«A teoria quântica aboliu a noção de objectos fundamentalmente separados, introduziu o conceito de participação em substituição ao de observador, e pode vir a considerar necessário incluir a consciência humana na sua descrição do mundo». (Fritjof Capra)
«A natureza nada sabe sobre imperfeições; a imperfeição é uma percepção humana da natureza. Enquanto parte da natureza, somos também perfeitos; é a nossa humanidade que é imperfeita. E, ironicamente, é devido a essa nossa capacidade para a imperfeição e para o erro que somos livres - uma liberdade que nenhuma pedra nem nenhum animal pode saborear. Sem a possibilidade de erro e sem a real indeterminação que a teoria quântica implica, a liberdade humana não faz sentido. O Deus-que-joga-aos-dados libertou-nos». (Heinz R. Pagels)
«A essência da interpretação de Copenhaga é que o mundo deve ser realmente observado para ser objectivo. A realidade tem existência apenas quando a observamos. Vemos que, de acordo com a interpretação da mecânica quântica segundo a escola de Copenhaga, o universo indeterminado tem outra consequência - a realidade criada pelo observador. A noção de que o mundo existe num estado bem definido independentemente da intervenção humana chegou ao fim. Há qualquer coisa de muito especial no mundo quântico; podemos domesticá-lo com a nossa matemática, mas o certo é que ele é estranho - muito mais estranho do que podemos imaginar visualmente». (Heinz R. Pagels)
Os físicos e os filósofos estão centrados nos problemas de interpretação da teoria quântica, na tentativa de dar uma resposta à pergunta: O que é a realidade quântica? É falso afirmar que, no mundo contemporâneo, os filósofos deixaram de estar preocupados com as questões clássicas que preocupam os físicos. Basta referir dois nomes - Samuel Alexander e Alfred North Whitehead - para desmentir essa afirmação de John D. Barrow. O objectivo deste texto é reafirmar o meu compromisso: contribuir para a clarificação da filosofia da teoria quântica. Noutro dia, assisti a uma conversa entre um engenheiro, um estudante de engenharia e um electricista formado na antiga escola industrial: o que me chocou nessa conversa foi a estupidez arrogante dos dois primeiros intervenientes. Embora não seja especialista em mecanismos eléctricos, compreendi desde o início a armadilha que o electricista prático montou para confrontar os diplomados arrogantes com a sua estupidez: eles desconheciam algumas leis físicas básicas que o electricista utiliza quando conserta os electrodomésticos. Este episódio mostra o estado do ensino superior em Portugal: a produção em série de burros diplomados, não só no campo das letras, o que não é surpreendente, mas também nas áreas das ciências e das engenharias. Nós, os amantes do conhecimento, somos oásis vulneráveis rodeados por um imenso deserto de estupidez diplomada que está a liquidar a cultura superior: a ralé diplomada ao abrigo do processo de Bolonha funciona como uma espécie de formigueiro que invade os oásis de conhecimento para os paralisar ou mesmo destruir. Nas universidade portuguesas, não há lugar para o mérito: o mecanismo que as domina expulsa do seu seio a competência, de modo a garantir a perpetuação da mediocridade instalada. Os burros afastam os competentes para não serem confrontados com a sua burrice visceral: o ensino universitário português é uma terrível mentira. Não adianta tentar descobrir argumentos ou exemplos para atenuar essa verdade essencial: a captura das universidades portuguesas pelo bando organizado dos burros diplomados. A universidade portuguesa - privada e pública - é lixo. Produzir textos sobre mecânica quântica é perder audiência - e esta perda é sintomática: ela indica o vazio cognitivo instalado nos cérebros dos burros diplomados. A arrogância que exibem é uma espécie de mecanismo de compensação: os "génios" portugueses (sic) são génios ocultos; eles nunca se revelam porque não há nada para ser revelado. Neste imenso deserto da estupidez, só temos um caminho a seguir para escapar à malvadez pseudo-diplomada: dialogar com os verdadeiros génios que já morreram há muito tempo. Falar com os mortos é, no fundo, um monólogo que nos livra da nefasta companhia dos vivos que povoam os espaços criativos da sociedade. A indigência cognitiva predominante é avessa à produção de grandes teorias, as quais não têm público. Perdidos nesta imensa mobilização da ignorância, somos obrigados a buscar a nossa própria salvação privada, em vez do compromisso com o projecto da esperança social. Fechamo-nos à sociedade da estupidez para lhe resistir: o nosso desejo é assistir ao seu colapso.
Os meus últimos textos apresentaram o materialismo aleatório como a filosofia mais adequada da mecânica quântica. No entanto, a interpretação de Copenhaga tem sido usada para liquidar o próprio materialismo. Não foi por mero acaso que referi Whitehead. Como se sabe, Whitehead é o autor de duas obras fundamentais, para já não referir Principia Mathematica escrita em colaboração com Russell: Science and the Modern World (1926) e Process and Reality (1929), nenhuma das quais foi traduzida em língua portuguesa. A sua filosofia é muito complexa e difícil: quem não tenha treino filosófico e científico não compreende o seu conteúdo. Aqui vou apenas elucidar brevemente a sua crítica do materialismo, a partir da sua obra de 1926. Na base do materialismo encontra-se a teoria de que existe a matéria ou de que só existe a matéria, sendo a matéria concebida como algo a que lhe é próprio a localização simples (simple location), uma simples localização no espaço e no tempo. Nesta concepção da matéria, o tempo é um acidente da matéria imutável e o instante (instant) carece de duração. Para Whitehead, a matéria tal como a concebe o materialismo é uma dupla-abstracção: o ente é concebido unicamente nas suas relações com outros entes e, destas relações, tomam-se em consideração apenas as relações espaço-temporais. O esquema materialista desenvolveu-se com Galileu e tornou-se em esquema dominante na ciência da natureza. Apesar disso, Whitehead considera-o falso pelo facto de negar a existência objectiva das qualidades secundárias, entrando assim em confronto ou desacordo com a experiência, e a responsabilidade humana. Whitehead vai mais longe quando afirma que o materialismo destrói o seu próprio fundamento, a indução, porque se as partículas materiais se encontram isoladas e apenas entrelaçadas mediante relações espaço-temporais, não é possível, com base no que ocorre num ente, concluir nada sobre o que está a ocorrer noutro ente. A crítica do materialismo realizada por Whitehead é extremamente abstracta: o que foi dito é suficiente para a apreender, mas o seu carácter abstracto exige uma clarificação. A filosofia é, para Whitehead, o esforço de racionalização completa da experiência humana. Aristóteles dizia que só há ciência do geral, o que significa - na linguagem de Whitehead - que não há conhecimento sem abstracções. No entanto, apesar do pensamento ser abstracto por necessidade, Whitehead está consciente de que as abstracções são perigosas quando conduzem à intolerância intelectual, a qual exclui da realidade todos os elementos que não se acomodam no esquema-sistema abstracto. A intolerância intelectual mais não é do que a propensão a considerar os seus princípios como outros tantos dogmas e a tomar as abstracções pela própria realidade. Whitehead deu-lhe o nome de falácia da concreção fora de lugar (fallacy of misplaced concretness), a qual ameaça liquidar a cultura superior. A filosofia tem como tarefa principal criticar as abstracções, examinando as ideias que os cientistas aceitam sem objecção e comparando os diversos esquemas abstractos. Além disso, a filosofia constrói o seu próprio sistema teórico, a partir de intuições mais concretas que as intuições da ciência, tomando-as emprestadas aos artistas e aos génios religiosos e articulando-as com as suas próprias intuições. A necessidade da filosofia num mundo cada vez mais indigente resulta do facto dela submeter os sistemas abstractos fabricados por esses homens à vigilância da razão. A filosofia é racional não só no desempenho desta tarefa de exame crítico dos sistemas abstractos, mas também no seu método: a razão não pode continuar a capitular perante a ditadura dos factos. Ao denunciar esta capitulação da razão perante os factos, Whitehead defendeu o regresso de um verdadeiro racionalismo, o qual se fundamenta na intuição imediata da racionalidade do mundo. Ora, esta ideia de que o mundo se encontra dominado por leis lógicas e pela harmonia estética não pode ser mostrada indutivamente ou demonstrada dedutivamente, porque ela resulta de uma intuição directa, cuja crença (belief) correspondente torna possível a ciência e a filosofia. O racionalismo proposto por Whitehead já não é o racionalismo clássico: o fundamento das coisas deve ser procurado na natureza dos entes reais determinados, porque lá onde não há ente não há fundamento. O regresso do concreto - o contacto com o concreto - é um tema comum às filosofias de Whitehead e de Husserl, para as quais a experiência que nos revela a verdade não se reduz ao conhecimento sensível. A crítica materialista da fenomenologia, em especial da teoria da intuição, foi realizada por Georg Lukács. O carácter empirista da metafísica de Whitehead revela-se no facto de ser descritiva: o filósofo explica o abstracto e descreve o concreto.
Whitehead tem razão quando afirma que o materialismo perdeu actualidade quando surgiram a teoria ondulatória da luz, a teoria atómica, a teoria da conservação da energia e a teoria evolucionista. Todas estas teorias descobriram factos que rompem com os marcos do materialismo. Porém, o golpe fatal que "matou" o materialismo foi-lhe dado pela teoria quântica, que, segundo Whitehead, exige uma concepção orgânica da própria matéria. A filosofia do organismo elaborada por Whitehead que culmina com uma teoria de Deus teve eco em Portugal na filosofia criacionista de Leonardo Coimbra. Ela reconhece os seguintes factos da experiência: a mudança, a duração (endurance), a interpenetração (interfusion), o valor, o organismo e os objectos eternos. E o seu principal argumento contra o materialismo continua a ser mais filosófico do que "quântico": o materialismo é definido como a doutrina que atribui realidade a uma abstracção cómoda e até mesmo fecunda no domínio da ciência, mas o corpo - tal como foi concebido por Galileu e Descartes - não existe. O conceito fundamental da filosofia da natureza de Whitehead é o de acontecer ou acontecimento (event), o qual abarca todos os outros conceitos, tais como os de mudança, persistência, interpenetração, valores, organismos e objectos eternos. (Os matemáticos e os físicos tendem a ser muito platónicos: há um mundo abstracto - o mundo das ideias - que priva Deus da sua liberdade infinita!) O mundo não é composto de coisas isoladas umas das outras, mas de acontecimentos ou daquilo que ocorre ou acontece (happens). Um corte temporal do acontecer é um caso (occasion). Todo acontecer é uma captação e um organismo. Uma captação porque apreende em si o universo inteiro. E um organismo porque as suas partes não se encontram justapostas mas formam um todo e o todo determina as partes. Daqui resulta que cada acontecer é, como a mónada de Leibniz, um espelho do universo. O acontecer é a unidade sintética do universo como captado ou apreendido e o mundo uma comunidade orgânica gigantesca em que tudo é influído por tudo e em que não existe uma única relação externa. (Usei o termo "acontecer" em vez de "acontecimento" para evitar introduzir cristalizações ou imobilidades num universo dinâmico!) As noções de espaço e de tempo usadas por Whitehead para mostrar o erro do materialismo - o espaço como abstracção das relações de interpenetração recíproca dos aconteceres e o tempo como abstracção das durações sucessivas dos aconteceres - aproximam a sua filosofia da filosofia vitalista de Bergson, embora rejeite o seu anti-intelectualismo. O contributo de Whitehead para a clarificação da filosofia da teoria quântica foi reconhecido por David Bohm: «A noção de que a realidade deve ser entendida como processo é muito antiga, remontando pelo menos a Heráclito, segundo o qual tudo flui. Em tempos mais modernos, Whitehead foi o primeiro a dar a essa noção um desenvolvimento sistemático e extensivo». O ponto de partida de Whitehead e de Bohm é o mesmo, a noção de realidade como processo, mas as implicações daí derivadas são diferentes: David Bohm elaborou uma teoria da ordem implicada, segundo a qual qualquer elemento contém, dobrado dentro de si, a totalidade do universo que inclui tanto a matéria como a consciência. Bohm é um físico que se notabilizou graças à teoria das variáveis ocultas. A sua primeira teoria foi elaborada em 1951 com base em ideias expostas em 1926 por Louis de Broglie. Segundo esta teoria, existe no espaço, além dos campos de forças, um potencial quântico, que, ao contrário desses campos de forças, não transporta energia e não pode ser detectado directamente. As partículas sofrem-lhe os efeitos e, de certo modo, servem-se dele para comunicar entre si. Assim, por exemplo, nas experiências sobre o paradoxo EPR, as duas partículas que se afastam uma da outra estão permanentemente ligadas por esse potencial quântico: a medição que efectuamos numa delas modifica instantaneamente o potencial que exerce influência na outra, e daí a correlação que observamos entre os resultados das medições. O potencial quântico é a variável oculta não local da teoria de Bohm, a qual também explica a experiência de Aspect e a experiência das fendas de Young. No entanto, a teoria de Bohm deixa de servir quando as partículas, animadas de uma velocidade próxima da luz, colidem entre si e dão origem a outras. Para explicar este último fenómeno, é necessário fazer intervir a teoria da relatividade de Einstein. A teoria de Bohm não foi conciliada com essa teoria: a explicação deste fenómeno é dada pela teoria quântica relativista de campo. (Bohm abdicou dos gravitões!) Mais tarde, em 1980, Bohm elaborou a sua teoria da ordem implicada, de resto já em gestação no tal potencial quântico: a noção básica é a de que a realidade mais profunda não é o espírito, nem a matéria, mas uma realidade de dimensão superior que lhes serve de base comum e na qual prevalece a ordem implicada, onde deixam de ter validade as noções de espaço e de tempo. Esta teoria tem o mérito de propor um novo modelo de realidade que se opõe à visão do mundo como algo fragmentado: a noção do mundo como totalidade adquire assim um novo estatuto científico. (A teoria estocástica de Edward Nelson permite conciliar a teoria da relatividade e a noção de potencial quântico.) A noção de acontecimento como espelho do universo - de Whitehead - traz consigo a noção de totalidade expressiva, a de Leibniz e a de Hegel, com a qual Marx rompeu. Não admira que a filosofia de Whitehead implique como seu coroamento uma teoria de Deus, isto é, uma teologia, que retém alguma coisa do materialismo da necessidade e da teleologia. Há, porém, uma outra noção de totalidade que rejeita as noções de Origem, Sujeito e Fim: o materialismo aleatório - esboçado por Althusser - convida-nos a pensar o mundo como processo sem sujeito. O materialismo aleatório afirma-se na sua diferença radical conquistando as posições e as linhas de defesa do adversário: o que quer dizer que, para elucidar a realidade quântica, deve confrontar-se com as teorias filosóficas rivais, desalojá-las e tomar posse dos seus territórios. A teoria quântica não pode rejeitar o conceito de potencial quântico por ser a criação arbitrária de uma nova entidade física, ao mesmo tempo que «namora» com um nada ideológico que é Deus (no sentido religioso do termo). Mas o materialismo aleatório também deve abrir-se à estranheza radical do mundo quântico: abertura mental deve ser a atitude dos filósofos e dos cientistas que trabalham nas últimas fronteiras do conhecimento, nas quais não é possível traçar uma linha de demarcação entre filosofia e ciência. Afinal, a última palavra não pertence a ninguém.
J Francisco Saraiva de Sousa
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terça-feira, 17 de julho de 2012
quinta-feira, 12 de julho de 2012
Althusser, Materialismo Aleatório e Mecânica Quântica
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Oporto: House Music |
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terça-feira, 10 de julho de 2012
Prós e Contras: Quem somos nós?
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Porto: Funicular dos Guindais |
Não sabia que Prós e Contras ia debater hoje (9 de Julho) a descoberta da partícula de Higgs: vi muito rapidamente o debate, no qual participaram três "filósofos" e três físicos. A surpresa surgiu quando vi que dois dos três supostos filósofos eram homens da Igreja Católica, um (Alfredo Dinis) mais inquisitorial do que o outro (Bruno Nobre). Restou apenas uma professora de "filosofia da ciência" que dá por nome Olga Pombo, a qual não soube estar à altura da filosofia, até porque muitas das questões que colocou já têm uma explicação consensual. Com estes falsos representantes, a filosofia ficou sem direito à palavra neste debate moderado por Fátima Campos Ferreira, embora Alfredo Dinis tenha exibido a arrogância de falar em nome da filosofia que identifica com a metafísica. Por momentos, voltámos à Idade Média, como se os homens religiosos tivessem o direito de ditar as regras do jogo científico. Alfredo Dinis exibiu um livro de um físico americano que dispensa Deus para explicar a ordem do mundo. Pelo que disse sobre o livro, vi logo que ele não o tinha lido ou, se o leu, não o compreendeu: Alfredo Dinis é daquele tipo de homens anti-democráticos e maldosos que resolvem tudo dizendo que foi Deus que criou o mundo a partir do nada. E o que é pior: sem corar de vergonha. (Defendeu uma noção de nada que atribuiu à filosofia, como se todas as filosofias partilhassem essa mesma identidade nada = vazio. O falso filósofo desconhece as noções de nada em Heidegger, Sartre e Althusser. O nada em física tem um sentido muito peculiar: o nada de Deus criador, por exemplo. Vazio é uma outra noção. Pascal, filósofo cristão, sabia distinguir entre estas duas noções.) A questão de Deus já não constitui nenhum enigma, sobretudo depois da descoberta científica da electricidade que, ao iluminar a noite, dissipou o medo: o Deus dos monoteísmos não corresponde a nada, ou melhor, é um nada ideológico usado para garantir a dominação do homem pelo homem. A ciência tem uma vantagem em relação à religião: ela pode explicar os comportamentos e as crenças religiosas, sem ser por sua vez explicada pela religião. A religião não explica nada: a teologia é aquela forma bizarra de conhecimento que tem por objecto o nada, ou seja, não tem objecto. Se no imenso universo, incluindo a matéria e a energia escuras, há alguma coisa que mereça o nome de Deus, essa coisa não tem nada a ver com a concepção que estes homens obscuros têm de Deus. Explicar algum acontecimento através de Deus equivale a não explicar absolutamente nada: o Deus dos monoteísmos não explica nada. É por isso que as Igrejas Cristãs foram obrigadas - após longos períodos de lutas e de guerras sangrentas - a capitular perante a filosofia e a ciência, refugiando-se na esfera do simbólico, a esfera do nada de conhecimento. Se Olga Pombo conhecesse a obra de Max Weber, pelo menos, teria evitado improvisar - de forma extremamente leviana e voluntarista-opinativa - sobre a relação entre a religião e a ciência. É deveras estranho que uma "filósofa" (sic) desconheça o nascimento da filosofia na cidade-Estado grega e a luta que travou contra a tradição dogmática. Respeitar as crenças religiosas de pessoas que precisam de ter fé para viver é uma coisa, aceitá-las como parceiros de diálogo em matéria de ciência e de filosofia é outra: a sua fé não traz mais-valia ontológica ao nosso mundo; pelo contrário, privam-no da diferença e da liberdade. Não há à face da Terra nenhum país religioso que tenha avançado para formas mais democráticas de convívio humano ou mesmo de bem-estar material: o monoteísmo é, por essência, totalitário. Ele só permite a diferença lá onde o Estado se afastou da Igreja ou da religião, fazendo delas assuntos privados: o catolicismo entregue a si mesmo é tão talibã quanto o islão. Não há diferença qualitativa entre os três monoteísmos que, ao longo da história, têm levado os homens a derramar sangue, em nome de um nada ideológico que, afinal, é o bezerro de ouro das classes dominantes.
Compreendo a cautela exibida pelos três físicos - João Varela (CERN), Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais - quando falaram sobre o possível impacto da descoberta da partícula de Higgs sobre a física, mas o respeito pelas práticas e crenças religiosas tem limites: a hegemonia das trevas é uma ameaça presente no mundo contemporâneo. A comunidade científica deve estar sempre atenta e pronta a lutar contra os nadas ideológicos das religiões. (Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais lembraram a terrível hegemonia da religião durante a Idade Média!) Não há diálogo possível com a religião. No passado, temendo pela sua vida, os filósofos foram obrigados a "dialogar" com os "queimadores de corpos", mas esse diálogo visava minar por dentro a própria estrutura do pensamento cristão. Ao abraçar a filosofia grega, o cristianismo preparou a sua própria morte: a filosofia nunca foi escrava da teologia. As controvérsias teológicas referidas por Alfredo Dinis tinham um sentido: liquidar subtilmente os nadas teológicos. Ernst Bloch escreveu uma história do materialismo que lança luz sobre o processo de metamorfose subversiva das noções teológicas operado pelos grandes filósofos no seio da própria teologia: o Deus dos filósofos não é susceptível de ser adorado; ele é um conceito-limite que permite pensar a finitude radical do homem. No ocidente, o vector que orientou o pensamento filosófico foi o da expulsão de Deus, desse nada ideológico que não explica absolutamente nada. É com essa grande tradição materialista que a ciência se identifica: a função "política" do materialismo aleatório é impedir a exploração ideológica da ciência, em termos que não são os seus. O fosso entre ciência e religião é intransponível: um cientista que professe uma crença religiosa é uma consciência dilacerada e, profundamente, infeliz, porque lá no fundo da sua consciência ele sabe que o Deus dos monoteísmos é um nada ideológico. A luta contra a religião foi filosófica muito antes de ser também científica. Se a filosofia herdou alguma coisa do cristianismo, essa coisa é a exclusividade: a aliança filosofia-ciência não tolera a presença de um possível rival. Em Portugal, sabemos que esse rival adiou o desenvolvimento do país: o catolicismo predomina lá onde não houve verdadeiro desenvolvimento cultural e económico. Os três físicos presentes no debate mostraram saber isso e muito mais, embora pudessem ter ido mais longe e defender aquilo a que chamo a indiferença teológica como procedimento da ciência. Depois da filosofia e de outras ciências - incluindo a sociobiologia - terem elaborado uma teoria da religião, perspectivada no contexto da estrutura global da sociedade e da sua história, não há mais nada a dizer sobre Deus. Deus evaporou-se no seu próprio nada: a filosofia e a ciência não precisam dele para explicar a ordem do mundo. A presença religiosa distorceu sistematicamente o debate e a "filósofa" nem sequer foi capaz de colocar as perguntas correctas: a descoberta do bosão de Higgs, o qual dá massa às partículas, valida os modelos teóricos existentes das partículas, em especial o modelo-padrão que previu em 1964 a sua existência. A questão que este debate deixou em suspenso é a de saber se esta descoberta poderá vir a desencadear uma mudança de paradigmas. Desconhecemos 96% da matéria que constitui o universo: a matéria escura e a energia escura. O bosão-campo de Higgs poderá abrir uma janela para desvendar esse universo escuro.
Anexo: Alguns amigos têm criticado a escassez de informação sobre a partícula de Higgs. É verdade que não tem sido dada a informação suficiente sobre essa partícula, mas não me cabe a mim realizar o seu historial, pelo menos neste comentário. Apesar do seu formalismo matemático, a mecânica quântica é, com algum esforço, acessível. Há obras de divulgação científica que clarificam, em termos simples, a sua estrutura teórica. Steven Weinberg dedicou algumas páginas da sua obra a "descrever" a partícula de Higgs. A minha preocupação - aqui e nos textos anteriores - é outra... e confesso que não tenho paciência para as ordinarices portuguesas. Estou cada vez mais convencido de que os portugueses são efectivamente burros malvados: a nova ideologia nacional dos diplomados e dos génios que não se revelam é uma praga que conduz o país ao colapso total. A teoria do nada ideológico que esbocei aqui não foi compreendida por alguns destes "génios" com cérebro do tamanho de uma pevide. Mas ela não foi elaborada para ser compreendida por cérebros deprimidos: o meu público-alvo é outro. O reconhecimento ocorre entre pares e não entre pessoas afastadas umas das outras pelo abismo intransponível. Há apenas uma ideia que, embora implícita, requer um esclarecimento: os nadas ideológicos produzem efeitos reais - isto é, materiais - nas práticas sociais e nas instituições em que se inscrevem. Afinal, o que adianta dialogar com um burreco que, mesmo na presença da filosofia, não a reconhece? Um burreco deste calibre devia ter vergonha na cara e lançar-se ao rio Tejo! Imagine-se este cenário catastrófico: um estranho vírus elimina toda a humanidade, poupando apenas a vida de um desses génios ocultos portugueses. Um génio cósmico isola-o da civilização material, algures numa nave espacial, e atribui-lhe a missão de refazer a cultura científica e filosófica da humanidade, a partir daquilo que assimilou enquanto teve acesso aos seus arquivos. Conseguem imaginar as patetices que esse génio ultra-diplomado na escola portuguesa da mentira iria dizer e escrever? Furioso com a estupidez brutal do português, o génio cósmico condenou-o ao suplício eterno.
J Francisco Saraiva de Sousa
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sexta-feira, 6 de julho de 2012
Física e Filosofia
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Porto: Ponte do Freixo |
«O século que agora se aproxima do fim viu na física uma expansão fantástica das fronteiras do conhecimento científico. As teorias da relatividade restrita e geral de Einstein modificaram para sempre a nossa visão do espaço, tempo e gravitação. Numa cisão ainda mais radical com o passado, a mecânica quântica transformou a própria linguagem que utilizamos para descrevermos a Natureza: em vez de partículas com posições e velocidades definidas, aprendemos a falar de funções de onda e probabilidades. Da fusão da relatividade com a mecânica quântica surgiu uma nova visão do mundo, na qual a matéria perdeu o seu papel central. Este papel foi usurpado por princípios de simetria, alguns deles invisíveis no estado actual do universo. Sobre estes fundamentos construímos uma teoria bem sucedida do electromagnetismo e das interacções nucleares fraca e forte entre partículas elementares. Muitas vezes sentimo-nos como Siegfried, que, depois de ter provado o sangue do dragão, descobriu, para sua surpresa, que entendia a linguagem dos pássaros». (Steven Weinberg)
Ontem, a propósito da descoberta da partícula de Higgs, fui levado a reviver os meus tempos de estudante universitário quando estudava física no curso de medicina. Antes disso já tinha realizado um estudo sobre cosmologia intitulado A Vertigem de Empédocles. Tenho muitas obras de física, incluindo os manuais que utilizei para a estudar. Felizmente, como não sou "político profissional", não tive as facilidades de que estas criaturas das trevas desfrutam para obter pseudo-diplomas, ao abrigo dessa terrível burla que é o processo de Bolonha. Embora não me sentisse especialmente atraído pelo programa demasiado extenso de física, tive de a estudar, aprofundando mais a física atómica do que a mecânica, o calor, a acústica, a electricidade, o magnetismo e a óptica. A mecânica quântica atraia-me mais do que os modelos mecânicos clássicos utilizados na fisiologia. O formalismo matemático da mecânica quântica assusta qualquer mortal e, como não estudei numa universidade particular, a Universidade Lusófona por exemplo, permeável aos jogos corruptos do poder estabelecido depois do 25 de Abril, não tive outra saída a não ser mergulhar de cabeça nesse formalismo matemático. O meu professor de física "massacrou" os meus neurónios com a equação de Schrödinger durante todo o ano lectivo. Confesso que a meio do ano já não suportava ouvir o nome de Schrödinger, que também invadiu as aulas de fisiologia e de biologia molecular. Sempre fui um aluno "massacrado" pelos professores: na física era "massacrado" com a função de onda, na fisiologia e biologia molecular com a natureza e origem da vida, e até na anatomia do sistema nervoso com as experiências do cérebro dividido. Utilizei o termo "massacrado" entre aspas porque, na verdade, o conhecimento não me massacra; pelo contrário, alimenta-me. Este "massacre" mostra até que ponto os cientistas precisam da filosofia: eu era convocado nas aulas e nos gabinetes para pensar as implicações filosóficas das grandes descobertas científicas. Infelizmente, na altura, dominava mais a parte científica do que a parte filosófica dessas descobertas científicas. A minha posição tomada nesse período pode ser resumida deste modo: precisamos de avançar mais no terreno científico antes de tentar solucionar problemas filosóficos. De certo modo, esta é a minha filosofia espontânea de cientista: primeiro, fazer ciência de boa qualidade e, depois, elaborar a filosofia mais adequada a essa ciência. (Doravante, ser "político profissional" significa ser burro diplomado: a experiência profissional que lhes dá - aos políticos profissionais - um diploma é, ela própria, uma fraude!)
Althusser defendeu a seguinte tese: as revoluções científicas - entendidas como rupturas epistemológicas - tendem a preceder as revoluções filosóficas. Esta tese não se aplica ao caso de Marx: a revolução filosófica ocorreu antes da abertura do continente-História à ciência. A tese de Althusser é demasiado complexa para ser aqui discutida em pormenor: o que interessa destacar é que, para Althusser, não podemos falar de rupturas na filosofia, porque nela «nada é radicalmente novo» e «nada é definitivamente resolvido». Em filosofia nada é radicalmente novo porque teorias antigas, retomadas e deslocadas, sobrevivem e revivem numa filosofia nova. Em filosofia nada é definitivamente resolvido porque há sempre o vaivém das tendências antagonistas, as viragens imprevistas, e as mais antigas filosofias estão sempre prontas a voltar ao assalto, disfarçadas sob formas novas, até mesmo sob formas mais revolucionárias. Ora, isso acontece porque a filosofia é, em última análise, luta de classes na teoria. Esta formulação da filosofia choca os ouvidos dos filósofos, mas ela constitui a realidade da filosofia. O que torna a filosofia tão difícil à compreensão dos físicos é precisamente o facto dela ser luta de classes na teoria. Ou por outras palavras: os físicos ainda são demasiado platónicos para compreender que a filosofia não tem idade, na medida em que as suas revoluções estão sempre expostas a ataques, a recuos e retrocessos, e até ao risco da contra-revolução, como sucedeu nas últimas décadas com o triunfo do neoliberalismo sobre o marxismo. A ciência é, actualmente, alvo do ataque de certas filosofias irracionais que parecem derivar de Marx. Convém dizer claramente que Marx nunca definiu a ciência como ideologia. A teoria da ideologia de Marx, ela própria uma descoberta científica, é genial. Quando generalizam o sentido da ideologia, fazendo dela um fenómeno ubíquo, os filósofos da desconstrução aniquiladora têm um único alvo a abater: a própria teoria da ideologia de Marx e a sua defesa da ciência. Mas nós sabemos, pelo menos depois da crise financeira de 2007, que a crítica da ciência é, ela própria, ideológica: as filosofias que criticam a ciência estão contaminadas pela ideologia mais reaccionária produzida pela classe dominante. Os físicos sabem que precisam da ajuda dos filósofos esclarecidos para evitar os erros destes filósofos da desconstrução. A grande linha de demarcação não é tanto entre ciência e metafísica mas entre ciência e ideologia. Esta é a função primordial da filosofia: traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. Desgraçadamente, devido à indigência cognitiva predominante, os filósofos não desenvolveram a teoria da ideologia de Marx: a filosofia está condenada a aperfeiçoar essa teoria enquanto intervém na prática científica, no seio da qual ela representa a política. A tese de Althusser permite-me defender outra tese: a mecânica quântica exige uma nova filosofia ou, por outras palavras, a revolução científica em curso só estará concluída quando der origem a uma imensa revolução filosófica. Os físicos estão convencidos de que a epistemologia é a única plataforma que lhes permite estabelecer um diálogo produtivo com os filósofos: eles ainda não compreenderam que a epistemologia sofreu o impacto poderoso da teoria da ideologia de Marx, embora já tenham entendido que a "sociologia" é tão ou mais importante do que a "psicologia". A análise da lição inaugural de Jacques Monod permitiu-me avançar com um modelo crítico. Pretendo agora aperfeiçoá-lo com a análise crítica das obras revolucionárias dos físicos. O facto de já ter estudado a teoria do Big Bang inclina-me a escolher a obra de Steven Weinberg: o objectivo da intervenção filosófica no domínio da física é, em última análise, elaborar uma Filosofia da Natureza. Já existem muitas teorias da realidade propostas pelos próprios físicos, uma das quais é a teoria da ordem implicada de David Bohm. Depois de um longo divórcio, a física regressa ao seio da própria filosofia. Aliás, é muito difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Filosofia e Física não são, portanto, duas disciplinas avessas uma à outra: ambas são actividades teóricas que visam acrescentar ao mundo as suas determinações de conhecimento. Da sua cooperação resultará uma nova filosofia da natureza e do próprio conhecimento.
J Francisco Saraiva de Sousa
quinta-feira, 5 de julho de 2012
A Descoberta da Partícula de Higgs
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Peter Higgs no CERN (4 de Julho de 2012) |
Reproduzo aqui a entrevista que Carlos Fiolhais concedeu ontem ao Jornal de Notícias. Eis a entrevista:
Anexo: Hoje estou demasiado preguiçoso para me entregar a uma reflexão filosófica em torno do bosão de Higgs. Steven Weinberg defendeu a tese de que a filosofia não tem utilidade para a física, excepto os trabalhos de alguns filósofos que ajudam os físicos a evitar os erros de outros filósofos. Esta tese não merece grande credibilidade, até porque os exemplos dados para lhe dar forma apontam na direcção contrária à pretendida: a importância da filosofia para a elaboração das teorias da física. No entanto, a sua formulação só é possível porque tem havido um divórcio entre filosofia e ciência, pelo menos fora do mundo anglo-saxónico. O distanciamento dos filósofos em relação à revolução científica ainda-não-concluída protagonizada pela física empobrece a própria filosofia. A filosofia não pode abdicar da Filosofia da Natureza: a comunidade dos físicos tem produzido muitas obras sobre as suas descobertas, nas quais fazem filosofia espontânea de cientistas. Cabe aos filósofos criticar essa filosofia espontânea e elaborar a filosofia adequada à física unificada. A filosofia não é um género literário: os cientistas precisam da filosofia para se orientarem no mundo social. Devemos expulsar os literatos do campo filosófico e reactivar a grande tradição ocidental. Nesta entrevista, Carlos Fiolhais faz filosofia, sobretudo quando refere as "dicotomias" ciência-metafísica - oriunda do neopositivismo lógico que marcou Heisenberg, por exemplo - e ciência-religião. Estas dicotomias implicam uma determinada visão da evolução das ideias: o conhecimento científico deveria já ter eliminado o conhecimento teológico e o conhecimento metafísico. Mas a verdade - como ele próprio o reconhece - é que estas formas mais antigas de conhecimento persistem. O facto do bosão de Higgs ter sido chamado de partícula de Deus mostra que a física ainda não superou o modelo teológico da criação: ainda há teologia no seio das grandes teorias da física. A revolução científica só estará concluída quando for completada por uma revolução filosófica: a colaboração entre físicos e filósofos é fundamental para consumar a revolução em curso. Até lá devemos ser cautelosos com aquilo que dizemos: a matéria escura do universo ainda nos é estranha.
sexta-feira, 29 de junho de 2012
Projecto Filosofia Ecológica
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Porto: Jardins do Palácio de Cristal |
«O mesmo conhecimento que levou o dilema ao seu clímax, contém a solução.» (Edward O. Wilson)
Em Portugal, as pessoas que me conhecem dizem que «o Saraiva tem um temperamento difícil», o que quer dizer que eu sou muito exigente, sobretudo em matérias científicas e filosóficas. É provável que este dito seja uma espécie de censura, mas eu tomo-o como um elogio: ser exigente neste país parado no tempo é ser contra o sistema que bloqueia o seu futuro. Não há grandes dissonâncias entre o que penso e o que faço: critico o carácter nacional tanto na teoria como na prática: não suporto o jogo de fingir ser aquilo que não se é. A minha actividade teórica e prática confronta as pessoas com a sua própria mediocridade. E elas detestam ser testadas porque sabem que são fraudes diplomadas: os diplomas pouco valem quando os seus portadores não estão à sua altura. Um cientista ou um filósofo não precisam de diplomas fraudulentos para vencer na luta pelo reconhecimento: o que conta é o seu desempenho na resolução de problemas. Tinha prometido escrever um texto sobre a imagem do homem na ecologia. Porém, quando me preparava mentalmente para cumprir essa promessa, descobri que tinha ao meu dispor diversas vias de abordagem do tema. A ecologia é uma ciência extremamente complexa e os seus dispositivos teóricos não são conhecidos pelas pessoas banais que a identificam com o ecologismo e as campanhas verdes. Convém distinguir entre ecologia e ecologismo. A palavra "ecologia" foi, pela primeira vez, utilizada por E. Haeckel em 1866 para designar «a ciência que estuda as relações entre o ser vivo e o meio em que ele se encontra». De certo modo, esta definição continua a ter valor, embora os ecólogos possam diferir quanto à delimitação do campo da ecologia: Paul R. Ehrlich apresenta uma definição de ecologia muito mais ampla fazendo dela a combinação das disciplinas da chamada biologia populacional. A ecologia aparece assim como uma ciência de síntese que pode ser definida nestes termos: o estudo das condições de existência dos seres vivos e das interacções, de qualquer natureza, existentes entre esses seres vivos e o seu meio. Ou, numa única expressão: o estudo da economia da natureza (Ricklefs, 1993). O facto da maior parte dos ecólogos serem ecologistas contribui para a confusão entre a ciência da ecologia e o ecologismo. As crises do mundo contemporâneo têm causas ecológicas e, por isso, ajudam a fomentar uma consciência ecológica que está, de algum modo, na base do aparecimento da biologia da conservação. Os movimentos ecologistas que surgem por todo o mundo representam a "ecologia-forma de pensamento" e não a "ecologia = ciência do meio": o seu objectivo primordial é agir de modo a assegurar a conservação do meio e a sobrevivência da civilização. O ecologismo é, portanto, uma nova política. Nestas matérias ecológicas aconselho o estudo das obras dos ecólogos anglo-saxónicos, tais como H. G. Andrewartha & L. C. Birch (1954, 1984), J. H. Brown & A. C. Gibson (1983), C. Elton (1927), J. L. Harper (1977), G. E. Hutchinson (1978), C. J. Krebs (1978), J. R. Krebs & N. D. Davies (1978), R. H. MacArthur (1972), E. P. Odum (1971), R. E. Rickfels (1979), J. Roughgarden (1979), M. E. Soulé & B. A. Wilcox (1980), R. H. Whittaker (1975), e Paul R. Ehrlich (1986). Os autores franceses (Roger Dajoz, por exemplo) tendem a acompanhar Schröter (1896, 1902) quando dividem a ecologia em Auto-Ecologia e Sinecologia: a primeira estuda a influência dos factores externos sobre o animal ou o vegetal, enquanto a segunda estuda as comunidades naturais, de que fazem parte animais e vegetais. A Sinecologia subdivide-se, por sua vez, em dois ramos: a Demecologia que estuda o crescimento, as variações de densidade e o declínio das populações animais ou vegetais; e a Biocenótica que estuda as biocenoses, isto é, as comunidades de seres vivos que habitam uma porção da paisagem, estando adaptados às condições médias deste meio natural. Esta divisão da ecologia é artificial: a utilização dos modelos dos níveis hierárquicos de organização ecológica dispensa esta divisão. A pátria da ciência é a língua inglesa: é uma estupidez publicar traduções de obras francesas em detrimento das obras "inglesas", porque todo o conhecimento verdadeiramente produtivo está nas segundas e não nas primeiras. Ecologia e evolução formam uma aliança que possibilita o estudo aprofundado da ecologia fisiológica, da ecologia populacional, da ecologia do comportamento, da ecologia das interacções (predação, mutualismo e competição), da biogeografia, da ecologia das comunidades e da ecologia dos ecossistemas.
No mundo anglo-saxónico, as universidades oferecem cursos de Filosofia Ambiental (Environmental Philosophy). Dale Jamieson (2001, 2003) coordenou o seu manual de texto mais conhecido: A Campanion to Environmental Philosophy. Como é evidente, não concordo com muitos dos contributos particulares desta obra colectiva, mas o que me levou a escrever este texto foi a necessidade de impugnar a designação dada à nova disciplina filosófica. Prefiro claramente a expressão Filosofia Ecológica ou Eco-filosofia para designar este novo campo da investigação filosófica. A ecologia substituiu o termo "natureza" por um novo conceito: a biosfera. A biosfera é a parte do globo terrestre em que vivem os animais e os vegetais. Compreende a atmosfera até uma altitude de cerca de 15 000 m, o solo (litosfera) até algumas dezenas de metros de profundidade, as águas doces e as camadas superficiais (menos de 1000 m) das águas marinhas (hidrosfera). A substituição da natureza pela biosfera implica, pelo menos no plano filosófico, uma distinção entre filosofia da natureza e filosofia ecológica. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Hegel, a filosofia da natureza compreende a mecânica, a física e a física orgânica (geologia, botânica e zoologia). Poderíamos recorrer também à filosofia da natureza dos românticos para mostrar que o âmbito objectual da filosofia da natureza é mais vasto do que o da filosofia ecológica. A filosofia da natureza integra a filosofia ambiental ou ecológica, cujo objecto de estudo é apenas a biosfera. Infelizmente, a filosofia contemporânea tende a estar mais próxima das "letras" do que das "ciências", correndo o risco de se converter num género literário. Chegou a hora de expulsar esses literatos do campo da filosofia e de reactivar a Grande Tradição: o vínculo primordial entre filosofia e ciência. Não consigo conceber um filósofo destituído de conhecimentos científicos. Em Portugal, aqueles que dizem ser "filósofos profissionais" (sic) são idiotas culturais que nem sequer conhecem a história da filosofia nas suas ligações orgânicas com a ciência e a política. Quando pretendem passar da ecologia-ciência para a ecologia-política, os ecólogos precisam da mediação filosófica que não se esgota na mediação ética: Sem filosofia não há verdadeiramente política ecológica, porque é a filosofia que representa a política na esfera da ciência. Ora, uma tal mediação filosófica é extremamente elaborada: ela implica desde logo uma ruptura entre o saber ecológico e a ciência da ecologia. O saber ecológico de um pescador ou de um índio da Amazónia, por exemplo, constitui o objecto de estudo da etno-ecologia. A ecologia humana ocupa-se do saber ecológico das comunidades humanas, mas este conhecimento em primeira-mão não é suficiente para elaborar uma teoria da ecologia. Este aspecto não tem sido compreendido pelos ecologistas que defendem o regresso às origens, isto é, às comunidades primitivas. O primitivismo de certas políticas ecológicas deve ser desmistificado pela filosofia: a luta contra o progresso não implica necessariamente um retrocesso civilizacional. É perfeitamente ridículo opor outras tradições culturais - indígenas, chinesa, indiana, budista, islâmica, etc. - à civilização ocidental, como se as primeiras tivessem o monopólio das "boas" práticas ecológicas. A civilização ocidental é a única civilização capaz de salvar a natureza. Assim, por exemplo, os eco-feminismos - estas aberrações do espírito humano! - esquecem que nunca poderiam ter germinado fora da tradição ocidental: a imagem da mulher ocidental no mundo extra-ocidental não é nada favorável às feministas. O feminismo é uma ideologia nefasta que deve ser desconstruída, até porque está a degradar os pilares fundamentais da civilização ocidental. A ética ambiental proposta pelo eco-feminismo é uma espécie de ética de cabaret. Têm sido propostas diversas éticas ambientais - a meta-ética, ética normativa, sencientismo, ética da terra, ecologia profunda e eco-feminismo, das quais a mais infrutífera é, sem dúvida, a perspectiva eco-feminista, que, além de prostituir a filosofia, mistifica o ambiente, desviando a atenção dos verdadeiros problemas ecológicos. Não sou completamente avesso à tentativa de elaborar uma ética ambiental, embora saiba que ela não resolve os problemas ecológicos. O Projecto Filosofia ecológica propõe-se abrir caminho para o nascimento de uma visão teórica integrada da ecologia, capaz de orientar as práticas políticas adequadas, em defesa do controle da população, da biodiversidade e da conservação biológica.
J Francisco Saraiva de Sousa
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