terça-feira, 30 de março de 2010

Prós e Contras: Quem manda na escola?

«A Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efectiva a ser ensinada. /Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância. /Na educação, essa responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra por si só a autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca desse mundo, porém a sua autoridade assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: - Isso é o nosso mundo. /A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças. /A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. /A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las do nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos, e tampouco arrancar das suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum». (Hannah Arendt)
O debate Prós e Contras de hoje (29 de Março) tratou das relações problemáticas entre alunos e professores nas escolas portuguesas. Em Portugal, a história do ensino e da educação é, pelo menos desde o 25 de Abril, a história de um fracasso total: as escolas portuguesas deixaram de ensinar, convertendo-se com o passar do tempo em fábricas de exclusão (Helena Matos) e em espaços de violência perpetrada por alunos sobre professores e de violência entre alunos, o chamado bullying. Dois casos mediáticos recentes testemunham estes dois tipos de violência: um professor maltratado pelos alunos e um aluno agredido constantemente pelos colegas suicidaram-se, atirando-se ao rio. A indisciplina e a violência que grassam pelos estabelecimentos de ensino foram atribuídas a uma ideologia pedagógica errada que aboliu a tradicional trilogia - autoridade do professor, disciplina e aprendizagem - a favor de um esquema facilitista. Curiosamente, os professores, os representantes dos pais ou mesmo os alunos, presentes na plateia, negaram a existência dessa violência, usando o velho argumento mentiroso: «Na minha escola, não há esses problemas» ou «A minha escola não é problemática» (António Gouveia). Cultura do silêncio (Paulo Portas) e cultura da omissão (Helena Matos) são dois atributos da cultura docente: os professores levam pancada e são insultados, mas, para não arranjar conflitos com os colegas e com a escola, preferem ficar calados e recusam escutar as queixas daqueles que ousam denunciar a indisciplina e a violência, acompanhando o discurso lunático do Ministério da Educação. Os principais agentes da educação são profundamente masoquistas e falta saber qual será a raiz deste terrível masoquismo docente: ser maltratado, insultado e agredido na sala de aula ou no recinto da escola, sem denunciar tais situações de violência, revela alguma falha de carácter, até porque não é silenciando aquilo que todos conhecemos - o que é público - que conseguem conquistar o respeito da sociedade. Os professores estão descredibilizados e os próprios alunos, sobretudo os mais inteligentes, questionam com razão as suas competências científicas e pedagógicas: ser professor para garantir um emprego é um acto avesso e contrário à tarefa de transmitir conhecimentos às gerações futuras. Sempre que escuto os professores fico com a impressão de que, por causa do medo de perder o emprego, estão completamente alienados da escola e do conhecimento que devem ou deveriam transmitir: Helena Matos mostrou isso quando falou da cultura do silêncio - o estranho desaparecimento da Acta ou da omissão das queixas do professor - a propósito do professor que se suicidou.
Afinal, quem manda na escola?: eis a questão que Fátima Campos Ferreira colocou a todos os seus convidados do palco: Paulo Portas, Nuno Crato, António Gouveia e Helena Matos. A colocação da questão significa que, no momento presente, ninguém sabe quem manda na escola. Segundo Nuno Crato, na actual escola portuguesa, mandam todos e não manda ninguém. Ora, é o mando de ninguém que devia ter chamado a atenção dos participantes deste debate: o domínio de ninguém é o domínio da burocracia, no qual não há ninguém para assumir a responsabilidade pelo mundo comum. Não sei o que é a pedagogia romântica de Nuno Crato e, por isso, não posso atribuir àquilo que não existe a responsabilidade pelo presente caos escolar. Desconheço a existência desta pedagogia romântica associada à Esquerda e, mesmo que tivesse de recorrer ao romantismo para a elaborar, ela confirmaria que, na escola, quem deve mandar são os professores: a concepção romântica do ensino é incompatível com o «medo de exercer a autoridade» (Helena Matos). Paulo Portas tem razão quando afirma que na escola manda - ou deve mandar - o professor. O caos escolar foi gerado pela pedagogia administrativa, neste caso pela burocracia pesada e sufocante do Ministério da Educação, que está ligada à Direita e não à Esquerda genuína, como supõe Nuno Crato. Porém, ao referir a defesa da autoridade do mestre feita por Gramsci, Nuno Crato corrige o seu equívoco: há uma autoridade que não é de Esquerda ou de Direita. Para a pedagogia crítica que permanece fiel à teoria de Marx, a autoridade é uma relação dialéctica. Na discussão com o anarquismo anti-autoritário dos bakuninistas, Engels destacou o carácter dúplice e dialéctico da autoridade, elaborando um novo princípio de autoridade (Autoritätsprinzip), de modo a evitar a sua colocação em termos exclusivos de princípio absolutamente bom ou de princípio absolutamente mau. Para Engels, existe uma autoridade que é inseparável da «organização em geral»: a subordinação, baseada em condições factuais e racionais, a uma direcção e eficácia reais - a disciplina no trabalho ou, no caso que nos interessa aqui, na escola. Não há organização social viável sem esta autoridade-coisa, completamente distinta da autoridade como manifestação da relação dominação-servidão como relação social de dependência. O marxismo não rejeita a autoridade: a sua luta é contra a dominação e não contra a autoridade-coisa indispensável ao regular funcionamento das instituições sociais. E, no caso da escola, essa autoridade assume uma feição peculiar derivada da relação naturalmente desigual entre professores e alunos.
Ora, depois de termos reposto a verdade no seu devido lugar, podemos aceitar algumas noções avançadas por Paulo Portas e Nuno Crato, levando em conta a réplica inteligente de um aluno da plateia. A principal função da escola na sociedade é ensinar e transmitir conhecimentos, e, para ser bem sucedida nesta missão, é preciso proteger a autoridade do professor (Paulo Portas), porque sem disciplina não há aprendizagem (Nuno Crato). Na escola, o professor ensina e o aluno aprende (Paulo Portas), ou, como o formulou Nuno Crato, a escola ensina o que os alunos não sabem, porque são seres novos - seres humanos em formação e não meros "ratinhos" - num mundo que lhes é estranho. Helena Matos usou uma imagem mais neutral, talvez mais próxima do espírito do texto de Hannah Arendt que citei em epigrafe: a noção da escola como uma aposta intergeracional. A função primordial do professor e da escola é preparar a entrada das crianças no mundo dos adultos, através do hábito gradualmente adquirido de trabalhar de modo disciplinado e de não brincar. Entre o mundo das crianças e o mundo dos adultos, entre as crianças e os adultos, entre os novos e os velhos, entre os alunos e os professores, não existe - nem pode existir - nivelamento ou relação de igualdade, mas sim uma relação de autoridade baseada no respeito recíproco. A autoridade do professor não é a manifestação de uma relação de dominação, mas sim a assunção da responsabilidade colectiva pelo mundo. A escola situa-se entre o domínio privado da família e o mundo público e, por causa desta sua posição entre-mundos, compete-lhe tornar possível a transição salutar da criança da família para o mundo. A noção de escola democrática colide com esta noção originária de escola como entre-mundos, na medida em que implica desde logo a falsa identificação entre escola e mundo, bem como a autonomia do mundo das crianças: a escola democrática é, pois, um oxímoro.
A crise da educação foi vista por Paulo Portas como uma inversão do ciclo da autoridade quando, na verdade, se trata tão-somente de perda da autoridade: a autonomização do mundo das crianças - a entrega das crianças aos seus próprios recursos - acarretou o nivelamento entre professores e alunos e, por conseguinte, a perda da autoridade do professor. Actualmente, os professores precisam negociar quase tudo com os alunos, incluindo os critérios de avaliação (Nuno Crato). Em nome da autonomia do mundo das crianças - a cultura dos direitos sem deveres de Paulo Portas?, reforçada pelo sistema da indústria cultural, a essência da escola foi completamente subvertida, como se os alunos já nascessem ensinados (Fátima Campos Ferreira): «Ora, na educação esta ambiguidade relativamente à actual perda de autoridade não pode existir. As crianças não podem recusar a autoridade dos educadores, como se estivessem oprimidas por uma maioria adulta - ainda que, efectivamente, a prática educacional moderna tenha tentado, de forma absurda, lidar com as crianças como se se tratasse de uma minoria oprimida que necessita ser libertada. Dizer que os adultos abandonaram a autoridade só pode portanto significar uma coisa: os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo em que colocaram as crianças» (Hannah Arendt). A discussão girou em torno do Estatuto do Aluno, que, segundo Nuno Crato, desvaloriza o saber e, em nome da inclusão, promove a exclusão real e efectiva. A escola, sobretudo a escola pública, deixou de ser um meio eficaz de mobilidade social: os alunos provenientes das classes mais desfavorecidas ficam privados do conhecimento que lhes permite a ascensão social. A partir daqui o debate tornou-se ideológica e politicamente confuso, na medida em que tomou direcções - escola pública versus escola privada, o papel dos pais e das empresas na escola, a escolaridade obrigatória, a mobilidade social, a massificação do ensino, enfim o sistema de penalizações - favoráveis à ideologia educacional predominante e ao seu fiel aliado economicista. Para finalizar, retenho apenas esta frase de Paulo Portas dirigida contra o representante de uma Associação de Pais: «A família educa, a escola ensina». A distinção entre educação e ensino aqui explicitada responsabiliza os pais pela educação dos seus filhos, ao mesmo tempo que protege e garante a autoridade e a autonomia do professor - a ideia central deste debate televisivo.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 28 de março de 2010

Michel Maffesoli: O Regresso do Quotidiano

«De Marx a Durkheim, passando por Comte e Freud, todos de uma maneira certamente compreensível, manifestaram o seu entusiasmo pela atitude que conceptualmente supera a contradição. Através dela, reinvestiram a matriz religiosa, ou melhor, fideísta, que, em função da sua visão finalista, esquece a incoerência do presente, a imperfeição da estrutura mundana. Ao trágico, de que a contradição é o indício mais seguro, preferiram o drama, quer dizer o que se desenrola com mais ou menos pathos, mas que chega inevitavelmente a uma solução ou a uma resolução. Mas com o fim deste período activista, com o esgotamento do produtivismo e do progressismo, não é surpreendente que o entusiasmo científico já não sirva de receita. Se retomarmos a expressão de P. Sorokin a saturação de um valor cultural é contagiosa, e pouco a pouco ela contamina tudo o que lhe está próximo ou a que está ligada. Existe assim uma lógica da experiência que pode atacar com eficácia o fideísmo cientista. No seu tempo, tal crítica era obra de marginais ou de profetas, e a obra de Nietzsche, por exemplo, está aí para no-lo provar, mas agora é de todos os lados que a lassidão se exprime. Isto leva-nos a reconhecer que observamos regularmente na história mitos mobilizadores que se arruínam no ponto mais alto da sua glória para dar lugar a outros que se julgavam completamente vencidos. Parece que isto sucede também nos nossos dias, em que a monovalência de um valor em via de mundialização se pulveriza e dá o lugar ao politeísmo. O conceptual duro e rigoroso esbate-se diante da noção mole e polissémica». (Michel Maffesoli)
Michel Maffesoli é um intelectual errante, mais precisamente um vagabundo, que retomou a hipótese da organicidade da vida social no contexto da improdutividade francesa: o resultado final desta a-propriação francesa da fenomenologia da vida quotidiana de Alfred Schutz e da filosofia da vida de Georg Simmel é uma Filosofia do Sexo, isto é, uma Filosofia da Promiscuidade, no sentido de redescobrir o social nos subterrâneos do sexo e dos contactos invasivos dos corpos. Estou a dar tanga, é certo, mas nem por isso estou a ser menos rigoroso: a banalização da economia da fruição e do desperdício, sem produção, seduz os homens metabolicamente reduzidos, porque faz da sua vida uma festa orgiástica. Para a religião dionisíaca - e Dionísio é a figura que Maffesoli opõe a Prometeu -, o homem que persiste no amor carnal, sem se casar, não comete pecado, mas o homem que, sob o ímpeto desse amor, contrai núpcias, comete um erro abominável. O casamento constitui pecado, porque privatiza o sexo, que é público: os cultos dionisíacos culminam em uniões sexuais colectivas, sem discernimento de espécie alguma. A sociologia da orgia de Maffesoli desvia a atenção das estruturas da produção, troca e circulação de coisas para a ebulição da festa, onde Dionísio opera a passagem da natureza para a cultura: a concepção prometeica da socialidade promovida pela modernidade é substituída pela concepção dionísica da socialidade. Maffesoli destaca a natureza carnal, passional e orgiástica das manifestações colectivas comunitárias, que, na sua perspectiva, garantem a sobrevivência da vida social: a actividade sexual é a «expressão privilegiada do desejo colectivo. O Eros solidifica e estrutura a socialidade; leva ainda o indivíduo a transcender-se a si próprio e a dissolver-se num conjunto mais vasto. É neste sentido que a sociologia é, antes de mais nada, o estudo da sexualidade».
É possível elaborar uma sociologia da orgia, mas Maffesoli vai mais longe quando vê nela uma teoria mais geral da socialidade subterrânea que caracteriza a vida quotidiana. Maffesoli usa a sua teoria do orgiasmo social para criticar a modernidade, o seu produtivismo e o seu utilitarismo: «O tempo do produtivismo mostra-se, para dizer em poucas palavras, linear e progressista. Trata-se sempre de conquistar um amanhã promissor ou de atingir "mundos dissimulados" que encerram a "verdade" do nosso mundo. O orgiasmo, ao contrário, que é a um só tempo contenção e excesso, assim como dispêndio, perde-se no presente, esgota-se no instante. Assim, não opera sobre um futuro hipotético ou sobre um passado duvidoso. A fascinação passional é sempre pontual, ainda que esta pontualidade possa repetir-se num ciclo sem fim. Ao término da sua "instrução amorosa", a crermos em Platão, numa argumentação do Banquete, todo aquele que aí tenha ficado "terá a súbita visão de uma beleza cuja natureza é maravilhosa". É justamente este instante que se encontra na base da experiência do místico ou do libertino. O amor sem limites, em todas as suas formas, actualiza-se sempre, sem se preocupar com o amanhã, ainda que este mesmo amanhã lhe seja concedido. Uma paixão que se esgota no instante, na realização, pelo próprio facto de integrar a morte, assumi-la, e pelo facto de afrontar o destino, é uma repetida afirmação da eternidade. Como Nietzsche o declarou, de maneira paroxística, "a alegria, porém, não deseja herdeiros nem filhos - a alegria quer a si própria, quer a eternidade, a repetição das mesmas coisas; ela quer que tudo isso permaneça eternamente igual"». O contraste entre estas duas concepções do tempo - o linear e o cíclico, o judaico-cristão e o pagão - é suficiente para evidenciar o tipo de resistência que Maffesoli opõe ao energetismo moderno: a volúpia íntima (Proudhon) que não é apenas um feito das almas de elite, mas também a expressão da nobreza popular que «sabe, por meio de artifícios ou por duplicidade, resistir às injunções energéticas e aos imperativos da normatividade. E é justamente por não ser heróica, frontal, que tal resistência pode perdurar. Há prazer, há volúpia, há fruição na languidez - e isto constitui o mais seguro dos escudos de protecção contra o energetismo invasor». À modernidade e às suas derivações ou racionalizações (Pareto) que operam no linearismo do tempo, Maffesoli opõe o resíduo popular do erotismo e do corpo amoroso: o corpo amoroso reivindica um tempo rítmico que permite, sem qualquer preocupação de eficácia ou necessidade de esforço, a conjugação, a ligação e a distribuição aleatória das situações quotidianas. O mundo eterno da volúpia, do prazer e da fruição remete para o quietismo existencial, de modo a proteger-se e a defender-se do fantasma produtivo e da economia: «A perda e a morte são, portanto, sentidas como momentos da vida cíclica e, mesmo vividas tragicamente, inscrevem-se na conjugação eterna da globalidade». Maffesoli pensa a centralidade subterrânea - o vínculo social entre aqueles que «são o mundo» (Fernando Pessoa) - fora das duas grandes categorias da Modernidade: a História e a Crítica: «A História, com a sua direcção segura, é considerada como uma sequência de estágios que se superam sucessivamente. A crítica é propriamente o que permite essas superações. Ora, como se sabe, as armas da crítica e a explicação da História são, justamente, o próprio da intelligentsia esclarecida. A vivência, por sua vez, nada deve a esse historicismo, na medida em que integra maneiras de ser arcaicas (archai) que, de modo recorrente, retornam à frente da cena. As paixões, as emoções, os afectos contam-se entre elas, cujo retorno em massa pode ser constatado em todos os domínios» da vida quotidiana. Maffesoli descarta assim a crítica da vida quotidiana de Henri Lefebvre: o seu objectivo é fazer a apologia do hedonismo relativo que supõe impregnar a vida corrente do povo, esquecendo que o mundo continua a ser governado pelas elites, enquanto as tribos vibram em uníssono nos diferentes aspectos da vida social. A vibração libidinal e fusional do povo é a maior aliada do status quo: os que governam já não precisam de derivações para legitimar o seu domínio, bastando alimentar os resíduos libidinais e gastronómicos daqueles que são o mundo. A praxis erótica comunal é o novo ópio do povo. O retorno do arcaico e do infra-humano - a natureza de animal hipersexual e devorador - exige um outro tipo de pensamento: em vez da dialéctica e da crítica, Maffesoli propõe um pensamento afirmativo, pluralista, presenteísta e relativista, que reconhece no mundo dos fenómenos o único mundo que é possível. A pós-modernidade preconizada por Maffesoli é um retrocesso histórico, um recuo até à pré-modernidade.
A sociologia do quotidiano de Maffesoli é uma sociosofia (P. Tacussel): um saber erótico - libido sciendi - que, opondo-se à razão abstracta e à sua libido dominandi, ama o mundo que descreve, integrando e compreendendo a mística do estar-junto. Em termos filosóficos, Maffesoli propõe um neovitalismo da afirmação colectiva da história vivida no dia-a-dia, absolutamente distinto da Lebensphilosophie em que diz inspirar-se: a ênfase é deslocada do indivíduo e da sua subjectividade para o colectivo vivido, isto é, para a socialidade subterrânea. Os filósofos da Escola de Frankfurt estavam preocupados com o destino do indivíduo na civilização técnica moderna: aquilo que eles analisaram - os mecanismos e os perigos da massificação, da violência manifesta, do retorno do mito e da irrupção da paixão - como indícios da decadência do capitalismo traduz, segundo Maffesoli, uma outra maneira das sociedades se dizerem e se sentirem. Maffesoli é assim levado a substituir a sociologia crítica por uma abordagem afirmativa: «O "tom de anteontem" - o do racionalismo abstracto - já não convém, num momento em que a aparência, o senso comum ou a vivência retomam uma importância que a modernidade lhes havia negado. E, ainda que seja sob a forma de constatação, importa assumir intelectualmente a afirmação da existência, o "sim" à vida». Maffesoli estabelece um vínculo entre o vitalismo e a comunidade, de modo a dar ênfase ao ressurgimento comunitário e ao triunfo do tribalismo com os diversos mimetismos ou conformismos que lhe são corolários: o neovitalismo comunitário rompe com a modernidade entendida como a conexão estreita entre o individualismo, o racionalismo e o dogmatismo. A nossa época não é a época do individualismo ou do narcisismo, mas sim a época do tribalismo que opera a ligação entre a comunidade, a vivência e o vitalismo: a estetização ou a erotização da existência exalta o sentimento comum, o desejo de vibrar junto, em todas as esferas da vida social. Ao experimentar con-juntamente emoções comuns, as tribos que emergem na vida contemporânea incorporam o mundo e são incorporadas ao mundo, tornando-se um corpo global, um corpo social animado, construído a partir da união dos contrários. Através desta aliança entre o material e o espiritual, o sensível e o inteligível, as tribos vibrantes realizam a aspiração arcaica ao divino social (Durkheim): «o corpo social repousa, antes de mais nada, sobre a colocação dos corpos individuais em relação, e, igualmente, sobre o facto de que essa colocação dos corpos em relação segrega uma aura específica, um imaginário específico que é o cimento essencial de toda a vida social». A doutrina erótica de Maffesoli encontra na experiência ou vivência comum o seu ingrediente fundamental: a abertura ao outro é a invasão de si pelo outro, a relativização e o esquecimento de si. Maffesoli rompe com o individualismo moderno, colocando no lugar do indivíduo isolado a pessoa integrada num corpo social - a máscara etrusca - que a conforta e a ultrapassa: o desapossamento do eu pontual num conjunto mais amplo permite a estruturação de um si inscrito na duração, isto é, na afirmação exuberante da vida, como expressão da energia libidinal através da qual a exacerbação do próprio corpo conforta o corpo colectivo. O neovitalismo de Maffesoli conserva o irracionalismo da anterior filosofia da vida, decretando a falência da razão e franqueando o limite que a separa do mito, mas, quando substitui a fuga para a interioridade pela fuga para a exterioridade do corpo social no carnaval festivo da vida quotidiana, consuma plenamente a sua tendência reaccionária, promovendo o neofascismo através do elogio da organização social da Máfia italiana. A crítica integral do pensamento orgânico de Maffesoli pode e deve ser exercida como uma propedêutica ao espírito reaccionário que habita diversas correntes da filosofia contemporânea: o abandono da crítica implica sempre um retrocesso ao reino do mito e à sociedade fechada.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 24 de março de 2010

Eric Voegelin: Pensamento Conservador

O conservadorismo é uma atitude natu-ral visceralmente avessa à teoria e ao pensamento: os conservadores não teorizam as condições concretas em que vivem, porque estão de tal modo ajustados a elas que as aceitam como evidentes e óbvias. O seu impulso natural é aceitar de antemão e sem problematizar o ambiente total na sua concretude acidental, como se se tratasse de uma ordem natural e adequada do mundo. Se não fosse a emergência e o contra-ataque das mentalidades modernas, em especial o liberalismo e o marxismo, que representam uma nova época, a mentalidade conservadora teria permanecido num nível de comportamento inconsciente, sem se preocupar com as ideias: os conservadores temem a mudança, qualquer tipo de mudança, e odeiam a crítica, a filosofia, a cultura, a arte, a ciência e a técnica. A mentalidade conservadora ainda não se conformou com o triunfo da Modernidade e, por isso, foi forçada a abandonar o conforto da sua letargia mental espontânea e a entrar na luta ideológica, elaborando uma contra-utopia: a nostalgia da ordem natural perdida - a ordem feudal - permite-lhe levar a cabo a tarefa de falsificação e de destruição ideológica da modernidade.
A Filosofia Política de Eric Voegelin - ou melhor, a sua anti-filosofia - exemplifica esta tentativa ideológica e desesperada de destruição da história da modernidade: a interpretação voegeliana da modernidade como crescimento do gnosticismo articula-se com a ideia de que a ascensão gnóstica do Ocidente se tornou um apocalipse da civilização: «De facto, uma civilização pode progredir e, ao mesmo tempo, declinar - mas não para sempre. Há um limite rumo ao qual se move este processo ambíguo, e o limite é atingido quando uma seita activista, que representa a verdade gnóstica, organiza a civilização num império sob o seu domínio. O totalitarismo, definido como a regra existencial dos activistas gnósticos, é a forma final da civilização progressista», cujo pecado mortal reside no facto de ter sacrificado Deus na sua transcendência absoluta em nome do progresso. De um ponto de vista estritamente teórico, podemos dar alguma credibilidade cautelosa e higiénica à tese voegeliana do declínio do Ocidente (Spengler), mas depressa nos arrependemos quando captamos o seu carácter aristocrático: «Averróis expressou a solução dada na civilização muçulmana ao problema do debate teórico. O núcleo da verdade é a experiência de transcendência num sentido antropológico e soteriológico; a sua explicação teórica só é comunicável entre os "sábios". O "vulgo" tem de aceitar, num fundamentalismo simplista, a verdade tal como simbolizada nas Escrituras; os homens do povo devem abster-se de teorizar, tarefa para a qual não estão preparados experiencial e intelectualmente, pois se o fizessem simplesmente destruiriam Deus. Tendo em conta o "assassinato de Deus" (Nietzsche) perpetrado na sociedade ocidental quando o "vulgo" progressista se imiscuiu no significado da existência humana na sociedade e na história, temos de convir que Averróis tinha alguma razão». Tal como o pássaro de Minerva de Hegel, o conservador chega demasiado tarde ao pensamento, mas, logo que começa a pensar, fá-lo para privar os outros - os vulgos ou os homens-massa de Ortega y Gasset - do pensamento: o conservador procura monopolizar a teoria, como se fosse o único animal da Terra capaz de teorizar: o vulgo, as massas populares devem obedecer às ordens emanadas dos supostos sábios conservadores e aceitar o seu triste destino terrestre sem protestar. O conservadorismo é, no seu acto inicial de afirmação tardia, totalitarismo: confisca a palavra ao povo e silencia-o, submetendo-o e sujeitando-o a uma pretensa ordem natural que lhe nega a liberdade, a capacidade de pensar e o direito a uma vida digna. No actual choque civilizacional, o conservadorismo opta pelo fundamentalismo islâmico contra o Ocidente ou, pelo menos, opõe-lhe o seu próprio fundamentalismo cristão: ambos os fundamentalismos são inimigos da modernidade e anseiam pela restauração da ordem medieval da servidão: «Um governo democrático (sic) não deve transformar-se em cúmplice da sua própria derrubada, permitindo que movimentos gnósticos cresçam prodigiosamente à sombra de uma interpretação errônea dos direitos civis; e, se por inadvertência um movimento desse género houver atingido o ponto crítico de captura da representação existencial através da famosa "legalidade" das eleições populares, um governo democrático não deve curvar-se à "vontade do povo", mas sim sufocar o perigo pela força e, se necessário, romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito». O conservadorismo é simplesmente terrorismo conceptual e político: os seus conceitos convidam à violência, ao derrube da democracia e à restauração de um regime autoritário.
Antes mesmo de se afirmar como teoria, o conservadorismo é sempre-já violência prática que se opõe ao devir e à história. Porém, para fazer frente às forças adversas da história, o conservadorismo precisa domesticá-las, fazendo da história e da política pura violência. O pensamento político de Eric Voegelin é, a este propósito, paradoxal, na medida em que aceita a definição de política dada pelos seus arqui-adversários, Hegel e Marx: a teoria política é teoria histórica ou, segundo Voegelin, «a existência do homem na sociedade política é a existência histórica; e a teoria política, desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da história». Um pensamento que procura imobilizar a história, fazendo dela um exercício de recuperação do que foi descoberto - a ordem sacral do mundo?, a origem divina do poder do monarca?, a existência humana como mistério? -, mas que corre o risco de ser esquecido, e retomando a velha ideia escatológica de que o homem bom - aquele que se submete livremente ao poder divinamente inspirado? - só pode viver na fé e na esperança de redenção além do tempo e do mundo, para dar algum sentido à existência dos homens concretos e ao seu sofrimento através dos tempos, - um tal pensamento é, nos tempos modernos, anti-histórico. Para lhe emprestar um cariz histórico, Voegelin precisa romper com a dialéctica histórica de Hegel e de Marx, trabalhando a sua diferença: a realidade política compreende três dimensões - a do homem, a da sociedade e a da história, cuja ordem foi supostamente invertida pelas filosofias da história de Hegel e de Marx, que reduzem a pessoa humana a um instrumento ou meio do Estado ou da história concebidas como realidades superiores ao homem. Hegel e Marx são acusados de terem eclipsado a realidade política, substituindo-a por construções ideológicas deformadas de uma segunda realidade: a ordenação contrária que propõem - história, sociedade e homem - não só deforma a realidade, como também ameaça conduzir à abolição do homem. É difícil atribuir a Marx ou mesmo a Hegel o eclipse da realidade, mas, para o fazer, Voegelin desvirtua o pensamento dialéctico, recorrendo aos três simbolismos arcaicos que, na sua óptica, exprimem a realidade vivida pelo homem, cuja alma se abre para apreender o divino terreno do cosmos e a sua própria existência: o Mito, a Filosofia e a Revelação. Nos tempos modernos, estes simbolismos paradigmáticos foram abandonados e substituídos por novos simbolismos: a ciência, o progresso, o espírito do mundo, a dialéctica marxista e a morte de Deus. A desmitologização da filosofia moderna - a tragédia histórica atribuída a Hegel - implica o eclipse da realidade do Mito, da Filosofia e da Revelação: Hegel e Marx, para já não falar em Comte, eclipsaram a realidade política, porque desmitologizaram a filosofia da história, secularizando o eschaton cristão e abolindo a transcendência a favor de uma lógica puramente imanente. Para Voegelin, a experiência de participação num cosmos divinamente ordenado, alargando-se e estendendo-se para além do homem, só pode ser expressa através do mito: ela não pode ser transformada em processos de pensamentos imanentes à consciência. A diferenciação da consciência noética operada pela Filosofia e o seu aperfeiçoamento cognitivo revelaram o carácter inadequado do velho mito - o mito cosmológico, que pressupunha uma experiência absolutamente compacta do cosmos, mas, a partir do momento em que se torna noeticamente mais luminoso, o pensamento noético requer um novo mito que Voegelin descobre nos Diálogos de Platão e nos Evangelhos cristãos. Voegelin anseia pelo regresso do Sagrado e da Cristandade medieval: o seu objectivo político é transformar a centelha de esperança nesse regresso do sobrenatural numa chama, através da «repressão da corrupção gnóstica e da restauração das forças da civilização».
A Filosofia da História de Eric Voegelin - exposta na sua obra Ordem e História - procura impugnar a auto-interpretação da modernidade e a sua suposta imanentização falaciosa do eschaton cristão: «a modernidade é um tumor na sociedade ocidental, em competição com a tradição mediterrânica» que confia - entregando-a completamente - a verdade da alma à Igreja e não à theologia civilis de Hobbes. Nesta obra monumental, Voegelin analisa várias concepções humanas de ordem: «A ordem da história emerge da história da ordem. Toda a sociedade tem a seu encargo a tarefa de, sob as suas próprias condições concretas, criar uma ordem que confira ao facto da sua existência, um sentido em termos dos fins divinos e humanos». Toda a sociedade histórica é uma ordem, isto é, uma estrutura protectora de sentido que os homens concretos edificam e erguem contra o caos. A vida do grupo e a vida do indivíduo só podem ter sentido no âmbito dessa estrutura protectora, fora da qual os homens e as sociedades são ameaçados pelo terror fundamental, o terror do caos ou da anomia (Durkheim). Ao longo da história, os homens acreditaram que a ordem criada da sociedade corresponde, de algum modo, à ordem subjacente do cosmos: a ordem divina que sustenta e justifica todas as tentativas humanas de criar ordem. No entanto, nem todas as crenças numa tal correspondência são «verdadeiras»: a análise de Voegelin procura revelar a relação da verdadeira ordem com as diversas tentativas humanas de ordenar o mundo. Segundo Voegelin, as sociedades modernas afastaram-se dessa ordem verdadeira, mediante a deformação ideológica da realidade do homem, tanto no domínio político como no domínio científico: «A ideologia é, segundo Voegelin, a existência em rebelião contra Deus e o homem». Perante esta rebelião gnóstica contra Deus e o homem, Voegelin apela para a Filosofia que define como «amor ao Ser através do amor ao Ser divino», a única fonte verdadeira da ordem. Assim, o verdadeiro filósofo é aquele que, amando Deus, se empenha activamente na actividade política, iluminando os contornos do amplo esquema das coisas sobre a tela da experiência total do homem: a nova ciência política de Voegelin é a interpretação noética do homem, da sociedade e da história, que, a partir das e em confronto com as interpretações não-noéticas, procura elaborar os símbolos que possam ajudar o homem a conquistar uma compreensão mais profunda da realidade política enquanto parte integrante da totalidade do real globalizante. A filosofia política enquanto filosofia da ordem mais não é do que o processo pelo qual «os homens encontram a ordem da nossa existência na ordem da consciência».
O conservadorismo enquanto reificação da ordem violenta e cruel deve ser compreendido no âmbito mais vasto da dialéctica da mudança e da conservação, que se enraíza provavelmente na condição humana: a atitude conservadora como reacção ao terror do caos é transversal a toda a sociedade. O conservadorismo enquanto filosofia da ordem procura legitimar a dominação das classes dominantes sobre as classes dominadas, justificando-a em termos teológicos. Ora, esta justificação teológica da dominação é perversa, no sentido em que instrumentaliza a favor dos interesses das classes dominantes a propensão humana para o ordem, ou melhor, o seu terror do caos. A psicologia da criança fornece muitos dados que confirmam a existência desta propensão humana para a ordem. Imaginemos uma criança que acorda de um terrível pesadelo: ela encontra-se sozinha no seu quarto, cercada pela escuridão e assaltada por ameaças invisíveis. Deixa de confiar nos contornos da realidade em que confiava e, assaltada de súbito pelo terror do caos, grita pela sua mãe. A criança aterrorizada invoca a mãe porque acredita que ela possui o poder de banir o caos e de restaurar de forma benigna o mundo. Quando chega ao quarto, a mãe aconchega a criança nos seus braços, embala-a num gesto tranquilizador, diz-lhe para não ter medo e acende a luz para iluminar com cores quentes as trevas: a criança acaba por ficar tranquila e, voltando a confiar na realidade, adormece novamente. Em termos estritamente empíricos, a mãe mentiu, porque o mundo para o qual pediu a confiança da criança é o mesmo mundo que as matará: o amor e o seu consolo são reais, tal como o são por breves instantes os anjos talmúdicos, mas a verdade final não será o amor mas o terror, não será a luz mas as trevas. Nesta perspectiva empírica, a realidade final da situação humana não é a segurança transitória da ordem, mas sim o pesadelo do caos: estamos todos condenados a mergulhar sozinhos na noite funda que nos tragará e devorará de vez. A nossa experiência é uma ilusão e o papel de protectores-do-mundo que os nossos pais corporificam é uma mentira, na medida em que, se não houver outro mundo para além deste mundo natural, o único que conhecemos, a face do amor confiante dobrando-se sobre o nosso terror mais não é do que uma imagem ilusória de misericórdia ou de trágico heroísmo. Freud teve o mérito de compreender a religião como a fantasia infantil de que os nossos pais governam o mundo para o nosso bem. O adulto deve livrar-se dessa fantasia infantil e atingir um nível máximo de resignação estóica: viver sem ilusões. Porém, em cada um dos homens adultos habita uma criança atormentada, que emerge sempre que o caos ameaça a confiança na realidade do ser. Apesar de amaldiçoar Freud, chamando-lhe activista gnóstico, Voegelin precisa da sua ajuda para interpretar a propensão humana de criar ordem como um impulso intrínseco para dar um alcance cósmico à ordem social criada: a ordem humana deve corresponder à ordem cósmica que a transcende, para que o homem possa confiar-lhe o seu ser e o seu destino. O salto do ser é o conceito forjado por Voegelin para pensar uma comunidade humana aberta à experiência de Deus como ser que transcende o mundo: a revelação israelita e cristã e a filosofia grega romperam radicalmente com a densidade da sociedade fechada e com os seus símbolos cosmológicos, permitindo pensar a história da humanidade como sociedade aberta (Bergson) que engloba a verdade e a inverdade em tensão: o homem enquanto ser mortal caminha sobre corda bamba entre o nada e o paraíso. Para não perder o rumo certo e o sentido da vida, o homem precisa abrir-se à transcendência e instaurar uma ordem na proximidade de Deus. O salto para o ser exige, portanto, uma mudança de quadro de referência ou, mais precisamente, uma conversão religiosa: o mundo natural não é o único mundo existente, mas apenas o primeiro plano de um outro mundo, onde o amor não será aniquilado pela morte. No âmbito deste quadro de referência religioso, a confiança no poder do amor paternal para banir o caos pode ser justificada: em vez de se basear numa mentira amorosa, o papel paternal é o testemunho da verdade última da situação do homem no mundo.
O mundo tal como o conhecemos é cruel, demasiado cruel e injusto, para que possamos ter confiança na sua ordem. O salto para o ser é um acto de fé, que, na visão conservadora de Voegelin, nos convida a suportar resignadamente o insuportável: a crueldade existente. A consagração da ordem existente é a própria consagração da miséria, da pobreza, da injustiça e da crueldade que ela própria gera. Não devemos ficar admirados com o facto dos conservadores recorrerem a Voegelin para combater a teologia da libertação, porque, graças ao processo de imanentização levado a cabo pela especulação gnóstica, a força espiritual da alma foi desviada da santificação da ordem para a tarefa de construir um mundo melhor. O conceito cristão de vida eterna, que Santo Agostinho elevou à ideia de uma futura civitas - a Civitas Dei -, onde os homens continuariam a viver em comunidade no além, não é incompatível com a esperança revolucionária (Bloch) de transformar o mundo, conforme demonstra o diálogo teológico (Karl Rahner, Jürgen Moltmann, Wolfhart Pannenberg) com o marxismo. Ao tentar inviabilizar este diálogo entre cristianismo e marxismo, os conservadores procuram desligar o cristianismo da sua responsabilidade pelo mundo terreno, privando-o da sua dimensão política, ao mesmo tempo que o reduzem à sua função de ópio do povo (Marx): a apologia ideológica de um «mundo sem coração» e de «situações sem alma» (Marx). A distância que separa a política conservadora da política revolucionária é a mesma distância que afasta o Diabo - a encarnação do mal existente - de Deus - a promessa de um mundo melhor: em vez do alívio do sofrimento pelo amor Dei que deixa tudo na mesma, «o protesto contra a miséria real» e o abandono político de uma situação que «precisa de ilusões» (Marx). Ortega y Gasset acusou justamente o cristão - entenda-se o conservador cristão - de ser anti-moderno, no sentido de não querer mudar as suas convicções e o mundo, mesmo quando lhe anunciam que a modernidade é um fruto maduro da ideia de Deus. Aliás, a imanentização e a realização do eschaton cristão aterroriza de tal modo o conservador que o força a acordar da sua letargia mental e a participar no debate teórico, não para defender a Bíblia dos pobres, mas sim para silenciar o chamado gnosticismo e fundamentar transcendentalmente a exploração e a dominação: o Deus do homem conservador é um embusteiro que «promete» salvar a alma dos homens no além que aceitem ser subjugados e escravizados pelo poder estabelecido no aquém. A interpretação conservadora da ordem da sociedade como parte de uma ordem transcendente do ser não afecta qualitativamente a ordem humana, libertando-a da crueldade; pelo contrário, dá-lhe ilusoriamente um fundamento divino. Voegelin atribui ao gnosticismo aquilo que pertence ao seu próprio pensamento: a fantasia contra-existencial e o congelamento da história. Perante esta mistificação da propensão humana para a ordem como sinal de uma ordem transcendente, absolutamente estranha ao mundo empírico, a dialéctica confronta o conservadorismo com a própria ordem transcendente que ele diz estar encerrada nessa propensão ordenadora do homem, acusando-o de assassinar Deus. Afinal, quem matou Deus? Quem mata a promessa de um mundo melhor? Nietzsche? Os homens? Não, quem matou Deus foram os conservadores de todos os tempos e espaços que o usaram para legitimar a dominação do homem sobre o homem. O uso e abuso conservador da ideia de Deus, ao serviço da justificação dos poderes instituídos e do mal existente, descredibilizou-a de tal modo que a filosofia moderna foi obrigada a dispensá-la: a morte metafísica de Deus deixou um vazio que a filosofia tem dificuldade em preencher, na medida em que toda a justificação fundamentalmente verdadeira da ordem humana se torna suspeita. A caducidade radical do mundo e da vida humana justifica mais uma esperança intramundana do que uma fé escatológica num mundo transcendente redimido: a existência humana orienta o seu ser para o futuro, tanto na sua consciência como na sua actividade, de modo a realizar neste mundo a justiça plena. Sem negar ou afirmar uma ordem transcendente, mas, acima de tudo, sem garantir o futuro ou colonizá-lo com uma fórmula, a dialéctica convida os homens a vencer o medo que os imobiliza e a empenhar-se na tarefa de alterar substancialmente a ordem estabelecida. Os conservadores manipulam o medo e o terror do caos para subjugar e dominar os homens, sobretudo os homens mais pobres e humildes, levando-os a confiar numa ordem social que lhes nega a autonomia e a felicidade. Da revolta contra o poder paterno resulta a libertação do filho. Vencer o medo é, desde logo, libertarmo-nos de todas as tutelas paternais que nos mantêm presos no estado de menoridade: o salto qualitativo só pode ser dado por aqueles que ousam desafiar o poder instituído, rasgar a sua teia de ilusões e construir um mundo digno de confiança.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 21 de março de 2010

Ortega y Gasset e a História

«Veja-se como este tema, de rosto tão técnico, nos revela paulatinamente uma secreta, recôndita incompatibilidade entre a alma antigo-medieval e a moderna. Porque graças a ele descobrimos duas atitudes primárias perante a vida perfeitamente opostas. O homem antigo parte de um sentimento de confiança para com o mundo, que é para ele, de antemão, um Cosmos, uma Ordem. O homem moderno parte da desconfiança, da suspeita, porque - Kant teve a genialidade de o confessar com todo o rigor científico - o mundo é para ele um Caos, uma Desordem.» (José Ortega y Gasset)
Eu sou português, mas sou um português que fez os seus estudos pré-universitários e universitários sabendo que estava a ser "avaliado" por professores extremamente medíocres, invejosos e maldosos. A mediocridade geral dos meus professores - cujo único mérito foi passar-me um cheque em branco - forçou-me a ser um autodidacta. Como não tinha professores reais capazes de satisfazer a minha exigência de conhecimento e a minha imensa curiosidade intelectual, adoptei como mestres os livros que comprava: os meus mestres foram os livros que me colocavam em contacto mediado com os professores que ensinavam em universidades estrangeiras. A minha sede inata de conhecimento livrou-me do destino daqueles que dizem ser meus "colegas": o destino do burreco nacional diplomado, que, seguindo Ortega y Gasset, podemos designar em termos genéricos como subjectivismo da opinião. Em Portugal, o ensino é, na sua globalidade, uma terrível mentira: as Universidades portuguesas não são centros de produção de conhecimentos e de inovação tecnológica. As Universidades portuguesas nutrem um ódio visceral pelo conhecimento e pela inteligência e, por isso, no seu solo, o conhecimento é, por norma, expulso: os portugueses que capturaram as universidades são inimigos do conhecimento. Em Portugal, os nichos de conhecimento são individuais e situam-se fora da universidade.
A aposta na inovação tecnológica como projecto nacional de desenvolvimento é esbarrada pela incompetência que se instalou no sistema de ensino e de educação: o fracasso total deste sistema compromete irremediavelmente o futuro de Portugal, porque o nosso sistema de ensino não produziu pessoas dotadas de conhecimentos e capazes de assumir responsabilidades nos centros de decisão nacional. Esta é a terrível realidade nacional: o sistema de ensino não dotou de conhecimentos as novas gerações e o lapso - hiato - cognitivo que gerou não nos garante um futuro, como já podemos verificar pela e na falta de preparação científica e humanista da nova geração que irrompe, de modo grotesco e corrupto, na política e nas empresas do regime. Não temos futuro porque não temos homens preparados para o criar: o sistema de ensino tal como existe ou a sua abolição real são equivalentes, embora a segunda opção tivesse o mérito económico de ajudar a conter a despesa pública. Tal como é, não se justifica a manutenção do sistema de ensino, porque não cumpre a sua missão: a transmissão de conhecimentos. Ontem, n' O Plano Inclinado (SicNotícias), debate moderado por Mário Crespo, Henrique Neto usou uma imagem que retrata fielmente o tal subjectivismo da opinião gerado pelo actual sistema universitário: se convocarmos uma reunião de seis engenheiros para resolver um problema, não obtemos a solução do problema, mas seis opiniões. Medina Carreira tem toda a razão quando reduz o actual sistema de ensino à sua mediocridade, responsabilizando-o pelo atraso estrutural do país. Portugal tornou-se, nos últimos trinta anos, um país insuportável: os portugueses são insuportáveis; não trabalham e não deixam os outros trabalhar; não pensam e não deixam pensar; não agem e não deixam agir; não criam e não deixam criar; não inovam e não deixam inovar; as reuniões são meros somatórios de opiniões regulados pelas hormonas da eterna confrontação.
Desde que tomei consciência da minha existência lançada num mundo pátrio que me é estranho e hostil, vejo Portugal como terra queimada e esta visão ganhou contornos mais nítidos nos últimos anos: evito sistematicamente a companhia de portugueses e, graças à Internet, posso substitui-la, quase em tempo real, pelo diálogo diário com estrangeiros com os quais me identifico. Neste momento, a minha pátria são esses nichos virtuais que abrem as portas a uma busca cooperativa da verdade. A verdadeira investigação científica está fora de Portugal e, apesar da Internet possibilitar uma conexão virtual com os centros de pesquisa mundiais, os portugueses preferem conversar uns com os outros nos diversos nichos da Web Social. Em Portugal, a opinião eclipsou sempre o conhecimento: a pesquisa reduz-se a conversas intermináveis. Enquanto os meus colegas e professores se reuniam nas salas de aula para conversar, eu deslocava-me até Espanha para comprar livros. Numa dessas deslocações, decidi comprar as obras de José Ortega y Gasset (1883-1955). Eu tinha uma má imagem de Ortega y Gasset, precisamente aquela que nos é transmitida pelo desprezo que a alma nacional nutre por si mesma e pelos vizinhos. Imaginava-o como um reflexo ou uma cópia das tristes e néscias figuras nacionais, em especial dos meus professores: a minha mente recusou sempre ser colonizada pelos "ditos vulgares" de pessoas medíocres e, por isso, aprendi a controlar o acesso de informação exterior, fazendo com que os meus ouvidos filtrassem selectivamente a informação recebida. Autoprotegi-me do confronto e do contacto com a ignorância activa e o lixo opinativo. Porém, o que despertou a minha curiosidade por Ortega y Gasset foi o facto dele ser reconhecido mundialmente: a crítica da sociedade de massas que desenvolveu na sua obra A Rebelião das Massas influenciou de modo marcante a crítica do sistema da indústria cultural da Escola de Frankfurt. Orientado pela leitura das obras de Max Horkheimer e de Theodor W. Adorno, bem como das de G. Wright Mills, Herbert Marcuse, Karl Mannheim, Daniel Bell, Ralf Dahrendorf, Raymond Williams, Robert K. Merton, Harold Lasswell, Bernard Rosenberg, David Manning White, Sandor Halebsky, Pitrin A. Sorokin, T.B. Bottomore, A. Schumpeter, Robert M. Marsh e Raymond Aron, entre tantos outros, redescobri um novo Ortega y Gasset, que acabou por acentuar o cunho elitista do meu marxismo acidental, como lhe chamava um professor que desconhecia a outra fonte de influência: a teoria da circulação das elites de Vilfredo Pareto, Marie Kolabinska e Mosca e a concepção orgânica da cultura de Oswald Spengler e a sua matriz vitalista: o marxismo académico sempre foi mais elitista do que o marxismo partidário, ao qual era e continuo a ser alérgico.
Vejam como eu estava adiantado em relação aos meus professores e aos meus colegas - uma distância que um professor maltratado pelo sistema media em termos de anos-luz: não só dominava toda a filosofia francesa, aquela que eles supostamente conheciam sem nunca ter lido as obras, como também reinava no pensamento alemão e anglo-saxónico. Nas livrarias portuguesas, comprava livros de autores franceses, enquanto nas livrarias espanholas encontrava os verdadeiros pares e pais da minha alma: os filósofos alemães e anglo-saxónicos. O ascendente da cultura francesa sobre a cultura portuguesa nunca foi benéfico para o nosso desenvolvimento cultural: a própria Escola do Porto, nomeadamente Leonardo Coimbra, ressentiu-se disso, na medida em que, com base na filosofia vitalista de Henri Bergson, não conseguiu elaborar um vitalismo consequente - filosoficamente pensado sem recurso à teologia e ao tomismo - com aquela acutilância filosófica com que o fez Ortega y Gasset, profundo conhecedor da filosofia e da cultura histórica alemãs. Ortega y Gasset chegou mesmo a reclamar a herança de Dilthey, afirmando que tinha consumado aquilo que este filósofo alemão anteviu e preparou sem o tematizar abertamente: a conversão da razão histórica em razão vital. É certo que Ortega y Gasset exagera, omitindo o pensamento de Heidegger que lhe permitiu aperfeiçoar e integrar certos conceitos existenciais, mas isso não esmorece o mérito da sua enorme empresa filosófica que escava o seu próprio caminho para além do idealismo e do materialismo. A a-propriação da herança de Dilthey é justificada de um modo filosófico: a noção de história como perfeita continuidade, ou seja, a recusa da geração espontânea, precisamente aquela que os nossos pseudo-intelectuais reclamam para as suas opiniões, como se estas tivessem surgido espontâneamente nas suas cabeças ocas, sem filiação nem precedentes. Ortega y Gasset presta homenagem ao legado que herdou: as ideias vêm de outras ideias minhas ou de outros homens, mas sobretudo da própria época em que vivem: «Vir de e ir a são atributos constitutivos de todas as ideias. Por isso, é essencial a toda a ideia ter fonte (nascente) e foz, imagens hidráulicas de firme validez». Ortega y Gasset encara o pensamento filosófico como sistema, no seio do qual cada ideia ou conceito inclui todas as outras ideias ou conceitos: Dilthey captou a Ideia fundamental de Vida, a ideia que inclui em si todas as outras ideias, mas nunca conseguiu expressar de forma adequada e pública o seu pensamento. Max Scheler passou-lhe ao lado, apesar de ser dotado de excelente olfacto filosófico: a tarefa de transitar da intuição para a razão coube assim a Ortega y Gasset, até porque a exposição de um pensamento anterior ao nosso implica sempre que o compreendemos melhor do que o seu próprio autor. A filosofia de Ortega y Gasset mais não é do que a demonstração de que a ideia de razão vital representa, no problema da vida, um nível mais elevado que a ideia de razão histórica, da qual Dilthey não se livrou. Debruçada sobre a definição da nossa vida, a filosofia da vida de Ortega y Gasset - exposta nas suas obras O Tema do Nosso Tempo e O Que é a Filosofia? - aproxima-se muito da analítica da existência de Heidegger: «O que é, pois, a vida? A vida é o que somos e o que fazemos; é, pois, de todas as coisas, a mais próxima a cada um de nós». A vida é a vida de cada um de nós, a minha vida, a tua vida, a nossa vida, a vida do Outro, cujos traços ou atributos fundamentais - tais como encontrar-se no mundo, inteirar-se, ser transparente, historicidade, estar ocupado, enfim preocupação ou cuidado - reconduzem às estruturas existenciais explicitadas pela ontologia fundamental de Heidegger. Ortega y Gasset considera que o tema do nosso tempo resulta da descoberta desta realidade nova: a ideia de vida, que, dado implicar uma nova ideia do ser, exige uma nova ontologia, uma nova filosofia e uma vita nova. Porém, uma vez que não há ser fora do homem - o carácter intra-humano ou doméstico do ser, a ontologia de Ortega y Gasset desagua e desemboca numa antropologia filosófica, que expõe de forma brilhante na sua obra O Homem e a Gente, mais outra variação - em chave sociológica - do tema heideggeriano da queda do ser-próprio do homem na inautenticidade do das Man. A Filosofia da Vida foi alvo da crítica severa de Georg Lukács, exposta na sua obra polémica - mas interessante - A Destruição da Razão, que merece continuar a ser lida.
Hoje em dia, tal é o estado de degradação da cultura universitária e de clara regressão cognitiva dos seus utentes, Ortega y Gasset e alguns ilustres pensadores da Escola do Porto, cuja matriz teórica é confessadamente vitalista, pelo menos na sua origem, são nomeados e abordados, porque, sendo espanhóis ou portugueses, não exigem esforço teórico e, nesta triste lógica do pensamento nacional predominante, não precisam ser lidos na íntegra, bastando acumular um conjunto de frases que circulam pela Internet para emitir opiniões, isto é, para omitir conhecimentos. Estes animais cognitivamente subnutridos não sabem que a leitura é um processo activo, no decorrer do qual o leitor coloca perguntas e procura respostas: um leitor sem conhecimentos empobrece a obra que pretende a-propriar. Os mocinhos satisfeitos (Ortega y Gasset) descobriram que, para emitir opiniões, não é preciso ler as obras: a leitura simulada, isto é, fingida ou constantemente adiada por falta de tempo (sic), constitui unicamente o motivo para alinhavar as suas próprias opiniões e confrontá-las com as opiniões dos outros participantes nessas conversas intermináveis que são as aulas universitárias. A nossa cultura universitária é uma cultura da conversa: o saber foi destronado pela troca de opiniões ou de perspectivas pessoais sobre o mundo e fragmentos do mundo. Os analfabetos diplomados pensam que podem opinar sobre a obra de Ortega y Gasset sem conhecer a fundo o homem e as suas circunstâncias. Ora, como vimos, o vitalismo racional de Ortega y Gasset traduz na sua própria língua - em espanhol - um pensamento que foi originariamente dito em alemão: o conhecimento da filosofia alemã e da Escola Histórica, bem como do seu contexto histórico e ideológico, é fundamental para compreender a filosofia de Ortega y Gasset. Além disso, na condição indigente e precária de desenraizados do mundo e de alienados da história, os mocinhos satisfeitos são presas fáceis da ideologia conservadora, de cariz marcadamente aristocrático, que habita o pensamento de Ortega y Gasset: a sua noção de historicidade é profundamente conservadora e absolutamente distinta da concepção marxista da historicidade, da qual Ortega y Gasset se descarta afirmando que, para Marx, o sujeito da história é a estrutura económica (sic), precisamente aquela fatalidade da nossa vida que urge livremente superar e transcender. Ortega y Gasset reduz erradamente a teoria de Marx a uma filosofia do sujeito, portanto, a uma variante do idealismo, ao mesmo tempo que critica o seu realismo: «O homem não actua segundo as suas ideias, os seus sentimentos, etc., mas, ao contrário, as ideias, os sentimentos de um homem são consequência da sua situação social, isto é, económica. O alguém da história é, pois, o homem como animal económico». A teoria histórica de Marx não se reconhece nesta perspectiva que Ortega y Gasset lhe atribui, pela simples razão da dialéctica não ser exterior à res gesta, isto é, à realidade histórica. Quando confronta a filosofia antiga - ciência do ser - e a filosofia moderna - ciência do conhecer, vendo nesse confronto uma distinção entre dois tipos de homens - o guerreiro e o burguês, Ortega y Gasset pretende desvalorizar todo o criticismo moderno, desde Descartes até Kant, reduzindo-o a um subjectivismo, cuja evolução acompanha de perto a evolução do capitalismo. Ortega y Gasset propõe o abandono do idealismo e da sua epistemologia, mediante o recuo ou o retrocesso à segurança, à confiança e à tranquilidade do ser que tematiza como vida, ou, em termos ideológicos mais claros, a suspensão da crítica - tanto da crítica da ideologia como da crítica da economia política. Ortega y Gasset não só denuncia a suposta ontofobia de Kant, como também lhe recusa a posse de uma filosofia: a filosofia moderna é, na sua perspectiva, um hiato filosófico, um enorme buraco vazio, que ele preenche ou tapa com o raciovitalismo. Não foi por mero acaso que Theodor W. Adorno substituiu o termo cultura de massas - forjado para condenar o acesso das classes trabalhadoras à cultura e aos bens que produzem com o seu trabalho - pelo conceito de indústria cultural: sem a aquisição prévia de conhecimentos que nos permitam tomar consciência dos determinismos - as fatalidades de Ortega y Gasset - que cerceiam a nossa «liberdade» não pode haver crítica e praxis de transformação do mundo. A ignorância activa é a maior aliada do sistema estabelecido. Para transformar e transcender o mundo, é preciso primeiro conhecê-lo e, como foram privados desse conhecimento pelo actual sistema de ensino, os mocinhos satisfeitos bloqueiam a própria mudança qualitativa. A regressão cognitiva conduz inexoravelmente ao retrocesso histórico e à barbárie.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 16 de março de 2010

Prós e Contras: Novos Horizontes

O Debate Prós e Contras de hoje (15 de Março) - moderado por Fátima Campos Ferreira - abordou um tema que me agrada especialmente: a busca e a descoberta de novos horizontes para a humanidade ocidental e para a nossa matriz civilizacional num mundo global. O fio condutor deste debate inscreveu-se nas relações complexas entre política, economia e sociedade, no contexto alargado da crise do sistema capitalista que ameaça a própria dominação ocidental. Max Scheler usou a imagem do carro que perdemos de vista depois de ter dado a curva, para demonstrar a sobrevivência da pessoa invisível depois da morte: apesar de deixarmos de o ver, o carro continua a existir, seguindo o seu percurso, mesmo que se tenha precipitado no abismo. Ora, a mesma imagem pode ser utilizada para mostrar que a actual crise financeira e económica lançou o Ocidente numa curva vertiginosa, cujo destino incerto nos assusta e nos angustia, como se estivessemos a ser confrontados com a nossa própria morte. A Filosofia que nasceu no Ocidente recusa dar-se como vencida e não desiste facilmente da tarefa de imaginar uma vida nova para a Humanidade: continuamos a acreditar nas forças criadoras da alma ocidental e nas energias vitais das terras que ilumina. Do outro lado da curva espera-nos o inferno ou o céu: a decisão ainda não nos escapou completamente: o passado glorioso e o desejo de um futuro liberto une-nos e liga-nos à terra do Ocidente - a única Casa do Homem, a nossa Casa Natal, a nossa Pátria da Identidade, pela qual estamos prontos a dar a nossa vida.
A crise financeira e económica que se abateu sobre o mundo é, segundo Eduardo Lourenço (Filósofo), «a crise mesma da economia», que abalou de surpresa o epicentro da nossa sociedade e do domínio ocidental no mundo global, pondo em questão o próprio sistema capitalista, sem termos uma alternância visível. A referência a Marx - e Marx foi abundantemente referido neste debate -, que previu o colapso total do capitalismo, fornece uma alternativa política viável, e é nesta perspectiva de exploração de novas figuras da possibilidade que interpreto a frase de José Gil (Filósofo): «a política hoje já não manda nada», não a política-governação, completamente condicionada pela falta de dinheiro e por imperativos económicos e ditada pelos economistas e pelo capital financeiro, mas sim a política-projecto. «Os gurus do nosso destino são efectivamente os economistas» (José Gil). De facto, o próprio Marx chegou mesmo a afirmar que a luta final não vai ser travada entre as classes trabalhadoras e a burguesia, mas entre estas classes e uma nova classe de gestores, precisamente a classe dos gurus que se apoderou de todos os centros de decisão, em nome de uma gestão económica racional, e que gerou, em grande medida, esta crise. Com a emergência desta nova classe dirigente, que usou e abusou do poder político e da capacidade de intervenção do Estado na economia em benefício do seu próprio enriquecimento privado, a política - a imaginação política - foi completamente subordinada à economia: o triunfo do neoliberalismo significa que o Estado ajudou a economia de mercado a colonizar todas as esferas da sociedade, da cultura e do mundo da vida. Aquilo a que chamo a invasão e a colonização da totalidade social pela economia capitalista é completamente distinto da «autonomia da economia» num mundo financeiro globalizado advogada por Eduardo Lourenço. Marx mostrou sabiamente que, no sistema capitalista, a economia não só é a estrutura determinante em última instância, como também assume o papel dominante no processo de reprodução do próprio sistema: o que é novo não é esta autonomia da economia, mas o facto de hoje a economia não ter um exterior. A gestão económica impôs-se a todas as instituições sociais e os seus serviços e bens foram comercializados: tudo é económico ou, pelo menos, susceptível de ser rentabilizado, comercializado, gerido e pensado em função da lógica do lucro. O mundo inteiro foi capturado pela teia da economia de mercado. A captura do mundo, da vida, da natureza, da sociedade e do homem pela economia de mercado num cenário global animou o neoliberalismo até ao estalar da grande crise que revelou a sua falsidade: o mundo está cada vez mais desigual e mais pobre.
Ora, a perspectiva que acabo de esboçar de modo sucinto e sumário, a partir das intervenções de José Gil e de Eduardo Lourenço, articula-se perfeitamente com as teses defendidas por António Pires de Lima (Gestor): a actual crise exige uma alteração de paradigma e uma mudança decidida e corajosa de sociedade. Com a Queda do Muro de Berlim, o neoliberalismo reforçou a sua «legitimidade» e afirmou-se como pensamento único, gerando um consenso político mundial alargado em torno da chamada teologia de mercado, que ameaça seriamente as estruturas democráticas ocidentais: a sociedade unidimensional de Marcuse - a sociedade sem oposição e sem alternativas - consumou-se. A crise colheu-nos de surpresa e desprevenidos: Estamos a viver um fim de ciclo de política ideológica e de regime, como disse Henrique Bicha Castelo (Médico cirurgião), e não temos aparentemente alternativas. É certo que a conjugação dos poderes políticos nacionais ajudaram a moderar significativamente os efeitos nefastos da crise, como lembrou Pires de Lima, mas esta suavização política da crise não deve distrair-nos: a nossa segurança, a nossa tranquilidade, o nosso modelo social, estão a ser questionados externamente pela aceleração da transferência ou da deslocalização do poder económico do Ocidente para a novas economias emergentes que, com excepção do Brasil, não são respeitadas pela sua dignidade democrática. As economias ocidentais, em especial as economias europeias, não sabem criar riqueza para sustentar o nosso modelo social (Pires de Lima). Num mundo global, «a Europa não é ninguém», no sentido de ter deixado de ser um actor político activo nos palcos do mundo: a Europa é um «museu vivo de nós próprios» (Eduardo Lourenço), que perdeu estatuto e capacidade de intervenção nos destinos do mundo. Eduardo Lourenço apresentou esta deslocalização da dominação do Ocidente para as economias emergentes, já captada por Ernest Gellner, como um processo de ajuste de contas dos países que foram outrora dominados pela Europa com a Civilização Ocidental: o Império do Mal - uma referência ao Islão e à China - emerge contra o Ocidente, usando a nossa técnica e os nossos conhecimentos. Pires de Lima afirmou que, enquanto a impotência da Europa for contrabalançada positiva e efectivamente pelo potência americana, nem tudo está perdido: a esperança de recuperação do domínio ocidental deve unir a humanidade dos dois ocidentes, o europeu e o americano. Se tomarmos consciência da nossa posição frágil no mundo, podemos começar a refazer o nosso caminho, rompendo com alguns pressupostos iluministas: a ideia de que o dia de amanhã será «melhor» que o dia de hoje, que alimenta a ideologia económica do crescimento ilimitado, rompeu-se completamente com esta crise, e, com ela, a ideia de uma vida e de um futuro assegurados e garantidos. A ideia de que o futuro não está garantido pode levar novamente a humanidade ocidental a acordar da letargia mental e cognitiva em que vive, a lutar corajosamente contra as adversidades e a sonhar um mundo melhor (Ernst Bloch). Porém, nem todas as possibilidades reais sonhadas pela humanidade ancestral poderão ou deverão ser realizadas: a utopia médica, tal como a captou Ernst Bloch - o sonho de imortalidade de Bicha Castelo - é, no fundo, uma anti-utopia, que está a levar as gerações grisalhas a negar o mundo aos que nascem e aos que poderiam ter nascido se o mundo fosse menos egoísta. O destino do Ocidente joga-se na dialéctica de avançar um passo em frente e de recuar dois ou três passos atrás: a ausência de garantias finais e a abertura permanente do futuro aplicam-se aos direitos adquiridos que, na conjuntura política presente, bloqueiam a mudança social qualitativa. As expectativas metabolicamente reduzidas da humanidade domesticada morreram e, se quisermos reconquistar uma posição de prestígio mundial, devemos fazer o seu luto saudável (Pires de Lima): a vida não pode permanecer eternamente prisioneira na esfera do consumo desenfreado e carente de sentido.
Neste debate, ergueram-se duas vozes desgarradas e dissonantes que impugnaram o entendimento obtido em torno das relações entre a economia e a política e dos efeitos sociais e humanos desastrosos da crise: a de Diogo Lucena (Administrador da FCG), em defesa da manutenção da ordem economicamente reduzida estabelecida, e a de Miguel Morgado, em nome de um regresso antidemocrático à ordem do sagrado manipulado. Miguel Morgado baralhou tudo, vacilando entre uma perspectiva demográfica - a necessidade de gerar bebés para garantir o modelo social europeu - e uma perspectiva de responsabilização da democracia pelo marasmo da política ocidental e da Europa. A ausência de nexo no seu pensamento permite descartá-lo e concentrar a atenção nas posições de Diogo Lucena: a crise não mudou o funcionamento da economia de mercado. O que falhou na globalização foi - segundo Lucena - o facto da integração dos mercados não ter sido acompanhada pela integração política mundial: a utopia de Lucena é a utopia de um governo mundial num mundo que escapa cada vez mais ao domínio ocidental. Para Lucena, tudo se resume ao crescimento económico: Portugal enriquece cada ano que passa, superando gradualmente a pobreza, mas está a enriquecer demasiado devagar em relação à Europa, aos USA e às economias emergentes. Pires de Lima defendeu a posição de José Gil, de Eduardo Lourenço e de Bicha Castelo, censurando as bitolas economicistas de Lucena e avançando com a tese do luto das expectativas geradas nos anos 80 e 90. O discurso de José Gil inscreve-se, como afirmou diversas vezes, no discurso de Pires de Lima contra os discursos de Diogo Lucena e de Miguel Morgado. Para José Gil, a questão fundamental é a seguinte: Desenvolvimento para quê? O desenvolvimento das sociedades deve servir o desenvolvimento dos homens concretos e das suas subjectividades. O discurso economicista de Lucena não satisfaz José Gil, porque o desenvolvimento para os homens não pode ser medido por critérios puramente económicos e quantitativos. Ou, dito em linguagem marxista, o crescimento económico (quantitativo) não implica necessariamente desenvolvimento qualitativo das subjectividades. Um dos grandes méritos de Marx reside no facto de ter possibilitado a identificação entre a Acumulação e a História, encarando a última como um vasto processo cumulativo que culmina no mundo moderno: as teses do crescimento indefinido e da limitação do crescimento são meras ideologias que fragilizam a via - autenticamente marxista - que convida a assegurar o desenvolvimento. Como se tornou evidente no decorrer das últimas décadas, o crescimento económico não garante, por si só, o desenvolvimento humano: a fragilidade das vidas sociais das pessoas resultante desta crise (Pires de Lima), a privação do futuro das classes mais pobres (Eduardo Lourenço), a desmotivação derrotista (Henrique Bicha Castelo) e o estreitamento e a limitação dos horizontes das subjectividades, dos desejos e da cultura social (José Gil) mostram claramente que o bem-estar social - material - não é o essencial. É preciso dar um rosto aos números - às estatísticas - para os poder comparar e esse rosto só pode ser o rosto dos homens concretos que sofrem os efeitos mais nefastos desta crise. Entre o discurso economicista e o discurso humanista não há reconciliação possível, como referiu enfaticamente José Gil.
Eduardo Lourenço falou da privação do futuro como se isso fosse uma terrível maldade gerada pela actual crise financeira e económica, mas eu vejo nessa privação uma nova oportunidade para tentar definir conceptualmente novos tipos de sociedades, de modo a libertar a imaginação produtiva do encurralamento e do estreitamento de horizontes a que foi sujeitada pelo neoliberalismo. Segundo José Gil, o horizonte das possibilidades limita-se e estreita-se cada vez mais numa sociedade de consensos alargados: o crescimento material, em vez de ter enriquecido e propiciado o desenvolvimento de individualidades criadoras, produziu subjectividades mais pobres, cognitivamente indigentes e mentalmente atrofiadas, incapazes de ousar considerar o campo das possibilidades. Uma vida garantida automaticamente, além de ser uma mera ilusão, como o demonstra a ocorrência de uma catástrofe natural, é uma vida resignada e apática que se perde para si própria no ciclo infindável das trocas metabólicas com a natureza, contribuindo para a degradação da natureza, a destruição dos laços sociais e a desintegração do homem; é, portanto, uma vida não-produtiva que, mergulhada num eterno presente, perdeu o contacto com o passado e se fechou ao futuro. O sistema estabelecido produz em série os sujeitos que precisa para garantir a sua reprodução e a sua dominação: mão-de-obra especializada, consumidores dóceis e utentes resignados, que cumprem sem contestação as regras estabelecidas pelo poder burocrático instituído, elegendo periodicamente num ritual formal os seus representantes. Ivan Illich pensou a convivencialidade como alternativa ao princípio de produtividade que conduz o homem - fechado na sua concha individual - a um estado de insatisfação permanente e de tédio mortal. Embora o conceito de convivencialidade diga respeito ao controle da ferramenta pelo homem integrado na colectividade, a crítica do sistema social que lhe é subjacente ajuda a captar novas perspectivas de futuro, para além da falsa alternativa entre crescimento e anticrescimento: todas as sociedades precisam produzir o que consomem. Romper com a produção é inviabilizar o nosso futuro e entregá-lo às economias emergentes asiáticas: a inversão política implica, num primeiro momento de verdade, o estabelecimento, por acordo político, de um princípio virtuoso de autolimitação, a começar pela recondução da economia ao seu próprio domínio e por aquilo a que Pires de Lima chamou uma nova gestão das expectativas, capaz de gerar riqueza sem inibir o desenvolvimento do homem. A Grande Transformação - a mudança de paradigma - tem o seu início nesta autolimitação: o resto vem por acréscimo.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 15 de março de 2010

O Marxismo de Henri Lefebvre

«O pensamento filosófico e a acção, que não se contentam com uma posição puramente formal e com uma consciência absolutamente teórica, podem procurar evitar a cisão entre a forma e o conteúdo, apoderando-se imediatamente de um certo conteúdo concreto. Mas se a operação que toma um conteúdo parcial, se limita a este elemento do real, exige-o necessariamente num absoluto. Faz dele uma forma fetichizada. Podemos tomar, por exemplo, como conteúdo: a realidade psicológica individual, a comunidade nacional, a realidade espiritual do homem, a exigência humana de unidade e realidade. Cada um destes "momentos" do real, isolado e hipostasiado, torna-se o negador dos outros momentos, e, em seguida, negador de si mesmo. O conteúdo limitado e transposto na forma torna-se opressivo e destruidor da sua própria realidade. Assim o nacionalismo transforma-se no inimigo das realidades nacionais; o liberalismo deixa estiolar a liberdade; o espiritualismo torna-se o adversário do espírito vivo e o individualismo torna-se o adversário do indivíduo concreto; o "totalitarismo" opõe-se à realização total do homem... Filosoficamente, este processo transforma em erro uma verdade parcial precisamente ao pô-la no absoluto. Cria uma meta-qualquer coisa. O racismo é uma meta-biologia; a teoria nacionalista é uma meta-história ou uma meta-sociologia. Esta operação comporta todos os riscos da meta-física. Recusando uma parte do conteúdo, sanciona e agrava a dispersão dos elementos do real. Negligencia as conquistas dos outros domínios e surge assim como um procedimento de especialista ou de partidário. Exprime uma reacção de defesa do indivíduo, ou do seu grupo, mais que uma consciência voltada para a solução. Uma única via continua aberta ao espírito para resolver os verdadeiros problemas: o esforço para a tomada de posse do conteúdo total. Este esforço definirá a vida filosófica». (Henri Lefebvre)
Henri Lefebvre (1901-1991) exerceu a dialéctica como um esforço de apreensão do movimento do conteúdo total, que evita a cisão entre a forma e o conteúdo: «A dialéctica, longe de ser um movimento interior do espírito, é real antes do espírito - no ser. Impõe-se ao espírito. Analisamos primeiramente o movimento mais simples e abstracto, o do pensamento mais despojado; descobrimos assim as categorias mais gerais e o seu encadeamento. É-nos necessário em seguida fazer a ligação desse movimento ao movimento concreto, ao conteúdo dado; tomamos então consciência do facto que o movimento do conteúdo e do ser se elucida para nós nas leis da dialéctica. As contradições do pensamento não provêm apenas do pensamento e da sua impotência: vêm também do conteúdo. O seu encadeamento tende para a expressão do movimento total do conteúdo e eleva-se ao nível da consciência e da reflexão. O saber não pode ser considerado como encerrado pela lógica dialéctica. Pelo contrário: a investigação deve receber aí um novo élan. A dialéctica, movimento do pensamento, apenas é verdadeira num pensamento em movimento. Sob a forma de teoria do devir e das suas leis - ou de teoria do conhecimento - ou de lógica concreta, o materialismo dialéctico não pode ser mais que um instrumento de investigação e acção, jamais um dogma. Ele não define; situa os dois elementos da existência humana: o ser e a consciência. Hierarquiza-os: o ser (a natureza) tem a prioridade, mas a consciência tem para o homem a primazia; aquilo que apareceu no tempo pode ser erigido pelo homem e para o homem, em valor superior. Enquanto doutrina, o materialismo dialéctico não pode continuar a ser encerrado numa definição exaustiva. Define-se negativamente, opondo-se às doutrinas que limitam, de fora ou de dentro, a existência humana, seja subordinando-a a uma existência externa, seja reconduzindo-a a um elemento unilateral ou a uma experiência concebida como privilégio e definitiva. O materialismo dialéctico afirma que a adequação do pensamento e do ser não se pode reduzir a um pensamento mas deve ser alcançado concretamente, isto é, na vida e como força concreta do pensamento sobre o ser».
A originalidade do marxismo de Lefebvre reside na articulação complexa que opera entre a dialéctica e a teoria da alienação e do fetichismo da mercadoria, da qual surge a figura derradeira da dialéctica como objectivo da humanidade desalienada: «O homem total é o homem "desalienado". O fim da alienação humana será "o regresso do homem a si mesmo", ou seja, a unidade de todos os elementos do humano. Este "naturalismo acabado" coincide com o humanismo». A dialéctica de Lefebvre opõe-se ao marxismo oficial ou institucional que, no seu tempo, procurou vedar o acesso às obras do jovem Marx que convidavam à redescoberta de Hegel. Eduard Bernstein e Lucio Colletti defendiam que a dialéctica era inseparável do idealismo, preconizando o seu abandono em nome de um materialismo positivista, enquanto Della Volpe, Châtelet e Althusser aconselhavam a abandono da noção de alienação. Althusser defende que há no pensamento de Marx uma ruptura epistemológica que se situa em 1845: Marx opera n'A Ideologia Alemã um ajuste de contas com a sua anterior consciência filosófica, abandonando o conceito de alienação e substituindo o humanismo filosófico dos Manuscritos de 1844 por uma teoria científica da sociedade e da história. Lefebvre detesta o estruturalismo tecnocrático de Althusser e dos seus seguidores, cujas descontinuidades estabelecidas - em nome da cientificidade - no seio do próprio pensamento de Marx e nas suas relações com Hegel imobilizam a própria dialéctica. Para Lefebvre, não há nenhuma ruptura entre uma obra de Marx e as obras precedentes, nem absoluta descontinuidade: o pensamento de Marx desenvolve-se energeticamente, crescendo e transformando-se. Entre a teoria revolucionária de Marx e a filosofia de Hegel há uma conexão interna fundamental: a Fenomenologia do Espírito de Hegel é uma crítica oculta, isto é, mistificada, no sentido em que, ao apreender a alienação do homem, explicita de forma antecipada os elementos críticos que permitem a Marx elaborar a crítica e a fundamentação da Economia Política. O acerto de Marx com Hegel reside precisamente nesta crítica e nesta fundamentação da Economia Política: a teoria da alienação que Marx retoma de Hegel, para fundamentar o seu humanismo, é uma teoria concretamente dialéctica, uma teoria da negatividade, viva e histórica no seio humano.
Ora, o marxismo de Lefebvre é profundamente humanista, e, tal como o de Marx, o seu pensamento está em constante transformação energética: a teoria da alienação que se aprofunda na crítica do fetichismo da modernidade garante-lhe uma unidade tensa, dinâmica e aberta, que não permite encará-lo como uma sequência descontínua de quadros. O proletariado foi, para o marxismo, uma terrível decepção: a filosofia não se realizou e a unidade entre teoria e praxis quebrou-se. A Filosofia que tinha sido dada como superada continua viva: o momento de transformação do mundo fracassou. O pensamento de Lefebvre pretende ser um pensamento meta-filosófico, situado para além da Filosofia, mas descobrimos facilmente, no seu seio, a movimentação total de uma filosofia que reinterpreta novamente o mundo, para dinamizar uma nova praxis: «A filosofia nova depende de um acto real e de uma exigência, não de um postulado, de uma alternativa abstracta, de um valor arbitrariamente escolhido ou de uma ficção. A sua tarefa é a de "efectuar" as ligações implícitas - mediações - entre todos os elementos e aspectos do conteúdo da consciência e do ser humano. Nesta procura, o único critério possível é prático: eliminar o que detém o movimento, o que separa e dissocia, o que impede a ultrapassagem». O marxismo enquanto teoria aberta não pode desistir da Filosofia, e, hoje em dia, ele é, mais do que nunca, uma Filosofia que denuncia o que há de falso na identidade, na adequação do concebido com o conceito. Num mundo absolutamente alienado, a sua tarefa é romper imanentemente a aparência da identidade total: «A contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; a primazia do princípio de contradição dentro da dialéctica mede o heterogéneo pela ideia de identidade. Quando o distinto choca contra o seu limite, supera-se. A dialéctica é a consciência consequente da diferença» (Theodor W. Adorno). Lefebvre enquanto filósofo da diferença deu contributos fundamentais para a construção deste novo marxismo, contributos esses que deverão ser redescobertos, retomados e aprofundados.
Para a compreensão da dialéctica de Lefebvre, recomendo a resdescoberta e a releitura de onze das suas inúmeras obras, todas elas traduzidas em língua portuguesa. Convém observar que as traduções portuguesas foram realizadas durante o período revolucionário, sofrendo reedições até à década cavaquista que mergulhou Portugal na penúria cultural: Cavaco Silva e o seu PSD/ Partido da Rolha destruíram a cultura portuguesa. Eis as obras:
1. Lefebvre, Henri (1979). Lógica Formal, Lógica Dialéctica, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Crítica interessante da lógica formal.)
2. Lefebvre, Henri (s/d). O Materialismo Dialéctico. Amadora: Edições Acrópole. (Obra fundamental para captar a dialéctica de Lefebvre.)
3. Lefebvre, Henri (1975). Para Compreender o Pensamento de Karl Marx, 2ª Edição. Lisboa: Edições 70. (Síntese notável da evolução do pensamento de Marx.)
4. Lefebvre, Henri (1975). O Marxismo. Amadora: Livraria Bertrand. (Síntese do marxismo.)
5. Lefebvre, Henri (1975). O Pensamento de Lenine. Lisboa: Moraes Editores. (A recordação e a saudade do maior revolucionário dos tempos modernos. Guevara abandona Cuba - o mundo em construção - e regressa às suas origens andinas para dar um novo salto: a construção positiva da utopia. O tema do avançar e do recuar - magnificamente elucidado por Lenine ou por Heidegger - faz parte da dialéctica marxista.)
6. Lefebvre, Henri (1975). Contra os Tecnocratas. Lisboa: Moraes Editores. (Crítica fantástica e demolidora do estruturalismo.)
7. Lefebvre, Henri (s/d). A Linguagem e a Sociedade. Lisboa: Editora Ulisseia. (A necessidade de encarar a linguagem na sua conexão fundamental com a sociedade. Merece especial destaque a análise das três grandes reduções: a redução dialéctica de Marx, a redução fenomenológica de Husserl e a redução linguística de Saussure.)
8. Lefebvre, Henri (1969). Introdução à Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. (Uma crítica romântica da modernidade e de algumas das suas ideias mais sólidas: o domínio da natureza e das suas forças e o crescimento do homem - a saída da morada - implicam sempre o voltar às origens - a entrada na morada, o regresso ao lar. O crescimento do homem exige, por vezes, grandes regressões ou, pelo menos, recuos significativos, que lhe permitem resistir ao império omnipotente da técnica e dos actuais deuses-computadores.)
9. Lefebvre, Henri (1976). Hegel, Marx, Nietzsche, ou o Reino das Sombras. Lisboa: Editora Ulisseia. (Uma trilogia que deixa no esquecimento Freud.)
10. Lefebvre, Henri (s/d). Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. (Apresentação notável da sociologia de Marx.)
11. Lefebvre, Henri (1971). O Fim da História. Lisboa: Publicações Dom Quixote. (Concebe uma saída da História que, de certo modo, inibe a sua dialéctica.)
J Francisco Saraiva de Sousa