternidade para almas idiotas".

J Francisco Saraiva de Sousa