sábado, 29 de dezembro de 2007

Violência Doméstica

Em Portugal, a violência doméstica é muito mais frequente do que se pensa e, no entanto, é um fenómeno pouco estudado. Os portugueses têm esse hábito terrível que é omitir tudo aquilo que os revele ou fingir que nada de grave se passa com eles. E, quando se tomam algumas medidas legislativas, estas são claramente discriminatórias: a violência doméstica é vista como um fenómeno que ocorre unicamente no seio de casais heterossexuais. Mais um sinal da ausência de cultura jurídica democrática e liberal! Portugal silencia as suas "vítimas" para manter o seu auto-retrato de um «país de brandos costumes», apesar dos meios de comunicação social exibirem imagens e notícias de violência preocupante, incluindo homicídios.
Apesar das dificuldades teóricas, metodológicas e sociais, existem já muitos estudos (Neilson, 2004; Brand & Kidd, 1986; Burke & Follingstad, 1999; Bryant & Demian, 1994; Gardner, 1989; Bradford, Ryan & Rothblum, 1994; KurdeK, 1994; Marrujo & Kreger, 1996; Merrill, 2001; Miller et al, 2001; Poorman & Seelau, 2001; Renzetti, 1992) que mostram que os incidentes de violência ocorrem frequentemente tanto nos casais heterossexuais como nos casais homossexuais (11-12%). Estes estudos refutam a premissa de que a violência é perpetrada somente por homens heterossexuais sobre mulheres heterossexuais e sugerem que a violência doméstica constitui um "abuso de poder" que pode ocorrer em qualquer tipo de relação íntima, independentemente do género ou da orientação sexual (Rohrbaugh, 2006).
Além disso, os tipos de violência (abuso físico, abuso sexual e abuso psicológico) são similares em todos os casais, excepto no caso das vítimas do mesmo-género sofrerem frequentemente de stress adicional devido ao seu isolamento (social e jurídico) e ao medo de que o abusador(a) possa expor, de modo hostil, a sua (das vítimas) orientação sexual. Aliás, em Portugal, as vítimas tendem a silenciar os abusos que sofrem nas suas relações íntimas, até mesmo das famílias, talvez porque, neste país, algumas das características extravagantes dos abusadores (infidelidade conjugal, agressividade, falsas imagens de masculinidade, alcoolismo, homofobia suspeita, o ditado segundo o qual "entre marido e mulher não se deve meter a colher", heterosexismo irracional) sejam admiradas e incentivadas publicamente.
As características dos abusadores parecem ser similares em todos os tipos de relações. Geralmente, os abusadores têm uma história de doença mental grave e foram abusados durante a infância. Os abusadores também são emocionalmente dependentes, sentem-se impotentes, tendem a responsabilizar os outros pelos seus problemas e usam a violência como um meio para impor poder, controle e dominação nas suas relações íntimas. É provável que o tipo de violência seja mais suave nos casais do mesmo-género do que nos casais de diferente-género, mas alguns estudos mostraram que a violência do mesmo-género não se reduz somente ao abuso ou terrorismo íntimo, mas abrange igualmente o uso de violência física e psicológica para dominar, controlar, intimidar e degradar o parceiro(a).
Os dados da nossa pesquisa de campo revelam uma associação forte entre o abusador e o seu papel sexual preferido: os homens gay sexualmente activos e as lésbicas do tipo "butch" tendem a usar mais a violência física do que os seus parceiros com preferências sexuais complementares às suas. Contudo, nos casais homossexuais masculinos a escalada de violência pode ser muito grave, porque as vítimas tendem a defender-se mais do que as vítimas heterossexuais femininas. O isolamento social é favorecido pelo abusador e a vítima pode ficar completamente isolada, até mesmo da família e dos amigos, e perder a oportunidade de uma vida profissional segura, com graves efeitos na sua saúde.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Genes, Agressão e Exclusão Social

A sociologia torna-se cada vez mais inimiga da biodiversidade e procura igualar irracionalmente todos os homens, como se estes fossem biologicamente uma massa amorfa susceptível de ser moldada milimetricamente pela cultura ou pela sociedade! Os seus adeptos deviam meditar mais sobre as realidades sociais e históricas e concluírem que a "sua" suposta «natureza humana» não é uniforme e moldável, sobretudo aqueles adeptos que reclamam a herança de Marx. O suposto sociologismo de Marx foi um tremendo erro teórico e político: a igualdade procurada tornou-se totalitária e absolutamente irracional. O sociologismo é a ideologia dos "fracos", isto é, daqueles que reivindicam sem fazer nada para que o mundo mude qualitativamente: os seus adeptos negam sistematicamente a evidência e a visibilidade, a sua e a dos outros, são rápidos a atribuir culpas mas não assumem as suas próprias responsabilidades, e tendem a alimentar-se da pobreza.
Falam de exclusão social e de violência, não para pensar estes fenómenos e ajudar a combatê-los, mas para se livrarem das suas próprias responsabilidades na sua produção e manutenção. O seu raciocínio sobre a criminalidade (em sentido lato e abrangente) é simples: um mau meio ambiente produz más pessoas, donde resulta a proposta: o crime combate-se melhorando as condições de vida e universalizando o ensino, independentemente de outros factores. Contrariamente às suas expectativas pseudo-humanitárias, esta maneira de encarar a criminalidade e a agressão é tão reaccionária quanto a dos burocratas de colarinhos-brancos: todos associam pobreza e violência, como se todos os pobres fossem criminosos e todos os ricos fossem uns "santinhos"! Pura ideologia usada de modos diferentes para obter o mesmo resultado: a negação das diferenças biológicas!
Sem pretender abordar a biologia da agressão e do comportamento antisocial, vou dar apenas um exemplo: aquele que foi chamado pelos meios de comunicação social «o gene do crime». Hans G. Brunner et al. (1993) estudaram uma família holandesa que sofria de uma misteriosa doença. Os sintomas eram o atraso, a agressão e o mau comportamento e as vítimas eram apenas alguns homens. Os outros homens eram felizes e saudáveis e nenhuma das mulheres tivera quaisquer sinais da doença. Como não havia um único caso de um pai afectado ter tido um filho afectado e dado que os homens perturbados se encontravam relacionados através das mães, Brunner suspeitou do cromossoma X.
Para localizar o gene, Brunner et al. (1993) analisaram o ADN dos membros da família, usando marcadores, e descobriram que todos os homens com mau comportamento tinham uma variação num determinado marcador, e que os homens saudáveis tinham um condimento diferente. O gene responsável era e é o da monoamina oxidase A (MAOA), uma das enzimas que decompõem a serotonina, um neurotransmissor associado com comportamento violento (baixos níveis de serotonina causam agressão), bem como a dopamina e a norepinefrina (Shih et al., 1999). A enzima que deveria decompor a serotonina encontrava-se "morta" nos homens violentos que possuíam a mesma mutação (uma simples alteração de base) no gene da monoamina oxidase A.
Cases et al. (1995) realizaram uma experiência de mutação com ratos e descobriram que os ratos com a eliminação do gene da monoamina oxidase A mordiam e atacavam os outros ratos sem terem sido provocados. Os ratos deficientes tornaram-se ratos assassinos e maus parceiros sexuais.
Um estudo mais recente, levado a cabo por Eisenberger et al. (2006), mostrou que a deficiência de monoamina oxidase A está ligada nos humanos a elevada sensibilidade às experiências sociais negativas, tais como a exclusão social. Como mostraram os estudos que utilizam ressonância magnética funcional, o córtex do cíngulo anterior dorsal está envolvido nessa hipersensibilidade. (A sua remoção diminui a agressividade.)
Este estudo mostra claramente que o gene MAOA é um importante preditor de risco de agressão, além de chamar a atenção para os factores sociais que contribuem para a hipersensibilidade às experiências sociais negativas. Ao contrário do que pensam os sociólogos ambientalistas e behavioristas, a chamado "determinismo biológico" ajuda a tomar medidas sociais e políticas mais racionais e, por isso, mais eficazes no combate contra a exclusão social, a pobreza e os seus efeitos negativos.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Filosofia do Corpo

A filosofia contemporânea procura repensar em termos positivos o corpo e, neste esforço, vai ao encontro da preocupação fundamental de Maurice Merleau-Ponty, de Wittgenstein ou mesmo de Jean-Paul Sartre. Apesar do interesse contemporâneo manifestado pelo corpo, frequentemente associado ao nome de Michel Foucault, ainda carecemos de uma teoria geral do corpo, capaz de apresentar uma síntese activa dos conhecimentos científicos disponíveis sobre o corpo na sua "unidade dinâmica" com o self e a agência e nas suas relações como o mundo e os outros, com os tempos e com os espaços. De certo modo, António Damásio tem razão quando reivindica um papel central para o corpo na resolução do problema cérebro-mente.
Giddens parece ser o único teórico social a tentar integrar o corpo numa teoria abrangente, mas à custa de menosprezar os conhecimentos biológicos e médicos a favor da teoria social. A sua tese de que «o self está encarnado num corpo» já tinha sido enunciada por Merleau-Ponty numa tentativa derradeira de superar o dualismo da tradição judaico-cristã e grega. Contudo, qualquer tentativa teórica de superar o dualismo pode converter-se, nas actuais circunstâncias, em mera ideologia, isto é, mera justificação das assimetrias de poder e da dominação económica.
Michel Foucault analisou o corpo em relação aos mecanismos do poder, destacando a emergência do "poder disciplinar" em circunstâncias de modernidade. Para Foucault, o corpo torna-se no foco do poder e o poder nas sociedades modernas, em vez de tentar "marcar" o corpo externamente, como nos tempos pré-modernos, sujeita-o a uma disciplina interna de auto-controle e, através de múltiplos mecanismos disciplinares, produz "corpos dóceis". A visão do corpo aqui presente é incompleta e absolutamente acrítica. Foucault ilude a relação entre corpo e agência, torna-os equivalentes, como se corpo mais poder fosse igual a agência! Conforme lembra Giddens, a disciplina corporal é intrínseca ao agente social competente e constitui uma característica contínua do fluxo de conduta na duração da vida diária.
Sob a influência de Nietzsche, Foucault procura "demarcar" a sua teoria do poder da teoria marxista, sem se aperceber que a filosofia de Nietzsche que o inspira é infinitamente inferior à filosofia de Marx. A atenção e o modo como tratou a sexualidade revelam a fragilidade da sua teoria do corpo. Actualmente, a afirmação do corpo tende a identificar-se com a afirmação da sexualidade encarada numa perspectiva consumista. O corpo como "ser sexuado" (Merleau-Ponty) possibilita facilmente essa falsa manobra de superação do dualismo a favor de um discurso redutor: aquele que afirma que o corpo mais poder é igual a agência. Ao abolir o self, a teoria do corpo tende necessariamente a glorificar a ordem estabelecida, cujos poderes produzem corpos dóceis e passivos à custa da fragilização do self e da atrofia das suas competências cognitivas.
A sobrevalorização e a domesticação da sexualidade ou mesmo da moda neutralizam a força do pensamento negativo e do seu agente. A superação teórica do dualismo é, portanto, mero reflexo dos imperativos económicos. A noção marxiana do corpo como «feixe de necessidades» revela o carácter colonizador do poder económico, como demonstrou Marcuse, ao mesmo tempo que possibilita a elaboração de uma economia política do corpo. A afirmação nietzscheniana do corpo é, no fundo, um pensamento decadente que capitula diante da sociedade estabelecida: o corpo como único veículo da identidade social, como mostraram Goffman ou Umberto Eco, significa que o self está "ausente" ou, pelo menos, que se tornou demasiadamente frágil, impotente e incapaz de pensar por si próprio. A sua relação com o corpo tornou-se hetero-instrumental (a economia precisa de corpos consumidores, passivos e destituídos de self autónomo) e auto-fetichista (o eu esgota-se na superfície corporal, frequentemente sujeita a mutilações, perfurações ou tatuagens, muitas das quais identitárias).
A colonização económica do corpo parece indicar que, nas actuais circunstâncias, todas as tentativas monistas de superar o dualismo, quer numa direcção materialista, quer numa direcção espiritualista, correm o risco de glorificar a sociedade estabelecida e, portanto, incapazes de apresentar alternativas sociais qualitativas. Os monismos esquecem que o "cogito encarnado" num corpo (Merleau-Ponty) pode entrar em conflito com o seu próprio corpo, como acontece em determinadas perturbações, tais como o transexualismo vulgarmente definido como «uma mente feminina prisioneira num corpo masculino». Esta perturbação pode ser vista como uma perturbação da identidade corporal movida pelo desejo de automutilação ou auto-amputação, e, como tal, pode funcionar como modelo na elaboração de uma teoria negativa do corpo articulada com uma teoria do self no âmbito da antropologia filosófica, portanto, dialéctica.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Espinosa e a Política

«O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autómatos: é fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a liberdade». (Espinosa)
Ao contrário do que pensa António Damásio, a filosofa de Espinosa (1632-1677) teve um enorme impacto no pensamento moderno e, de certo modo, ainda não foi avaliado dignamente o seu contributo político, com excepção da obra de Jean-T. Desanti.
As ideias políticas de Espinosa foram expostas em duas obras: O Tratado Teológico-Político, publicado em 1670, com uma falsa indicação quanto ao lugar onde foi editado, e o Tratado Político, publicado em 1677, após a morte de Espinosa. Estes dois tratados só podem ser compreendidos no âmbito geral da filosofia de Espinosa, tal como se exprime na Ética ou mesmo no Tratado da Reforma da Inteligência, ambas publicadas em 1677. Penso, aliás na peugada de Althusser, que esta última obra inacabada representa uma promessa de mudança radical de paradigmas: a problemática da filosofia do conceito, em vez da problemática da filosofia da consciência ou mesmo do paradigma da filosofia da comunicação, para já não falar da problemática ontológica. Dado não termos elaborado esta filosofia do conceito, torna-se muito mais difícil avaliar o contributo de Espinosa no domínio da política e do Estado.
O Tratado Teológico-Político submete a religião a uma crítica sistemática: uma crítica exemplar dos textos e uma crítica dos milagres e das profecias. Para Espinosa, a Escritura é uma obra humana e, portanto, falível, como procura demonstrar quando destaca as suas contradições. Esta crítica dos textos é dotada de uma enorme qualidade hermenêutica. Espinosa defende o divórcio entre a teologia e a filosofia, entre a fé e a razão: «O objecto da filosofia é unicamente a verdade; o da fé (...), é apenas a obediência e a piedade». Portanto, entre a Filosofia e a religião «não existe nenhuma relação nem qualquer afinidade«.
A terceira parte do Tratado Teológico-Político (capítulos XVI a XX) conjuga a crítica da cidade terrena e da cidade de Deus, para mostrar que o Estado possui um fundamento natural e racional, não teológico. Espinosa defende um regime liberal, não só em matéria religiosa, mas também em matéria política. A «liberdade de filosofar» é fundamental para a manutenção da paz no Estado e da piedade. Espinosa faz baixar a razão à Terra e tenta expulsar o temor e o ódio, de modo a introduzir o livre raciocínio na matéria religiosa e a mostrar que os homens devem ser julgados pelos seus actos. A liberdade de pensamento emana do próprio direito natural. Daí que «ninguém seja obrigado, consoante o direito natural, a viver segundo a vontade alheia, e que cada um seja o protector inato da sua própria liberdade». É certo que os homens podem transferir o seu direito natural, mas «ninguém pode despojar-se completamente do seu direito natural e (...) os súbditos, por consequência, conservam sempre alguns direitos que lhes não podem ser negados sem que isso constitua um perigo para o Estado».
Uma vez que a verdadeira finalidade do Estado deve ser garantir a liberdade, Espinosa critica severamente os governos monárquicos e defende o governo democrático: o Estado democrático é aquele que «me parece o mais natural e o que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um». «Em democracia, com efeito, ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anteriormente no estado de natureza». A democracia é, segundo Espinosa, o único regime capaz de garantir «a manutenção da liberdade», desde que os cidadãos não alienem completamente os seus direitos naturais.
Espinosa tem consciência do carácter paradoxal da condição humana e sabe que os homens, apesar de serem naturalmente livres, não sabem ser livres, preferindo alguma forma de escravatura. «Porque ninguém, na realidade, é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão». Aqui reside o núcleo da crítica da actual sociedade de consumo e da sua ideologia de mercado, que fazem do homem um escravo do tipo "besta ou autómato", portanto, um ser racionalmente reduzido ou atrofiado que alienou completamente o seu direito natural, isto é, a sua liberdade. «Ninguém, com efeito, pode alguma vez transferir para outrem a seu poder e, consequentemente, o seu direito, ao ponto de renunciar a ser um homem». Ora, é isso que está a acontecer nas democracias ocidentais: os indivíduos renunciam aos seus direitos naturais e, portanto, renunciam à sua condição humana. Marx, um leitor atento de Espinosa, lutou contra a escravidão laboral da classe operária e pelo seu reconhecimento político. Reler Espinosa à luz das actuais circunstâncias políticas e económicas é restituir o liberalismo radical à teoria de Marx e elaborar uma nova política de Esquerda, aquela que visa reformar o Estado de modo a que este cumpra a sua verdadeira finalidade: garantir a liberdade e combater a corrupção que fez da democracia "representativa" um regime cleptocrático, portanto, uma oligarquia simulada. A teoria de Marx é profundamente liberal, avessa a uma "leitura comunista", de resto equivalente à democracia cleptocrática vigente e seu "centralismo democrático" (conceito não-marxista), onde uns poucos (as classes dirigentes) julgam que só eles sabem tudo e querem que tudo seja orientado segundo a sua maneira de ver, aquela que avalia tudo em função da sua ambição e do seu lucro pessoais. A "ditadura do proletariado" (outro conceito não-marxista) corresponde à "ditadura das classes dirigentes" vigente nas sociedades ocidentais, sobretudo europeias: os seus rostos são mais estalinistas do que o próprio Estaline!
(Veja Damásio e Espinosa.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 23 de dezembro de 2007

Feliz Natal

(Acabo de editar 4 textos no meu blogue «NeuroFilosofia»: Damásio e Espinosa, O Cérebro Social, Cérebro, Amor Romântico e Amor Maternal e Cérebro e Beleza.)
Desejo a todos os meus leitores e amigos e amigas online e offline um bom Natal.
Regresso após o Natal, a menos que haja qualquer acontecimento que mereça a minha atenção ou que o queira partilhar convosco. Contudo, posso editar novos posts nos outros meus blogues, mas ainda não decidi.
Deixo um Soneto a Orfeu (XII) de Rainer Maria Rilke, traduzido por Paulo Quintela:
«Glória ao Espírito que nos pode unir;
pois em verdade vivemos em figuras.
E a passos curtos andam os relógios
junto ao nosso dia genuíno.
«Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou.
«Pura tensão. Ó música das forças!
Não é pelas ocupações cómodas
cada perturbação desviada por ti?
«Mesmo quando o campónio cuida e age,
onde a semente no Verão se transforma,
nunca ele lá chega. A Terra dá presentes
Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 22 de dezembro de 2007

Pornografia e Agressão Sexual

Malamuth et al. (2000) e Testa (2002) mostraram que o consumo de álcool e a exposição à pornografia, nomeadamente à pornografia violenta, contribuem independentemente para um aumento da agressão sexual dos homens em relação às mulheres.
O mecanismo subjacente a esta relação pode ser a excitação sexual masculina. Para testar a hipótese de que a erotização da violência e a presença de álcool, através dos seus efeitos sobre a excitação sexual, influenciam a frequência de agressões sexuais cometidas por homens e por eles relatadas, K.C. Davis et al. (2006), usando um procedimento experimental bem delineado, concluíram que a excitação sexual era uma componente importante na predição da frequência de agressão sexual cometida e relatada pelos homens após terem sido expostos à pornografia violenta. Lalumiere et al. (2003) e Malamuth et al. (1980) já tinham demonstrado que a excitação sexual desencadeada por estímulos sexuais violentos leva os homens a cometer violação. Não é tanto a intoxicação alcoólica mas sobretudo a crença da vulnerabilidade das mulheres alcoolizadas à agressão sexual e a suposta resposta da vítima durante a violação que influenciam a excitação sexual masculina, tornando os homens propensos a cometer agressões sexuais sobre as mulheres.
Este estudo, bem como muitos outros similares, têm levado muitos investigadores a interrogar-se sobre os efeitos nefastos da pornografia. Assim, por exemplo, C.N. Kendall (2004) contesta vivamente duas afirmações interligadas, geralmente aceites pelas pessoas: 1) a pornografia homossexual não produz o mesmo tipo de injúrias ou ofensas causadas pela pornografia heterossexual, e 2) a pornografia homossexual é fundamental para a formação da identidade gay e para a libertação dos homens gay. (Nenhuma destas afirmações é completamente falsa, se tivermos em conta que os homens homossexuais são estigmatizados e obrigados a levar uma vida clandestina, embora isto não evite os efeitos negativos do consumo de pornografia, sobretudo violenta.)
Para Kendall (2004), a diferença de tratamento entre as pornografias heterossexual e homossexual é não só inaceitável do ponto de vista jurídico, como também muito perigosa, dada a elevada incidência de violência doméstica e de violação na comunidade gay masculina. Além de denunciar a pouca atenção prestada aos conteúdos específicos da pornografia gay, Kendall (2004) defende que estas duas pornografias assentam ambas numa hierarquização dos sexos ou de género discriminatória e reificam a concepção da sexualidade normalizada, promovendo a violência, a degradação e a ausência de reciprocidade, e encorajando as práticas sexuais destrutivas e ofensivas por parte daqueles que consomem esses materiais. Embora Kendall (2004) tenda a exagerar os efeitos danosos das pornografias, existem outros estudos que lhe fornecem evidência interessante, embora mais escassa.
Um desses estudos foi realizado por Langevin & Curnoe (2004), que estudaram 561 ofensores ou abusadores sexuais do sexo masculino: 181 eram abusadores de crianças, 144, abusadores de adultos, 223, abusadores de familiares (incestuosos), 8, exibicionistas e 5, mistura de casos. 17% desses abusadores usou a pornografia durante a execução das suas ofensas sexuais, sobretudo os que abusaram crianças. Destes últimos, 55% mostrou materiais pornográficos às suas vítimas e 36% tirou fotografias, frequentemente de vítimas infantis. Nove casos estavam envolvidos na distribuição de pedopornografia. Estes resultados mostram que a pornografia desempenha um papel pouco relevante na prática das ofensas sexuais em geral, embora tenha um papel de relevo no abuso sexual de crianças.
Estudos como estes parecem indicar que a pornografia é um fenómeno extremamente complexo e que, antes de avançar com medidas que tendam a ilegalizá-la ou controlá-la, convém fazer mais estudos, em função da distinção clara de tipos de pornografia, dos seus conteúdos e dos seus consumidores, associados a outras variáveis, algumas das quais referidas anteriormente. A única afirmação que podemos fazer com segurança é a de que a pornografia violenta excita sexualmente os homens e leva-os a cometer agressões sexuais com os seus parceiros, independentemente de serem heterossexuais, bissexuais ou homossexuais. Este facto bem estabelecido justifica a afirmação comum de que a pornografia é "uma indústria masculina, produzida por homens e para homens" (Kinsey).
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Sequelas do Abuso Sexual

O abuso sexual está na ordem do dia.
Largas centenas de pesquisas são realizadas por todo o mundo e surgiram diversas revistas científicas dedicadas ao abuso sexual, sobretudo infantil e adolescente. Muitas destas investigações, cujos resultados são publicados em revistas de prestígio, estão imbuídas de preconceitos sociais e, sem o pretender, prestam-se a apropriações ou leituras menos adequadas por parte de membros terroristas de certas seitas religiosas, de jornalistas pouco escrupulosos e de cidadãos muito mal informados e oportunistas. Apesar disso, tem havido uma evolução na qualidade dos estudos. Um aspecto comum a quase todos esses estudos é o de que o abuso sexual infantil e adolescente tem consequências negativas, as chamadas sequelas, na saúde mental (fraca adaptação social, pouca satisfação com a vida e diversos sintomas psicológicos) e no comportamento sexual adulto (sexo casual frequente, precocidade na iniciação sexual, sexo desprotegido, múltiplos parceiros sexuais ou elevado número de doenças sexualmente transmissíveis diagnosticadas). O uso de técnicas mais apuradas tem mostrado a necessidade de isolar características e estabelecer associações mais sofisticadas mediante o uso da análise de variância. São os resultados desses estudos que pretendo expor e talvez discutir.
Não pretendo fornecer uma definição de abuso sexual, simplesmente porque penso que qualquer pessoa bem informada e dotada de bom senso sabe distinguir um comportamento de abuso sexual susceptível de ser condenado e punido e um comportamento sexual não-abusivo. As meta-análises realizadas mostraram que o abuso sexual infantil e adolescente está associado com o subsequente comportamento sexual adulto de risco. Contudo, muitos estudos negligenciaram os efeitos da força e o tipo de abuso sexual sobre o comportamento sexual subsequente.
Num estudo recente, T.E- Senn et al. (2007) investigaram, numa amostra 1177 participantes (534 mulheres e 643 homens), as associações entre características de abuso sexual, nomeadamente o uso da penetração e da força, e o comportamento sexual de risco posterior, levando em conta a modelação destas relações pelo género. Os resultados mostraram que os participantes que tinham sido alvo de abuso sexual envolvendo penetração e/ou força relataram mais comportamentos sexuais adultos de risco, tais como o número de parceiros sexuais ao longo da vida e o número de diagnósticos de doenças sexualmente transmissíveis (STD), do que aqueles que não tinham sido sexualmente abusados e aqueles que foram abusados sem o uso de força ou de penetração.
Esta relação é claramente moderada ou mediada pelo género da criança e adolescente. Assim, entre os homens, o abuso sexual com uso da força e da penetração estava associado com um elevado número de episódios de "trading sex", enquanto, entre as mulheres, o abuso sexual com penetração, independentemente do abuso envolver ou não o uso da força, estava mais associado com um elevado número de episódios de "trading sex". Resultados semelhantes já tinham sido descobertos por Rind et al. (1998): as reacções dos rapazes ao abuso sexual são menos negativas do que as reacções das raparigas. Além disso, levando em conta a orientação sexual, constata-se que os rapazes homossexuais encaram essas relações sexuais com indivíduos mais velhos de um modo positivo e "construtivo". De facto, numa sociedade que os priva de modelos positivos de desenvolvimento e os estigmatiza, estas relações são vistas pelos próprios sujeitos como uma via que lhes permite "actualizar" a sua orientação sexual e receber algum afecto. (Os nossos dados mostram claramente que os homens e mulheres homossexuais portugueses falam naturalmente dessas relações sem as encarar como abuso sexual e, muito menos, como relações pedófilas.) Para todos os efeitos, este e outros estudos mostram que o abuso sexual mais severo está associado com comportamento sexual adulto de risco e, no caso dos homens homossexuais, esse comportamento consiste em fazer sexo desprotegido (Jinich et al., 1998), mesmo quando sabem ser seropositivos.
Finkelhor & Browne (1985) elaboraram o modelo dinâmico traumagénico que permite explicar a associação entre diversos tipos de abuso sexual e os comportamentos sexuais adultos de risco, em alternativa ao modelo do uso de álcool e de drogas (Steele & Josephs, 1990). De acordo com este modelo, uma das consequências do abuso sexual é a sexualização traumática. A criança submetida a abuso sexual pode desenvolver scripts não-adaptativos para o comportamento sexual e, quando adultas, podem acreditar que o sexo é necessário para obter afectos ou carinho dos outros, levando-as a ter sexo consensual precoce e com múltiplos parceiros sexuais (Cinq-Mars et al., 2003; Fergusson et al., 1997). Outra consequência é a impotência: a criança aprende que as suas necessidades são ignorados pelos outros e, deste modo, pode falhar em desenvolver auto-eficácia para travar os avanços sexuais não-desejados. Este é apenas um modelo que não é incompatível com o modelo do uso de álcool ou de drogas, como se verifica facilmente nos estudantes universitários portugueses (abuso de álcool, drogas e sexo e muito pouco estudo!) e nas suas praxes académicas, as quais deviam ser fortemente vigiadas ou mesmo abolidas. Mas ambos os modelos são ainda insuficientes para explicar estas associações estatísticas, até porque menosprezam os factores biológicos.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Mário Soares e a Filosofia

Infelizmente este título promete mais do que aquilo que posso dar, dado não ter tido a oportunidade de ler as obras de Mário Soares. Conheço apenas o político e é com atenção que acompanho o seu novo programa na RTP1.
Hoje (20 de Dezembro de 2007) o cenário foi Córdova e Lisboa, na Mesquita e na Sinagoga. E, neste episódio, Mário Soares reafirmou a sua herança iluminista, portanto, racionalista e enciclopedista, na defesa do «triângulo» maçónico, ou seja, liberdade, igualdade e fraternidade, os ideais da Revolução Francesa.
Ao ouvir Mário Soares a falar dos gregos, dos romanos ou até de ilustres filósofos árabes e judeus, embora com especial inclinação para os gregos (Sócrates, Platão e Aristóteles), em detrimento de Séneca ou mesmo dos estóicos, tomei verdadeiramente consciência da sua sólida formação filosófica e da sua competência intelectual, portanto, de tudo aquilo que faz dele um grande político: uma visão profunda de onde estamos, donde vimos e para onde devemos ir. De facto, o título diz isso: «O caminho faz-se caminhando». É esta sólida formação cultural e humanista que está perigosamente ausente nos actuais lideres europeus, entre os quais convém destacar o «santanista francês», Nicolas Sarkozy.
Pelo que escutei, posso dizer que Mário Soares se demarcou claramente da religião, sem a condenar, ou, como dizemos em linguagem filosófica, traçou uma linha de demarcação entre a filosofia e a religião, ao mesmo tempo que afirmou implicitamente que a filosofia tem relações privilegiadas com a ciência, por um lado, e com a política, por outro. Esta é uma tomada de posição filosófica forte e edificante, em consonância com as linhas orientadoras da nossa tradição crítica, à qual não é estranha a formação socialista, portanto, marxista, de Mário Soares. E como esta posição parece estar tão próxima de Platão! É habitual destacar a influência ou o carinho com que Marx lia Aristóteles e com razão, mas Platão não era de todo estranho a Marx, até porque a história da filosofia tem sido apresentada como um comentário de rodapé da obras de Platão.
Mário Soares recordou que a espiritualidade não é religiosa, como todos sabemos, e acrescenta que, entre as diversas ordens ou congregações religiosas, prefere a franciscana, não só pelo seu pai ter sido franciscano, mas também porque os valores da pobreza e da solidariedade devem estar acima do «ouro», o símbolo do dinheiro, bem representado nos altares da Catedral (ex-mesquita) de Córdova. A mensagem política foi claramente percebida: Opus Dei merece atenção severa e oposição crítica e todos sabemos como ela age e se alastra perniciosamente em certas instituições públicas do Estado, atropelando os verdadeiros candidatos aos postos do Estado: os mais competentes, os democratas, os republicanos e, sobretudo, os socialistas.
Como filósofo, Mário Soares situa-se no território certo, aquele que tem orientado a nossa tradição crítica, reforçada pela sua opção política correcta (a luta pela liberdade e pela justiça social) e pela sua «indiferença» em relação à questão da existência de Deus. Se a «vocação» é uma graça concedida por Deus, como dizem os católicos, Mário Soares não foi alvo dessa graça divina: aos sete anos recusava rezar com o pai e aos 11-12 anos foi a Fátima cumprir uma promessa da sua mãe que o fez sentir-se ridículo e envergonhado. Seguramente não foi tocado pela graça de Deus, ou melhor, aos sete anos já estava imunizado contra a endoutrinação ou endoculturação católica. Isto não significa que não admire a figura de Cristo como homem prenhe de ideais, bem presentes na configuração da nossa Civilização Ocidental.
Dada a sua «indiferença religiosa» (uso o termo no sentido da etnometodologia), Mário Soares está bem colocado para fomentar o diálogo entre culturas e civilizações, mas recusando a reactivação das velhas mesquitas, convertidas após a Reconquista em templos cristãos. Este aspecto é fundamental para a defesa da identidade cultural da Península Ibérica, que, como se sabe, foi povoada por árabes. Mário Soares é um ocidentalista convicto e com conhecimento profundo nessa matéria. E, como nos relembrou Heidegger e, antes dele, Hölderlin, entre tantos outros, «a nossa cultura fala grego».
Todas estas indicações que procurei articular aqui, sem me alargar, mostram que Mário Soares é o maior político português e europeu, pelo menos da actualidade, apesar de pertencer a uma fornada de grandes lideres políticos, muitos dos quais já desaparecidos, com a qual José Sócrates e tantos outros políticos da nova geração ainda têm muito a aprender.
Não estou a criticar o PM; muito pelo contrário, acompanho-o sempre que diz que um homem deve estar sempre a aprender. Bem, o PM prefere falar das qualificações, talvez por equívoco, porque qualificação não é o mesmo que estar sempre aberto aos ensinamentos dos outros. Gaston Bachelard disse isso numa forma espectacular: «Todos somos alunos e é nessa condição de abertura permanente ao conhecimento que podemos lançar luz sobre a realidade» (Trata-se de uma citação de cabeça, portanto, não rigorosa.).
Uma última palavra: Pacheco Pereira devia ser esquecido pelos portugueses, porque a sua falsa-cultura é a do ódio e da vingança, e não a da tolerância e da verdade!
J Francisco Saraiva de Sousa

A Noite e o Medo

É sobejamente conhecida a tese de Max Weber de que a racionalização ocidental mais não é do que «desencantamento do mundo»: a modernidade como desencanto que, neste momento, abriga no seu seio forças regressivas que retomam temas arcaicos cujo conteúdo já não é actual. O «regresso do sagrado», sobretudo do «sagrado mágico», tomado no seu sentido vasto e pluricultural, é uma dessas forças que parece estar a passar por um momento de «revitalização». Contudo, esta «revitalização» é mais aparente do que real, simplesmente porque a electricidade venceu o medo e iluminou o seu abrigo, a noite. A luz suplantou a força das trevas e aprisionou-a. Os homens, mesmo os ilhéus de Dobu, já não temem a noite; pelo contrário, festejam na noite iluminada.
O discurso cosmológico contemporâneo, num movimento paradoxal de retoma da grande metanarrativa e, ao mesmo tempo, de negação da sua plausibilidade, privou a noite do seu mistério. Porque é que a noite é negra? A cosmologia responde a esta questão chamando a atenção para dois elementos: Primeiro, porque o universo não é eterno. Segundo, porque o universo é hoje transparente em direcção ao futuro. Estes dois elementos reconduzem-nos, como nos lembra Hubert Reeves, à teoria da expansão universal, mais conhecida por teoria do big bang. O universo tem idade: a luz das estrelas espalha-se num espaço cada vez mais vasto, sempre em expansão, e os fotões emitidos não têm praticamente nenhuma possibilidade de serem capturados no futuro. Portanto, é a expansão do universo que nos fez passar do período do céu brilhante para o período presente, tornando-se, a este título, responsável pela existência da noite, tão temida pela humanidade até à descoberta da electricidade que a tornou iluminada, portanto, visível, sem segredos.
Como estamos longe da imaginação poética de Hesíodo que, na sua Teogonia, faz este relato do começo do mundo:
«Primeiro que tudo houve o Caos, e depois
a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses,
domina o espírito e a vontade esclarecida.
Do Caos nasceram o Érebo e a negra Noite
e da Noite, por sua vez, o Éter e o Dia.
A Terra gerou primeiro o Céu constelado,
com o seu tamanho, para que a cobrisse por todo
e fosse para sempre a mansão segura dos deuses bem-aventurados.
Gerou ainda as altas Montanhas, morada aprazível
das deusas Ninfas, que habitam os montes cercados de vales». (Tradução de Helena da Rocha Pereira.)
Porém, de acordo com os sinais do tempo passado, o homem é o ser que não consegue viver num mundo destituído de sentido, isto é, num mundo caótico e, por isso, prefere conciliar o inconciliável fingindo viver num cosmos. Era assim que se pensava, mas, olhando ao nosso redor, já não conseguimos vislumbrar uma silhueta que corresponda a este conceito. O desencantamento desencantou o próprio homem e, neste mundo metabolicamente reduzido, nada está a salvo da destruição consumista, até mesmo a imaginação poética. Apenas meia dúzia de guardiões continua a sonhar com o mundo perdido.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Natal, Dor e Prazer

Hoje (18 de Dezembro de 2007), pela primeira vez, assisti parcialmente a um programa da RTP1 dedicado ao Natal, uma iniciativa conjunta da Cruz Vermelha, Modelo e RTP1 que este ano resolveram destacar os mais velhos. Escusado será dizer que esse programa exibiu todas as suas figuras colonizadoras em triplicado geracional ou quase: avós, pais e netos, e, como seria de esperar em Portugal, os mais novos tendem a seguir as carreiras dos mais velhos, como se a "vocação" fosse milimetricamente controlada pelos genes! E como se os mais velhos tivessem tido uma carreira brilhante feita à medida dos seus luso-genes e da arquitectura neural que eles controlam! De facto, o melhor título deste programa seria "As Gerações Colonizadoras".
O meu tom irónico já foi suficiente para mostrar o que penso desta iniciativa e, por isso, posso abordar um outro assunto mais interessante. Os sociólogos têm o velho hábito de falar sobre o declínio da família e já o fazem desde sempre. Ainda recentemente Giddens voltou a este tema, associando-o com a globalização. Contudo, os estudos empíricos que disponho, e são largas centenas, mostram que os europeus estão cada vez mais familiares. Aliás, a família funciona como o último e o derradeiro refúgio, aquele que os protege da estranheza e do anonimato. Este facto não tem nada de surpreendente, até porque a família não é uma construção social: as suas raízes profundas são biológicas e é como manifestação biosocial que deve ser compreendida.
A família é cada vez mais valorizada e a prova disso está no facto do Natal ter-se convertido numa festa familiar. Independentemente da confissão religiosa ou ausência dela, o Natal tende a ser festejado por todas as famílias: é fundamentalmente uma reunião familiar.
As famílias são cada vez mais afectivas, isto é, os pais desenvolvem com os seus filhos uma relação mais afectiva. O desenvolvimento normal das crianças depende muitíssimo da qualidade destas relações afectivas, como demonstrou a teoria da vinculação. Contudo, a qualidade destas relações pais/filhos merece uma crítica. Os pais procuram proporcionar aos seus filhos aquilo que não tiveram ou obtiveram dos seus próprios pais. Isto é particularmente evidente em Portugal: as gerações mais velhas não tiveram vida facilitada, nem as oportunidades de que desfrutam as gerações mais novas, simplesmente porque o país era pobre e muito atrasado em termos sociais e culturais. Este passado de carência persegue os portugueses que tudo fazem para o esquecer, desenvolvendo o "trauma de que o rigor disciplinar e educativo" tem efeitos negativos sobre o desenvolvimento das crianças e dos jovens, trauma que se reflecte até mesmo nas escolas e com maus efeitos visíveis, entre os quais a indisciplina e a violência que, ao contrário do que diz a Ministra da Educação, estão presentes diariamente na maioria das escolas ou mesmo em todas as escolas, com manifestações abertas ou mais veladas.
As crianças e os jovens são mimados e as suas necessidades são satisfeitas. Amor e prazer unem-se de tal modo que estas crianças acabam por converter-se em meros reivindicadores, intolerantes e incapazes de fazer frente às adversidades da vida. Por isso, tornam-se agressivas, indisciplinadas e dependentes de tudo, até mesmo das drogas, do álcool e do sexo. Não são pessoas alegres e não têm grande auto-estima. Enfim, são pedintes, eternos pedintes, que não sabem que o acto de receber deve ser retribuído. A troca, no sentido de Marcel Mauss - Dar, Receber e Retribuir - é-lhes completamente estranha. E isto acontece porque foram protegidas da adversidade, da dor e do sofrimento: não sabem o que é fazer um sacrifício. As suas necessidades e desejos foram, de algum modo, satisfeitas e nunca souberam o que é a privação. Não valorizam a vida, o esforço e a competência. São zombies!
Konrad Lorenz mostrou que, devido à progressiva dominação técnica da natureza, o homem moderno deslocou o mecanismo neurofisiológico da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando: «A crescente intolerância para com o desprazer — conjugada com a atenuação do poder atractivo do prazer — induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis, cuja promessa de prazer reside no resultado posterior. Origina-se assim uma exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam», de resto alimentada e incrementada pelos produtores, pelas empresas comerciais e pelas diversas indústrias juvenis.
Este esforço imoderado para evitar a todo o custo o menor sentimento de incomodidade impossibilita inevitavelmente certas formas de prazer. Ao reprimir a hipersensibilidade ao sofrimento, o homem moderno vedou a si mesmo o acesso à alegria: «Conhece o gozo, mas não a alegria (...). A crescente intolerância actual a respeito do sofrimento transforma os altos e os baixos da vida humana, comandados pela natureza, em superfície artificialmente nivelada; das grandes vagas, com suas cristas e depressões, faz uma vibração a custo perceptível; da luz e da sombra, origina um cinzento uniforme. Numa palavra, prepara um tédio mortal». Enfim, um homem que foge da sua própria sombra!
De facto, estes jovens de hoje são insuportáveis e, durante a nossa pesquisa de terreno, verificámos que, apesar dos homens preferirem parceiros ou parceiras mais novas do que eles próprios, já nem este traço evolutivamente estável os leva a procurar a companhia dos mais jovens, que nem para parceiros sexuais são desejados. Verdadeiramente insuportáveis, vazios e destituídos de profundidade! Movem-se em manada e não sabem para onde querem ir ou para onde são conduzidos: "gado doméstico", obesos, pouco inteligentes, incultos, incapazes de pensar e muito pouco alegres. Esta é a juventude poupada da punição!
Até um filósofo tão hedonista como Herbert Marcuse reconheceu, na sua obra «O Homem Unidimensional», que a consciência feliz resultante da satisfação das necessidades instintivas gera submissão e facilita a aceitação dos malefícios de uma sociedade não-livre. Até mesmo o proletariado deixou de ser uma classe potencialmente revolucionária a partir do momento em que muitas das suas reivindicações foram satisfeitas. As pessoas que desconhecem a insatisfação tornam-se apáticas e conformistas e, como foram poupadas do sofrimento, da dor ou da privação, não sabem o que é a alegria resultante de uma conquista difícil. Além disso, «o resultado (deste pseudo-educação ou pseudoformação cultural) é a atrofia dos órgãos mentais» (Marcuse). Os jovens estão cada vez mais ignorantes e, por conseguinte, mais intolerantes, incapazes de perceber as contradições e as alternativas da sociedade estabelecida. Os seus diplomas são basura (lixo) e é isso que o "plano tecnológico" teima em não compreender, o que o pode condenar a ser mais um fiasco da política portuguesa.
A dor e o prazer são as duas faces da mesma moeda: qualquer uma delas proporcionada em detrimento da outra não produz pessoas alegres, que passam pela vida sem saberem o que a vida significa. Por conseguinte, apesar da coexistência destas três gerações e das diferenças que as parecem separar, vistas à luz deste mecanismo neurofisiológico elas situam-se numa linha de continuidade que promete não mudar nada em Portugal, negando-lhe sempre um futuro qualitativamente diferente do passado que se prolonga ao longo das gerações.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Adorno, Dialéctica e Astrologia

Theodor W. Adorno (1903-1969) escreveu três ensaios que merecem ser lidos em conjunto: «Meinung, Wahn, Gesellschaft» (1963), «Aberglaube aus Zweiter Hand» (1957) e «Theorie der Pseudokultur» (1959). Contudo, a sua compreensão requer a leitura da obra conjunta de Horkheimer & Adorno (1947), «Dialetik der Aufklärung», em particular do capítulo «Indústria Cultural», aliás escrito exclusivamente por Adorno.
Desses três ensaios iremos destacar «Superstição de Segunda Mão», onde Adorno faz uma análise de conteúdo qualitativa da coluna astrológica de um grande jornal americano, Los Angeles Times, um jornal republicano de Direita, à luz da dialéctica ou, pelo menos, da sua própria concepção da dialéctica marxista.
Em Portugal, como no resto do mundo, todos os leitores de jornais e de revistas, uns mais do que outros, uns com mais convicção do que outros, consultam o horóscopo, na expectativa de encontrar provavelmente algum conforto psicológico ou solução milagrosa para uma situação difícil que estão a viver ou a garantia de que o dia será favorável à realização dos seus desejos, embora também possam ver as suas expectativas positivas frustradas. Contudo, a análise social e dialéctica dos horóscopos deve considerá-los mais do que um "espelho do leitor" ou mesmo como um «retrato» do espírito objectivo daqueles que os fazem. «Os horóscopos são, como afirma Adorno, resultado de um cálculo e expressão» tanto dos leitores como dos seus «produtores», cuja teia de relações recíprocas só pode ser interpretada quando se leva em conta esta textura na sua totalidade, sempre mediada e fundida com todo o social. Estas relações não são relações de proximidade e não ocorrem em encontros face a face, mas relações em que os participantes comunicam entre si através de processos mediadores estranhos, em particular os jornais e as revistas onde podem consultar o seu signo sem despender muito dinheiro ou mesmo de forma grátis. O ocultismo mediado é sempre muitíssimo mais barato do que a consulta de um astrólogo no seu pseudo-consultório.
Convém ter em conta que a irracionalidade plasmada nos movimentos de massas, neste caso na astrologia, não opera para além da racionalidade, mas aparece com o desenvolvimento da própria razão subjectiva. De facto, os movimentos ocultistas modernos, como a astrologia, são formas de superstição de épocas passadas e já mortas ressuscitadas artificialmente, cujos conteúdos retomados são incompatíveis com o nível alcançado pelo esclarecimento universal. Isto significa que não devemos separar os dois momentos, o racional e o irracional, entre os quais se estabelece uma acção recíproca. Se no passado mais ou menos distante a astrologia era a tentativa de resolver questões que não poderiam ser solucionadas de um modo distinto e razoável, na nossa época moderna a astrologia foi rejeitada pela astrofísica e a alquimia pela química. A astrologia e a alquimia foram refutadas respectivamente pelo progresso dos conhecimentos astrofísicos e químicos. Apesar disso, as pessoas que as tentam reconciliar, reunir ou tolerá-las em conjunto efectuam uma "regressão intelectual ou cognitiva" que, nos tempos arcaicos, era desnecessária.
Ora, isto só pode ser feito pelo facto de existirem necessidades instintivas que levam os homens a agarrar-se a estas superstições. A sobrevivência num mundo objectivamente irracional como o nosso exige a sua aceitação e, uma vez que os homens sentem que não controlam as suas próprias vidas, é-lhes mais fácil aceitar o veredicto dos astros que não são sujeitos do que tentar compreender racionalmente a situação presente. Entre a "opção" de compreender racionalmente a irracionalidade da situação presente e a sua aceitação sem resistência, as pessoas "optam", sem disso terem consciência, pela sua aceitação, de modo a garantir a sua mera sobrevivência. Ora, «o horóscopo dirige-se a leitores que são ou se sentem dependentes: supõe a debilidade do eu e a impotência social real» (Adorno).
O eu é débil porque a pessoa é obrigada a assumir a pesada tarefa de se orientar num mundo que não compreende e de encontrar nele o seu rumo e formar a sua identidade, quando sente que, por si própria, não é capaz de o fazer. A opção esbarra com a sua impotência social objectiva de mudar o que quer que seja na situação presente e, por isso, é levada a procurar uma fórmula mágica e fatalista, aquela que lhe é apresentada no horóscopo como "destino". Escolhe, portanto, a solução mais fácil e entrega-se ao destino que, em vez de autonomia, oferece-lhe a resignação, de modo a fomentar o conformismo social. A sociedade impõe a via da individualização, ao mesmo tempo que a bloqueia. Para evitar o risco e a ameaça, procura protecção no horóscopo, mas este é mera ideologia: anuncia o status quo, levando as pessoas a aceitar e a reconhecer os valores apresentados, nomeadamente a validez do princípio de competência, cuja única medida é o sucesso. Ao ensinar os homens a renunciar ao seu interesse em benefício dos seus interesses, o horóscopo captura a pessoa singular pelos inumeráveis tentáculos do mundo administrado, levando-a a "funcionar" em conformidade com os papéis que lhe são impostos pela sociedade.
Apesar da astrologia constituir no actual nível de desenvolvimento social um anacronismo quanto ao seu conteúdo, a receptividade permanece a mesma por razões sociais e psicológicas. A astrologia constitui superstição de segunda mão, simplesmente por ser mediada pelos meios de comunicação social: a relação entre os produtores e os leitores não é directa mas mediada pelos jornais e as revistas. A confiança na força da própria razão e da possível racionalidade da totalidade é destruída e a moda astrológica usa e estimula esse espírito de regressão, para afirmar o que existe como algo dado naturalmente e reforçar o conformismo social: os indivíduos são assim levados a aceitar o seu destino, quando na verdade é a sociedade que lhes impõe esse destino como algo objectivamente incontornável, diante do qual não há nada a fazer. Pura ideologia! Cabe à dialéctica orientar a praxis correcta com uma teoria que «pense o todo na sua não-verdade».
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Max Scheler e a Antropologia Filosófica

«Sem o homem, nada poderia ser pensado e transmitido». (Ernst Bloch)
A filosofia só se emancipou da teologia no século XVII, quando Descartes avançou com a fórmula: «O homem é uma máquina na qual reside um espírito imortal». Este esquema dualista cartesiano mostrou-se eficaz para a organização dualista de todas as ciências: as ciências do espírito e as ciências da natureza, mas a filosofia não se tornou ateia. É certo que o corpo foi interpretado no sentido das ciências naturais recentemente descobertas, como um corpo entre outros corpos, mas o espírito não foi desligado dos argumentos teológicos, até porque Descartes nunca impugnou o tema da criação.
Isto significa que a tese da teologia, segundo a qual o homem é obra de Deus, criado de um modo imediato, unindo a um corpo material uma alma espiritual, individual e imortal, não sofreu grandes sobressaltos, coexistindo quase pacificamente com os métodos dos biólogos, dos fisiólogos e dos químicos aplicados ao estudo do corpo. Mas a alma humana era estudada pela psicologia e as suas manifestações eram estudadas pela linguística, pela lógica e por outras ciências do espírito.
O idealismo alemão interrompeu esta evolução por um curto período de tempo: Kant, Fichte, Hegel e Schelling não filosofaram como dualistas, mas como "espiritualistas" no sentido de terem espiritualizado completamente o homem, e alguns deles voltaram a aproximar a filosofia da teologia, embora a fenomenologia hegeliana possa ser interpretada como uma secularização da antropologia judaico-cristã. Schopenhaeur foi dualista. Apenas os discípulos de Esquerda de Hegel, em particular Feuerbach e Marx, conseguiram emancipar a antropologia filosófica da teologia e, nessa luta contra a prisão teológica, Darwin teve uma palavra muito decisiva, sobretudo quando afirma que o homem descende de um «macaco».
Contudo, o contributo destes e de outros pensadores, tais como Nietzsche, é demasiado conhecido e, por isso, preferimos falar daquele que tem sido considerado como o verdadeiro fundador da antropologia filosófica: Max Scheler (1874-1928), cuja obra Die Stellung des Menschen im Kosmos foi publicada precisamente no ano da sua morte, em 1928.
Com efeito, esta obra introduziu uma mudança radical no modo como coloca o problema do homem: o homem já não é interpretado na sua relação com Deus, mas na diferença essencial entre o homem e o animal. Ao colocar a diferença entre o homem e o animal no centro da discussão antropológica, Scheler é levado a distinguir duas maneiras de ser, voltando assim à indagação do problema biológico do homem, abandonado durante muito tempo aos cuidados de zoólogos e de médicos na qualidade de «antropologia física» ou, como se prefere hoje dizer, de »antropologia biológica». Scheler defendeu que no que distingue o homem dos animais mais inteligentes (inteligência, fantasia, memória, capacidade de selecção, uso de ferramentas) somente existe uma diferença de grau, mas não uma diferença essencial, o que parece estar demasiado próximo da nossa moderna visão do assunto.
Para Scheler, o princípio especificamente humano que constitui a diferença essencial seria um princípio oposto à vida, a que chamou espírito. A essência do espírito foi definida pela sua capacidade de desligar-se da pressão do biológico e de libertar-se da dependência da vida. Assim, o homem como ser portador de espírito já não está determinado pelos seus instintos e já não se adapta ao seu meio ambiente como um animal. Ele é capaz de elevar o meio ambiente à objectividade e, portanto, capaz de distanciar-se desse meio dado. Isto significa que o princípio especificamente humano é precisamente esta objectividade, esta liberdade de origem interna, esta possibilidade do conhecimento e da acção humanos de ser determinados pelo modo de ser das coisas, tenham ou não valor biológico.
Assim, Scheler pode afirmar que o homem tem o «mundo», tem uma esfera aberta de coisas, e que está «aberto ao mundo». O homem pode objectivar-se a si mesmo e possui autoconsciência. Esta auto-objectivação (ou auto-alienação) e o tomar distância (ou colocar-se de lado), capacitam-no para reprimir os seus próprios impulsos e tendências e, portanto, resistir a si mesmo e aos seus próprios fenómenos vitais. Isto faz potencialmente dele um ser moral, ou seja, um ser que «diz não» à sua própria vida e que é capaz de uma conduta ascética, mediante a repressão ou o controle dos seus impulsos.
É através desta autonegação que o espírito ganha a sua energia, sobretudo quando Scheler parece encarar o espírito, pelo menos nos últimos anos da sua vida, como um adversário da vida.
A título de resumo, podemos sintetizar os resultados de Scheler nas seguintes teses:
1. delineou sobre o fundo da vida animal a tese da abertura do homem ao mundo;
2. afirmou que o anímico, isto é, a sensibilidade, a fantasia, a memória, o sentimento, etc., eram fenómenos vitais não essencialmente distintos dos fenómenos propriamente biológicos;
3. afirmou que o espírito significava a capacidade de libertar-se das pressões biológicas e, deste modo, de elevar-se acima do meio ambiente.
Contudo, embora convincente, a antropologia de Scheler limita-se a deslocar o dualismo, o qual já não se estabelece entre o corpo e a alma, mas entre o espírito e o «corpo animado», chegando ao extremo ao opor o espírito à vida e reconhecendo a sobrevivência da pessoa humana para além da morte. A sua concepção de homem ainda é claramente «centrada» e este centro a partir do qual o homem executa os actos conscientes através dos quais objectiva o mundo, o seu corpo e a sua alma, não faz parte deste mundo. Assim, o espírito não é apenas algo distinto da vida, mas também algo distinto do mundo, que poderá estar relacionado com o corpo e a alma humanos num "Além" sobre o qual Scheler não disse nada. «O homem é, diz Scheler, o ser superior a si próprio e ao mundo». Ora, este dualismo renovado de Scheler foi superado por dois dos seus discípulos: Plessner e Gehlen, sobre os quais já falámos noutros posts.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 16 de dezembro de 2007

A Alma na Era do Consumo

Arnold Gehlen escreveu uma obra fantástica, «Die Seele im Technischen Zeitalter», que, apesar de ter sido traduzida para o português, permanece estranha à «alma lusitana». Toda a sua obra gira em torno do «problema do Homem», que foi tratado na sua obra fundamental de antropologia filosófica, «Der Mensch, seine Natur und seine Stellung in der Welt», e, na primeira obra referida, embora posterior a esta última, analisa, numa perspectiva psicosociológica, o homem moderno na era da técnica.
Aparentemente, a sua teoria parece não ultrapassar aquela exposta por David Riesman: a do indivíduo «manipulado de fora» (alterdirigido), isto é, a do indivíduo como receptor e utente de sinais de radar. Esta figura contemporânea de indivíduo é o resultado, objectivo e subjectivo, do processo de industrialização que introduziu uma cesura na história do homem, o que possibilita falar do limiar daquilo que Gehlen chamou posthistoire, frequentemente pensada como precursora ou mesmo o anúncio da pós-modernidade.
Porém, a teoria de Gehlen é mais ambiciosa, dado abranger a arte (estética) e a moral, bem como o problema da autoridade funcional, em vez da estratificação em classes sociais, a atenuação social da desigualdade de bens, não confirmada pelas recentes transformações sociais, e a cultura industrial global. Mas, dado uma análise completa do seu pensamento estar fora do escopo deste post, penso poder concentrar-me na sua noção de "experiência em segunda mão" e definir o indivíduo predominante na sociedade actual como um «ser em segunda mão»: Cada um traz na cabeça um mundo imaginário de informações acumuladas sem sentido, com escassa coesão, consistindo somente de esboços de resultados e processos cujo valor objectivo e verdadeira substância está fora do alcance do seu julgamento, mas que parecem ser peremptórios e de palpitante interesse. Esta experiência em segunda mão estende-se a todo o planeta (Gehlen). Por conseguinte, o nosso mundo pode ser descrito como um caos de informação incoerente de material imaginário, a descoberto e inacabado, que se encontra em rápida transformação e, ademais, superiluminado (Gehlen).
Bombardeado permanentemente por este caos de informações incoerentes, difundidas pelos mass media e pela publicidade manipuladora, a formação de opiniões dispensa o processo de elaboração individual e acaba por se reduzir à aquisição passiva de "opiniões em segunda mão", o que no plano da moral se traduz por uma "moral em segunda mão". Tudo isto somado mostra que vivemos ou, pelo menos, caminhamos para uma situação em que a esgotamento do pensar desqualifica definitivamente o ser humano. (Fenómeno observado frequentemente na blogosfera e na incapacidade dos bloguistas criarem a sua própria agenda, sem serem vítimas das práticas de agenda-setting impostas pela mediasfera.)
De facto, hoje olhando, já na proximidade do Natal, para a enchente de pessoas que acorrem às grandes áreas comerciais, em busca de produtos de consumo, dificilmente descobrimos, por detrás dos seus rostos, a presença, ainda que atrofiada, de um self (eu) capaz de pensar por si próprio e de controlar o seu próprio projecto de vida. Os olhares - observados com atenção - revelam ser metabolicamente reduzidos e, portanto, incapazes de pensar. Esta incapacidade de pensar significa efectivamente a desqualificação da humanidade desses animais entregues exclusivamente ao intercâmbio metabólico com a natureza, de preferência sem trabalho e esforço, alterdirigidos por informações emitidas que não compreendem, até porque todas as suas faculdades mentais ou cognitivas estão mais ou menos atrofiadas. Até a sua vida sentimental passou a ser em segunda mão.
Estas criaturas saturadas movem-se por habituação, são apáticas e esquecem com muita facilidade. Alheadas do mundo e distantes da realidade, são uma farsa, com exterior, ainda que obeso, mas sem interior: puros vazios heterónomos dirigidos por radares ou por estímulos condicionantes. Tudo se converteu numa encenação através da qual as massas recebem passivamente estímulos e obedecem-lhes cegamente. (O tipo de pessoa que aceita facilmente um líder autoritário ou que aderem facilmente ao fascismo!)
Estas observações dificilmente parecem ser concordantes com a «imagem do homem» proposta filosoficamente por Gehlen na sua opus magnum: o "ser carencial" e "destituído de instintos", "precocemente nascido" e, portanto, necessitário de um longo processo de maturação, devido à sua "imaturidade", que só pode sobreviver como "ser de cultura" e "de acção", para superar a sua fragilidade biológica que faz dele um "ser em risco", parece não ser muito adequada ao estudo fundamentado da situação do homem na era da técnica, ou melhor, na era da "ditadura do consumo". A sua fraqueza congénita ou constitucional é compensada pela sua "abertura ao mundo" e pela sua capacidade de mudar o mundo, transformando-o num mundo de cultura que possibilita o desenvolvimento normal. Contudo, para ser um ser de cultura e de acção, o homem precisa de ser dotado de um órgão especializado, o cérebro sofisticado, portanto, uma especialização que faz dele um ser capaz de criar o seu próprio mundo. Embora não dotado de muitas especializações, aquelas que podemos observar noutros animais, o homem é dotado da maior especialização, o cérebro humano e a sua infinita curiosidade, que lhe permite superar as suas fragilidades instintivas ou morfológicas.
Ora, se esta perspectiva for verdadeira, teremos de concluir que o homem como ser em segunda mão deixou-se aprisionar num sistema que o reduz à sua animalidade frágil, ideia retomada de Herder: aquela que o torna novamente um ser carente, mas, desta vez, destituído daquelas características que poderiam fazer dele um animal humano: um ser que precisa de agir para criar um mundo de cultura que compense a redução dos seus instintos. O homem consumidor "abdicou" da sua humanidade a favor da sua animalidade, tornando-se um ser a-cultural, apático, inactivo e domesticado.
Convertida em bens de consumo ou em opiniões em segunda mão, a cultura foi transformada em nada, ou seja, foi liquidada, e, sem ela, o homem comporta-se como um animal que reage passivamente a estímulos, como se fosse destituído de alma! A cultura de consumo é uma cultura sem alma, portanto, anticultura, e, segundo a sentença racionalista que diz que os chamados "animais irracionais" não têm alma, mas apenas um corpo mecânico que reage de forma programada, portanto, condicionada interna ou externamente, este homem carente de alma pode muito bem vir a ser tratado como "gado doméstico", o que já vai acontecendo cada vez mais no nosso mundo global. A sua existência justifica a escalada de violência que observamos por todo o mundo e, se nada for feito, só nessa violência poderá ser forjado um novo tipo de humanidade, capaz de retomar a sua herança cultural.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 15 de dezembro de 2007

Júlio Dinis e o Porto de 1855

«Para não compreender isto, para não respeitar este sagrado direito, que tem todo o acusado de se defender, é necessário estar corrompido até ao fundo da alma. O cepticismo e a irreverência para com os outros só se dá em quem duvida de si próprio, e a si próprio se não respeita, porque se conhece». Júlio Dinis/A Morgadinha dos Canaviais
Júlio Dinis (1839-1871) é o escritor português do século XIX que melhor expressão deu à "ideologia burguesa" (Lukács), precisamente aquela exaltada por Marx e Engels no «Manifesto do Partido Comunista».
Portuense, médico e filho de mãe inglesa, Júlio Dinis «formou-se na atmosfera de um home, e assimilou os costumes, educação e mentalidade da burguesia britânica» (Óscar Lopes & António José Saraiva). Ao contrário de Almeida Garrett (outro portuense: 1799-1854) que atacava a «economia política» e o primado das «preocupações materialistas», em nome de um «idealismo» frouxo, Júlio Dinis defendia as transformações sociais realizadas pela burguesia, em busca da eficiência e da valorização do trabalho. No Portugal oitocentista, foi um dos poucos portugueses a compreender verdadeiramente as aspirações da burguesia, talvez por ter nascido e crescido na Cidade Invicta, a capital da «economia política» e do liberalismo económico.
Uma Família Inglesa: Cenas da Vida do Porto (1868) é o seu primeiro romance e a maior obra-prima da literatura portuguesa, cujo subtítulo revela a influência de Balzac, outro ilustre romancista da burguesia. E é desta obra dedicada a pintar "ambientes", nomeadamente o da Bolsa portuense, o do Águia d'Ouro ou o do home (lar) inglês, que retemos este extracto onde Júlio Dinis apresenta uma análise da morfologia social do Porto.
«Esta nossa cidade - seja dito para aquelas pessoas que porventura a conhecem menos (como acontece hoje, ontem e sempre com os lisboetas que tudo fazem para falsificar a História de Portugal, como se Lisboa fosse algo mais do que um bloqueio ao crescimento da «economia política») - divide-se naturalmente em três regiões, distintas por fisionomias particulares:
«A região oriental, a central e a ocidental.
«O bairro central é o portuense propriamente dito; o oriental, o brasileiro; o ocidental, o inglês.
«No primeiro predominam a loja, o balcão, o escritório, a casa de muitas janelas e extensas varandas, as crueldades arquitectónicas, a que se sujeitam velhos casarões com o intento de os modernizar, o saguão, a viela independente das posturas municipais e à absoluta disposição dos moradores das vizinhanças; a rua estreita, muito vigiada de polícias; as ruas, em cujas esquinas estacionam galegos armados de pau e corda e as cadeirinhas com o capote clássico; as ruas ameaçadas de procissões, e as mais propensas a lama, aquelas onde mais se compra e vende; onde mais se trabalha de dia; onde mais se dorme de noite. Há ainda neste bairro muitos ares do velho burgo do Bispo, não obstante as aparências modernas, que revestiu.
«O bairro oriental é principalmente brasileiro, por mais procurado pelos capitalistas que recolhem da América. Predominam nestes umas enormes moles graníticas, a que chamam palacetes; o portal largo, as paredes de azulejo - azul, verde ou amarelo, liso ou de relevo; o telhado de beiral azul; as varandas azuis e douradas; os jardins cuja planta se descreve com termos geométricos e se mede a compasso e escala, adornados de estatuetas de louça, representando as quatro estações; portões de ferro, com o nome do proprietário e a era da edificação em letras também douradas; abunda a casa com janelas góticas e portas rectangulares, e a de janelas rectangulares e portas góticas; algumas com ameias e mirante chinês. As ruas são mais sujeitas à poeira. Pelas janelas quasi sempre algum capitalista ocioso.
«O bairro ocidental é o inglês, por ser especialmente aí o habitat destes nossos hóspedes. Predomina a casa pintada de verde escuro, de roxo-terra, de cor de café, de cinzento, de preto... até de preto! - Arquitectura despretensiosa, mas elegante; janelas rectangulares; o peitoril mais usado do que a sacada. - Já uma manifestação de um viver mais recolhido, mais íntimo, porque o peitoril tem muito menos de indiscreto do que a varanda. Algumas casas ao fundo de jardins assombrados de acácias, tílias e magnólias e cortados de avenidas tortuosas; as portas da rua sempre fechadas, Chaminés fumegando quasi constantemente. Persianas e transparentes de fazerem desesperar curiosidades. Ninguém pelas janelas. Nas ruas encontra-se com frequência uma inglesa de cachos e um bando de crianças de cabelos louros e de babeiros brancos.
«Tais são nos seus principais caracteres as três regiões do Porto; sendo desnecessário acrescentar que nessa, como em qualquer outra classificação, nada há de absoluto. Desenhando o tipo específico, nem se estabelecem demarcações bem definidas, nem se recusa admitir algumas, e até numerosas excepções, hoje (1868) mais numerosas do que então, em 1855.»
Lembrei-me de Júlio Dinis, porque foi numa quadra natalícia infantil que a minha mãe me ofereceu a sua obra completa, que "devorei" em poucos dias e Uma Família Inglesa constitui a minha primeira viagem pelo Porto, a cidade que uns anos depois me acolheu até hoje. Durante os meus estudos elementares, sempre estranhei a ausência de Júlio Dinis dos programas curriculares e, sem conhecer ainda a pedagogia administrativa e seu currículo oculto, já suspeitava da sua presença traidora e falsificadora, afinal a presença de uma Lisboa invejosa e saloia.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Teoria Política do Crime

Numa sociedade pouco democrática, como a portuguesa, os poderes estabelecidos exigem que os cidadãos tenham "confiança na justiça", mesmo quando esta fornece provas evidentes de mau funcionamento, de arbitrariedade ou mesmo de abuso de poder. Esta exigência é claramente sintoma de degradação da democracia, a qual deve funcionar na base do diálogo e da busca cooperativa da verdade, diálogo alargado a todos os cidadãos racionais, livres, responsáveis e empenhados, não só no domínio da esfera pública (sentido lato) mas também no âmbito do espaço parlamentar. Em Portugal, casos muito mediáticos que incendiaram as paixões públicas mostram que o poder judicial funciona mal e, quando funciona, "funciona" de um modo pouco transparente, corporativista e antidemocrático, zeloso do seu próprio poder.
As teorias sociológicas da criminalidade, começando por Durkheim, para não recorrer à sua fonte grega (Platão e Aristóteles), procuraram minar a abordagem jurídica do crime. Porém, a teoria que avançou mais nesta direcção foi elaborada pelo novo interaccionismo simbólico, herdeiro da Escola de Chicago, e pela fenomenologia social. Esta teoria difundiu-se em «Social Pathology» de Lemert, em «Outsiders» de Becker e em «Images of Deviance» de Cohen, primeiramente nos USA e, pouco depois, na Grã-Bretanha. O seu objectivo primordial era ir além do estudo do crime para abranger uma área mais ampla de problemas que não são claramente regulamentados pelo sistema de justiça penal. Por isso, procurou introduzir a noção de deviance, que podemos traduzir por desvio ou talvez melhor por transgressão, de modo a evitar a definição convencional e tautológica de crime como «uma infracção do direito penal», aliás pouco aceite universalmente e muito ligada à manutenção do poder instituído e dos seus interesses metabolicamente reduzidos.
Apesar de admirar imenso estes estudos da transgressão, (Com efeito, quem não fica seduzido pela descrição do "mundo dos consumidores de maconha" feito por Becker e retomado no Brasil por Gilberto Velho?), prefiro retomar algumas teses da criminologia radical, com o objectivo de lançar uma Filosofia Criminal ou teoria política do crime, capaz de denunciar a corrupção e o universo criminoso dos colarinhos-brancos.
Em 1976, Chambliss & Mankoff declararam simplesmente que «determinados actos são definidos como criminosos porque é do interesse da classe dominante defini-los desse modo». Schwendinger & Schwendinger já tinham, em 1975, denunciado a apropriação da palavra "crime" pelos Estados capitalistas, preferindo descrever como crimes problemas como racismo, imperialismo e sexismo. Portanto, nesta perspectiva radical da criminalidade, o "crime" faz parte de um sistema hegemónico (Gramsci), completamente voltado para uma política de denominação, de dominação e de condenação que deve ou deveria ser objecto de resistência política activa.
Com efeito, as condições da vida moderna e a importância crescente que ganham as condições económicas são de molde a conceder maior peso à criminalidade astuciosa, fluída e não calculável, mas cuja existência se encontra claramente estabelecida. Esta criminalidade dos colarinhos-brancos (white collar criminality), portanto, das classes ditas superiores, foi estudada por Sutherland (1949), sobretudo aquela situada no mundo dos negócios, da banca e das finanças, alargada actualmente à esfera política partidária e do Estado. Em «Fallen Idols», Clarke (1981) afirmou que o aumento das fraudes financeiras e comerciais se deve basicamente à pura expansão da regulamentação (jurídica) e Trench (1981) defendeu, em «Towards a Middle System of Law», a ideia de que «hoje em dia praticamente tudo pode ser crime», em função dos interesses da classe dirigente dominante.
Alicerçada nestas novas abordagens do crime, a Filosofia Criminal, entendida como teoria política do crime, deve assumir como tarefa inspeccionar a partir de fora e com novos olhos o direito e o sistema de justiça penal, definindo novos tipos de crimes, em particular o abuso de poder e a corrupção, apoiados na manipulação da comunicação social e em esquemas maquiavélicos de vitimização de inocentes, que ameaçam verdadeiramente a essência da democracia.
J Francisco Saraiva de Sousa

Notas sobre Criminologia

Criminologia é usado para agrupar um conjunto de temas intimamente ligados, tais como o estudo e a explicação da infracção da lei, os meios formais ou informais que a sociedade usa para lidar com a infracção (código penal), e a natureza e as necessidades das suas vítimas (vitimologia). O estudo dos criminosos e do seu comportamento constitui cada vez mais o campo dos psicólogos, dos sociólogos ou mesmo de jornalistas, que, partindo de dois pressupostos, aliás durkheimianos, o de que não existe sociedade sem crime (1) e o de que a causa mediata ou imediata dos crimes é, na grande maioria dos casos, de origem social (2), inclinam-se a considerar a criminologia como um ramo da sociologia ou, pelo menos, da psicologia social.
Ora, uma tal abordagem sociológica da criminologia constituiu-se por reacção à abordagem psiquiátrica que atribuía o comportamento anti-social a anormalidades da personalidade, constitutivas ou adquiridas (Cesare Lombroso, Henry Maudsley ou Edward Glover). Este movimento acarretou o abandono de diversas explicações e hoje prefere-se a abordagem situacional: a principal determinante do crime é constituída por situações que oferecem oportunidades tentadoras ou estímulos provocadores, perante as quais as pessoas não resistem, sendo levadas a cometer o crime, desde que estejam certas de impunidade. Uma tal abordagem supõe que as pessoas são tentadas a infringir a lei, sem levar em conta a existência de fortes inibições morais, embora possa ter alguma utilidade no campo da prevenção. A penalística, a prevenção, a vitimologia, a indemnização, o levantamento de vítimas e a reforma penal são algumas áreas exploradas por esta abordagem, aliás assente na noção de "Estado Jardineiro" (Z. Bauman), o qual acredita que os problemas sociais podem ser resolvidos mediante a aplicação do planeamento, da educação e da reforma social na vida quotidiana, reforçando a burocracia, nomeadamente aquela que planeou o Holocausto.
Com esta última observação, pretendemos afirmar que a criminologia não pode abdicar da abordagem das ciências biomédicas e médicas, portanto, de um vasto conjunto de ciências e de técnicas biológicas capazes de explicar o comportamento criminoso e ajudar a recolher provas científicas de grande utilidade na identificação dos criminosos ou mesmo de prevenir o crime, com o recurso recente a dados genéticos. Embora esta nova abordagem atribua categoricamente ao crime uma causa biológica, tal como defendeu Lombroso na sua obra «O Homem Criminoso» (1876), onde descreve os sintomas que o caracterizam e expõe as "taras criminógenas", o seu suporte empírico é completamente seguro, abrangendo um conjunto de conhecimentos provenientes de diversas disciplinas que se reforçam mutuamente. Muitos dos sinais indicadores de determinados crimes são bem conhecidos e, a partir deles, é possível desenvolver campanhas de informação de comunidades mais ameaçadas e, deste modo, impedir a sua ocorrência. Isto já tem sido feito em relação a certos tipos de crimes, tais como pedofilia ou abuso de menores, incesto, violência doméstica, abuso sexual e violação, e com resultados bastante positivos. Como é evidente, esta abordagem biológica não exclui o papel de factores sociais ou mesmo étnico-culturais capazes de facilitar a ocorrência de determinados tipos de crimes. Apesar disso, nem todas as pessoas são tentadas a cometer crimes, mesmo que as situações ofereçam essas oportunidades e facilidades. Algumas delas são mais propensas a cometer crimes do que outras e isto porque apresentam certos distúrbios ou doenças que, em função da sua natureza, as inclinam mais para determinados tipos de crimes do que para outros tipos.
Os crimes violentos que ocorreram na cidade do Porto nos últimos seis meses devem ser estudados mediante estas novas abordagens do crime e da violência, sem escamotear os factores sociais que facilitaram ou facilitam a sua ocorrência, até porque, segundo se diz, muitos seguranças têm cadastro. Faz parte do senso comum a convicção de que um criminoso dificilmente pode desempenhar papéis de garantes da manutenção da ordem pública sem recorreram ao crime.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Crimes na Noite do Porto?

No programa "Quadratura do Círculo" (12 de Dezembro de 2007), Pacheco Pereira exteriorizou e explodiu o ódio visceral que sente pelo Porto, pelas suas gentes, nomeadamente as da Ribeira, e pelo Futebol Clube do Porto. A sua mente tortuosamente sociológica associou os crimes da noite do Porto (7 crimes em seis meses) e as claques do FCPorto, mas visando também a própria instituição deste nobre e vitorioso clube de futebol português, bem como o PS local. Alegou em defesa da sua "tese" conspirativa o filme corrupta e oportunisticamente chamado "Corrupção", bem como o facto de ter andado, quanto vinha ao Porto em campanha eleitoral, sempre com seguranças e polícias, por temer levar, não facadas e insultos, mas tiros, pelo menos na zona da Ribeira. Mas usou um outro argumento: José Mourinho (uma autoridade "isenta" que, por onde passa, deixa discórdia e rancor!) terá chamado ao Porto "Palermo", isto é, uma cidade mafiosa. Mas afinal quem são os mafiosos?
Ainda hoje li, no JN, que os terroristas que fizerem estas sete mortes no Porto foram (ou supostamente foram) contratados em Lisboa! Perante este ódio exibido por Pacheco Pereira contra o Porto, podemos associar sociologicamente o aproveitamento político e ideológico destes crimes e a enorme campanha montada em Lisboa contra o Porto, em geral, e o FCPorto, em particular. O "Apito Dourado" (de resto, mais "encarnado") parece prolongar-se com este novo "rosto": as claques do FCPorto estão ligadas aos crimes da noite do Porto, diz violentamente e sem senso sociológico Pacheco Pereira.
É evidente que tanto Lobo Xavier como Jorge Coelho ergueram as suas vozes contra a "conspiração" odiosa e doentia de Pacheco Pereira. Lobo Xavier lembrou-lhe ironicamente que a sua análise não era sociologicamente correcta, dado escamotear os elevados indicadores de desemprego, de pobreza de certas áreas deprimidas da cidade e o diferencial entre "massa crítica" e "povo", enquanto Jorge Coelho elegantemente lhe lembrou que quem fala assim não pode sentir-se seguro entre as pessoas visadas pelo seu ódio. Lobo Xavier fez outra observação irónica: as "vítimas" podem ser agentes activos no crime! De facto, Pacheco Pereira só diz mal de tudo: do Porto, do PM (José Sócrates), da política fiscal, da política de segurança, enfim dos resultados da Cimeira UE/África, de forma leviana e irresponsável. Fez uma triste figura, mesmo muito triste figura de ave agoirenta! É, por isso, que nem o seu partido, o PSD-PPD, o suporta: a sua luta política parece ser movida por um forte desejo de vingança, talvez devido ao seu "fracasso" (suspendo o meu juízo neste aspecto!) como "político profissional".
O Porto é uma cidade menos segura que Lisboa? Pessoalmente, só em Lisboa me tentaram assaltar e, tanto quanto me lembro, nunca me tentaram assaltar no Porto, embora haja sempre essa possibilidade, sobretudo nesta quadra natalícia e nesta conjuntura de desemprego, de pobreza e de tráfego de droga e de prostituição (negócios sujos, como se diz). Isto significa que, até mesmo levando estes factores em consideração, mais a luta entre estes supostos gangues da noite, as pessoas do Porto não têm essa percepção de insegurança e todo o discurso que acentue a violência e a insegurança no Porto deve ser lido como suspeito: algum "grupo de conspiradores" procura tirar partido destes casos de homicídio para atacar o Porto. E este grupo de conspiradores não está interessado em resolver estes crimes e restabelecer a ordem pública: o seu objectivo é simplesmente atacar o Porto. A Corrupção não está sediada no Porto mas em Lisboa, de resto a capital de Portugal. Esta é a visão que os portuenses e os portistas têm da capital, isto é, das suas elites medíocres, um "bando" de indivíduos prontos a destruir o Porto, porque afirmar que o Porto carece de "massa crítica", como fez Lobo Xavier, é o mesmo que dizer que ela se desloca para a capital, onde pode corromper-se mais facilmente. Além disso, é maltratar as "pessoas comuns" do Porto que têm de sobreviver sem recorrer à segurança e às elevadas remunerações do funcionalismo público, sobretudo central, de resto o verdadeiro couveiro de Portugal, no seio do qual se movem as luso-forças da corrupção.
(A Helena, autora do blogue Socióloga Avense, editou um importante post sobre a violência no Porto, que recomendo.)
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Géza Róheim: Antropologia Psicanalítica

Géza Róheim (1891-1953) foi efectivamente o primeiro antropólogo psicanalista e estou a lembrá-lo para condenar novamente o marasmo intelectual português, que, como sempre, deixa a cultura passar-lhe ao lado, sem reconhecer a sua mediocridade falaciosa e a sua incapacidade cognitiva congénita. Até mesmo os mestres da Escola de Frankfurt, com excepção de Herbert Marcuse, ignoraram a sua obra extensa e profunda.
Marcuse cita uma das suas obras, «The Origin and Function of Culture» (1945), onde Róheim, influenciado pelas ideias de Melanie Klein e divergindo claramente de Freud, atribui uma importância fundamental, traumatizante, à separação da criança da mãe, mais do que à fantasia do assassínio do pai, desenvolvendo o seu conceito de sublimação e destacando a importância das fantasias arcaicas referentes ao corpo materno no desenvolvimento da agricultura ou do comércio.
Contudo, é na sua obra «Psychoanalysis and Anthropology» (1953) que Róheim desenvolve a sua noção de cultura, trabalhada na sua diferença quer contra a noção filogenética de cultura proposta por Freud em «Totem e Tabu», quer contra a noção de cultura proposta pela antropologia culturalista. Em termos simples, podemos dizer que, para Róheim, a cultura humana é a consequência da infância prolongada da espécie humana, e que as áreas culturais decorrem da situação infantil típica que reina em cada uma das culturas humanas.
Róheim afirma constantemente a unidade do género humano ou, como prefere dizer, «a unidade fundamental da humanidade», a qual só pode ser clarificada à luz deste enunciado simples que transcende as teses defendidas escola culturalista e as hipóteses biológicas da hereditariedade dos caracteres adquiridos (indefensável à luz dos actuais conhecimentos da genética) e a lei da recapitulação de Haeckel (não válida para o género humano) propostas por Freud para explicar essa unidade humana: Para Róheim, o traço indiscutivelmente comum da humanidade «é a sua infância prolongada e o carácter globalmente juvenil do Homo sapiens em relação às outras espécies animais». Eis o «resumo do resumo» apresentado pelo próprio Róheim:
1. A evolução está baseada sobre uma combinação de factores autogéneos e ectogéneos.
2. Os factores autogéneos são principalmente a fetalização e o conflito endopsíquico (super-eu e ideal do eu).
3. Em relação ao prolongamento da nossa duração de vida, e particularmente da nossa infância, nós conservámos a taxa de crescimento fetal do nosso cérebro. O cérebro continua a desenvolver-se na situação mãe-infante protegida, isto é, libidinal.
4. Por outro lado, em relação ao ritmo de crescimento do nosso corpo, a nossa sexualidade é relativamente precoce. Associando este facto ao crescimento fetal do nosso cérebro, obtemos a explicação da natureza libidinal do fantasma.
5. Os mecanismos de defesa desenvolvem-se para proteger o eu contra a libido prematura.
6. Os seres humanos são permanentemente juvenis, pelo menos em parte. A fragilidade da nossa infância relativamente prolongada é compensada pela identificação da criança com o adulto, isto é, pelo condicionamento ou pela educação.
7. A existência do simbolismo e de certos traços humanos universais é devida a esta neotenia universal do género humano: eles são endógenos e não são condicionados pela cultura. Para Róheim, a interpretação psicanalítica não releva, portanto, da cultura: os seus métodos têm uma validade universal. Podem existir diversos tipos de personalidade, mas existe somente um inconsciente. Daí que Róheim tenha afirmado contra as teses de B. Malinowsky a existência de uma estrutura edipiana universal.
8. O conceito de personalidade de base, isto é, de uma personalidade fundada sobre uma situação infantil comum, é válido apenas quando aplicado a pequenos grupos, mas a sua validade é duvidosa quando aplicado às nações modernas, como fez Ruth Benedict. Daí que a antropologia cultural moderna só tome em consideração as nações, negando tacitamente a unidade fundamental do género humano e o carácter único do indivíduo.
Estas breves observações são suficientes para mostrar a actualidade de uma obra ignorada pelos luso-intelectuais, talvez por má-fé ou, como penso, pela sua imbecilidade congénita e muito invejosa, pouco dada ao exercício do pensamento conceptual e ao esforço intelectual.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Blue Dragon Venceu

O Futebol Clube do Porto venceu novamente!

Sempre contra a inveja lisboeta! Veja aqui: Nos «oitavos» e na frente.

O FCPorto é um hino! (Esta imagem foi tirada do seu site.)

Elites do Poder e Sexual Bondage

Diversos estudos americanos e europeus demonstraram que os colarinhos-brancos de determinados sectores das elites do poder (Janus et al., 1977), portanto homens que ocupam posições dominantes na sociedade, recorrem regularmente ao serviço de prostitutas para os dominar. Isto significa que os homens que ocupam posições dominantes na sociedade, tais como políticos ou empresários bem sucedidos, são homens submissos que, devido à dificuldade de encontrar mulheres heterossexuais dominantes (Baumeister, 1988; Weinrich, 1987), recorrem ao negócio emergente denominado «dominatrix»: mulheres dominadoras profissionais («dominatrices») que satisfazem as necessidades sexuais de homens submissos-receptivos, supostamente não-homossexuais (Scott, 1983).
Quer sejam prostitutas ou não, estas mulheres dominadoras podem atar ou acorrentar os seus clientes de colarinho-branco, dar-lhes palmadas ou chicotadas, açoitá-los, dominá-los e humilhá-los. Muitas destas práticas são suficientes para satisfazer as necessidades dos seus clientes, que também podem masturbar-se durante a sessão de submissão ou de sujeição sexual.
E em Portugal? A nossa pesquisa mostrou claramente que as práticas de sexual bondage são muito frequentes entre os portugueses e que um número significativo de homens portugueses prefere o papel submisso-receptor, mesmo que não sejam homossexuais. Muitos desses homens ocupam efectivamente posições de relevo na sociedade portuguesa. Contudo, no que se refere aos homens homossexuais e bissexuais, convém frisar que um número significativo desses homens prefere o papel dominador na execução de actos muito hipermasculinos, tais como rimming, dildo, cookbinding, watersports, enema, fistfucking, scatologia e catheter. (Talvez mais tarde resolva partilhar mais dados.)
J Francisco Saraiva de Sousa