terça-feira, 24 de novembro de 2009

Prós e Contras: A Justiça no Fio da Navalha

Fátima Campos Ferreira moderou hoje (23 de Novembro) um debate excessivamente emocional e encharcado em hormonas dedicado ao caso das escutas ao Primeiro-Ministro de Portugal, ligado à Face Oculta. Dos quatro intervenientes - António Marinho Pinto (Bastonário da Ordem dos Advogados), Germano Marques da Silva (Direito Penal), Ricardo Cardoso (Juiz desembargador) e Paulo Pinto de Albuquerque (Direito Penal), a defesa do Estado de Direito e da democracia foi brilhantemente realizada por Marinho Pinto e por Marques da Silva. Aconselho a visualização deste programa Prós e Contras, porque não só as palavras pronunciadas, mas também alguns indícios comportamentais, revelam claramente que existe uma tentativa permanente de linchamento de José Sócrates, que, após ter sido privada da matéria criminal arquivada pelo PGR e do material das escutas destruído por ordem do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, desvirtua a declaração do PGR, como se este tivesse atribuído relevância social a esses materiais de devassa da privacidade que determinadas forças maléficas e antidemocráticas querem ver publicadas na comunicação social.
Pinto de Albuquerque defendeu a distinção entre matéria criminal e relevância social. Como o PGR afirmou que não havia indícios de matéria criminal para abrir um processo, arquivou-o. Diante desta decisão do PGR, os inimigos do Primeiro-Ministro trocaram a matéria criminal pela relevância social das escutas das conversas privadas de José Sócrates. Apesar de ter dito que foi o PGR que aludiu essa relevância, quando confrontado com a reposição da verdade por Fátima Campos, Pinto de Albuquerque acabou por atenuar a sua posição: «Não sei se o PGR defende mas devia defender». Deixando de lado o seu triste princípio de ler a lei no contexto histórico em que foi criada, Pinto de Albuquerque abusou ao falar da sua participação na elaboração de 2007, como se ele fosse o legislador: O "Eu legislador" que não é a Assembleia da República (!) é o único que está instalado por direito divino no espírito da lei e todas as suas interpretações da lei são as únicas que conhecem a intenção do legislador (Que legislador? O Parlamento ou o "eu" Pinto de Albuquerque?), embora tenha reconhecido que muitas dessas leis foram decretadas contra a sua vontade (sic). É evidente que Marques da Silva ficou profundamente irritado com a morbidade destas interpretações e com a sua argumentação extra-jurídica, atribuindo a Pinto de Albuquerque curiosidade mórbida pela vida privada do PM, mostrando que não se trata de uma posição jurídica, mas sim de uma posição política que visa a subversão total do Estado de Direito. O cérebro judicial segrega as leis, interpreta-as e fá-las cumprir, abolindo o poder legislativo e submetendo o poder executivo à sua vontade: a independência do poder judicial reclamada neste debate por Ricardo Cardoso significa efectivamente, pelo menos na actual conjuntura política de Portugal, a subversão completa do espírito da democracia (Marinho Pinto, Marques da Silva). O Império do Moleiro é o despotismo das leis: os moleiros querem capturar todo o poder político, liquidando os cargos de Presidente da República, de Primeiro-Ministro e de Presidente da Assembleia da República (Marques da Silva).
Mas Pinto de Albuquerque não se rendeu ao bom-senso e, com a boca a espumar e os vasos sanguíneos e as artérias do pescoço a palpitar, voltou a defender a relevância social das escutas que devem ser publicadas para tranquilizar o público e acalmar o país, como se a maioria dos portugueses estivesse muito interessada em linchar o PM a quem deu a sua confiança, pela segunda vez consecutiva, nas últimas eleições legislativas, cujos resultados os grupos organizados e instalados recusam aceitar. O seu raciocínio deve ser o seguinte: como não conseguiram liquidar José Sócrates pela via criminal, agarram-se agora à relevância social das escutas. Os magistrados de Aveiro enviaram aos seus superiores hierárquicos certidões onde acusam o PM de tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de Direito. É muito difícil compreender a natureza de um crime contra o Estado de Direito: alguns juízes destituídos de imaginação dialéctica podem ser tentados a identificar o Estado de Direito com um Estado judiciário e com a tirania das leis administradas por tribunais reificados. Marinho Pinto não resistiu em reforçar a crítica que já lhe tinha sido dirigida por Marques da Silva: Pinto de Albuquerque opta pelo oportunismo político injustificável que degrada a qualidade da democracia e consagra a devassa da privacidade. Marques da Silva vai mais longe quando acrescenta que a publicação dessas escutas vai conduzir o país a uma crise: a democracia e a sociedade aberta estão a ser subvertidas por certos grupos que desejam desrespeitar a decisão popular. Abusando da interpretação da lei, anseiam por um Estado judiciário, absolutamente totalitário e kafkiano, dirigido por juízes não eleitos pelo povo que pretendem usar a força impessoal do aparelho judiciário para esmagar as pessoas. Em Portugal, a cultura jurídica continua a ser profundamente antidemocrática: Marinho Pinto tem lutado corajosamente pela democratização da esfera da justiça, o que desencadeia a ira de alguns magistrados inimigos da democracia.
Infelizmente, a participação de Ricardo Cardoso - o juiz desembargador - arrepiou todos os portugueses, sobretudo quando, esquecendo que estava a participar num debate democrático, ameaçou sair da sala se fosse interrompido por Marinho Pinto, afirmando ser um juiz democrático (?), apesar de não ter sido eleito pelo povo, mas sim por um moleiro prussiano: o moleiro conferiu-lhe o poder de julgar e punir o Imperador. A cumplicidade entre o juiz desembargador e Pinto de Albuquerque foi demasiado evidente, bem como o ódio que nutrem contra o PM. Depois do 25 de Abril o oportunismo político dos magistrados cavalgou a esfera da justiça e o poder legislativo pouco fez para dotar o país de uma matriz democrática (Marinho Pinto). A defesa do sindicalismo dos agentes judiciais e dos juízes introduz no seio do Estado uma guerra institucional, acelerando a entrada de Portugal numa crise (Marques da Silva) e subvertendo o Estado de Direito, condenado a ceder o seu lugar a um Estado de despotismo judiciário, governado por uma corporação de juízes contrários à matriz democrática da cultura ocidental. Os portugueses não estão efectivamente tranquilos, não por causa da vida privada de José Sócrates, mas porque não acreditam no bom-senso e na competência dos seus magistrados, bem como na "justiça" que se faz em Portugal: Pinto de Albuquerque responsabilizou a mulher da limpeza pelas violações do segredo de justiça. Perante esta afirmação tão inqualificável, os portugueses ficaram aterrorizados e começam a suspeitar que estão a ser amordaçados por um bando de aventureiros terroristas que lhes nega Abril. A sua última esperança está depositada em Marinho Pinto: os portugueses não querem moleiros, querem juízes verdadeiramente idóneos e democratas que tenham lido com proveito Stuart Mill, pelo menos. O ideal secreto que move a sociedade aberta e plural é o ideal de uma vida não-regulamentada: uma sociedade plenamente autónoma que dispensa os juízes e os tribunais.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 22 de novembro de 2009

Defesa de uma Psiquiatria Dialéctica

«O homem não volta nunca à criança, no máximo pode voltar a cair na infância»- (Karl Marx)
Graças à teoria de Marx, as Faculdades de Medicina começam a assumir a obrigação de educar os médicos nas áreas sócio-políticas. Dado estarem envolvidos com a aspecto humano dos cuidados médicos, os psiquiatras devem conhecer todos os temas que afectam o bem-estar físico, social e psicológico dos seus pacientes. Hipócrates (ciências biomédicas e médicas) e Platão (filosofia) devem ser integrados, de modo a produzir uma teoria filosófica da medicina unificada: a teoria da alienação de Marx fornece uma base sólida para levar a cabo esse empreendimento teórico e prático. A partir da interpretação hiperdialéctica e humanista da teoria da reificação de Marx realizada por Georg Lukács e por Karl Mannheim, Joseph Gabel elaborou uma abordagem marxista da psiquiatria que unifica os domínios da alienação social e da alienação clínica: a sua análise da esquizofrenia constitui um modelo dialéctico desenvolvido em diálogo produtivo com diversas orientações psicológicas existenciais e fenomenológicas, tais como as estruturas reificadas da esquizofrenia descritas por E. Minkowski - o racionalismo mórbido - e as concepções psicopatológicas de L. Binswanger. Sem entrar na apreciação crítica do modelo dialéctico da esquizofrenia de Gabel, que apreende a analogia entre o universo social reificado e o mundo próprio dos esquizofrénicos descrito por Wyrsch e Binswanger, pretendo referir as consequências da reificação e os traços fundamentais da consciência reificada: dissociação e despersonalização (1), quantificação e espacialização (2), prevalência das funções identificativas (3), degradação dos conteúdos axiológicos da existência (4) e a-historicidade (5). Todos estes traços analisados por Lukács podem ser descobertos na psicopatologia e são mobilizados pelas estruturas sociais reificadas contra a dialéctica: o estado de esmagamento pelo mundo, a espacialização da duração ou a obsessão do idêntico definem não só a maneira de ser-no-mundo do esquizofrénico, mas também e sobretudo o próprio universo social do homem moderno, indo ao encontro do conceito de patologia da normalidade, o núcleo duro da psiquiatria dialéctica.
No seio do marxismo, a ausência de uma psicologia elaborada foi encarada pelos filósofos marxistas como uma lacuna teórica que devia ser preenchida. Insatisfeita com a psicologia dos interesses que Marx herdou da filosofia iluminista, a Escola de Frankfurt - encabeçada por Max Horkheimer e Theodor W. Adorno - optou claramente pela integração da psicanálise de Freud. Apesar das críticas pertinentes de Georges Politzer à psicanálise em nome de uma psicologia concreta do drama humano - o drama dialéctico da alienação, a síntese entre marxismo e psicanálise - o freudomarxismo - foi realizada por Wilhelm Reich e aprofundada por Erich Fromm e Herbert Marcuse, a partir da reinterpretação do recalcamento: O recalcamento é, segundo Reich, «um processo que se desenrola entre o eu e as aspirações do infra-eu. Qualquer criança ao nascer traz consigo pulsões e adquire na sua tenra idade desejos que não pode satisfazer porque a grande sociedade e a pequena - a família - não lho permitem (desejo incestuoso, analidade, exibicionismo, sadismo, etc.). A sociedade, na pessoa do educador, exige que a criança pequena reprima as suas pulsões. A criança dotada de um eu fraco e obedecendo de preferência ao princípio do prazer, muitas vezes só o consegue banindo os desejos da sua consciência, ignorando-os voluntariamente. Através do recalcamento, os seus desejos tornam-se inconscientes. /A psicanálise não pode conceber a criança sem a sociedade; a criança só existe por si como ser socializado. /O motor do recalcamento é a pulsão de auto-conservação. Esta domina a pulsão sexual; do conflito entre elas resulta o desenvolvimento psíquico. Abstraindo do seu mecanismo e dos seus efeitos, o recalcamento é um problema social, porque os seus conteúdos e as suas formas dependem da existência social do indivíduo. Esta é ideologicamente concentrada numa série de fórmulas, de prescrições e de interdições, no super-ego. Grande parte delas são entretanto inconscientes» (Reich). Reich e Marcuse identificaram o recalcamento com a repressão social, mas há uma diferença entre estes dois autores. Para provar que a repressão social não é necessária, Reich nega uma parte substancial da teoria freudiana das pulsões, nomeadamente o instinto de morte, de modo a mostrar que o homem é associal não por natureza, mas por causa da própria repressão social, enquanto Marcuse regressa aos dados biológicos e ao biologismo de Freud: «A teoria de Freud é, na sua própria substância, "sociológica"», e, dado não precisar de uma nova orientação cultural ou sociológica para revelar essa substância, «o biologismo de Freud é teoria social numa dimensão profunda» (Marcuse). Para mostrar que a agressividade não é um impulso original no homem, sendo-lhe imposta pela repressão social, Reich forja o conceito de couraça caracterial e muscular que encerra o homem e bloqueia a sua força orgástica. Censurando o pessimismo de Freud, o freudomarxismo defende que a verdadeira revolução psicanalítica bem orientada exige uma libertação do desejo. Marcuse é peremptório: os conceitos psicológicos devem e podem converter-se em conceitos políticos. A cura das perturbações pessoais depende directamente da cura de uma desordem geral: «A nossa era tende a ser totalitária, mesmo que não tenha produzido Estados totalitários. A Psicologia pôde ser elaborada e praticada como uma disciplina especial enquanto a psique logrou sustentar-se contra o poder público, enquanto a intimidade foi real - realmente desejada - e obedecia aos seus próprios moldes. Porém, se o indivíduo não tem mais a capacidade nem a possibilidade de ser por si mesmo, os termos da Psicologia convertem-se nos termos das forças da sociedade que definem a psique. Nestas circunstâncias, a aplicação da Psicologia à análise de acontecimentos sociais e políticos significa a aceitação do critério que foi viciado por esses mesmos acontecimentos» (Marcuse). Ora, a verdadeira tarefa é precisamente a oposta: desenvolver a substância política e sociológica das noções psicológicas (Marcuse). A luta pela vida é, no nosso tempo indigente, a luta política.
Herbert Marcuse dirige a Freud uma crítica filosófica de ordem histórica. Para Freud, a repressão constitui a chave da aventura humana tanto a nível individual (ontogenético: complexo de Édipo) como a nível da espécie (filogenético: a hipótese do assassínio do pai). A civilização humana funciona através da repressão das pulsões, de modo a garantir o primado do princípio de realidade sobre o princípio de prazer. A limitação e a repressão de Eros permite libertar a energia necessária ao trabalho socialmente produtivo: o organismo é dessexualizado em benefício de uma sexualidade localizada, unicamente genital, orientada no momento do complexo de Édipo. Na perspectiva do Freud de O Mal-estar na Civilização, felicidade e civilização são inconciliáveis: o progresso da civilização exige o sacrifício da felicidade, isto é, a vitória de Tanatos. Marcuse reconhece a necessidade de um mínimo de repressão, mas censura Freud por não ter concebido uma sociedade menos repressiva. A sociedade ocidental moderna é dominada pela sobre-repressão imposta pelas forças e relações sociais de produção capitalistas. No entanto, a sua afluência que supera o estádio da penúria possibilita a libertação dos homens de muitos constrangimentos e alienações, através da instauração de um novo princípio de realidade. Marcuse define-o em função de dois aspectos. O primeiro diz respeito a um outro princípio de existência que recusa o ideal de Prometeu: em vez de ser vivida como uma luta contra a natureza e os outros, a vida poderia ser vivida como um prazer, num tempo que deixaria de ser aspirado pelo futuro. Essa nova vida poderia ser vivida em conformidade com o ideal de Narciso ou com o ideal de Orfeu. Narciso é o símbolo do erotismo pré-edipiano: o sujeito que deseja não é separado do seu objecto e o mundo exterior é integrado no sujeito num movimento de apaziguamento e de prazer sem conflito. O modelo de Orfeu aponta no sentido de uma existência vivida como um livre jogo das faculdades e como um desenvolvimento da sensibilidade: Orfeu canta em vez de mandar e estetiza o mundo submetendo-o a um princípio de harmonia feliz - a reconciliação entre o homem e a natureza. O segundo aspecto diz respeito à libertação da sexualidade: a sexualidade poderia ser transformada em Eros, isto é, em sexualidade criadora e dessublimada. Para Marcuse, a libertação de Eros não implicaria um pansexualismo - o sonho obsceno das sociedades patriarcais repressivas e autoritárias, mas uma sublimação criadora: todo o comportamento humano seria investido por Eros, tornando-se uma força de criação cultural.
A utopia de Marcuse que acabámos de expor de forma sucinta pode ser lida à luz do modelo simplificado de classificação das ciências médicas (C. Bernard, R. Leriche, G. Canguilhem, P. Vogler): denunciando a patologia da normalidade do princípio de realidade, Marcuse desenvolve uma fisiologia que, explicitada em função da ideia que faz da saúde, deve ser criada por uma determinada prática terapêutica, que visa preparar os homens para a liberdade e a responsabilidade e para a segurança e a saúde. O pathos condiciona o logos, porque é o patológico - o anormal - que desperta o interesse teórico pelo normal: as funções só podem ser reveladas pelas suas falhas e a vida eleva-se à consciência humana e à ciência de si mesma através do fracasso e da dor. Este modo de ler a sua obra não consiste numa mera medicalização do pensamento de Marcuse, na medida em que já opera nessa leitura uma nova medicina das relações dos homens com o mundo social que lhes nega a conquista da saúde e da segurança. Marcuse recusa simultaneamente o carácter conservador da psicanálise e a redução do político ao psicológico. A revolta contra o sistema estabelecido já não é vista como sinal ou marca de um Édipo mal resolvido, cuja terapêutica exige a submissão do indivíduo rebelde - empresário ou trabalhador, empregado ou desempregado, activo ou inactivo - à lei e a sua integração nessa mesma ordem estabelecida. A acção terapêutica oposta ao poder dominante liberta-se do círculo estreito da família, tornando-se praxis de transformação qualitativa do mundo: o psicológico é completamente politizado. Fromm censurou Marcuse por não se interessar pela técnica analítica e pela sua prática, concentrando-se apenas na filosofia da psicanálise. No entanto, ambos partilham a tese de que o homem é normalmente alienado - a ideia de uma sociedade doente, retomando a temática da alienação do trabalho humano desenvolvida por Marx nas suas obras de juventude, nas quais estão prefigurados os mecanismos que a psiquiatria descobriu mais tarde: aquilo a que H. Aubin chamou justamente o paralelismo socio-patológico. Numa perspectiva marxista, a verdadeira questão da psicopatologia não é a de «saber porque é que certos homens se tornaram loucos, mas como é que a maior parte consegue evitar a loucura» (Fromm). Por detrás deste pensamento profundo está Espinosa, o filósofo admirado por Hegel e por Marx.
Erich Fromm desenvolveu a ideia de que o elemento comum das diversas formas de totalitarismo é o clima de fuga à liberdade, cujo corolário é a resistência à dialéctica. Na peugada de Marx, Fromm analisa segmentos amplos da sociedade que afectam o indivíduo e a sua saúde: as organizações sociais, económicas, culturais e políticas já não fornecem uma orientação firme e uma estrutura segura que proporcionavam quando as suas unidades eram menores e o homem tinha menos liberdade para decidir o seu próprio destino. Nas nossas sociedades, como consequência da ausência de um quadro de referência estrutural, o homem sofre um sentimento de solidão insegura, que o impede de realizar o seu próprio potencial e desenvolver um sentimento de pertença. A tese fundamental desenvolvida por Fromm afirma que o indivíduo tenta fugir à liberdade e regressar a uma existência mais segura. A sobrevivência da criança ao nascer depende do seu meio, em geral, e dos cuidados maternais, em particular. Durante este período de desenvolvimento pós-natal, a criança é gradualmente desvinculada do seu ambiente pós-natal, de modo a adquirir uma independência cada vez maior. Porém, numa sociedade doente, o indivíduo carece da força necessária para aumentar a sua autonomia e enfrentar corajosamente a sociedade. Fromm reforça a sua perspectiva referindo a posição única do homem no mundo: a aquisição das faculdades superiores do pensamento e da imaginação implica a perda da capacidade animal de reagir instintivamente à natureza. O homem está separado dos seus semelhantes por condições políticas e da natureza em geral por ser homem. Perante esta situação, a sua reacção primordial é tentar recuperar a sua forma anterior de segurança, mas quando constata que essa recuperação é fisicamente impossível e socialmente ineficaz recorre a outras soluções para escapar ao isolamento e à insegurança que prevalecem nas sociedades modernas.
Destacaremos aqui apenas duas soluções, sem entrar na discussão dos tipos de carácter - orientação receptiva, orientação explorativa, orientação acumulativa e orientação mercantil, todas elas orientações não produtivas opostas à orientação produtiva: o autoritarismo - a personalidade autoritária estudada por Adorno e colaboradores - e o humanismo. Em termos gerais, o autoritarismo é um dos principais mecanismos de fuga da liberdade, podendo ser definido como «a tendência para renunciar à independência do próprio ego individual e fundi-lo com alguém ou algo, no mundo exterior, a fim de adquirir a força de que o ego individual carece» (Fromm). Distintas da destrutividade que visa a eliminação do objecto e do conformismo de autómatos que desiste da individualidade, as duas tendências do autoritarismo - o sadismo e o masoquismo - partilham um objectivo comum: a simbiose mediante a qual o eu individual se une a outro eu ou a uma força exterior, perdendo a integridade do próprio eu e gerando a dependência um do outro. Impondo exteriormente um conjunto de princípios à sociedade, o autoritarismo constitui uma má solução: o indivíduo é impedido de realizar as suas potencialidades, sendo assim mobilizadas a frustração e a hostilidade contra as condições impostas. Segundo Fromm, o humanismo é a melhor solução, na medida em que permite desenvolver todas as potencialidades da vida humana, através do amor ao próximo e da cooperação recíproca. A implementação de uma sociedade humanista exige um aprofundamento da democracia: a criação das condições económicas, políticas e culturais que possibilitem o pleno desenvolvimento do indivíduo. Ao contrário do que se pensa, a nossa crise cultural e política não deriva de um individualismo excessivo, mas sim do processo de liquidação do indivíduo e da racionalidade dialéctica. Para garantir a vitória da liberdade, a democracia deve evoluir para uma sociedade que estabeleça como meta da cultura o pleno desenvolvimento e crescimento do indivíduo autónomo: a sua consciência e os seus ideais não devem ser a interiorização de exigências externas, a sua vida não deve ser justificada pelo sucesso ou qualquer outra coisa externa, e a sua individualidade não deve ser manipulada ou subordinada por forças alheias e estranhas - Estado burocrático ou máquina económica - a si próprio. As mudanças económicas e sociais a realizar devem procurar garantir a emancipação genuína do indivíduo em termos de realização do seu self.
Mais tarde Fromm elabora um outro tipo de carácter: a orientação biófila que se opõe à orientação necrófila. A conceptualização deste novo par de orientações opostas exige talvez uma reavaliação da teoria de Fromm: ao frustrar o amor à vida, a sociedade moderna induz o indivíduo a converter-se em necrófilo, ajustando-o a maneiras de ser, pensar, agir e sentir atraídas pela morte e a estruturas orientadas para a morte. A teoria da necrofilia, bem como a crítica da sociedade necrófila, possibilita-nos reaproximar Fromm e Marcuse, sem abrir mão das ciências biológicas, biomédicas e médicas. A pesquisa psicanalítica deslocou-se da psicologia do Id para a psicologia do ego - visto como um conteúdo de um aparelho mental - e, depois, desta última para a psicologia do self - visto como o centro do universo psicológico na saúde e na doença. Um dos protagonistas do último deslocamento, Heinz Kohut, advoga a duas abordagens, expandindo assim a perspectiva psicanalítica do homem. E Joseph Sandler introduz o princípio de segurança e a busca de um background de segurança como a contrapartida dialéctica da angústia: o self tenta equilibrar a pressão da angústia e a busca das condições de segurança. A psiquiatria dialéctica deve estabelecer um diálogo produtivo com a psicologia do self, integrando no seu seio a dialéctica entre a liberdade e a segurança que o indivíduo vive na saúde e na doença. Porém, esse diálogo está fora do horizonte deste estudo: o seu objectivo foi introduzir a noção de patologia da normalidade, na certeza de que os tratamentos psicofarmacológicos da ansiedade e das perturbações do self não devem abolir a angústia de fundo, sem a qual o homem deixa de ser homem humano, comportando-se como um animal privado de interioridade (Kierkegaard). (FIM)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Rollo May: Psiquiatria Existencial

«Pode-se demonstrar identicamente a eternidade do homem pela impotência do desespero em destruir o eu, por esta atroz contradição do desespero. Sem a eternidade em nós próprios não poderíamos desesperar; mas caso ele pudesse destruir o eu, também não haveria desespero. /Assim é o desespero, essa enfermidade do eu, "a Doença Mortal". O desesperado é um doente de morte. Mais do que em nenhuma outra enfermidade, é o mais nobre do eu que nele é atacado pelo mal; mas o homem não pode morrer dela. A morte não é neste caso o termo da enfermidade: é um termo interminável. Salvar-nos dessa doença, nem a morte o pode pois aqui a doença, com o seu sofrimento e... a morte, é não poder morrer. /É esse o estado de desespero.» (Sören Kierkegaard)
«Uma geração pode aprender muito de uma outra, mas o que é propriamente humano, nenhuma o aprende da que a precedeu. Deste ponto de vista, cada geração recomeça como se fosse a primeira, nenhuma tem uma tarefa nova além da tarefa da anterior, e não chega mais longe, a menos que haja atraiçoado a sua obra, que se haja enganado a si própria. Aquilo a que chamo propriamente humano é a paixão, através da qual cada geração compreende inteiramente a outra e se compreende a si própria». (Sören Kierkegaard)
Quando foi atingido por tuberculose antes da descoberta do seu tratamento, Rollo May passou dois anos acamado no sanatório de Saranac sem saber se ia sobreviver ou morrer. Nesta incerteza de quem espera a morte, May leu diversas obras sobre ansiedade, entre as quais a de Freud e a de Kierkegaard, sentindo-se muito próximo da perspectiva de Kierkegaard segundo a qual a ansiedade - a angústia - é a luta de uma pessoa viva contra o não-ser. Destaco este episódio da história de vida de May para evidenciar que, nos momentos cruciais em que sentimos a proximidade da morte, recorremos à filosofia e não à ciência em busca de algum tipo de resposta ao enigma da existência ou de consolação: a Filosofia funciona nestas situações de penumbra como uma terapia do espírito, ligando-se de tal modo à medicina que pode ser definida como medicina da alma humana na sua relação problemática com o mundo. Marcuse definiu esta tarefa terapêutica da Filosofia como uma tarefa política: mostrar a realidade como aquilo que realmente é e mostrar aquilo que esta realidade estabelecida impede de ser - uma realidade não-mutilada, uma vida sem angústia. Geralmente, as abordagens filosóficas da psicopatologia são censuradas pela sua esterilidade prática, mas a acusação carece de fundamento: Karl Jaspers, L. Binswanger, Weigert, Rollo May, Ephren Ramirez, Victor Frankl e Ronald Laing - entre outros - elaboraram não só a abordagem existencial da psicologia da pessoa normal, como também a psicopatologia e a psicoterapia existenciais, cujos princípios básicos vamos analisar a partir da obra de Rollo May.
1. A Vontade. A filosofia da existência procurou reagir contra o conformismo predominante nas sociedades capitalistas tardias, desafiando o homem a influir na sua relação com o mundo e o seu destino nesse mundo que tende a reduzi-lo a um zombie. O homem é dotado de um poder poderoso no qual emerge como ser livre: o poder de tomar uma decisão e, como escreveu Paul Tillich, «o homem só se torna verdadeiramente humano no momento da decisão». Segundo May, o núcleo central da neurose do homem moderno reside na destruição da sua experiência de si mesmo enquanto ser responsável, da sua vontade e do seu poder de decisão. A defesa da vontade contradiz a noção freudiana segundo a qual vastos campos da actividade psíquica do homem são determinados por pulsões inconscientes. Sem negar a acção das forças inconscientes, May propõe a redescoberta da vontade e da decisão: o paciente deve começar por tomar consciência do seu próprio poder de decisão, de modo a tornar-se cada vez mais consciente de que o vasto conjunto de experiências constitui a sua experiência. Ao assumir todo o campo das experiências como a sua experiência, o paciente redescobre gradualmente o elemento de decisão que a sociedade moderna lhe roubou ou lhe vedou. Para reconciliar a vontade com o desejo no sentido freudiano, May utiliza o conceito de decisão para designar o acto humano que unifica a vontade e o desejo: a decisão leva em conta a experiência de todos os desejos, transformando-os em um modo de agir escolhido de forma consciente. Vontade, desejo e decisão inserem-se num nó de relações complexas, do qual o homem depende não só para conquistar sucesso na sua vida, mas também para dotar de sentido a sua própria existência.
2. A Angústia. Segundo Jacques Lacan, Kierkegaard foi o primeiro filósofo que ousou atribuir à angústia o alcance de um conceito, indicando a orientação das análises fenomenológicas de Heidegger e de Jean-Paul Sartre. Kierkegaard e Heidegger partilham uma ideia fundamental: a angústia é o fundo permanente dos nossos sentimentos. A angústia é o sentimento fundamental que desempenha na filosofia da existência o mesmo papel que o respeito assumia na filosofia de Kant. Para Kierkegaard, a ausência de angústia é ainda um sinal de angústia: o homem que permanece nessa ausência de angústia esconde a sua angústia a si próprio, por sentir angústia perante a angústia. Na perspectiva da filosofia da existência, a angústia não é o temor - ou medo - desencadeado por um perigo real, mas sim o sentimento de ter sido lançado no mundo sem o ter escolhido, constrangido a fazer opções das quais não compreende todas as consequências e que não sabe justificar. O homem é aquele ser que é chamado a justificar as coisas e, por essa mesma razão, é injustificável. Em Sartre, a angústia deriva do facto de nós nunca decidirmos só por nós próprios, mas ao mesmo tempo para todos os outros: angústia acompanhada pelo sentimento da náusea, decisão, compromisso e responsabilidade articulam-se na filosofia de Sartre. O medo e o temor dirigem-se sempre às coisas particulares, enquanto na angústia é o mundo no seu conjunto que nos angustia: o que angustia o homem não é qualquer coisa em particular, mas o ente em geral. May estudou a ansiedade de jovens solteiras grávidas numa instituição de acolhimento em New York. O facto de estarem grávidas sem ser casadas coloca todas as jovens da amostra numa situação ansiogénica, mas nem todas exibiram o mesmo nível de ansiedade. As raparigas provenientes de Harlem e dos bairros pobres do leste de New York exibiram ansiedade em menor grau do que as raparigas oriundas da classe média. Ora, o que distinguia estes dois grupos de jovens grávidas era o facto das raparigas criadas nos bairros pobres terem sido rejeitadas pelas suas mães. May concluiu que o choque - ou, segundo Otto Rank, o trauma do nascimento que Freud aceitou como uma parte da angústia neurótica - que está na origem da ansiedade não é a rejeição maternal, mas a rejeição dissimulada. As mães da classe média mentiram, porque diziam que amavam as filhas quando na verdade as rejeitavam, enquanto as mães dos meios mais pobres rejeitaram as suas filhas sem mentir. As filhas rejeitadas frontalmente pelas mães foram para a rua e encontraram parceiros: o seu mundo era claro e conhecido, o que lhes permitia orientar-se nele. Além da rejeição, a angústia tem um outro motivo que May retoma directamente da filosofia da existência: o ser humano não pode conhecer o mundo onde está lançado e não pode orientar-se na sua própria existência.
3. A Morte. A nossa civilização moderna oculta a morte, fazendo dela um fetiche que, tal como a percepção extra-sensorial, foi banido da psicologia. Ora, segundo May, o problema da morte é o único facto absoluto da vida: a morte individualiza o homem, já que ninguém pode morrer por mim. A morte é a única coisa que sou obrigado a fazer sozinho. A negação da morte é a perda da vida, porque recusar a morte é negar a realidade da existência do homem. Aqueles que no nosso mundo ocidental recusam a morte sofrem de apatia. O homem precisa saber fazer frente à morte. May recorre ao testemunho da sua própria experiência e à concepção de angústia desenvolvida por Kierkegaard. Na experiência de ansiedade, o temor não deriva da ameaça da morte enquanto tal, mas do conflito ambivalente face à ameaça. O homem angustiado é tentado a ceder frente à ameaça da morte, não porque a morte enquanto tal o amedronte, mas porque possui em si tendências nos dois campos. Segundo Kierkegaard, a angústia é um desejo que tememos e que, como um poder estranho, se apodera de nós sem nos deixar escapar do seu poder. Ao afrontar de frente o problema da morte, o homem é capaz de superar duas falsas maneiras de abordar a morte: a atitude negligente (1) que consiste em negar o temor da morte, expressando um modo de ser exageradamente alegre, despreocupado e frívolo, e o abandono desesperado (2) que se revela nos indivíduos deprimidos, apáticos, sem reacção e sem nenhuma possibilidade. O facto de encarar de frente a morte implica uma mudança radical na relação do indivíduo com o tempo: afrontar a morte no interior da sua própria consciência ajuda o indivíduo a fazer a sua própria escolha para o tempo de vida que lhe resta, lutando contra esse adversário que ganha sempre. O homem deve aceitar a sua mortalidade essencial - o ser-para-a-morte - e viver plenamente cada dia da sua vida.
4. A Psicoterapia Existencial. A psicoterapia existencial lança o conceito de paciente como ser-no-mundo: a tarefa do psiquiatra é ajudar o paciente a descobrir - ele próprio - o seu ser, afundado e enredado em «complicações e bloqueios que desembocam nos sintomas». O ser humano é sempre ser-no-mundo e cada um de nós pode descobrir o seu próprio ser-no-mundo em três mundos simultâneos: o meio ambiente ou Umwelt (1), o mundo do nosso próximo ou Mitwelt (2) e o nosso mundo próprio ou Eigenwelt (3). O paciente deve ser descoberto enquanto ser humano, isto é, enquanto ser-no-mundo, e não como mera projecção das nossas teorias prévias. E para o descobrir o psiquiatra deve levá-lo a responder às seguintes questões: Quem sou eu enquanto ser-no-mundo?, Qual é a minha identidade?, De onde venho?, Como posso encontrar-me ou aceitar-me? (Anne Ancelin-Schützenberger). A vida é um processo dinâmico que se move entre o que foi - o passado - e o que está em vias de vir a ser e, sendo assim, o homem não pode ser visto como produto acabado de acontecimentos determinantes do passado: o homem é, ele próprio, um processo aberto que só pode ser compreendido caminhando na direcção do futuro. Embora não menospreze o passado, a filosofia da existência considera que ele só tem significação à luz do uso que dele fazem as pessoas no presente e no futuro.
A concepção existencial dos mecanismos subjacentes às perturbações psicopatológicas é sui generis. O recalcamento tem sido relacionado com o respeito aos códigos morais da burguesia, em particular aos códigos da família burguesa, a fim do indivíduo conservar uma imagem de si aceitável. Porém, May encara isso mais como um sintoma do que como uma causa, sendo levado a procurar alguma coisa mais profunda: a resposta à questão de saber por que o paciente aceita ou recusa a sua própria liberdade na escolha dos seus próprios códigos morais e políticos. A psiquiatria existencial procura compreender as razões que levam umas pessoas a conformar-se com a moral burguesa e outras a rejeitá-la, com o objectivo de preparar o paciente para a tomada de consciência do seu próprio poder de decisão e para o seu exercício em plena liberdade. No mundo moderno, os pacientes perderam o seu próprio mundo no qual se sentiam em casa. Para o recuperar, é necessário que todos se descubram juntos - uns com os outros - no mesmo mundo: a solidão, o isolamento e a alienação reflectem problemas da nossa sociedade, na qual todos nós vivemos a angústia do isolamento e da alienação. Abraham Maslow identificou correctamente o "normal" com a "psicopatologia da média", de resto uma noção descoberta por Espinoza e tematizada posteriormente como patologia da normalidade: a psiquiatria existencial convida-nos a descobrir na existência humana mergulhada em ilusões e no medo uma doença amplamente partilhada por todos os membros das sociedades modernas. (Continua com o título Defesa de uma Psiquiatria Dialéctica.)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Prós e Contras: Casamento Homossexual - a referendar?

Mensagem para o indivíduo homófobo: Cuida da tua pila e da tua vida sexual como quiseres, mas não ouses querer cuidar das pilas dos outros e das suas vidas sexuais, porque tu és um doente, talvez um homossexual reprimido! Lembra-te que todos os crimes perpetrados contra as famílias, contra as mulheres, contra as crianças, contra os homossexuais, enfim todos os actos mais hediondos que possam ser imaginados, foram protagonizados por indivíduos como tu que se escondem por detrás do rótulo "heterossexual" (JFSS).
Moderado por Fátima Campos Ferreira, Prós e Contras debateu (16 de Novembro) novamente o casamento homossexual. Jorge Lacão (Ministro dos Assuntos Parlamentares) e Grabriela Moita (Psicóloga) defenderam a proposta do governo socialista de legalização dos casamentos do mesmo sexo, enquanto Ribeiro e Castro (CDS-PP) e Jorge Bacelar Gouveia (jurista?) defenderam a realização de um referendo anti-gay. A participação de Jorge Lacão foi simplesmente brilhante: Fiel ao compromisso político assumido com os eleitores portugueses, o PS vai apresentar a proposta de legalização do casamento homossexual até ao final do ano e, dado contar com o apoio de toda a Esquerda (BE, CDU), bem como de muitos militantes esclarecidos e liberais do PSD, o referendo exigido pela Direita reaccionária e obscurantista não faz sentido. Com esta proposta moderna, civilizada e humanista, o PS pretende cumprir a Constituição Portuguesa que afirma que todas as pessoas têm direito a formar família e a ter acesso ao casamento civil. Trata-se de prescrever o fim de uma discriminação e possibilitar a todos os portugueses o acesso à mesma Dignidade e ao pleno desenvolvimento das suas personalidades e identidades. O Tribunal Constitucional mostrou-se avesso à petrificação da noção de casamento e, alinhando ao lado dos valores da civilização, tal como o governo socialista e a Carta dos Direitos da UE, é receptivo à abertura do casamento a pessoas do mesmo sexo e à alteração da noção de casamento, que Ribeiro e Castro reduz obscuramente a uma união mecânica - do tipo "piloto automático" - entre um homem e uma mulher sem ter nada a ver com os afectos. O PS deseja cumprir a sua promessa eleitoral sufragada nas eleições legislativas e, ao mesmo tempo, aprofundar a Constituição, garantindo efectivamente a todas as pessoas o direito de contrair matrimónio. Paulo Corte-Real, Heloísa Apolónia, Miguel Vale de Almeida, Isabel Moreira, Pedro Alves, José Ribeiro e Maria Antónia Pedroso Lima ajudaram a desmistificar o espírito que move as forças da reacção: a homofobia envergonhada e o facto de serem claramente contra o casamento homossexual (José Ribeiro). Embora tenham procurado sobrepor o casamento homossexual e a adopção, confundindo conjugalidade e parentalidade na mesma agenda, o que assusta deveras os homófobos é o que os casais do mesmo sexo fazem na cama (Pedro Alves, José Ribeiro). Ora, esta curiosidade heterossexual - ou melhor, heterosexista - é simplesmente mórbida e só pode ser interpretada como indicador de uma mente doentia.
Cultura é tudo aquilo que a Direita salazarenta desconhece. Ao opor-se sistematicamente à modernização e à mudança social qualitativa de Portugal, a Direita é, por natureza, bárbara e primitiva. A argumentação desenvolvida neste debate pela Direita salazarenta a favor do referendo foi simplesmente miserável e, como acentuou Heloísa Apolónia, Ribeiro e Castro e Bacelar Gouveia, mais o seu séquito de obscurantistas reaccionários - Pedro Pestana Bastos, Manuel João Ramos, António Pinheiro Torres, Pedro Picoito, Ana Cid Gonçalves e Isilda Pegado -, desejam referendar tiranicamente direitos humanos. Além de considerar o povo ignorante pelo facto de exigir uma segunda eleição, depois deste ter renovado recentemente a maioria relativa do PS, a Direita quer submeter a referendo os direitos das minorias eróticas, de modo a perpetuar antidemocraticamente a tirania da maioria heterosexista e homofóbica, procurando intimidar os portugueses com a elaboração medíocre e tosca do discurso do papão (Gabriela Moita). Bacelar Gouveia chegou mesmo a afirmar que era necessário fazer o "referendo contra o papão", usando argumentos pouco sérios (Jorge Lacão) que chocaram todos os juristas e que Jorge Lacão classificou como falácias e Isabel Moreira como graçolas sem sentido. Se o discurso agressivo e emocional de Bacelar Gouveia foi integralmente falacioso, exaltado, emotivo e bizarro, chegando a defender o referendo da constituição, o discurso de Ribeiro e Castro foi deveras bárbaro e insensível ao sofrimento alheio. Ignorando completamente a história natural da família e a sua dinâmica dos afectos, Ribeiro e Castro retomou a velha ideia "católica" de que a família é a célula (reprodutiva) da sociedade - a noção da queca procriativa sem afectos e sem amor - para defender o referendo dos direitos das minorias homossexuais (1), a noção matricial do casamento (2) e a independência da família em relação ao Estado (3). Respeitar a sociedade portuguesa é, segundo esta Direita obscurantista, negar a igualdade ao acesso ao casamento civil e, desde que cumpra ou faça cumprir essa discriminação heterosexista, o Estado deixa de ser visto como totalitário. À sua maneira enviesada, Ribeiro e Castro defende um Estado totalitário de Direita ultraconservadora: um Estado classista e patriarcal que garanta o heterosexismo, a discriminação sexual e a opressão das minorias. A sua única preocupação é a de que os casais heterossexuais façam filhos para que haja mão-de-obra abundante e disponível para trabalhar nas empresas e para consumir os bens produzidos, de modo a perpetuar a reprodução da sociedade capitalista. Mas mais chocante do que esta preocupação velada foi o facto de ter falado - sem dizer nada de substancial e minimamente credível - da família como matéria nuclear da sociedade como se os indivíduos homossexuais não tivessem família ou não pertencessem às famílias portuguesas reais. Porém, como lembrou Maria Pedroso Lima, os homossexuais e os casais homossexuais existem e fazem parte de famílias reais: os indivíduos homossexuais não caíram do céu de pára-quedas, são filhos de casais heterossexuais. De uma forma mais brutal do que Bacelar Gouveia, Ribeiro e Castro tomou a expressão minoria no seu sentido estrito e histórico, tratando os homossexuais portugueses - filhos de pais portugueses - como se fossem um grupo estranho e exterior à sociedade portuguesa, talvez proveniente de uma cultura étnica extraterrestre. Este desprezo pelos homossexuais revela não só insensibilidade social, como também inumanidade: Ribeiro e Castro nega a dignidade humana às pessoas homossexuais e quer que o Estado seja cúmplice da discriminação sexual e da opressão das minorias eróticas. Ora, numa sociedade aberta e civilizada, compete ao Estado garantir os direitos das minorias e o acesso de todas as pessoas à mesma dignidade e ao pleno desenvolvimento das suas personalidades e das suas identidades. A definição do casamento, da família e da sexualidade não constitui monopólio de uma Direita medieval, homofóbica e inimiga da democracia: a Civilização Ocidental nasceu precisamente dessa luta racional contínua e triunfal contra as forças obscurantistas, autoritárias e dogmáticas que anseiam pela perpetuação de um passado arcaico repressivo e intolerante.
O heterosexismo é um sistema ideológico que rotula a homossexualidade como sendo inferior à heterossexualidade, entenda-se à heterossexualidade compulsiva. Ribeiro e Castro e Bacelar Gouveia não estão informados e não querem ser informados, tal é a magnitude do ódio que nutrem pelos indivíduos homossexuais. Conforme mostraram Jorge Lacão e Isabel Moreira, baralharam toda a cultura jurídica democrática e civilizada, metendo no mesmo saco o referendo de Timor-Leste, o referendo do aborto e o desejado referendo do casamento homossexual, com o objectivo de negar que se trata no caso da legalização dos casamentos homossexuais de uma questão de direitos civis e humanos. O heterosexismo sofreu o seu grande golpe fatal com a libertação das mulheres e a sua luta pela igualdade. Inspirando-se neste modelo, bem como nas lutas dos direitos civis dos negros, os movimentos gay tendem a seguir duas estratégias políticas para mudar o status das pessoas homossexuais na sociedade: a abordagem dos direitos gay baseada no modelo político dos grupos minoritários e focada sobre a conquista dos mesmos direitos civis e humanos de que desfrutam as pessoas heterossexuais, entre os quais o acesso ao casamento civil e o direito à adopção, e a abordagem da libertação gay que visa um objectivo mais radical: a alteração da visão social da sexualidade e do género. Racismo, homofobia e misoginia caminham de mãos dadas. Pessoas que defendem a aliança negra entre estes três ódios mortais que negam a humanidade do Outro e a sua dignidade não merecem a confiança e o respeito da comunidade humana civilizada e democrática, porque, ao contrário do que dizem, não amam a democracia, a cultura ocidental e a sociedade aberta promovida e construída ao longo de séculos de lutas sangrentas pelo Ocidente. Pessoas infectadas por estes três ódios R-H-M são corpos cancerosos que invadem e degradam a Civilização Ocidental e a sua cultura democrática da tolerância: a democracia precisa proteger-se e livrar-se destes extraterrestres, cuja conversa não interessa a ninguém minimamente culto e civilizado. Diante da ameaça do terror de Direita, a dialéctica não se deixa intimidar e corromper: a dialéctica é abertura total à alteridade do Outro.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 14 de novembro de 2009

Raul Brandão: Portugal é Corrupto

«De forma que o homem vive sozinho. O que o obriga a ser justo e grande? A educação? O exemplo? A educação ensina-lhe a guerra; pedaços de ciência fazem-no balofo e seco; e o exemplo mostra-lhe o triunfo dos habilidosos, dos que se curvam e transigem, sabendo ameaçar ou recuar conforme a ocasião; dos que alijando os preconceitos — coração, ilusões, sonho — ficam mais lestos para um combate sem tréguas. A pobreza parece-lhe a desonra, porque vê sempre o pobre desprezado e calcado; o amor uma irrisão e procura um casamento rico; o sacrifício uma tolice. Só teme a valer a cadeia e a pobreza.
Depois a luta pela vida é aspérrima. Este moço aspira a tudo e tem na sua frente uma multidão compacta, que lhe barra os lugares. O triunfo de quem é? Dos que calcam para passar, sem que haja gritos ou blasfémias que os detenham. Os menos audaciosos ou os mais honestos afundam-se. Não há energia que resista à luta miudinha de todos os dias — se se tem coração. Embota-se a vontade, gasta-se a ambição, e em torno os que adularam ou calcaram sobem, trepam, com risos desdenhosos e ares de protectores.É por isso que quase todos os rapazes, que até aos vinte anos reclamam justiça e se revoltam, começam, depois, curvos e submissos, a entrar no grande rebanho. Soa a hora trágica da vida. Pesam-se as coisas. Começa-se a ver que o que vale na terra não é o talento nem o trabalho. Para se vencer assim era preciso ser-se um herói ou um santo; gastar-se a existência para se conseguir o que um imbecil alcança numa hora, cortejando e dobrando-se. Principia-se então a ser o quê? Charlatão. A vida é uma comédia. Toma-la a sério para quê — se ela é feita de nulidades, de coisas vãs ou ridículas?» (Raul Brandão, 1901, O Padre.)
A compreensão deste texto de Raul Brandão é esclarecida à luz do poema Falam as Escolas em Ruínas de Guerra Junqueiro:
«A alma da infância é um passarinho;
Gorjeia o ninho e a escola chora:
Na infância cai a noite; e o ninho
Tem sobre as plúmulas d'arminho
A aurora.
A alma da infância é flor mimosa;
A escola é triste e a flor vermelha:
Na escola paira a c'ruja odiosa,
E sobre o cálice da rosa
A abelha.
Tu fazes, Pátria, as almas cegas,
Prendendo a infância num covil.
Aves não cantam nas adegas;
Se a infância é flor. porque lhe negas
Abril?!»
A escola portuguesa é um covil que aprisiona as almas nascidas para o mundo e que não as deixa cantar, tornando-as cegas à aurora e a Abril. A escola portuguesa é a escola do crime: os professores-zombies, os professores-carrascos, os professores-cegos, enfim os anti-professores, tudo fazem para cegar as crianças e os jovens que nasceram para o mundo comum. Em vez de lhes abrir as portas desse mundo, atrofiam os órgãos mentais e cognitivos, embotam a vontade e penalizam a ambição: o currículo oculto visa formar charlatães preparados para um dia mais tarde adularem e calcarem o mérito, de modo a treparem sem mérito pela escada social da vida e a roubar aos outros o seu próprio lugar natural ao sol. Portugal corrupto reprime todos aqueles que anseiam pelo justiça e que estão prontos a lutar pela transparência da vida pública: a Pátria portuguesa não é um ninho, mas sim uma prisão que, através de diversos dispositivos punitivos de exclusão e de ostracismo, força os portugueses a curvarem-se diante do estado de coisas estabelecido e a submeterem-se às ordens irracionais dos charlatães que se apropriam corruptamente de todos os centros de decisão nacional. Nesta pátria corrupta e madrasta , os portugueses são obrigados a ingressar no rebanho, isto é, no coro do silêncio cúmplice, porque, pesando as coisas, eles sabem que em Portugal o talento, o mérito e o trabalho carecem de valor: o que garante um lugar ao sol não é a competência, mas a imbecilidade - ou a esperteza - que se curva e se dobra aos caprichos dos charlatães que nos governam e lideram. De um ou de outro modo, uns mais recompensados, outros menos recompensados ou mesmo excluídos, todos os portugueses são charlatães. E nesta ausência de coração reside o carácter trágico de Portugal, cujo temor não lhe permite conquistar o futuro. Os habilidosos que nos governam, lideram e dirigem são assassinos imbecis formados numa escola siciliana: eles calcam para passar e os gritos dos que são calcados já não os cobrem de vergonha. Os corruptos perderam a vergonha.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Portugal é Corrupto

Gil Vicente: Portugal é Corrupto.
Não há nada a acrescentar aquilo que todos sabemos por experiência diária ou mediada pelos meios de comunicação social: Portugal é completamente corrupto e mafioso, o 25 de Abril foi uma farsa, e os portugueses são uns bois medrosos, destituídos de psicologia e de inteligência. Portugal é uma terrível fatalidade e não tem efectivamente futuro. É uma vergonha pertencer a este país dominado por classes dirigentes ladras, mafiosas, incultas, néscias e criminosas. Que Deus proteja os inocentes da maldição portuguesa que se consuma hoje - Sexta-Feira 13! A maldição persegue Portugal desde tempos imemoriais: Que a gripe A - a vacina - nos livre daqueles que se consideram imprescindíveis quando, na verdade, são o anti-futuro, isto é, os coveiros do futuro e do progresso de Portugal!
A corrupção generalizada descredibilizou a política, os poderes do Estado e os seus agentes perante os portugueses. O povo quer vê-los mortos e enterrados! Esta ânsia do povo é já muito antiga, como testemunha o Auto da Barca do Inferno, onde Gil Vicente moraliza e edifica os espectadores pela crítica aos vícios e à vilania de certas figuras portuguesas. Assim, o Fidalgo - D. Henrique - que oprimiu e explorou as restantes classes do país, em especial o povo, e que repartia a sua vida sentimental entre duas mulheres - a esposa e a amante, é condenado na qualidade de membro da classe opressora - a nobreza feudal - a seguir a sua viagem para o Inferno. O Onzeneiro, o usurário - antepassado dos nossos modernos banqueiros e penhoristas - que tinha enriquecido à custa dos altos juros do dinheiro que emprestava aos necessitados, a quem o Diabo chamou o seu "parente", esqueceu-se de trazer a bolsa cheia de cruzados e, como não pôde comprar a sua salvação, embarca com o Diabo. O Anjo e o Diabo acusam o Sapateiro - João Antão - de ter roubado a classe a que pertence, mas o facto de ter assistido ou cumprido os actos externos do culto não lhe garante a viagem a bordo da barca celestial. O Frade cortesão é acusado pelo Diabo de viver amancebado, desprezando os votos de castidade que formulara e, como foi repelido pelo Anjo que não ficou sensibilizado com o hábito que envergava, entrou, juntamente com a sua amante (Florença), na barca da perdição. O Judeu não tenta a sua sorte junto da barca do Anjo, entrando logo na barca do Inferno. O Corregedor que surge carregado de processos e com uma vara na mão e o Procurador que vem carregado de livros trocaram palavras em latim jurídico deturpado com o Diabo, mas ambos são acusados de terem sido corrompidos por dádivas recebidas até de judeus: os juízes do tribunal terreno tornaram-se réus no tribunal divino e ambos embarcam na barca da perdição. Com excepção do Parvo - Joane - que foi acolhido na barca do Anjo porque, segundo a doutrina cristã, não pode ser responsabilizado pelos seus actos quem nasceu irresponsável, as restantes figuras são forçadas a entrar na barca do Inferno: a Alcoviteira - Brízida Vaz - por ter atraído muitas jovens à prostituição, e o Enforcado por ser ladrão.
Portugal e as suas elites do poder mudaram pouco desde os tempos de Gil Vicente: a corrupção continua a ser o estilo de vida das classes dirigentes que, em vez de servir os interesses nacionais do país, usam o poder e os bens públicos em benefício próprio. Portugal foi sempre um país pobre e atrasado, porque tem sido governado por um bando ou, como se diz hoje em dia, uma teia tentacular (Caso Moderna, Caso Submarinos, Banco Laranja, Face Oculta, etc.) organizada de ladrões, corruptos e néscios. Como dramaturgo, Gil Vicente é um oráculo: os portugueses partilham uma mesma ausência de vida psicológica superior. A única diferenciação que pode ser estabelecida entre eles é que alguns são seres mentalmente subnutridos, tal como os restantes que exploram e enganam, mas com as bolsas cheias de dinheiro adquirido de modo ilícito. E é com este dinheiro corrompido que julgam poder comprar aquilo que não pode ser comprado: inteligência e cultura. As classes dirigentes nacionais vivem como a Brízida Vaz: vivem da prostituição simulada e do saque dos dinheiros públicos. Somos governados, dirigidos e liderados por homens imbecis, dotados de um cérebro ladrão. Tenho muito nojo deste Portugal Corrupto e Inculto e muita vergonha de ser português. Ser português é ser portador de uma doença paralisante e mortal, é ser portador de um estigma: Portugal é a face visível da morte, é o coveiro da criatividade e da inteligência superior. O cérebro ladrão e vigarista governa e lidera Portugal.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Uma Família Gay Feliz

«Os homens e as mulheres homossexuais apaixonam-se, muitos formam casais, muitos separam-se e muitos voltam a procurar outro(a) companheiro(a). Os homens e as mulheres homossexuais vivem as mesmas sensações em termos de amor romântico que são descritos pelos indivíduos heterossexuais, e lutam exactamente com os mesmos problemas criados por estes laços românticos. Estas emoções desenvolveram-se, claramente, há muito tempo.» (Helen E. Fisher)

Leia aqui o post que dediquei aos casais do mesmo sexo e à adopção.

Mensagem para o indivíduo homófobo: Cuida da tua pila e da tua vida sexual como quiseres, mas não ouses querer cuidar das pilas dos outros e das suas vidas sexuais, porque tu és um doente, talvez um homossexual reprimido! Lembra-te que todos os crimes perpetrados contra as famílias, contra as mulheres, contra as crianças, contra os homossexuais, enfim todos os actos mais hediondos que possam ser imaginados, foram protagonizados por indivíduos como tu que se escondem por detrás do rótulo "heterossexual". A criminologia e a patologia relatam até à exaustão todos os tipos de crimes e de abusos cometidos por homens heterossexuais contra as crianças, as mulheres e a própria família. Quem espanca e mata as mulheres? Os homens heterossexuais! Quem espanca e viola as filhas ou mesmo os filhos? Os homens heterossexuais! Quem faz filhos às filhas? Os pais heterossexuais! Quem abandona a familía? Os homens heterossexuais! Quem não sabe educar ou educa mal os filhos? Os pais heterossexuais! Quem esquece o filho no carro e deixa-o morrer? Os pais heterossexuais! Quem espanca os filhos até à morte? Os pais heterossexuais! Quem pula a cerca frequentemente com grande prejuízo da qualidade da vida familiar? Os maridos heterossexuais! Quem contagia a mulher ou mesmo os filhos com agentes patogénicos? Os homens heterossexuais! Quem casa a noiva com quem anda a dormir? Os padres heterossexuais! Quem frequenta assiduamente os circuitos de engate em busca de rapazes? Os homens ditos heterossexuais! Quem come a irmã da mulher? Os homens heterossexuais! Quem mete a melhor amiga da mulher na cama do casal? Os maridos heterossexuais! Quem mete na cama o irmão da mulher? Os maridos ditos heterossexuais! Quem faz filhos e não os assume? Os homens heterossexuais! Quem deixa a mulher sozinha em casa e sexualmente insatisfeita para ir dormir com a amante ou o amante? Os maridos heterossexuais! Quem aceita que a sua mulher durma com outro homem em troca de benefícios e de qualidade de vida? Os maridos heterossexuais! Quem hospeda a família na casa do padre para dormir com este último? Os maridos ditos heterossexuais! Quem rejeita e expulsa os seus filhos homossexuais? Os pais heterossexuais! Quem insulta, humilha, abusa, agride e assassina os homossexuais e as lésbicas? Os homens heterossexuais! Quem procura os serviços sexuais dos travestis, transgéneros e transsexuais? Os homens heterossexuais! A Igreja Católica opõe-se ao casamento civil - matéria do Estado - entre indivíduos do mesmo sexo e, no entanto, permite que padres homossexuais activos realizem o casamento religioso! A Igreja Católica afirma que a família constitui a célula da sociedade e, no entanto, nada faz para punir os padres pedófilos que abusam dos filhos dessas famílias consagradas! De certo modo, a criminologia é quase exclusivamente heterossexual. Dar voz a um homófobo, a um marido violento, a um mau pai, é dar voz a um criminoso: o teu discurso homofóbico denuncia-te como um potencial criminoso sexual. Tem vergonha na cara e retira-te da esfera pública, porque tu odeias a humanidade e a vida: a tua moral é obscena e hipócrita! Precisamos urgentemente referendar o teu suposto heterosexismo e o teu estilo obsceno e doentio de vida!

Marx escreveu: "A história, de prática revolucionária transmuda-se em ideologia", ou, como preferiu dizer Nietzsche, em "cultura". Esta afinidade do pensamento amigo da historicidade permite denunciar o carácter reaccionário da temática ou da problemática dos valores: os valores são quimeras inventadas pelas classes dominantes e pelos instalados para justificar os seus privilégios e bloquear a mudança social qualitativa. A Direita defende "valores" - os seus valores de classe, isto é, as suas imoralidades obscenas - porque não deseja mudar a sociedade e libertá-la das discriminações e das desigualdades sociais: os homens conservadores sabem que a mudança qualitativa pode desinstalá-los e afastá-los do poder. A Esquerda define-se pela crítica radical dos valores: os homens esclarecidos, livres e honestos não precisam de valores para lutar pela emancipação. A tarefa política da Esquerda não é superar pela história o momento histórico dominado pelo heterosexismo e pela homofobia, mas superar o heterosexismo, abolindo a sua história e a sua historicidade. Não se trata aqui da superação no sentido hegeliano do termo, mas no seu sentido nietzscheano: destruição do heterosexismo e da sua moral frouxa e hipócrita. A Direita, que deseja domesticar a história, sobretudo os seus momentos de ruptura e de inovação radical, é, por natureza, obscena, cruel e inumana!

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss e o Estruturalismo

«Aceitamos, pois, a qualificação de esteta, por acreditarmos que a última finalidade das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo». (Claude Lévi-Strauss)
O estruturalismo é, em grande medida, uma criação de Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Lévi-Strauss encara as culturas como sistemas de signos partilhados, estruturados de acordo com princípios que governam o funcionamento do espírito humano que os gera. A etnologia é o estudo da superestrutura psicológica dos sistemas sócioculturais, cabendo a outras disciplinas o estudo da infra-estrutura. Sem pôr em causa o primado incontestável das infra-estruturas, Lévi-Strauss define a etnologia como "uma psicologia": «É para esta teoria das superestruturas, apenas esboçada por Marx, que desejamos contribuir, reservando à história - assistida pela demografia, pela tecnologia, pela geografia histórica e pela etnografia - o cuidado de desenvolver o estudo das infra-estruturas propriamente ditas». Émile Durkheim tinha cunhado a expressão consciência colectiva para designar o conjunto de ideias exterior aos indivíduos, mas dotado de força coercitiva sobre o comportamento e o pensamento individuais. Tal como Durhkeim e Kant, Lévi-Strauss considera que a mente possui moldes - as estruturas - que nos permitem pensar a totalidade das coisas: a tarefa do estruturalismo é tentar explicar a consciência colectiva em função de uma dialéctica mental inconsciente, demonstrando como o conteúdo superficial, na sua modalidade característica, expressa e ajusta-se a estruturas universais subjacentes. Os pensamentos mais díspares escondem significados semelhantes, os quais são redutíveis a pares de categorias opostas ou oposições binárias: descobrir e decifrar as oposições binárias na mente social colectiva constitui a tarefa primordial do estruturalismo que do idealismo hegeliano retém uma dialéctica estacionária, carente de movimento no tempo e no espaço.
A vasta obra de Lévi-Strauss sofreu múltiplas influências: umas procedem da escola sociológica de Durkheim, outras da teoria linguística de Roman Jakobson e N.S. Troubetzkoy, outras da cibernética e da lógica das classes, mas de todas estas influências a mais marcante é a da tradição sociológica de Durkheim e, através dela, a da filosofia idealista de Kant. No seu Ensaio sobre a Dádiva (1924), Marcel Mauss descreveu a dádiva de presentes como um facto que penetrava todos os aspectos da vida social e cognitiva dos povos selvagens. Os primitivos trocavam tudo o que possuíam e produziam: produtos económicos, tecnologia, mitos, ornamentos e outros objectos. Por isso, Mauss considerava a troca social como um facto social total, isto é, como um princípio aplicável a todos os tipos de relações sociais. Esta troca social era governada por três tipos de obrigações: dar presentes, recebê-los e retribuí-los. No entanto, Mauss não conseguiu descobrir uma explicação satisfatória para esta lei fundamental da vida social, sendo levado a postular uma força mística, interna aos objectos trocados, que procura por si mesma a compensação e o equilíbrio. Lévi-Strauss clarifica o contributo de Mauss e dá-lhe uma explicação mais convincente. A tripla obrigação de dar, receber e retribuir não pode ser explicada adjudicando aos objectos trocados uma força intrínseca e misteriosa própria. De facto, o dom recebido e o dom devolvido não são, na maioria dos casos, comparáveis, nem pelo conteúdo, nem pelo seu uso, nem pela sua importância prática. A troca de dons é mais importante que os próprios dons. Mediante a troca contínua, criam-se entre os indivíduos e os grupos laços espirituais e alianças, que estabelecem e organizam entre eles sistemas de relações de complementaridade. Segundo Lévi-Strauss, o sistema de direitos e de deveres recíprocos é possível graças à própria estrutura do espírito humano, que funciona apreendendo similitudes e diferenças, organizando o universo e resolvendo as contradições que descobre nele. A novidade da abordagem estruturalista de Lévi-Strauss reside na ênfase que coloca nas próprias relações e não na natureza dos termos - os objectos trocados -, mediante os quais se estabelecem as referidas relações. Estas relações devem ser estáveis para evitar o afundamento do sistema, que releva de um conjunto de constantes relacionais estabelecidas entre os indivíduos e os grupos que formam o sistema. Lévi-Strauss chama estrutura social a este conjunto de constantes ou invariantes relacionais.
Na sua obra As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Lévi-Strauss aplicou o princípio da reciprocidade e a estrutura social ao estudo sistemático dos sistemas de casamento e do parentesco, analisando a mais universal das regras da cultura, o tabu universal do incesto, que encara como a origem da exogamia e das trocas matrimoniais. Para Lévi-Strauss, as regras da reciprocidade e da exogamia fundam-se na necessidade de resolver o problema das mulheres, desejadas ao mesmo tempo por cada um e por todos os homens. E, uma vez que as mulheres não podem ser possuídas ao mesmo tempo por vários indivíduos, os homens trocam as suas mulheres pelas mulheres - filhas ou irmãs - dos outros. Qualquer que seja a sua forma e o seu conteúdo, a reciprocidade constitui a regra suprema da dádiva. A função primordial do casamento é a ligação de duas linhagens ou de duas famílias sem laços entre si: cabe à mulher estabelecer essa ligação entre duas famílias ou duas linhagens. A mulher constitui o laço social que une na mesma sociedade as linhagens diferentes. Simone de Beauvoir ficou chocada com o papel atribuído à mulher: a mulher desempenha o papel de objecto de troca, tal como a moeda nas relações económicas. O papel da mulher está intimamente ligado ao princípio da exogamia: "Tens de escolher a tua mulher fora da tua linhagem, se quiseres ter relações sociais com outras linhagens". A regra da exogamia não é uma regra negativa que proíbe o casamento com primas ou irmãs, mas uma regra positiva que afirma a existência social dos outros, entre os quais se escolhem as mulheres: o princípio da exogamia assinala a necessidade de estabelecer alianças e laços sociais com outras linhagens ou famílias. A mesma interpretação pode ser dada do tabu universal do incesto: "Procura uma mulher fora do teu grupo social". Ora, um homem só pode pretender a irmã de outro se recusar a si mesmo a sua própria irmã, e só pode esperar que o outro lhe dê a sua irmã se estiver disposto a dar-lhe a sua própria irmã em troca: é a corporificação do princípio da troca recíproca, como o qual emerge a cultura (Yvan Simonis). Os supostos perigos dos casamentos consanguíneos são mais o resultado do que a explicação da proibição do incesto: o tabu do incesto especifica, como regra geral, que as pessoas consideradas como pais e filhos ou irmão e irmã, ainda que somente em nome, não podem ter relações sexuais e muito menos casar entre si, mas a sua função é claramente positiva, na medida em que estabelece a dependência mútua entre as famílias, compelindo-as, para que possam perpetuar-se, a dar origem a novas famílias e a novas alianças entre grupos potencialmente rivais. A fonte suprema do parentesco é a aliança matrimonial, cuja função é transformar o inimigo potencial ou real em parceiro ou aliado. Os bantos da região de Kavirondo diziam que "não se desposam os amigos, mas sim os inimigos": a troca de mulheres fomenta a criação de alianças entre grupos rivais e inimigos. Com base no trabalho de Lévi-Strauss, G. Devereux defende a hipótese de que no próprio acto de troca de irmãs há uma forte componente homossexual, aliás semelhante à postura de submissão, com ou sem penetração, exibida - entre os primatas - por um macho dominado perante um macho dominante. Para Devereux, o casamento é a primeira cerimónia verdadeiramente humana, cuja função biológica «é disfarçar a hostilidade sob a máscara da aliança, afirmar o acordo para evitar a rixa». Luc de Heusch retomou esta ideia etnopsiquiátrica para formular a hipótese da natureza homossexual das relações sociais, hipótese que entusiasmou François Jacob, Jacques Monod, Allan R. Gardner e Michael Chance: a homossexualidade insere solidamente numa ordem natural já fortemente cerimonial o acto fundador da ordem cultural. Um novo cerimonial, a entrega da irmã, substitui a entrega de si mesmo.
O livro Social Structure de G.P. Murdock sobre a família, o casamento e o parentesco apareceu no mesmo ano (1949) que As Estruturas Elementares do Parentesco de Lévi-Strauss, mas as abordagens teóricas dos dois autores são substancialmente divergentes. Para estudar a cultura, a antropologia estrutural utiliza os métodos linguísticos formulados por Saussure e Troubetzkoy, cujas regras básicas são as seguintes: 1) deslocar a atenção do estudo dos fenómenos conscientes para o estudo da sua infra-estrutura inconsciente; 2) analisar as relações existentes entre os termos, em vez de os tratar como fenómenos independentes; 3) utilizar o conceito de sistema e descobrir a sua estrutura; e 4) procurar revelar as leis gerais, quer por indução, quer por dedução lógica. A linguagem é, nesta perspectiva, uma infra-estrutura inconsciente, composta por unidades básicas que se relacionam umas com as outras, de maneira sistemática e estruturada, mediante regras fonológicas e gramaticais. Assim, por exemplo, alguns poucos fonemas ajudam a explicitar a estrutura completa de uma língua, mediante a aplicação de determinadas regras precisas. De modo análogo, todos os sistemas de parentesco constituem-se sobre a base de quatro termos de parentesco: irmão, irmã, pai e filho. As relações de consanguinidade entre membros de um mesmo tronco biológico, as relações de afinidade entre cônjuges e as relações de descendência entre pais e filhos instituem a estrutura básica do parentesco. Lévi-Strauss mostrou que os diversos tipos de parentesco podem ser explicitados segundo o tipo de autoridade estabelecida entre pai e filho ou entre tio materno e sobrinho, explicando assim uma série de sistemas de casamento através da descrição do tipo de relações estabelecidas entre os grupos. Em vez de propor um tipo concreto de explicação para cada um dos tipos de casamentos, Lévi-Strauss integra-os a todos, mostrando que cada um deles mais não é do que aplicação particular do princípio de troca. Entre os diversos modelos lógicos, o casamento entre primos cruzados matrilineares - casamento de um homem com a filha do irmão da sua mãe - é mais rico em termos de troca social que o casamento entre primos cruzados patrilineares - casamento de um homem com a filha da irmã do seu pai. Com efeito, o casamento entre primos cruzados matrilineares dá lugar a um tipo de troca simultânea, indirecta e generalizada, visto que os casais da troca se encontram inseridos e orientados no interior de uma estrutura social aberta. A linhagem A entrega as suas filhas à linhagem B e a linhagem B, entrega, por sua vez, as suas filhas à linhagem C, até fechar o ciclo. Cada grupo entrega uma mulher e recebe, em troca, outra mulher, embora nenhum grupo entregue a sua mulher ao grupo que lhe deu uma mulher. Pelo contrário, o casamento com primas cruzadas patrilineares não liga entre si todos os grupos da sociedade, mas apenas os casais dos grupos entre si, visto que, nesta forma de casamento, cada grupo deve devolver, na geração seguinte, uma esposa ao mesmo grupo de que tinha recebido uma mulher. Por conseguinte, este último tipo de casamento dá lugar a um ciclo de trocas directas, restringidas e consecutivas, que não abrangem o conjunto da sociedade. Segundo Lévi-Strauss, a oposição entre ciclos curtos e longos de troca mostra que a realidade dos fenómenos não pode ser procurada nos próprios factos, que podem ser obscuros e difíceis de compreender, mas nas relações entre esses factos que são mais fáceis de explicar. Assim, as regras de casamento são sistemas de relações e o estruturalismo aborda cada um destes sistemas como se fosse mais um caso de outra série de sistemas, procurando a explicação global de todos os sistemas ao nível das suas regras de transformação, que permitem passar de um sistema para outro sistema.
Lévi-Strauss aplicou este tipo de análise estrutural ao estudo dos mitos, que também podem ser explicados em função de algumas infra-estruturas inconscientes, isto é, dos elementos básicos que se combinam e se recombinam entre si para configurar os fenómenos culturais tais como nós os conhecemos. A investigação de Lévi-Strauss sobre a mitologia é uma tentativa ambiciosa de ordenamento de uma realidade incrivelmente complicada, cujas afinidades com O Ramo Dourado de James George Frazer são demasiado evidentes. Lévi-Strauss baseia-se em duas hipóteses básicas: os temas míticos só podem ser compreendidos por referência ao conjunto de que fazem parte, e à sua posição relativa nesse conjunto (1), e cada mito só pode ser entendido em relação a uma totalidade mítica, fundo comum sempre virtualmente presente e utilizado, em cada caso, de forma específica. Tal como sucede na linguagem, são as posições e as oposições que conferem pertinência aos elementos dos mitos e que constroem o significado, que só pode ser interpretado se se tiver em conta a posição que ele ocupa em relação a outros mitos no seio de um grupo de transformações. Cada sociedade explora a seu modo essa totalidade mítica. Embora a diversidade das formas míticas seja evidente, há acordo quanto aos mecanismos fundamentais: as oposições determinam o sentido de cada elemento e as correspondências entre elementos de níveis diferentes conduzem ao desenvolvimento de um imenso sistema de analogias. Como criador de culturas, o homem é essencialmente criador de linguagens que lhe permitem dominar o mundo, como demonstraram na peugada de Lévi-Strauss os estudos de Edmund Leach, Luc de Heusch e Mary Douglas. As infra-estruturas subjacentes aos fenómenos culturais são tão universais quanto as estruturas do espírito humano. Uma das estruturas mentais fundamentais é a tendência para operar segundo oposições binárias: a tendência para dicotomizar a realidade segundo categorias polares complementares. Assim, por exemplo, Lévi-Strauss atribui o totemismo ao facto dos primitivos distinguirem os grupos sociais - os segmentos - mediante a associação de cada um deles com uma espécie animal, vegetal ou similar. Para pensar de maneira concreta acerca dos diversos grupos sociais, os povos selvagens usam não só nomes de animais, mas também pares de nomes de animais pertencentes à mesma espécie, tais como águia/falcão ou mocho/coruja. Cada par compõe-se de animais diferentes, mas os animais desse par pertencem à mesma espécie, tal como dois clãs distintos entre si podem pertencer à mesma tribo. Deste modo, o totemismo mais não é do que uma linguagem concreta que serve para expressar a integração dos distintos segmentos sociais. Esta integração resulta da necessidade intrínseca que leva o espírito humano a superar e a reconciliar as diferenças existentes: «As espécies naturais escolhem-se não porque sejam boas para comer, mas porque são boas para pensar».
O estruturalismo de Lévi-Strauss adoptou a distinção capital e particularmente fecunda formulada por Ferdinand de Saussure entre língua (langue) e fala (parole): a língua é o conjunto dos signos que servem como meio de compreensão entre os membros de uma mesma comunidade linguística, enquanto a fala é o uso que cada membro dessa comunidade linguística faz da língua para se fazer compreender (Maurice Leroy, Giulio C. Lepschy). Segundo Saussure, o estudo da linguagem enquanto sistema fixo de regras gramaticais e sintácticas recorrentes (língua) difere do estudo da linguagem tal como é usada pelos utentes dessa mesma língua. O problema linguístico fundamental reside em determinar a estrutura recorrente da língua a partir dos dados empíricos proporcionados pela fala. No caso da cultura, o problema consiste em descobrir o conjunto constante de relações existentes entre os elementos básicos que se manifestam como fenómenos culturais. Segundo Lévi-Strauss, a vantagem do estudo das formas primitivas de organização reside no facto delas possibilitarem um acesso fácil às estruturas lógicas elaboradas pelo pensamento inconsciente. A estrutura «proporciona os meios para integrar aqueles factores irracionais surgidos do acaso e da história». Assim, a busca das estruturas lógicas subjacentes à diversidade dos fenómenos culturais exige necessariamente um estudo sincrónico dos costumes, isto é, um estudo da natureza intrínseca dos fenómenos culturais, antes de passar ao estudo das influências de elementos externos que operaram as transformações históricas (estudo diacrónico): «Ao mostrar as instituições no seu processo de transformação, a história torna possível abstrair a estrutura que subjaz às manifestações e que permanece idêntica através da sucessão dos acontecimentos». Contudo, ao rejeitar a primazia do estudo histórico, que «organiza os seus dados em relação com as expressões conscientes da vida social», a antropologia estrutural «dedica-se a examinar os seus fundamentos (ou estruturas) inconscientes». A adopção do modelo linguístico da fonologia pressupõe a inversão da relação sincronia-diacronia: já não é a diacronia, mas sim a sincronia que torna inteligível o aspecto diacrónico dos fenómenos culturais. Para Lévi-Strauss, a antropologia estrutural é o estudo científico dos subprodutos gerados pelas operações inconscientes do espírito humano. As operações mentais, isto é, as estruturas, representam o significado real da cultura. A abordagem estruturalista evita os perigos do relativismo, na medida em que as distintas culturas são consideradas como meros subprodutos distintos do espírito humano - nem melhores nem piores uns que os outros. Deste modo, os indivíduos estudados são considerados como meros geradores-portadores de cultura: as suas acções são vazias de todo o sentido que não seja o sentido subjacente que lhes é proporcionado pelas estruturas universais inconscientes. Daí que Paul Ricoeur tenha razão quando definiu o estruturalismo como um kantismo sem sujeito transcendental.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Sigmund Freud e o Contrato Social

«Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo acto de devorá-lo, realizaram a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte da sua força. A refeição totémica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma comemoração desse acto memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião». (Sigmund Freud)
A partir de 1912, Freud procura elaborar uma teoria da sociedade, recorrendo à analogia entre o individual e o colectivo. Tal como a neurose, a religião é causada por um recalcamento colectivo, cuja história Freud traçou em Totem e Tabu (1913). Freud recorre à ideia darwiniana segundo a qual a humanidade, nos seus inícios primordiais, viveu em hordas dominadas por um velho macho. Este pai violento e ciumento monopolizava as mulheres e o poder, mas à medida que os filhos cresciam tornavam-se potenciais rivais e foram expulsos pelo pai tirano. Porém, certo dia, os irmãos expulsos uniram-se, lutaram contra o pai e mataram-no. A unidade da horda foi ameaçada pela anarquia, porque «a necessidade sexual, longe de unir os homens, os divide. Se os irmãos estavam associados enquanto se tratava de suprimir o pai, tornavam-se rivais assim que se tratava de apoderar das mulheres» (Freud). Como todos desejavam as mulheres para si, a horda corria o risco de ser tomada por uma luta fratricida - a guerra de todos contra todos de Hobbes - que ameaçava provocar a ruína do grupo. O meio descoberto para proteger a unidade do grupo foi o sentimento de culpa causado pelo assassínio do pai. Para punir e negar o assassínio, proibiu-se aquilo que o pai primordial já proibia: a acesso a todas as mulheres. A proibição do incesto - e o concomitante princípio da exogamia - assume a culpa e rege a sociedade. Além disso, depois de terem morto o pai, os filhos comeram-no: as práticas totémicas resgatam este acto canibal e apagam-no. Com o objectivo de apaziguar os seus veementes sentimentos de culpa e de provocar uma reconciliação, pelo menos simbólica, com o pai, os irmãos edificaram um sistema totémico, por meio do qual encontraram um substituto para o pai num animal cuja vida tinha de ser protegida e venerada como sagrada. Mediante a criação e o estabelecimento de certos tabus em relação ao totem e a realização de ritos de sacrifício, sob circunstâncias apropriadas, o permanente sentimento de culpa era suavizado, ao mesmo tempo que o acontecimento original era esquecido. O totemismo é uma espécie de acordo com o pai: continuando a viver eternamente, num sentido simbólico, o pai protege - através dos poderes mágicos do totem - e revela indulgência, em troca do compromisso de honrar e respeitar a sua vida, proscrevendo a morte do animal totémico. Porém, com o decorrer do tempo, a ânsia pela presença do pai fez com que o seu poder e a sua liberdade atingissem as dimensões de um ideal: alguns indivíduos foram investidos nas qualidades do pai ideal e converteram-se em deuses paternais. O animal totémico perde a sua condição sagrada e passa a ser sacrificado num ritual mediado por um sacerdote em honra do deus tribal. O sistema totémico culmina no predomínio da autoridade e a sociedade sem pai caminha gradualmente para uma sociedade patriarcal. Com o surgimento de reis divinos, o sistema patriarcal é transferido para o Estado. Segundo Freud, todas as religiões posteriores tentaram resolver o mesmo problema do abrandamento da culpa e da conciliação com o pai através da obediência, ao mesmo tempo que nas suas cerimónias comemoravam o triunfo filial sobre o pai. Graças à ambivalência, os desejos dos filhos contra o pai exprimem-se pela sua própria conversão em deus ao lado ou mesmo no lugar do pai. De acordo com a lei da represália, um assassínio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: a morte sacrificial do filho efectua a reconciliação com o pai, especialmente quando se renuncia à mulher por culpa da qual os filhos mataram o pai. O conceito cristão de pecado original do homem exprime uma ofensa contra Deus, o Pai, e a humanidade só foi redimida pelo sacrifício de Cristo, Deus, o Filho. O sacramento cristão da Eucaristia exprime os efeitos subsequentes do acto original.
Nesta reconstrução histórica, Freud associa intima e necessariamente civilização e repressão das pulsões, sendo incapaz de conceber uma civilização sem repressão (Reich, Marcuse). Como modelo de todas as sociedades que lhe sucederão, a horda adquire e garante a sua coesão social pela canalização dos desejos individuais para tarefas socialmente úteis e pela supressão impiedosa de todas as tendências centrífugas. Se não conseguir alcançar essa coesão pelo poder absoluto de um indivíduo - o grande homem de Freud, consegue-o pela coerção cultural colectiva: o sentimento de culpa veiculado por todas as religiões, depois do totemismo, oferece esse meio de coerção. Com o totemismo, manifestam-se certos sentimentos de santificação do sangue comum que garantem a solidariedade da vida no seio do clã ou mesmo da tribo. O fratricídio é proibido e os sentimentos sociais emergem. A sociedade funda-se na cumplicidade pelo acto criminoso comum, enquanto a religião evolui a partir dos sentimentos de culpa e do remorso. A moralidade fundamenta-se na necessidade de expiar o sentimento comum de culpa: os primórdios da religião, ética, sociedade e arte encontram-se no complexo de Édipo. Ao elaborar a teoria de uma psique colectiva, freud procura explicar a continuidade da vida emocional da humanidade: a indivíduo traz consigo, ao nascer, fragmentos de origem filogenética, isto é, uma herança filogenética que «inclui não só disposições, mas também conteúdos ideacionais, vestígios na memória das experiências de gerações anteriores». Além disso, o indivíduo sofre, no decurso do seu desenvolvimento, numa forma abreviada, a repetição dos acontecimentos mais importantes de um processo que ocorreu antes do alvorecer da história. Para se tornarem efectivas, essas disposições requerem incentivos colhidos na própria vida do indivíduo, que, na sua actividade psíquica inconsciente, possui um dispositivo que o habilita a interpretar as reacções dos outros. É esta compreensão inconsciente que permite adquirir o legado de sentimentos das gerações mais remotas. Quando articulada com a teoria do grande homem que influencia os seus contemporâneos mediante a sua personalidade ou mediante as ideias que defende, a psicanálise tende a fazer a apologia da autoridade, adjudicando-lhe "o papel de Superego na psicologia de massas" e alegando o carácter inato da submissão das massas.
Freud retoma o problema clássico da filosofia liberal do Estado, dando-lhe outra solução: Como obrigar um grupo de indivíduos isolados, animados de um poder que os opõe uns aos outros, viver juntos e aceitar a repressão das suas tendências egoístas e agressivas? A posição de Thomas Hobbes (1588-1679) é sobejamente conhecida e, de certo modo, foi retomada por Jean-Paul Sartre na Crítica da Razão Dialéctica: Hobbes demonstra no Leviatã como a sociedade se constituiu a partir de um «estado de natureza» no qual o homem, pelo simples jogo da sua actividade natural, é levado a combater os outros. É para pôr fim a esta luta perpétua de todos contra todos que os homens decidem entregar os seus poderes ao Estado. O cálculo racional era a solução proposta pela filosofia liberal clássica: cada homem sente que tem interesse, a longo prazo, no estabelecimento da sociedade e, por conseguinte, admite, pelo contrato social que funda o Estado, renunciar a uma parte das suas aspirações e dos seus poderes. É esta renúncia de todos que permite a vida em comum. No entanto, Freud descarta esta solução clássica, porque, naquela época remota, os homens estavam demasiado dominados pelas suas pulsões para que tal lucidez fosse possível. Eles renunciaram à guerra de todos contra todos por causa do efeito neurótico de um sentimento de culpa: o recalcamento assegura o contrato social da teoria clássica. Mas a neurose que funda a paz não é uma neurose feliz, porque a religião assegura a repressão de um modo pouco económico: cria tensões afectivas muito fortes, impede o desenvolvimento da razão e apoia-se numa base que continua a ser irracional e patológica.
O jogo entre repressão, recalcamento e sublimação reafirma, na obra de Freud, a ideia de que o indivíduo humano é profundamente associal: «Cada indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização que no entanto funciona no interesse da humanidade em geral» (Freud). Os homens são inimigos da civilização por duas ordens de razões: primeiro, porque não gostam do trabalho, e, segundo, porque são dominados por paixões sobre as quais os argumentos racionais nada podem. É preciso reprimir essas tendênciais associais para levar os homens a viver pacificamente uns com os outros. O recalcamento inaugurado pelo totemismo e prosseguido pelas outras formas de religião constitui uma maneira patológica de rejeitar o que no homem se opõe à civilização. Apesar de ter contribuído para domar os instintos associais, a religião não conseguiu transformar os homens fazendo-os amar a civilização: a técnica utilizada pela religião para ajudar os homens a viverem entre si e a protegerem-se contra a natureza «consiste em diminuir o valor da vida e em deformar de maneira delirante a imagem do mundo real, atitudes que têm por postulado a intimidação da inteligência. A este preço, fixando à força os seus adeptos a um infantilismo psíquico, e fazendo-os partilhar um delírio colectivo, a religião consegue poupar a muitos seres humanos uma neurose individual, mas é quase tudo» (Freud). Freud está ciente da necessidade de substituir a religião por um meio análogo ao que é a sublimação no caso do indivíduo: uma aceitação lúcida e racional, sem culpabilidade, das prescrições da sociedade. Freud confia essa missão à ciência que tem o futuro a seu favor: a religião está condenada, a longo prazo, a ceder-lhe o lugar. Até que se realize no futuro essa sublimação, a civilização continuará a fundar-se no recalcamento, realizando de uma maneira neurótica uma repressão necessária. A concepção freudiana do mundo não é original: a problemática de conjunto de Totem e Tabu evoca as teorias liberais do direito natural e, em O Futuro de uma Ilusão, Freud usa a expressão estado de natureza para designar a fraqueza humana e a guerra de todos contra todos, que eram o destino dos homens sem a civilização. Porém, embora restaure uma ideologia caduca que o seu próprio trabalho teórico ajudou a abater, Freud rompe com a ideia de escolha lúcida que acompanha a teoria do contrato, porque essa ideia se apoia numa noção da consciência que a psicanálise arruinou.
J Francisco Saraiva de Sousa