terça-feira, 30 de junho de 2009

Prós e Contras: Trabalho em Tempo de Crise

«A maiêutica da modernidade não funciona sem um certo utopismo. A ideia de um parto sem imensas dores da sociedade moderna e a hipótese segundo a qual o filósofo poderia diminuir essas dores do parto e estreitar a distância entre o que nasce e o que foi esperado, comportam uma parte de utopia. Um tal emprego da utopia distingue-se da má utopia». (Henri Lefebvre)
O debate Prós e Contras (29 de Junho de 2009) dedicado à questão do trabalho em tempo de crise foi uma tremenda seca. O excesso de convidados e a rotatividade das mesmas figuras desinforma mais do que informa e esclarece a opinião pública, além de não acrescentar nada de novo. Fátima Campos Ferreira e a sua equipa são propensas a este estilo confuso de formato: os mesmos convidados, as mesmas opiniões, as mesmas visões, a mesma ausência de ideias e de imaginação utópica. O envelhecimento apoderou-se de Prós e Contras: o mundo está em crise e a moderadora insiste na repetição monótona da mesma receita - os mesmos temas, as mesmas figuras, as mesmas perguntas, as mesmas respostas, a mesma frustração de sempre, como se estivesse a ajudar a procurar alternativas e novos modelos. Prós e Contras está em crise: repete-se a si mesmo, semana após semana, durante anos. Vamos todos morrer e o país continuará a colocar as mesmas questões e a não saber como as resolver: os mesmos erros serão cometidos até ao fim dos tempos. Portugal é, de certo modo, um barco (Vítor Ramalho) que se afunda por causa dos buracos que os dirigentes nacionais fazem no seu casco: as figuras públicas portuguesas encontram o seu próprio rumo neste naufrágio e abandonam o barco depois de se terem servido dele. As classes dirigentes nacionais sacrificaram e continuam a sacrificar o futuro de Portugal à satisfação dos seus próprios interesses privados e, infelizmente, com a ajuda dos portugueses alienados nos sonhos do consumo e da exibição de falsa riqueza. O presente não se compreende exclusivamente a partir do passado, mas também e fundamentalmente a partir do futuro, como demonstrou Marx. Ora, Prós e Contras exibe semanalmente um desfilar de figuras nacionais que não têm nada a dizer sobre o futuro de Portugal, a não ser confiá-lo à deriva na história. O seu anti-utopismo é a prova mais visível da degradação da actividade política e pública portuguesa.
O debate opôs no palco frente a frente dois representantes das entidades patronais, Francisco Van Zeller (CIP) e João Vieira Lopes (CCS), e dois sindicalistas, João Proença (UGT) e Manuel Carvalho da Silva (CGTP-IN). No entanto, na plateia estava António Chora (Comissão de Trabalhadores da Auto-Europa) que elaborou uma outra visão do problema mais pertinente e relevante para a tarefa de encontrar novas alternativas. Patronato e sindicatos são retrógrados: os sindicalistas e os trabalhadores procuram defender o que conquistaram após o 25 de Abril, enquanto os patrões querem reconquistar o que perderam. Ambos os grupos vivem alheios às novas mudanças sociais ocorridas, como se o mundo continuasse igual desde os tempos áureos do sindicalismo revolucionário. Embora não tivesse contado com o apoio de Carvalho da Silva e de Van Zeller, a visão de António Chora acabou por ser corroborada pelos convidados estrangeiros - Guy Ryder (CSI), em directo de Budapeste, e Raymond Torres (OIT), em directo de Genebra, bem como por outros convidados nacionais, tais como António Saraiva, Armindo Monteiro e Vítor Ramalho. António Saraiva foi peremptório: a crise que vivemos não é uma crise de continuidade, mas uma crise de ruptura. A sua superação exige uma mudança de paradigmas, porque, tal como disseram os convidados estrangeiros, há uma mudança de modelo económico. Armindo Monteiro chegou mesmo a equacionar o problema do trabalho não como um confronto entre patrões e sindicalistas, mas como uma tensão entre trabalho e empresas supostamente criadoras de riqueza. Van Zeller reconheceu que, na concertação social, se discutem unicamente as questões sociais: as questões económicas têm estado fora da agenda da concertação social. Isto significa que o diálogo tripartido que envolve o governo, os sindicatos e o patronato nunca incidiu sobre o modelo económico desejado e a busca de alternativas ao modelo dominante que foi posto em cheque pela actual crise financeira e económica, embora Carvalho da Silva tenha recorrido ao Pacto Mundial para o Emprego para mostrar que os trabalhadores fazem sugestões concretas nesse sentido, condenando a especulação financeira, a desregulação dos mercados financeiros, a submissão dos trabalhadores aos imperativos económicos, o neoliberalismo e as suas políticas ruinosas, a flexibilização do trabalho ou a diminuição dos salários, até porque a crise não foi despoletada pela suposta rigidez dos contratos de trabalho (João Proença).
Vieira Lopes retomou a noção de António Chora nestes termos anti-maniqueístas: O mundo não se divide em bons e maus, sendo os trabalhadores os bons e os empresários os maus. É preciso ultrapassar este maniqueísmo que coloca o patronato no lado dos maus e os sindicatos no lado dos bons. A questão reside no sentido de como ultrapassar este maniqueísmo e, neste aspecto, os participantes exibiram escassez de novas ideias, amuralhando-se nas velhas ideias incapazes de apreender a nova situação e de pensar para além dela. Faltou-lhes ironia histórica e espírito de utopia. Van Zeller limitou-se a afirmar a velha ideia de que o diálogo tripartido é vital, como se o consenso fosse algo meritório. Vieira Lopes relembrou aos sindicalistas que é necessário aumentar o rigor dos deveres e do comprometimento, acabando por exigir uma cedência dos trabalhadores aos imperativos dos empresários: os direitos adquiridos ou as regalias sociais constituem neste momento crítico um obstáculo à superação da crise. João Proença lembrou que a crise não deriva da rigidez dos contratos de trabalho, mas da quebra do consumo: as pessoas não consomem e, por isso, as empresas não vendem. Nesta perspectiva surpreendente da crise económica, a solução não é diminuir os salários ou reduzir o número de postos de trabalho, mas mantê-los ou mesmo aumentá-los. Cavalho da Silva refugiou-se nas velhas ideias "comunistas", como se essa visão política fosse capaz de oferecer uma alternativa credível ao actual modelo económico: não só defendeu com afinco as regalias sociais adquiridas, como também exigiu o seu reforço. Carvalho da Silva é um arqueólogo: vive prisioneiro de um passado que já não é e que nunca foi o que era esperado dele.
Porém, combater as políticas neoliberais que produziram a crise exige uma outra visão do mundo, para além da falsa alternativa entre liberalismo e comunismo. Vivemos num mundo desigual (António Saraiva), não somente ao nível nacional, mas também ao nível europeu e sobretudo mundial. Os sindicalistas ainda não compreenderam bem as novas desigualdades e desprezam aqueles que não têm direitos tout court (Armindo Monteiro), nem sequer direitos adquiridos: os desempregados e os inactivos. 70% das empresas portuguesas despediram trabalhadores nos primeiros seis meses deste ano. Em Portugal, meio milhão de portugueses estão desempregados. Das empresas portuguesas, apenas 860 são grandes empresas, as restantes empresas empregam 75% dos trabalhadores, mas carecem de saber (Van Zeller) e de qualificação empresarial (Armindo Monteiro), o que não lhes permite fazer uma boa gestão dos recursos humanos, sem recorrer aos despedimentos ou à redução dos salários. Enfim, tanto os patrões como os sindicatos entrincheiram-se em posições defensivas (Van Zeller) e Portugal continua igual a si mesmo: um país eternamente adiado e sem futuro. Com esta crise económica, inicia-se uma nova era de risco total: as gerações mais novas não vão desfrutar o mesmo bem-estar que as gerações grisalhas gozaram. A pobreza reaparece num horizonte já colonizado, caçado e capturado pela imbecilidade e pela regressão cognitiva, e, se quisermos tentar mudar alguma coisa, devemos começar por exigir a mudança de pessoas: as classes dirigentes portuguesas são patéticas e, dada a sua falta de imaginação política, incapazes de governar Portugal e de criar um futuro novo sem classes médias.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Henri Lefebvre: Crítica do Urbanismo (2)

«"Nós, os berlinenses, escreve Hessel, temos de habitar mais ainda a nossa cidade". A sua intenção é a de que a frase seja literalmente entendida, não tanto no que se refere às casas, mas mais no que às ruas diz respeito. Pois estas são a casa do ser eternamente inquieto e em movimento que vive, aprende, conhece e pensa tanto entre as paredes das casas como qualquer indivíduo no abrigo das suas quatro paredes. Para as massas - e é com elas que vive o flâneur -, as tabuletas brilhantes e esmaltadas das lojas são adornos tão bons como os quadros a óleo no salão burguês, e até melhores; as empenas cegas são as suas secretárias, os quiosques de jornais as suas bibliotecas, os marcos de correio os seus bronzes, os bancos o seu boudoir e a esplanada a varanda de onde essas massas observam a azáfama da sua casa. No gradeamento onde os trabalhadores do asfalto penduram os casacos fica o seu vestíbulo, e o portão que leva à rua através do enfiamento dos pátios é a entrada nos aposentos da cidade». (Walter Benjamin)
O urbanismo é a maneira de conceber e de realizar as cidades e, como tal, está associado ao aparecimento do Estado moderno que transformou as cidades em capitais de Estado ou, pelo menos, em suportes do poder central. Isto significa que o urbanismo faz parte integrante de uma concepção de poder. Ilustres figuras mundiais converteram a arquitectura em "ciência política" através das "ciências económicas" (especulação financeira e imobiliária). O projecto da construção de Washington, apresentado por Pierre-Charles L'Enfant em 1771, era, em muitos aspectos, um imponente plano barroco: a localização dos edifícios públicos, as avenidas imponentes, as abordagens axiais, a escala monumental e o verde envolvente reflectiam a ideologia barroca do poder político. Em 1853, o barão Haussmann assumiu oficialmente a ideia de reconstruir a cidade de Paris que lhe foi confiada pelo imperador Napoleão III: grande parte da malha urbana medieval e renascentista de Paris foi demolida para dar lugar a artérias rectas que ligavam o centro da cidade aos distritos. A "geometria urbana" de Haussmann e da sua equipa dividiu Paris em três redes: a primeira rede incidiu sobre o labirinto de vielas que remonta à antiga cidade medieval, concentrando-se na região próxima do rio Sena, de modo a rectificar o seu traçado e a adaptá-lo às carruagens e à locomoção dirigida; a segunda rede, situada entre o centro e a periferia, foi subordinada à administração municipal; e a terceira rede criou as intercessões entre as principais artérias urbanas que davam acesso à cidade, bem como as ligações entre as duas outras redes. Na sua descrição da cultura parisiense do século XIX, W. Benjamin deu especial ênfase às arcadas (galerias) e aos telhados, onde pulsava a vida circulante da cidade: a multidão foi politicamente dividida e os indivíduos convidados a mergulhar numa excitação frenética nessas pequenas passagens cobertas, nas suas lojas e nos seus cafés. A construção de Washington e a transformação de Paris, às quais poderíamos acrescentar a reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa destruída pelo Terramoto de 1755, a modernização de Berlim no tempo de Frederico I ou a construção de Regent's Park e de Regent Street em Londres, expressam na arquitectura das capitais a linguagem do poder da cidade barroca: a linguagem do despotismo ou da oligarquia centralizada, personificada num Estado nacional, bem como uma nova linguagem ideológica derivada da física mecanicista, cujos postulados fundamentais já tinham sido lançados pelos exércitos e pelos mosteiros. Lei, ordem e uniformidade constituem os traços essenciais da cidade barroca: a lei confirma a situação vigente e assegura a posição dominante das classes privilegiadas; a ordem é uma ordem mecânica que sujeita os súbditos ao príncipe reinante, contra a antiga ordem baseada no sangue, na vizinhança ou nas finalidades de parentesco; e a uniformidade impõe a dominação impessoal do burocrata que, com a sua papelada e os seus processos, regulariza e sistematiza a colecta de impostos.
Na cidade do Porto, devido às reacções negativas dos produtores de vinho às regras impostas pela Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, o Marquês de Pombal nomeou o seu primo, João d'Almada (1757-1786), como governador militar que, acumulando estas funções com as de governador civil, se empenhou na construção de uma cidade moderna, onde o comércio, a indústria e os negócios pudessem prosperar. Em 1758, João d'Almada criou a Junta de Trabalhos Públicos do Porto, com o objectivo de transformar radicalmente a antiga urbe medieval confinada dentro da muralha fernandina e de planear o crescimento e o embelezamento da nova cidade. Financiada por um imposto sobre a produção de vinho que lhe era dado mensalmente pela Companhia Geral, a Junta deparou-se com alguns obstáculos, entre os quais a Igreja Católica e os proprietários fundiários. Este obstáculo só foi superado quando, em 1769, foi aplicada ao Porto a "legislação de excepção" que, ao condicionar o direito de propriedade ao interesse colectivo definido pelo Estado, permitiu a substituição da antiga estrutura fundiária pelo novo loteamento "regular". O Porto que resulta da intervenção urbanística dos Almadas - o filho, Francisco d'Almada e Mendonça (1786-1804), sucedeu-lhe mais tarde - abrange a urbanização de vastas áreas situadas a norte - até à Rua da Boavista - da muralha fernandina e a alteração substancial do tecido urbano medieval, de modo a articular a cidade medieval com a cidade moderna. O seu desenvolvimento levou à destruição das muralhas que atrofiavam o burgo medieval: foram abertas duas ruas - a dos Clérigos e a de Santo António (actual 31 de Janeiro) - que se unem na Praça Nova (actual Praça da Liberdade) e a muralha que a limitava pelo sul foi demolida em 1788, sendo edificado no seu lugar o Palácio das Cardosas. Ora, todas as obras urbanísticas dos Almadas foram realizadas por um gabinete que centraliza e orienta os trabalhos, dispondo de verbas próprias obtidas através de impostos extraordinários e de uma legislação de excepção. Em termos de arquitectura, a moderna cidade do Porto era, no século XVIII, marcadamente barroca. Em 1725, Nicolau Nasoni foi encarregado de embelezar a Sé, acabando por projectar inúmeras igrejas e palácios da cidade do Porto e arredores. Porém, as grandes extensões urbanizadas tiveram tempo suficiente para afinar um novo estilo tipicamente portuense: um estilo neoclássico especial que, devido à acção do cônsul J. Whitehead - amigo de João d'Almada -, reflecte influências inglesas. Os dois estilos portuenses do século XVIII podem ser exemplicados pela Torre da Igreja dos Clérigos (1754-1763), de Nasoni, e o Hospital de Santo António (1770), de John Carr. O crescimento da cidade do Porto continua num ritmo excelente até meados do século XIX, mas a partir de determinado momento a influência francesa começa a manifestar-se na construção de boulevards: a Avenida dos Aliados procura ser uma réplica dos Champs Elisées. Em 1891, C. Pezarat apresentou uma proposta para unir a Praça da Liberdade com a Praça da Trindade através de uma avenida-jardim. Porém, a Câmara Municipal dirigida por Elísio de Melo só aprova esse projecto em 1915: as obras iniciaram-se com a demolição do edifício da Câmara em 1916 e só ficaram concluídas em 1956, com a inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho. Durante esse longo período multiplicaram-se os Passeios Públicos, as avenidas, os jardins, as esplanadas abertas (Fontainhas, Virtudes e Massarelos), as alamedas e os espaços verdes. Os jardins da Cordoaria, do Palácio de Cristal e do Passeio Alegre (Foz) foram desenhados por E. David (alemão) em 1865. A alta burguesia portuense foi fixada numa área (1882) dotada de grande qualidade arquitectónica e monumental. Nos espaços abertos da Cidade Invicta que sonham arquitectónica e organizativamente para a frente, desabrochou a maior iniciativa cultural portuguesa: a "Renascença Portuguesa".
Esta visão política da arquitectura da cidade é compatível com a abordagem marxista mais ortodoxa que destaca o papel do sistema urbano na geração de lucro para o capital industrial: o capitalismo industrial tendeu a desmantelar toda a estrutura social da vida urbana e a assentá-la sobre a base impessoal do dinheiro e do lucro. A urbanização capitalista gerou, além da pobreza, da miséria e das desigualdades sociais e regionais, uma imensa teia de alienação obscura: o capitalismo molda tanto a forma e a organização das cidades como a consciência dos seus habitantes. À dimensão económica do urbanismo, Lefebvre acrescenta a dimensão ideológica: as desigualdades sociais e regionais geradas pelo capitalismo e encapsuladas nas cidades tendem a ser amplamente aceites ou ignoradas pelos cidadãos. O pensamento urbanístico contemporâneo é um pensamento aridamente tecnológico ou tecnomórfico, destituído de imaginação e de perspectiva utópica: os chamados especialistas do território produziram uma ideologia de adaptação que transforma os habitantes da cidade em seres apáticos, não-participativos, preguiçosos, frustrados, indiferentes e profundamente alienados da casa, do bairro e da cidade. Os seus projectos não só estão afastados da vida quotidiana, como também negam o espaço urbano aos seus utentes citadinos. Lefebvre procura formular uma teoria alternativa do urbanismo capaz de rasgar esse véu ideológico que ofusca uma compreensão clara e transparente da vida urbana, explicando a estruturação do espaço económico e social urbano pelos processos associados com a acumulação de capital. Qual é a alternativa proposta por Lefebvre para derrubar a alienação produzida pela urbanização capitalista? A restituição ao indivíduo do poder de decisão sobre o seu ambiente quotidiano: eis a resposta ingénua dada por Lefebvre. A arquitectura da cidade comporta uma prática específica, parcial e especializada, ligada à vida quotidiana, que realiza os espaços sociais adequados à estrutura da sociedade estabelecida e à sua reprodução. Esta orientação social imposta à arquitectura faz com que a sua prática oscile entre o esplendor monumental - os monumentos são lugares do poder, onde o fálico se une ao político e a verticalidade simboliza o poder, como mostra a arquitectura da Cidade Invicta - e o cinismo do habitat, forçando-a a contribuir activa e abertamente para a reprodução das relações sociais capitalistas. A arquitectura tem isolado - ao longo da história do homem - o espaço por meio de paredes, subtraindo-o à natureza, para o preencher com símbolos religiosos e políticos e com dispositivos técnicos que correspondam à ordem estabelecida. Porém, a arquitectura deveria produzir, pelo menos no nosso tempo, um espaço subtraído enquanto tal aos poderes vigentes, um espaço apropriado a relações sociais libertas dos constrangimentos da ordem capitalista: a restituição do poder de decisão aos cidadãos é vista como uma recuperação ou revitalização da vida quotidiana, mais precisamente como a sua libertação do espaço programado do Poder, dos seus dispositivos de vigilância e da sua repartição espacial da dominação.
A proposta de política urbana alternativa preconizada por Lefebvre enuncia-se numa única expressão: o direito à cidade. Este direito diz respeito a todos os habitantes enquanto sujeitos que se envolvem em interacções sociais dentro do quadro urbano e afirmam a exigência de uma presença activa e da sua participação. A base do direito à cidade não é contractual nem natural: ela relaciona-se directamente com um traço essencial do espaço urbano, a sua centralidade. Toda a realidade urbana possui um centro. Pouco importa que esse centro seja comercial, económico, financeiro, administrativo, técnico, simbólico, lúdico, informacional, comunicacional ou político; o importante é que não pode existir realidade urbana sem um centro: a centralidade revela a essência da dimensão urbana. A cidade é, segundo Lefebvre, "a forma do encontro e da conexão de todos os elementos da vida social, desde os frutos da terra até aos símbolos e às obras denominadas culturais. A dimensão urbana manifesta-se no próprio seio do processo negativo da dispersão, da segregação, como exigência de encontro, de reunificação, de informação". Na dialéctica da centralidade, a saturação conduz a outra centralidade, ao mesmo tempo que expulsa os elementos excedentários ou segregados do antigo centro para a periferia. O direito à cidade é o direito à centralidade, isto é, o direito a não ser convertido em periferia. Excluir grupos ou indivíduos do urbano é, em última análise, excluí-los da civilização ou mesmo da sociedade. A exclusão urbana é, pois, exclusão social. O direito à cidade legitima a recusa da exclusão urbana: a recusa de ser afastado da realidade urbana e da sua centralidade pela organização burocrática discriminatória. O direito à cidade é um direito de todos os cidadãos e, como direito dos homens à centralidade, não só anuncia a crise inevitável dos centros dominantes de decisão que, estando fundados na segregação e na discriminação, excluem os indivíduos ou os grupos estigmatizados que não participam nos privilégios políticos, fixando-os e isolando-os nas periferias, como também garante o direito ao encontro e à reunião: os lugares e os objectos urbanos devem responder à "necessidade" de vida social e de um centro, bem como às necessidades lúdicas e ao desejo. O direito à cidade visa constituir ou reconstituir uma unidade espaço-temporal, reconduzindo à unidade dialéctica aquilo que foi fragmentado e pulverizado pela urbanização capitalista.
Ora, para ser cumprido e realizado, o direito à cidade precisa ser objecto de conhecimento crítico das condições da sua realização. Como já vimos, a lógica económica da sociedade capitalista obedece a uma ideologia consumista, tosca e sem horizonte ou perspectiva futura: os cidadãos vivem alheados da vida urbana e dos seus centros de decisão. Os cidadãos devem tomar consciência dessa alienação para poderem assumir a tarefa da transformação urbana qualitativa, a qual exige como condição um forte crescimento da riqueza social. Dado desconfiar da intervenção do Estado - um Estado de classe, como diz Manuel Castells - neste processo de emancipação urbana e de transformação profunda das relações sociais, Lefebvre permanece prisioneiro da lógica económica que critica, porque, se não for o Estado - mesmo sendo um Estado de classe - a garantir essa criação de riqueza social tão necessária para a transformação urbana qualitativa, então esse papel compete à própria sociedade civil e à iniciativa privada. A centralidade é intrinsecamente conflitual: a centralização total reúne poder, riqueza e conhecimento numa zona territorial restrita, e a sua superação decorre da própria saturação do centro operada pela cidade capitalista que possibilitou a sua extensão espacial e a sua afirmação. A oportunidade de mudança social qualitativa depende da própria condensação social da cidade e das suas contradições internas, das quais a mais importante é talvez a contracção do espaço. A tendência para concentrar todos os centros de decisão numa zona territorial restringida suscita a escassez de espaço nessa zona. Embora não seja estranha às relações sociais de produção e de reprodução capitalistas, a penúria de espaço constitui uma contradição do espaço - uma contradição entre a abundância do passado histórico e a escassez do presente - que abre caminho a novas possibilidades sociais e históricas, em especial ao processo de apropriação individual e colectiva do espaço urbano que visa realizar uma sociedade emancipada e liberta da alienação. É certo que a noção lefebvriana de sociedade urbana enquanto sociedade aliviada do peso da repressão dos desejos instintivos do homem é ainda uma utopia, mas trata-se de uma utopia possível, no sentido de poder vir a ser realizada, tal como sucede momentaneamente nos períodos de tensão revolucionária ou na Festa do S. João do Porto e nas Celebrações das Vitórias do FCPorto, quando os cidadãos saem para as ruas, onde se entregam a práticas lúdicas e de socialização intensa, rompendo com as hierarquias sociais e sobrepondo o valor de uso do espaço urbano ao seu valor de troca. Porém, o capitalismo tem mostrado ser um sistema capaz de absorver as crises e de as usar como fases de racionalização e de adaptação, fazendo as suas "leis" conformarem-se a outros tipos de formação social. Lefebvre acreditava que a violência e as contradições sociais que acompanham o crescimento arrogante do capitalismo preparavam o caminho para a irrupção da sociedade urbana: a sua obra mais não é do que a renovação do projecto marxista de uma revolução da organização industrial, complementado com um projecto de revolução urbana. (CONTINUA com um novo título "Henri Lefebvre: A Produção do Espaço".)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 23 de junho de 2009

Prós e Contras: Portugal: Um novo turismo

Em directo das Minas de Sal-Gema, em Loulé, a 240 metros de profundidade e a 30 metros abaixo do nível do mar, Prós e Contras foi hoje (22 de Junho de 2009) dedicado ao turismo em Portugal. A grande questão - Que turismo queremos para Portugal? - foi debatida, entre muitos outros protagonistas do turismo português, por Manuel Pinho (Ministro da Economia), Pedro Almeida (ex-governante do PSD), José Carlos Pinto Coelho (empresário hoteleiro), Miguel Júdice (empresário hoteleiro), Rafael Anson (Presidente da Real Academia Española de Gastronomía) e Jean-Claude Baumgarten (Presidente do World Travel & Tourism Council).
Manuel Pinho expôs a concepção holística do turismo protagonizada e implementada pelo governo socialista. O holismo é qualquer abordagem de um fenómeno que procura estudá-lo no seu todo e controlá-lo como um todo, através de determinados métodos e procedimentos. Aplicado ao planeamento do turismo, o holismo recusa reduzir o turismo à comida, ou seja, "ao comer e ao beber", "à barriga e à boca", enfim, à gastronomia, como pareceu fazer Rafael Anson: o turismo deve ser encarado como um fenómeno social total (Marcel Mauss) e estudado e planeado nos seus diversos níveis, desde a formação de profissionais e a criação de escolas de hotelaria de qualidade, até à gastronomia, hotelaria, restauração, arquitectura, património, reabilitação urbana, requalificação da gastronomia tradicional portuguesa e cultura, passando pela facilitação dos acessos a Portugal e pela promoção internacional da marca de Portugal (Made in Portugal). A crise económica e financeira produziu uma queda de 8% do turismo português, um valor muito inferior ao sofrido por outros países europeus, incluindo Espanha. Manuel Pinho explicou este fraco efeito da crise sobre o turismo português pela aposta realizada no turismo de qualidade ou de topo, em detrimento do turismo de massas, e pela estabilidade governativa e das suas políticas de turismo. Um factor que contribuiu para a criação e a implementação da política do turismo foi a estabilidade. Antes deste governo socialista, nunca houve uma política do turismo: a maioria absoluta do PS garantiu a estabilidade necessária para definir os objectivos estratégicos do turismo português. O turismo de qualidade que distingue Portugal de Espanha ou da Turquia contou com os apoios dados pelo governo aos diversos sectores do turismo, a "rapidez na acção" e a criação de acessos. "Determinação, visão e ambição" são as palavras de ordem do governo socialista e do ministro da economia.
Alguns dos empresários do turismo - tais como Pedro Lopes, Jorge Rebelo Almeida e Mário Ferreira (empresário do Porto) - confirmaram a eficácia do governo socialista: o turismo português cavalga uma "onda positiva" (Rebelo Almeida) e as "curvas do Douro" (Mário Ferreira) seduzem turistas americanos, ingleses, nórdicos e australianos. O Douro é, de facto, a melhor marca do turismo português de qualidade: não se trata apenas de enoturismo - as rotas do vinho do Porto e as vinhas que sulcam as encostas do rio Douro -, mas fundamentalmente de um novo tipo de turismo paisagístico, histórico e cultural (autarca de Baião), aliás muito apreciado pelos japoneses ou pelos chineses e pelos turistas mais inteligentes. A marca Douro deve ser fortemente apoiada pelo governo, porque é na imensa e sublime rota do vinho do Porto que culmina na cidade do Porto e nas caves de Gaia que reside o maior património cultural, histórico e natural português: um património genuíno, distinto, egrégio e ímpar que articula numa figura dialéctica serena azul anímica - paisagem, literatura, filosofia, arte, gastronomia, saúde e estados intensos de consciência cósmica. O turismo do Douro com epicentro na Cidade Invicta - Porto - constitui a melhor aposta que o turismo português pode fazer depois da crise económica, não só porque possibilita o desenvolvimento económico e cultural de três distritos (Porto, Vila Real e Viseu), mas também porque é a região com mais potencialidades para promover um turismo de qualidade: o Douro é património histórico, cultural e paisagístico e é por isso que atraí turistas exigentes e inteligentes, não turistas de tanga que invadem as praias portuguesas em busca de sensações massificadas e embrutecidas que alimentam os noticiários nacionais e mundiais, dando uma má imagem de Portugal. Turismo do Douro, turismo do Porto Património Mundial da Cultura, abre portas a um novo modelo de turismo - o turismo de alta qualidade procurado pelo sector elitista dos turistas exigentes.
Apesar do consenso alcançado por todos os convidados presentes quanto à racionalidade e ao sucesso das políticas governamentais, dois deles - Pinto Coelho e Pedro Almeida - tentaram, como seria de esperar, introduzir alguma dúvida e inquietação. Pinto Coelho teceu um discurso lamentável e contrário ao interesse nacional. Queixou-se dos "encargos fixos", criticou as grandes obras públicas, embora tenha defendido a construção da linha de alta velocidade (TGV) que ligará Lisboa a Madrid, precisamente aquela que será menos lucrativa e estrategicamente menos interessante, já que dará maior centralidade à capital de Espanha, pediu mais ajudas financeiras ao Estado, procurando intimidar e ameaçar o governo com o problema do desemprego, e incentivou a "paragem" do turismo por causa da crise económica. "Parar para observar": eis as suas palavras! Manuel Pinho demarcou-se claramente destas posições negativistas e oportunistas: o turismo "não pode parar", os agentes do turismo devem continuar a agir de modo a conquistar novos mercados, tal como faz Mário Ferreira, e o país não precisa de mais estudos, mas sim de "mais acção". A alta velocidade é fundamental para o futuro de Portugal, até porque permite combater a nossa periferia e dinamizar os nossos contactos económicos e culturais, sobretudo através das ligações de alta velocidade Lisboa-Porto-Vigo ou Aveiro-Salamanca, sem contribuir para a centralidade madrilena. Portugal está cansado de empresários deste tipo pedinte que vivem na dependência do Estado até mesmo para realizar as suas mais-valias. Requalificar o património e os centros urbanos é uma tarefa nacional fundamental, não só para cativar mais turistas, mas sobretudo para promover o desenvolvimento económico e cultural de Portugal. No entanto, os nossos empresários não contribuem para essa tarefa nacional: os edifícios que mandam construir - com excepção dos seus luxos privados - são uma vergonha nacional e degradam o nosso património histórico e arquitectónico. Esta atitude vergonhosa dos nossos empresários egoístas e negativistas contrasta com a atitude orgulhosa dos empresários estrangeiros. As sedes das grandes empresas ou dos bancos em New York ou Londres são edifícios que fazem história na arquitectura: o património não é apenas a monumentalidade do passado que, em Portugal, é desprezada a favor de construções periféricas destituídas de qualidade estética e urbanística, mas também a cidade do futuro. Os empresários nacionais tendem a ser absolutamente avessos à cultura, ao pensamento e à história: a sua acção e influência desqualificam Portugal e bloqueiam o progresso, até porque querem gozar de benefícios fiscais (e outros mais estranhos), sem os partilhar com os seus empregados que são mal pagos. Enfim, muitos empresários nacionais querem aumentar as suas mais-valias à custa do empobrecimento dos contribuintes, da exploração dos seus empregados e da miséria nacional!
Um acontecimento criou algumas sombras negras neste debate: uma agência mundial de turismo de qualidade retirou-se de Lisboa, porque considera que a capital portuguesa não obedece aos critérios elevados desse modelo de turismo. Ora, as razões que levaram a tal desqualificação de Lisboa não se prendem ao seu valor arquitectónico inegável, mas talvez a outra variável que merece ser pensada. Miguel Júdice afirmou que "Portugal precisa vestir uma mini-saia" para se tornar "mais sexy e atraente". Pedro Almeida apelou ao turismo gerador de sensações e de experiências cómodas, um conceito que parece seduzir os militantes e os dirigentes do PSD, apesar de ter sido desmentido pela praxis turística. Embora tenha ficado claramente chocado e frustrado com a experiência fracassada em directo de elaborar um "sorvete de laranjas do Algarve", Rafael Anson reconheceu que Portugal tem tudo para ser um sucesso turístico, incluindo a sua gastronomia tradicional única e "fantástica", aliás muito superior à gastronomia espanhola, mas "não sabe comunicar". Destas três sugestões excluo a de Pedro Almeida, porque penso que o turismo das sensações é o modelo que tem predominado nas praias do Algarve ou da Costa Vicentina, onde todos andam de mini-saia ou simplesmente nus sem trazer a Portugal uma mais-valia de mundo. Uma agente de turismo insurgiu-se contra a tese de Miguel Júdice, mas penso que ela abre a porta à tal variável que merece ser pensada. Interpretada literalmente, a tese da mini-saia não se refere tanto ao património português - cultural e paisagístico -, mas sobretudo aos próprios portugueses. Nas praias turísticas, os portugueses desnudam-se, mostrando os seus corpos pouco atractivos e quase sempre deformados por acumulações inestéticas de obesidade. Se andassem todo o ano de mini-saia, as pernas portuguesas exibidas afugentariam os turistas. Porém, o que está em causa não é o corpo, mas sim a maneira de estar-no-mundo dos portugueses: os portugueses não "são hospitaleiros" (Júdice) no sentido de serem destituídos de níveis razoáveis de inteligência cognitiva, emocional e social. Este défice generalizado de inteligência ajuda a compreender o fracasso da comunicação (Anson): os portugueses carecem de sensibilidade estética e cultural, e não sabem comunicar e cativar os turistas, mantendo com eles um diálogo produtivo e fecundo. Como pessoas humanas, os portugueses não têm nada para oferecer, excepto uma dose terrível de indigência cognitiva e de miséria corporal. Com a reformulação cognitiva e antropológica da tese da mini-saia, retomo um problema que me preocupa: o fracasso total e absoluto da educação em Portugal depois do 25 de Abril. O problema do turismo português está ligado à regressão cognitiva dos portugueses. De certo modo, Manuel Pinho e o governo reconhecem isso quando falam nos "erros governativos" cometidos nos domínios da educação e da cultura. O turismo cultural de qualidade exige não só a reabilitação das cidades - políticas diferenciais das cidades, mas também a introdução de rigor e de verdade nos sistemas de ensino e de educação. Precisamos apostar mais em nós mesmos para sermos mais atractivos aos olhos estrangeiros. Esta aposta antropológica e cultural em nós depende da reforma profunda da educação e só será verdadeiramente vencida quando tivermos eliminado os vícios de funcionamento interno, a corrupção e as teias de amigos - contactáveis por via do telemóvel-fetiche. Portugal precisa urgentemente de uma revolução cultural profunda e de renovação total das suas figuras públicas: a mudança radical de protagonistas é a única maneira de afastar os incompetentes dos centros de decisão nacional e de colocar Portugal no caminho do futuro. (As fotos foram tiradas de sites institucionais: as duas primeiras mostram a paisagem da cidade do Porto, as suas pontes e a Ribeira, e o última mostra a vinha algures na encosta do rio Douro.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 20 de junho de 2009

Henri Lefebvre: Crítica do Urbanismo (1)

«A sociedade urbana nasce sobre as ruínas da cidade». (Henri Lefebvre)

A hipótese que guia os estudos de Henri Lefebvre sobre o fenómeno urbano e a nova racionalidade urbana é muito simples: a história da sociedade mais não é do que um movimento para a sua progressiva urbanização, de resto impulsionada pela industrialização. A urbanização completa da sociedade constitui um objecto digno de análise científica e, ao mesmo tempo, o objectivo primordial de uma nova praxis política. As dimensões temporal e espacial do fenómeno urbano são estudadas mediante a articulação diacrónica da sequência dialéctica de três épocas da história social - a agrícola, a industrial e a urbana - e dos tipos históricos de cidade. O primeiro tipo de cidade depende do poder que actua como uma entidade estranha e hostil ao mercado. A cidade política (1) é marcada pela heterotopia do mercado e dos grupos sociais que praticam a arte do comércio. Num determinado momento de ruptura, o mercado vence o fórum público e a cidade política é suplantada pela cidade comercial (2): o espaço de encontro de pessoas e de coisas, ou melhor, o lugar da troca que se tornou a função urbana por excelência. A cidade comercial deixa de estar isolada do território exterior, subordina a si todo o território que a circunda, incluindo o campo, e rompe a relação directa que unia o homem à natureza. Surge uma nova forma social que, com a transformação do capital comercial em capital industrial, cede o lugar à cidade industrial (3): a indústria situa-se perto das fontes de energia e, por isso, é parcialmente indiferente à cidade, usando-a como um instrumento que submete ao seu próprio desenvolvimento. O corporativismo da cidade comercial não resiste ao choque da industrialização: a indústria representa a anti-cidade que invade todo o espaço urbano até o fazer estalar. Depois da industrialização, o crescimento extensivo da cidade e a proliferação do espaço urbano - o tecido urbano - conduzem à dissolução da cidade: as periferias, os subúrbios e as cidades satélites representam o espaço material concreto de uma nova fase histórica - a era da sociedade urbana (4) preparada pela cidade industrial. Com a elaboração do conceito de sociedade urbana dotado de uma dimensão planetária, Lefebvre começa a afastar-se das análises de Marx, Engels e Weber: a industrialização produziu, após um certo crescimento, a urbanização integral que já não pode ser reduzida à questão do alojamento ou da habitação estudada por Engels. A crise da cidade é mundial e implica toda a sociedade numa crise de transformação crítica: a própria indústria é submetida à urbanização que provocou e a explosão/implosão da cidade levará à revolução urbana e esta desembocará na nova era do urbano e do fim da história.
O esboço de Lefebvre da evolução da cidade através do tempo histórico contrasta com a visão mais pessimista e quase kafkiana apresentada por Lewis Mumford que retoma a interpretação de Patrick Geddes do ciclo urbano de crescimento da aldeia (eópolis) à megalópolis e à necrópolis: "(O) mundo metropolitano é, portanto, um mundo onde a carne e o sangue são menos reais do que o papel, a tinta e o celulóide. É um mundo em que as grandes massas humanas, incapazes de ter contacto directo com meios de vida mais satisfatórios, passam a viver por procuração, ora como leitores, ora como espectadores, ora como observadores passivos. Assim vivendo, ano após ano, de segunda mão, desligados da natureza que está fora deles e não menos desligados da natureza íntima, não admira que se afastem cada vez mais das funções da vida, até mesmo do pensamento, para as máquinas que os seus inventores criaram. Neste ambiente desordenado, apenas as máquinas têm uma parte dos atributos da vida, ao passo que os seres humanos são progressivamente reduzidos a um feixe de reflexos, sem impulso próprio de saída nem meta autónoma: o homem behaviorista" (L. Mumford). A crítica da vida quotidiana de Lefebvre tinha mostrado que a exploração do homem pelo homem, a heterodirecção e a apatia política constituíam aspectos endémicos da vida quotidiana dos habitantes da metrópole: as condições da urbanização capitalista mutilam a personalidade, inibem a formação comunitária, minam a ocupação e o envolvimento sociais e conduzem à apatia, à alienação, à ilegalidade e à criminalidade. Como resultado da segregação social e de outros mecanismos de manipulação e de controle, os indivíduos das metrópoles afastam-se uns dos outros no espaço e, deste afastamento, resulta a dissolução das relações sociais. Num estudo empírico de uma pequena cidade denominada Middletown, Robert Lynd & Helen Lynd observaram uma apatia política idêntica à exibida pelos habitantes das grandes cidades: indiferença generalizada e fraca propensão para as responsabilidades públicas. Além disso, a corrupção política em si não afectava os cidadãos de Middletown. Para eles, a política local era um jogo da trapaça e, por isso, recusavam entrar no jogo das autoridades municipais e dos magistrados locais. Os teóricos do urbanismo estão de acordo quando afirmam que o destino do mundo ocidental tem sido o empobrecimento da vida pública, a falta de participação na vida política, a intelectualização e a racionalização impulsionadas pela economia monetária e o desencantamento do mundo. No entanto, os marxistas que recorreram ao conceito de hegemonia de Gramsci tendem a destacar o papel das cidades como "centros de dominação" da burguesia (Frank), esquecendo que o espaço urbano também promove experiências intensificadas de individualidade, a diferença e a liberdade, como mostraram Baudelaire, Edgar Poe, Benjamin e Simmel. A grande cidade é vista como o lar da burguesia nacional, regional ou internacional, cujos elos e alianças fortalecem a cadeia da expropriação do território satélite para a metrópole dominante, ao mesmo tempo que inibem a consciência de classe dos oprimidos e explorados, desviando-os da sua missão histórica: lutar por um mundo melhor. Por isso, Fromm, Marcuse, Mills, A.G. Frank e Fannon não vêem na urbanização uma condição indispensável para a transformação qualitativa da sociedade. Ciente das contradições profundas da vida urbana, Lefebvre vai noutra direcção: Marx e Engels possibilitam uma interpretação correcta da problemática urbana, até porque Marx valorizou de modo implícito a cidade como sujeito da história; a cidade não só permitiu o surgimento do capitalismo (Pirenne), como também facilitou a divisão do trabalho. A cidade é simultaneamente produto e produtora, no sentido de permitir e facilitar a acumulação e a circulação do capital. A cidade capitalista que cresceu extensivamente à escala planetária transporta no seu seio as sementes da sua negação: a cidade do capital anulou as diferenças entre cidade e campo e, da sua dissolução, resultará a afirmação do urbano. A sociedade urbana - ainda virtual - será, na perspectiva de Lefebvre, uma sociedade socialista democrática ou associativa.
O conceito de sociedade urbana e a sua realidade compreendem um conjunto de problemas - a problemática urbana, que exige uma nova teoria capaz de a dominar e de uma praxis urbana capaz de a orientar. A estratégia urbana que reconcilia conhecimento crítico e praxis permite desvelar a ordem que se esconde na desordem urbana, mas, para atingir essa inteligibilidade, deve proceder à crítica das diversas versões da ideologia urbanística e romper com as abordagens fragmentárias do fenómeno urbano. Henri Lefebvre procurou elaborar, ao longo de diversas obras dedicadas à questão urbana, uma filosofia do urbano e não uma mera sociologia urbana, trabalhando as diferenças que distinguem a sua teoria das teorias fragmentárias, tais como a funcionalista, a de Spengler, a de Tönnies, a de Simmel, a de Weber e a de Wirth, ou mesmo a de certos marxistas, tais como Fromm, Marcuse, Mills e Fannon. Cada um dos teóricos do urbanismo teve (e tem) o seu modelo de cidade ideal: a cidade medieval serviu de modelo à solidariedade orgânica (Durkheim), à fusão da vida pública e da vida privada (Weber) ou à organização comunitária (Tönnies). Ora, segundo Lefebvre, estes modelos que anseiam pelo retorno à antiga comunidade citadina grega ou medieval, bem como os modelos que pretendem optimizar a industrialização e as suas consequências ou que deploram a alienação da sociedade industrial, constituem meras variantes da ideologia urbanística. Para pensar o urbano na sua totalidade não-fragmentada em movimento e transformá-lo, Lefebvre ajusta o conhecimento e a praxis política numa única estratégia - a estratégia urbana, com o recurso à utopia e à imaginação. A estratégia do conhecimento visa a crítica radical do urbanismo, da sua ambiguidade e das suas contradições, tendo como objectivo primordial a elaboração de uma ciência do fenómeno urbano, enquanto a estratégia política procura colocar a problemática urbana na vida política ou, pelo menos, na agenda política, de modo a defender a auto-gestão generalizada e o direito à cidade: a sociedade urbana do futuro - a realidade urbana integral como receptáculo do valor de uso, gérmen de um predomínio virtual e de uma revalorização do uso - concretizará o domínio da liberdade e a afirmação de um novo humanismo, através da conversão da vida quotidiana na cidade em obra, apropriação e valor de uso. A cidade entendida como centralidade tem sido degradada e destruída pelo capitalismo, e esta degradação urbana deve-se fundamentalmente ao conflito entre o valor de uso e o valor de troca. A cidade e a realidade urbana sempre dependeram e dependem do valor de uso, mas o domínio do valor de troca e a generalização da mercadoria produzidos pela industrialização tendem a destruir, subordinando-as, a cidade e a realidade urbana: a degradação da estrutura social da cidade deve-se não só à busca privada de lucro e à especulação imobiliária, mas também ao entendimento analítico que uniformiza e reduz a cidade a uma mera adição de elementos unifuncionais, sem levar em conta nas suas projecções o carácter afuncional do urbano, isto é, a confrontação e o contraste entre o funcional e o gratuito. O urbano é, para Lefebvre, o resultado da combinação de três traços interligados: o transfuncional - representado pelos monumentos, expressão da criatividade colectiva e da tensão utopista da cidade, o multifuncional - expresso pelas ruas e outras artérias, os fundamentos da sociabilidade e do teatro espontâneo, e o lúdico - o momento omnipresente e difundido no espaço urbano para além do tempo e do comportamento recreativo pós-laborais. O entendimento analítico de tipo funcionalista ou racionalista mina o substrato da espontaneidade social, sem o qual as estruturas arquitectónicas e urbanísticas projectadas e construídas perdem o valor recreativo, gratuito e lúdico que caracteriza essencialmente o urbano. A linguagem da arquitectura pós-moderna (Charles Jencks) exemplifica facilmente não tanto a morte da arquitectura moderna que morreu em St. Louis, Missouri, no dia 15 de Julho de 1972, às 3.32 da tarde, quando os módulos do projecto Pruitt-Igoe foram dinamitados, mas a contracção do espaço lúdico-urbano - o palco da espontaneidade social, levada ao extremo com a terrível invenção dos condomínios fechados e dos grandes centros comerciais que roubam vida, animação, comércio ou mesmo segurança às ruas nocturnas das baixas das grandes cidades (Cf. Michel de Certeau, Luce Giard, Pierre Mayol).
Na actual situação de desordem urbana, o espaço perdeu o seu carácter de indiferença, o qual derivava da sua função residual de mero contentor de objectos produzidos pelo sistema industrial: a cidade-exposição, a cidade das galerias de Baudelaire e de Benjamin, que, em Portugal, deixou marca nos projectos das galerias da cidade do Porto e no seu Palácio de Cristal. O desenvolvimento social das forças produtivas determina a produção social do espaço, aliás um facto histórico antigo: as classes dominantes - as actuais classes dirigentes - plasmaram sempre o seu espaço urbano, com o objectivo de exercer um controle político eficaz sobre as classes dominadas. Mas o desenvolvimento capitalista das forças produtivas usa actualmente o espaço para produzir mais-valias. O capitalismo apropriou-se das cidades históricas, manipulando-as em função das suas própria exigências económicas, políticas e culturais e transformando-as em centros de decisões e de benefícios privados: o espaço urbano - vias de comunicação e edifícios - é objecto não só da especulação imobiliária, como também do consumo produtivo que emprega uma grande quantidade de força de trabalho. A nova estratégia do capital revela-se no tipo de expansão irracional, desordenada e caótica do tecido urbano: os arredores e as periferias que se multiplicam em torno dos centros históricos possuem uma baixa composição orgânica de capital e, por isso, promovem a formação de mais-valias chorudas. Para Lefebvre, o urbanismo que preside a esta formação e divisão do espaço urbano é uma ideologia manipuladora que encobre essa nova estratégia do capital, dissimulando a sua finalidade real. A acção urbanística projectada e planeada oprime os utentes da cidade, esquece as suas necessidades sociais, e, dado ser vítima do fetichismo do espaço, ilude-se quando cria espaço, com o pretenso objectivo de controlar cada vez melhor a qualidade de vida e de produzir novas relações sociais entre os habitantes da cidade. A "mitologia do arquitecto" (Cf. Aldo Rossi, Leonardo Benevolo) usada para dissimular a sua função real acaba por revelar o carácter de classe do urbanismo ou os interesses que o movem: as obras arquitectónicas e urbanísticas limitam efectivamente a prática do valor de uso. O uso foi reduzido em todo o território pelo desenvolvimento do valor de troca e do mundo das mercadorias. O urbanismo mais não é do que a superstrutura ideológica da sociedade tecnoburocrática de consumo dirigido, que organiza o espaço habitado à luz de uma racionalidade que afirma a neutralidade de um espaço que é, em última análise, espaço político. O espaço adquire um valor de troca e converte-se em mercadoria que, tal como outras mercadorias, bens e serviços, pode ser trocada no mercado: os lugares adquirem um preço que se relaciona directamente com o seu custo-tempo de produção. A projecção de habitações, a construção de edifícios ou mesmo outras escalas da organização do território - infraestruturas, auto-estradas, serviços públicos, ambientes naturais -, obedecem à mesma economia política do espaço, cujo plano geral diz obedecer a exigências técnicas quando, na verdade, está ao serviço do capital. Prisioneiros deste plano geral, os arquitectos e os urbanistas são meros funcionários de um sistema burocrático, obrigados a reduzir a realidade que pretendem representar à imagem dominante - e superiormente imposta - do habitat. Os habitantes das cidades não escapam a este controle central e, como seres reduzidos a corpos segregados, deslocados e condensados, são forçados a viver em nome de uma quantificação racional que é, em última instância, económica e financeira. (CONTINUA com o título "Henri Lefebvre: Crítica do Urbanismo 2".)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Hieronymus Bosch: A Fábrica dos Monstros

Painel central do tríptico "As Tentações de Santo Antão" de Hieronymus Bosch, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Bosch morreu em 1516, deixando-nos um legado de figuras que nunca foram vistas pelos olhos humanos. A originalidade artística de Bosch não consiste em combinar partes de animais e de humanos, mas na sua fusão para gerar novas criaturas. Nos "Jardins das Delícias", Bosch exibe a sua criatura mais fantástica: uma cabeça de homem enxertada numa casca de ovo quebrada, que, por sua vez, se liga a duas pernas que são troncos de árvores com raízes lançadas em dois barcos. Apesar do mal e, em especial, da luxúria assumirem diversas formas nas suas pinturas, Bosch não mostrou interesse no Diabo, como mostra o seu tratamento do tema dos anjos rebeldes ("A Queda dos Anjos Rebeldes"): os anjos em queda são semelhantes a peixes e ratos voadores e o Inferno onde caiem não é feito de chamas, mas habitado por duas cabeças sem corpos que rastejam com os seus pés. No "Juízo Final" de Bosch, a expulsão dos anjos rebeldes assemelha-se a uma tempestade de areia pelo movimento, cor e textura, e, no "Cristo Coroado de Espinhos", o conflito entre diabos e anjos é eclipsado pela composição central do Cristo torturado. Para Bosch, não existe conflito entre o bem e o mal: o seu Cristo e os seus santos habitam outro mundo completamente distinto do mundo da luxúria, resguardado e protegido das tentações, perversidades e torturas e, no "Juízo Final" de Viena, a corte celestial é constituída pela Virgem, João Baptista e doze figuras que parecem ser os apóstolos. Na visão quase onírica de Bosch, os humanos são quase todos pecadores e tolos que habitam um mundo carnal. A bondade não tem existência nesse mundo real habitado por pecadores: os sete pecados espreitam em todos os lugares do mundo carnal e, como são vistos por Deus, serão punidos de modo severo. A preocupação com a maldade humana real domina completamente a pintura de Bosch. O tríptico comprado por Filipe II, rei de Espanha, mostra as legiões do mal que invadem o mundo, dando forma concreta e tangível aos medos que capturaram o espírito do homem no fim da Idade Média: o painel da esquerda mostra a criação de Eva, a tentação de Adão e a sua expulsão do Paraíso. No topo, os anjos rebeldes são expulsos violentamente do Céu como um enxame repugnante de insectos. O painel da direita exibe uma visão do Inferno que mais parece o mundo carnal, onde todos os tipos de demónios pavorosos, meio animais, meio humanos ou mesmo máquinas, flagelam, fustigam e castigam as almas pecadoras ou, mais exactamente, os corpos humanos corruptos.
O imaginário de Bosch é quase onírico e, numa antecipação genial, surrealista: a sua fábrica de monstros gera continuamente criaturas fantásticas que povoam densamente as suas pinturas. O que significam esses monstros? Em termos genéricos, um monstro é definido em relação à norma ou, simplesmente, ao tipo ideal, que, segundo Aristóteles, é a reprodução idêntica, mediante a qual o filho é semelhante ao pai. Quanto maior for a distância do modelo, maior será a imperfeição da "criatura", que, no ponto mais afastado, deixa de ter a aparência humana e passa a ser um monstro. O monstro é um "ser diferente", ou melhor, um desvio à norma: a monstruosidade constitui um fenómeno que se opõe à "generalidade dos casos", sem no entanto questionar a ordem universal da natureza (Aristóteles) ou pôr em dúvida o bom fundamento e a perfeição da criação (Santo Agostinho). Embora tenha excluído o ponto de vista finalista e tipológico, a genética evolutiva e molecular não se afasta muito de Aristóteles quando define o monstro como uma excepção ao destino comum da combinatória genética. Ambas as teratologias - a aristotélica e a médico-genética - estão preocupadas com as causas das anomalias e das malformações observadas em todos os níveis da natureza viva. Porém, a Idade Média viu preferencialmente os monstros como reproduções defeituosas dos modelos. A concepção de monstro - monstrum - varia muito de sentido no decorrer da Idade Média, mas no seu outono as noções de monstruoso e de demoníaco estão de tal modo ligadas que é praticamente impossível distingui-las: o contingente diabólico substitui o monstro cosmológico e implanta-se no mundo, modelando-o em tons sombrios e pessimistas. O monstro-diabólico coloca questões para as quais a Idade Média não tinha respostas, vacilando intermitentemente entre a necessidade de explicar a desordem representada pelo monstro e a necessidade de crer no postulado de que a natureza, como obra de Deus, só pode ser perfeita e organizada segundo uma disposição imperturbável. O segredo é propriedade de Deus, o único Senhor de todas as criaturas, incluindo os monstros. Quando confrontado com os monstros, o homem está diante do sentido misterioso, oculto e admirável, da manifestação do poder divino (Mandeville): como sinal divino, o monstro é prodígio, no sentido de constituir um aviso prévio de acontecimentos futuros, cujo sentido oculto desafia a interpretação ou mesmo a adivinhação. Deus criou o mundo segundo uma determinada ordem ou norma que nunca abandona, a não ser que queira anunciar algo oculto e deveras importante. A ruptura do curso normal da natureza desencadeia no homem o sentimento de horror, que se intensifica à medida que a Idade Média se torna cada vez mais sombria.
A eclosão de monstros funciona no imaginário de Bosch como indicador figurativo da irrupção real de elementos de uma nova ordem social dentro da ordem moribunda: as figuras fantásticas de Bosch são seres mutagénicos que subvertem internamente a iconografia cristã dominante. Enquanto o inventário completo e exaustivo das figuras não estiver feito, com a ajuda de programas de computador, não podemos decifrar todo esse imaginário fantástico. No entanto, a reunião de dois corpos num só corpo revela que a sua individualidade se encontra na própria fusão: um dos corpos dá vida - o corpo mãe, enquanto o outro ameaça parar. Isto significa que a pintura de Bosch configura uma nova concepção do corpo: o corpo é aberto e incompleto e, como não está claramente delimitado do mundo, mistura-se com o mundo, onde se confunde com os outros, os animais, as plantas, as coisas, os elementos, a terra, a arquitectura e as máquinas. É um corpo cósmico que representa e encarna o conjunto de todo o universo material e corporal, concebido como o inferior absoluto, como um princípio que absorve e dá luz, como um sepulcro e um seio corporais, como um campo lavrado e semeado que começa a germinar.
Ora, a concepção do corpo explicitada nas pinturas de Bosch deriva da filosofia humanista do Renascimento, nomeadamente da filosofia italiana que concebeu a ideia fundamental de microcosmos: o corpo humano era visto como um princípio susceptível de efectuar a destruição do quadro hierárquico do mundo medieval e de criar um novo quadro. A filosofia renascentista operou a desagregação do cosmos hierárquico medieval, em especial a sua gradação dos valores no espaço, mediante a qual aos graus espaciais no sentido de baixo para cima correspondiam os graus de valor, colocando todos os seus elementos no mesmo plano: o alto e o baixo foram relativizados e a ênfase deslocou-se para as noções de frente e atrás. Esta substituição do vertical pelo horizontal, acompanhada pela intensificação do factor tempo, realizou-se em torno do corpo humano: o corpo tornou-se assim o centro de um cosmos que, em vez de se mover de baixo para cima, se move para a frente sobre a horizontal do tempo, do passado para o futuro, o que possibilita ao homem carnal afirmar o seu valor fora da hierarquia do cosmos. Pico della Mirandola defendeu - na sua Oratio de Hominis Dignitate - a tese de que o homem é superior a todas as outras criaturas, incluindo os espíritos celestes, porque não é somente existência mas também e essencialmente futuro. A noção de hierarquia refere-se única e exclusivamente à existência estável, firme, imóvel e imutável: as criaturas não se alteram desde o nascimento, porque a sua natureza foi criada completa, acabada e imutável. Ora, o livre devir que caracteriza o homem escapa à noção de hierarquia: o homem não recebeu uma única semente - como sucede com as criaturas -, mas as sementes de todas a vidas possíveis. De modo qualitativamente diferente da natureza das outras criaturas condenadas a desenvolver-se na única semente que receberam, o homem pode escolher a semente que desenvolverá, cuidando dos seus frutos e fazendo-os desabrochar dentro de si. Isto significa que o homem pode tornar-se simultaneamente vegetal e animal ou mesmo anjo e filho de Deus. O seu corpo reúne em si todos os elementos e todos os reinos da natureza: a existência de múltiplas sementes e possibilidades e a liberdade de escolha colocam o homem fora da hierarquia, ou seja, sobre a horizontal do tempo e do devir histórico. Para Pico della Mirandola, o homem não é algo fechado e acabado; pelo contrário, o homem é um ser inacabado e aberto.
A filosofia humanista do Renascimento é atravessada por duas tendências teóricas: uma tendência deseja descobrir no homem todo o universo, com os seus elementos naturais e as suas forças, o seu alto e o seu baixo, enquanto a outra linha de pesquisa procura esse universo no corpo humano que aproxima e une no seu seio os fenómenos e as forças mais distantes do cosmos. O imaginário de Bosch filia-se nesta segunda tendência subterrânea do Renascimento, a qual exprime a nova sensação do cosmos como a habitação familiar do homem. Pintado e visto como habitação do homem, o novo cosmos tal como emerge nas pinturas de Bosch, em tensão dialéctica com o mundo medieval, retoma as ideias - aliás muito difundidas no Renascimento - da magia natural, da simpatia e da astrologia, as quais ajudaram Giordano Bruno e Campanella a destruir o quadro do mundo medieval. Pico della Mirandola deu particular ênfase ao motivo do microcosmos sob a forma da simpatia mundial, de resto levada a cabo pelos Descobrimentos Portugueses que possibilitaram que todos os membros da humanidade entrassem em contacto real e efectivo uns com os outros, de modo a tornar a humanidade una e única: o homem pode finalmente reunir em si o superior e o inferior, o longínquo e o próximo, e sondar os mistérios escondidos nas profundezas da terra. O imaginário mágico de Bosch reúne o que o universo medieval tinha dissociado, apagando as fronteiras maltraçadas entre os fenómenos e transpondo a diversidade infinita do mundo para a superfície horizontal única do cosmos em devir. Marcilio Ficino introduziu a animação universal para mostrar que o cosmos não era um mero agregado de elementos mortos, mas um ser animado: cada uma das suas partes constitui um órgão do todo. A biologização do mundo é consumada pela teoria da natureza de Cardano: todos os fenómenos são vistos como análogos das formas orgânicas, incluindo os metais que são as sepulturas das plantas e que percorrem uma evolução semelhante à evolução orgânica, com uma juventude, uma adolescência e uma idade madura. Esta visão animada do mundo - recentemente retomada pela Hipótese Gaia de James Lovelock e Lynn Margulis - impregna as pinturas de Bosch, onde todos os fenómenos se dirigem para a superfície horizontal única do mundo em estado de mudança, de modo a descobrir novos lugares, a atar novos laços, e a criar novas vizinhanças. Mas no centro deste reagrupamento fenoménico está o corpo humano que alberga no seu interior a diversidade do universo. O corpo humano é matéria criadora destinada a organizar toda a matéria cósmica, cujo movimento no tempo biológico e histórico é garantido pelo nascimento de gerações incessantemente renovadas. Neste novo cosmos, cada ser humano pode fazer parte do povo imortal: aquele que inova e cria história, resistindo às tentações contrárias às forças da mudança social qualitativa.
As pinturas de Bosch são representações assustadoras das forças do mal ou, mais precisamente, de monstros, e foram interpretadas pelos críticos imbuídos de espírito científico como expressões de uma mente patológica ou, pelo menos, de uma mente sujeita ao uso de alucinógenos. Além de não apreenderem a riqueza imaginativa de uma época - o fim da Idade Média ou as dores de parto do mundo moderno, estas leituras deixam escapar a própria riqueza criadora do psiquismo humano, sobretudo da dialéctica entre a angústia e o desejo. O monstro é produto de funções mentais partilhadas pelos humanos de todas as épocas, culturas e idades e, por isso, desempenha uma função natural no seu psiquismo. Ao desvalorizar a imaginação como faculdade cognitiva, a tecnociência revela o seu elemento ideológico: a apologia do status quo e a promoção da dimensão adaptativa do homem em detrimento do princípio da possibilidade histórica. Bosch pintou a colisão de dois mundos durante o período da sua coexistência quase sincrónica: os seus monstros são figuras utópicas que emergem num mundo prenhe de vida ainda-não-nascida contra as figuras ideológicas do imaginário medieval. É certo que os demónios da mudança que se mostram e se de-monstram nas pinturas de Bosch assustam, mas não assustam todos os indivíduos: assustam e aterrorizam apenas os indivíduos instalados e satisfeitos com as ordens do mundo hierárquico medieval. Os monstros boschianos são demónios da mudança que visam desinstalar o poder eclesial que justificava e legitimava a opressão feudal. Se a mudança atemoriza os membros das ordens instaladas, o mesmo não acontece com aqueles que desejam e anseiam por um mundo melhor. Para os que sonham acordados, os monstros são figuras cómicas que assombram e incendeiam o mundo fechado medieval, desencadeando neles o riso orgiástico que funda um mundo melhor.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Prós e Contras: As cidades onde não moramos

«A verdadeira crise da cidade manifesta-se não apenas numa diminuição do seu nível cultural, mas também na perda do seu carácter original de organismo cultural. Essa queda de valor é determinada pelo facto de que a cidade não é mais um bem e um instrumento da comunidade, cujo esforço tendente a uma finalidade comum facilita, mas um objecto de exploração por parte de uma minoria privilegiada». (Giulio Carlo Argan)
«A imaginação é a faculdade que nos permite pensar em nós mesmos de forma diferente do que somos e, portanto, propor uma finalidade além da situação presente. Sem imaginação pode haver cálculo, mas não projecto. O projecto não é mais do que a predisposição dos meios operacionais para pôr em prática os programas imaginados. A imaginação ética e politicamente intencionada é a ideologia, e não pode haver projecto sem ideologia». (Giulio Carlo Argan)
Hoje à noite (15 de Junho de 2009) no "Prós e Contras" (RTP1) debateu-se o tema da degradação das cidades e da urgência da reabilitação urbana em Portugal. A apresentação prévia do debate é deveras impressionante: "Prédios a cair! Quarteirões em decadência! Centros históricos sem futuro! Cidades em risco!" Porém, sem uma filosofia da cidade, articulada com a arquitectura nessa disciplina que é a urbanística, estes temas podem ser incompreendidos, como sucede geralmente nos debates portugueses, com o mundo da programação a substituir de modo imperial e sufocante o mundo do projecto. A crise da cidade é crise da arte, a crise da arte é crise do objecto, e a crise do objecto é crise da historicidade. Ora, dado a cidade ser "uma entidade histórica absolutamente unitária" (Argan), a tarefa cultural da arquitectura é a recuperação da cidade como instituição histórico-cultural, "sem comprometer a sua actualidade de sistema de informação" e de comunicação. Quando escrevi este texto ainda não sabia quais eram os convidados, mas, em vez de arquitectos, os convidados são de outras áreas profissionais, com excepção do arquitecto Vasco Massapina: João Ferrão, Fernando Santos, Nogueira Leite, Elísio Summavielle e, em directo do Porto, Arlindo Cunha, no palco, e o Presidente da CM de Évora, Ricardo Gomes, Menezes Leite e Vasco Massapina, na plateia. Embora tenha falhado na explicitação de uma estética da cidade, o debate foi muito importante e rico em novas ideias que não devem ser esquecidas.
A ideia que presidiu a este debate e que foi discutida previamente entre Fátima Campos Ferreira e Fernando Santos, para justificar o seu título - as cidades onde não moramos, capta uma faceta negativa da história recente das cidades: o crescimento extensivo que expulsou as populações para fora das cidades, em especial para fora dos seus centros históricos. As grandes cidades estão desertas, porque foram trocadas pelas periferias. Este é um facto histórico incontornável, cujas causas são extremamente complexas, embora sejam sobredeterminadas pelos crimes da especulação inerentes ao funcionamento de uma economia de mercado desregulada e pela respectiva visão capitalista das cidades que sustenta as contradições das tradições culturais urbanas, tais como o caótico congestionamento do tráfego, o problema dos transportes, o escândalo das casas sem gente e da gente sem casas, a insuficiência dos serviços sociais e dos espaços verdes, a escassa mobilidade da cidadania ou mesmo a mediocridade cultural. O governo socialista elaborou um "Projecto de Reabilitação Urbana" que foi apresentado neste debate por João Ferrão (Secretário de Estado). O seu objectivo primordial é fornecer um "enquadramento das soluções" e um "conjunto de instrumentos" que possam ser utilizados por entidades gestoras, em especial da responsabilidade dos municípios, para reabilitar e revitalizar as cidades. A reabilitação deve estar ligada às actividades económicas, de modo a "refuncionalizar (produtivamente) o património". O projecto introduz uma nova figura jurídica: o "Plano de pormenor de reabilitação urbana". As autarquias desempenham um papel fundamental nessa tarefa de combater a degradação das cidades: compete-lhes delimitar as áreas de reabilitação das cidades, não apenas as áreas dos centros históricos, mas também as áreas degradadas de toda a cidade, as quais serão geridas pelos municípios ou por outras entidades gestoras, dotadas de estratégia, gestão e visão de futuro. João Ferrão apresentou este plano como uma mudança de paradigmas: a visão da cidade subjacente não é uma "visão museológica", de acordo com a qual "tudo fica igual mas mais bonito", mas um novo paradigma da cidade - uma nova "aposta civilizacional" - como estilo de vida sustentável. No fundo, o governo socialista advoga uma política das cidades que requer a sua reabilitação e fornece com este projecto vários instrumentos de reabilitação, dando-lhe prioridade máxima e garantindo a sua continuidade mediante avaliações constantes.
A ideia que me atrai neste projecto é a de dar uma nova ordem à cidade. Assim, por exemplo, no Porto, a especulação foi durante muito tempo a dona da cidade, com o auxílio de administrações políticas conservadoras e corruptas. Em volta do seu centro histórico que é património mundial da UNESCO, solidificou-se um imundo magma de construções caóticas que rouba espaço para os serviços sociais e culturais e para as zonas verdes. Ora, este projecto socialista - aliás já materializado nas iniciativas do Porto Vivo - possibilita reanimar o centro histórico sem descurar as suas periferias, incluindo a sua área metropolitana: a construção dos Estádios do Dragão e do Bessa, bem como da Casa da Música ou mesmo da Fundação Serralves (Museu de Arte Moderna), ajudaram muito a evitar que o centro histórico morresse esmagado sob o peso das periferias. O centro histórico não pode ser condenado a uma existência puramente de museu: a sua reanimação e a restauração dos seus monumentos exigem uma revisão e uma reforma de todo o complexo urbano do Porto: a identidade cultural e histórica da Cidade Invicta depende dessa visão de conjunto aberta à modernidade, ao Rio Douro e ao Mar. O seu centro histórico não deve tornar-se uma espécie de reserva como as reservas dos índios nas Montanhas Rochosas.
Com excepção de dois convidados da plateia - Menezes Leite (proprietário de Lisboa) e Ricardo Gomes, os restantes participantes foram receptivos a esta proposta do governo socialista, ajudando a clarificar o somatório de causas responsável pela degradação das cidades portuguesas. António Nogueira Leite (economista) defendeu a reabilitação urbana como a "prioridade do investimento público" nesta hora de crise financeira e económica e, retomando a concepção exposta por João Ferrão, opôs a "cidade viva" à "cidade museu", mostrando a necessidade de elaborar uma visão integrada da cidade, de "centrar as políticas das cidades nas próprias cidades" e de reforçar estruturalmente os dois grandes centros urbanos ou metrópoles - Lisboa e Porto, que sofreram de modo mais drástico o êxodo das populações citadinas para as periferias. Porto e Lisboa precisam ser dotados de uma "nova centralidade" e de um novo enquadramento para que as coisas funcionem por si mesmas de um modo durável (Vasco Massapina) ou sustentável. Fernando Santos (Bastonário da Ordem dos Engenheiros) responsabilizou a "ciência oculta" que domina o sistema estabelecido pela desertificação das cidades e pela existência de casas fechadas ou devolutas. A ciência oculta não deixa "ninguém mexer em nada sem pareceres" de técnicos da área da arqueologia que, nas zonas classificadas, bloqueiam o serviço público, em nome de uma velha noção de cidade museu, de resto ultrapassada e desmentida pela actual crise da cidade. João Ferrão e Nogueira Leite apontaram outra razão responsável pelo crescimento extensivo que expulsou as pessoas para fora das cidades, mais precisamente para as suas periferias ou cidades satélites e cidades dormitórios, agravando o problema dos transportes e contribuindo para a poluição, a crise ecológica e a crise da natureza: a política da compra de casa própria fomentada pelos bancos portugueses. O crédito à aquisição de casa, feito em detrimento do crédito às médias e pequenas empresas, além de ter criado a "descentralização dos grandes meios urbanos", não preparou devidamente Portugal para fazer face à crise económica que vivemos com angústia no momento presente.
É certo que tanto Nogueira Leite como Fernando Santos chamaram a atenção para a necessidade de implementar a reforma das leis do arrendamento, sem a qual os proprietários não possuem capacidade para restaurar os prédios e ajudar a recuperar o património, com o apoio do Estado, mas não o fizeram nos termos usados por Ricardo Gomes e Menezes Leite. O congelamento das rendas ainda é uma lei oriunda do tempo de Salazar: Cavaco Silva limitou-se a actualizar os arrendamentos das novas habitações sem invalidar essa lei anterior. Mas a ideia de que a política da habitação deve obedecer às leis de mercado, sem levar em conta a questão social, facilitando o despejo dos inquilinos e restringindo o papel do Estado aos subsídios dados aos menos favorecidos e não à oferta, acabou por criar uma "crispação" condenada por Nogueira Leite. João Ferrão foi peremptório quando afirmou que a questão das rendas não é a questão central das políticas da cidade: a reabilitação deve ser vista como um meio para levar as pessoas para as cidades e como um fim - a revitalização. Elísio Summavielle chamou a atenção para a definição do "modelo de vida que desejamos para o futuro". Na sua perspectiva, a reabilitação dos centros históricos deve ser encarada como um problema de reordenamento do território que Vasco Massapina definiu nestes termos: as aldeias despovoam-se, enquanto as cidades se sobre-ocupam. É preciso operar uma ruptura com esta prática urbanística e devolver as cidades às pessoas (Fernando Santos), até porque os filhos das classes médias manifestam desejo em ir viver para os centros das cidades (Arlindo Cunha, Presidente de Reabilitação Urbana Porto Vivo), sendo necessário trabalhar os quarteirões que estão a ser reabilitados, de modo a restituir-lhes vitalidade cultural, turística e económica, e atrair o estabelecimento de serviços públicos nesses centros, nomeadamente os serviços universitários. Vasco Massapina defendeu a tese da durabilidade do sistema, e Arlindo Cunha, a sua continuidade, ou, nas palavras de Nogueira Leite, a sua sustentabilidade. A serenidade acabou por predominar sobre a crispação incentivada pelos dois proprietários já referidos, que, na perseguição do lucro fácil, sacrificam os interesses dispersos, subordinando-os aos interesses organizados (Nogueira Leite). A serenidade deu origem a um consenso alargado e, como finalizou João Ferrão, "a questão já não é «o quê», mas «o como»": o governo apresentou um conjunto de instrumento que permitem solucionar a crise da cidade, sem rejeitar a possibilidade de criar um mercado justo e equilibrado do arrendamento, mas os seus efeitos práticos devem ser posteriormente avaliados, de modo a que as políticas da cidade possam ser constantemente rectificadas e melhoradas.
Nota: A minha amiga Denise dedicou-me este post sobre o regresso de D. Sebastião, o Cristo do V Império. Obrigado pela dedicatória e pela escolha do texto de Fernando Pessoa.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Mapplethorpe: Fotógrafo do Escândalo

«Se eu fosse mulher, seria uma puta». (Robert Mapplethorpe)
Robert Mapplethorpe adoeceu com Sida em 1986 e morreu em 1989: a brevidade da sua passagem pela vida confirma a figura romântica do artista que vive depressa e morre jovem. A sua demora na Terra coincide com a Idade de Ouro da comida rápida, do diálogo breve e superficial, do consumo de drogas excitantes, dos amigos efémeros e do sexo de urgência ou casual. A Idade de Ouro foi a idade da libertação das mulheres e das minorias eróticas e étnicas e da realização, mas foi também a Era da Negatividade e do Engano. Com o seu cinismo, Mapplethorpe conseguiu atravessar três décadas americanas de negatividade e de engano: a década dos filhos das flores e da contracultura nova-iorquina clandestina liderada por Andy Warhol (anos 60), a década da Mentira - as mentiras sobre a Guerra do Vietnam e Watergate (anos 70), durante a qual se tornou fotógrafo, e, finalmente, a década da desilusão (anos 80), com a Sida a devolver a homossexualidade ao ghetto e o colapso do comunismo a ser aproveitado para promover a globalização financeira e o neoliberalismo selvagem. Os anos 90 e esta primeira década do século XXI podem ser classificados como as décadas da Corrupção, que mergulharam o mundo na actual crise financeira e económica. As forças reaccionárias da direita conservadora, aliadas à Igreja Católica (Mapplethorpe era de formação católica!) e às seitas protestantes, tentam novamente impedir o reconhecimento legal dos direitos dos homossexuais, como se estivéssemos a entrar numa nova Idade Média.
O imaginário fotográfico de Mapplethorpe inscreve-se e insiste na ambiguidade da condição humana. A sua fotografia é a captura do instante sugestivo em que algo se torna ambíguo e se transforma em outra coisa: as flores são órgãos sexuais, a sexualidade é teologia, o rosto é máscara, o espelho é janela, a vida é morte, a cruz é coroa e a luz é treva. Mapplethorpe é o fotógrafo da metáfora: aquilo que fotografava era sempre a sombra ambígua de outra coisa. Porém, esta transformação metafórica de uma coisa em outra coisa deve ser operada pelo olhar do espectador, porque é neste olhar que reside o poder configurador da imaginação e a ambiguidade: o olhar dirigido pela fantasia conhece a imagem da coisa no espelho da sua alma e esta actividade originária da imaginação mostra que a coisa fotografada pode ser transformada noutra coisa. A ambiguidade sugere que o observador que lê apenas a superfície das coisas não apreende a sua verdadeira essência: a transformação ou a sua possibilidade. Aqueles que censuraram as fotografias de Mapplethorpe reconduziram o tema da ambiguidade à sua ambiguidade sexual, sem no entanto referir a androginia na sua essência quase junguiana, como acto ritual - típico da cultura pop (Mick Jagger, David Bowie) - mediante o qual se declara que um indivíduo não é macho nem fêmea, mas carne, não é homem nem mulher, mas humano. Antes de serem machos ou fêmeas (sexo), homens ou mulheres (género), os indivíduos são carne humana, isto é, corpos mortais. Esta concepção da androginia demarca Mapplethorpe da cultura dominante gay, tanto a efeminada como a culturista, que tende a vê-lo como um travesti ou um transformista de espectáculo: Mapplethorpe condena a vaidade inútil dos culturistas gay e não suporta o peso da massa muscular que esmaga as suas personalidades, comparando-os a "pavões reais extraterrestres": as únicas excepções parecem ser Arnold Schwarzenegger que enche os seus músculos com personalidade e Lisa Lyon que sabe vender de modo provocante os estereótipos andróginos.
Baudelaire reagiu energicamente contra a fotografia, não só porque esta punha em causa o emprego dos pintores-retratistas, mas sobretudo porque tinha uma aversão em relação à corrente realista e naturalista e à ideologia cientista em ascensão que impregnavam as produções fotográficas da sua época. Para Baudelaire, uma obra de arte não pode ser ao mesmo tempo artística e documental. A fotografia não é arte, porque o seu papel não é escapar ao real, mas sim conservar o vestígio do passado ou ajudar as ciências no seu esforço de apreensão aprofundada da realidade do mundo. Baudelaire denunciou as confusões entre fotografia e pintura, de modo a distinguir e a clarificar os seus respectivos domínios: a pintura é pura criação imaginária (arte), enquanto a fotografia é mero instrumento de uma memória documental do real (indústria). Embora fosse justificado pelo realismo predominante nas produções fotográficas do seu tempo, o temor de Baudelaire desvanece-se na fotografia artística contemporânea, em especial nas fotografias de Nadar, Stieglitz, Atget, Paul Strand, Edward Weston, August Sander, Walker Evans, Cartier-Bresson, Robert Frank, Richard Avedon, Diane Arbus e Robert Mapplethorpe, que expressam claramente uma revolta contra a realidade estabelecida, em prol de um outro princípio de realidade. Mapplethorpe abraçou intelectualmente a fotografia como arte no seu estado puro, isto é, como ars gratia artis: a fotografia como arte autónoma transcende a moralidade e a imoralidade, ao mesmo tempo que oferece às pessoas verdades subliminares sobre a condição humana que apontam para além das condições de vida e das experiências mutiladas que negam essas verdades originárias. A observação atenta das suas fotografias inquieta e choca os espectadores, porque os confronta com os seus medos, as suas crenças aceites como evidentes e as suas negações, em especial a negação da morte. A formação artística de metáforas não dá tréguas ao mundo das crenças oficiais: o confronto de duas percepções do mundo mina a confiança e a coerência do mundo de mentiras em que vivem os homens, e a transformação operada pelo olhar exige não só a mudança de percepções, como também a mudança de mundos. Mapplethorpe perseguiu o esteticismo puro: a sua arte e a sua vida foram praticamente a mesma coisa.
Os retratos, os nus e os auto-retratos de Mapplethorpe (1996) estabelecem uma gramática estrutural das representações do corpo. O segredo das fotografias de Mapplethorpe não reside nas suas flores, nas suas figuras, nos seus rostos ou mesmo no fetichismo do couro, na escatologia sexual e no sexo-couro (S & M), embora estas últimas fotografias tenham um carácter cortante que intranquiliza o espectador, mas na transcendência do corpo mortal. O segredo de Mapplethorpe revela-se nas suas fotografias de sexo-couro, com as quais mostra uma combinação da beleza com o terror. Desta combinação resulta a revelação de alternativas humanas, o desnudamento das negações da existência humana e a exposição daquilo que os seres humanos são capazes de fazer quando se libertam das hipocrisias institucionalizadas e alcançam níveis intensos de misticismo e de divindade. Tal como um fotógrafo de incidências que procura captar o aspecto do rosto daqueles que são assassinados ou supliciados, Mapplethorpe soube capturar os momentos gráficos perfeitos em que a carne se transcende a si mesma nas ginásticas e nos rituais sexuais muitas vezes terríveis do sexo sadomasoquista, utilizando as excrescências corporais como meios para atingir um estado místico. Para Mapplethorpe, o corpo constitui a via privilegiada do êxtase físico, emocional, filosófico e teológico. Nos auto-retratos de Mapplethorpe, os modos de representação do corpo podem ser agrupados em quatro categorias: a erotização (1), os emblemas ou insígnias (2), o travestismo de disfarce (3) e as vanitas (vaidades) do corpo (4). Na erotização, o corpo é celebrado na sua integridade compacta, de modo a ser desejado, cobiçado, admirado, louvado, sedutor e triunfal: a totalidade do corpo é a imagem corporal do prazer e do "narcisismo" e a sua exaltação expressa a sexualidade. Nas insígnias corporais, o corpo é cortado aos bocadinhos, desfeito, desmembrado ou simplesmente exposto com minúcia, sendo percebido como um objecto de estudo, de escrutínio e de desejo. O corpo é fragmentado e separado em partes para que o desejo sexual possa determinar a atractividade de determinadas zonas corporais. No travestismo carnavalesco, o corpo é pintado, maquilhado, adornado e afectado, para que possa aspirar a ser identificado com um papel sexual ou social: o corpo disfarçado produz um efeito de dissimulação que, multiplicando os signos sexuais e as insígnias corporais, invalida os estereótipos sexuais normalizados pelo mundo das mentiras, ao mesmo tempo que denuncia a farsa da sua própria imagética sexual. A multiplicação das insígnias (ou atributos) de virilidade - em especial do tipo "leather" - produz uma invencível feminização do macho, enquanto a multiplicação das insígnias (ou atributos) femininas produz a impressão de uma "drag queen", tanto nos homens como nas mulheres. Finalmente, na vanidade corporal, o corpo enfraquece à beira da sepultura, anula-se a si próprio, desvanece-se, dissipa-se e desaparece na desintegração da imagem, a qual expressa dramaticamente a confusão, a turbulência e a precariedade que sustêm a existência humana. Na estética, as vanitas (vaidades) são as formas ou expressões artísticas que traduzem a relação conflituosa dos humanos com a morte e a angústia que resulta da consciência aguda da mortalidade. Os últimos auto-retratos de Mapplethorpe (1988) exprimem a vanidade do corpo e a Via Dolorosa da condição humana. No "Self-Portrait, 1975" (que encabeça este post), o jovem Mapplethorpe estende o braço cruzando todo o campo da fotografia, como se o oferecesse à crucificação (crucifixão), cujo ícone atravessa toda a sua obra fotográfica, encontrando a sua apoteose mais religiosa e mística nas fotografias de couros.
Mapplethorpe resgatou diversos tabus da clandestinidade, o último dos quais foi o do sexo-couro. A cultura gay dominante, representada pelos homossexuais efeminados de Advocate, não tinha estima pelos fetichistas do couro e do sexo sadomasoquista, glorificados por "Drummer" - a revista internacional do couro S & M com sede em San Francisco, porque confundia os chicotes, os açoites, as correntes e as cordas do psicodrama ritual com a violência real. Mapplethorpe luta corajosamente contra a cultura dominante, tanto a heterossexual como a gay: a percepção de perigosidade - atribuída pela cultura dominante ao sadomasoquismo - ajuda-o a conferir prestígio aos fetichismos do couro. A sua obra fotográfica sensibilizou e sexualizou a afeição masculina pelas coisas masculinas. Graças à sua visão do universo masculino, os homens heterossexuais aprenderam a olhar de outra maneira para os homens, e os homens homossexuais aprenderam a estimar e a evidenciar mais a sua própria masculinidade. As fotografias de Mapplethorpe foram severamente censuradas, inclusivamente pela confraria gay efeminada, mas todas estas criaturas viscosas deviam ajoelhar-se e dar graças aos homossexuais e às lésbicas por não procriarem, por terem inventado uma sexualidade recreativa e por embelezarem o mundo com todas as coisas poéticas pelas quais "nos diferenciamos dos animais" (Tennessee Williams). Os homossexuais sempre foram os proscritos da sociedade heterosexista e, ao mesmo tempo, a vanguarda artística e intelectual do mundo. Mapplethorpe morto produziu uma sensação mais mediática e universal do que Mapplethorpe vivo: a pessoa que foi converteu-se em símbolo da libertação e do combate contra a homofobia e a heterofobia. Os heterosexistas homofóbicos acabaram por render-se à grandeza da sua obra, alegando que, se tivesse vivido mais tempo, Mapplethorpe teria abandonado esse "equívoco" que foi a sua homossexualidade e casado com Patti Smith, aliás o seu alterego. No túmulo, Mapplethorpe estremece de horror e recita estes versos de um heterónimo de Fernando Pessoa:
«Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
«Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!» (Álvaro de Campos)
J Francisco Saraiva de Sousa