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sábado, 2 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (3)

 Mala Moçambicana
Eis mais algumas ideias sobre Filosofia Médica:

1. O nazismo forçou o exílio de muitos intelectuais alemães. Adorno que nunca foi feliz no seu exílio americano falou da sua "vida danificada". Ora, nascer português é nascer para a vida danificada. Esta é uma verdade terrível que devia ser discutida publicamente pelos portugueses. A maldade humana manifesta-se em diversos momentos da história. Mas não é permanente como a maldade portuguesa.

2. Deleuze dedicou um livro à explicitação da filosofia de Foucault sem no entanto ter alcançado esse objectivo. Desconheço a existência de uma análise da "Arqueologia do Saber" de Foucault, obra onde ele se debate com o estruturalismo. Além disso, a relação de Foucault com o marxismo ainda não foi explicitada, embora as entrevistas forneçam muitas indicações a esse respeito. Eu comecei a ler Foucault durante a minha adolescência: a articulação entre relação de produção (Marx) e relação de poder sem teoria política (Nietzsche) nunca me seduziu: o aparelho de Estado ocupou sempre um lugar de destaque no meu pensamento. Estou convencido de que podemos analisar o Hospital, a Prisão, o Exército, etc., a partir da teoria do poder de Marx sem rejeitar o contributo de Foucault.

3. Hospital Psiquiátrico: Foucault e Goffmann aliaram-se à Anti-Psiquiatria para demolir esta instituição de saúde. Devo reconhecer que sempre estive associado a essa tendência num terreno estritamente científico: a defesa de uma Psiquiatria Biológica. No entanto, não sou favorável ao fechamento dos Hospitais Psiquiátricos. A crítica de Goffmann do Hospital Psiquiátrico como instituição total é justa: aprecio tudo o que disse sobre os territórios do eu e sobre os processos de mortificação do eu. Estes fenómenos ocorrem em qualquer tipo de internamento. Precisamos de uma Filosofia da Hospitalização.

4. Infelizmente, ainda não temos uma História da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a vanguarda da medicina e da psiquiatria portuguesas. As obras fundadoras da Psiquiatria Portuense não estão disponíveis no mercado do livro. Barahona Fernandes tentou suprir essa lacuna dos estudos médicos portugueses escrevendo "A Psiquiatria em Portugal" como complemento de "Um Século de Psiquiatria" de P. Pichot. Porém, a obra é francamente medíocre. Barahona Fernandes limita-se a condenar a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault. 

5. Os médicos portuenses dão nome a diversas instituições de saúde espalhadas pelo país. Destaco três nomes: Júlio de Matos, Miguel Bombarda e Magalhães de Lemos, para já não falar de Ricardo Jorge. Júlio de Matos escreveu duas obras fundamentais: "Os Alienados nos Tribunais" e "A Loucura", nas quais se afirma como alienista-filósofo. Magalhães Lemos defendeu a face neurológica da psiquiatria. António Maria de Sena legou-nos uma obra profunda: "Os Alienados em Portugal". Enfim, uma série de obras que ainda não foram estudadas. De certo modo, a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault percorre cada uma delas. O cerne da anti-psiquiatria é a luta  com, dentro e contra a instituição psiquiátrica: o questionamento do poder na prática anti-psiquiátrica leva à desmedicalização da loucura

6. António Mendes Correia é outro ilustre portuense que nos legou um conjunto de obras em diversas áreas científicas, da biologia à história, passando pela antropologia e pela criminologia: O Génio e o Talento na Patologia (1911), Criminosos Portugueses (1913), Crianças Delinquentes (1915), Antropologia (1915), Raça e Nacionalidade (1919), Homo (1921), Os Povos Primitivos da História (1924), A Antropologia nas suas relações com a Arte (1925), A Nova Antropologia Criminal (1931), Origens da Cidade do Porto (1932), Da Biologia à História (1934), Da Raça e do Espírito (1940), Uma Jornada Científica na Guiné Portuguesa (1946) e Antropologia e História (1954). A malvadez dos portugueses condena ao esquecimento as obras dos ilustres portuenses.

7. Interrompi o meu estudo sobre a evolução da psiquiatria portuguesa para estudar a situação da psiquiatria nos países asiáticos, tais como China, Coreia, Tailândia, Japão e Índia. Fiquei encantado com a abordagem cultural da psiquiatria asiática. Entretanto, tenho espreitado a psiquiatria forense americana, em especial o homicídio sexual em série porque ela me permite reintroduzir a noção de maldade, de modo a pensar a natureza perversa dos portugueses.

8. O aumento do número de assassinos em série nos USA levou alguns teóricos a reintroduzir a noção de maldade dentro da esfera da psiquiatria. As noções de mal e de pecado transitam da esfera religiosa para a esfera da psiquiatria e da filosofia, dando-nos uma plataforma conceptual de pensamento sobre a experiência humana universal de crueldade e dor (Cf. Andrew Delblanco, 1995). Doravante, a maldade ocupa um lugar privilegiado nos vocabulários profissionais da psiquiatria e da filosofia: as pessoas que cometem actos de crueldade devem ser consideradas responsáveis pelos seus actos, mesmo que uma doença mental possa estar presente.

9. Cesare Lombroso (1836-1909) acreditava que havia uma forte correlação entre certas configurações faciais e várias tendências criminais: o self exterior compartilhava assim da mesma "degeneração" manifestada pelo self interior do insano (Morel). De Cardano e Della Porta a Lombroso, passando por Gall, predominava o interesse pela fisionomia, no caso dos italianos, e pelo formato do crânio, no caso de Gall. Ora, em Portugal, a obra de António Mendes Correia situa-se nessa linhagem teórica da criminalidade: o ilustre portuense elaborou uma nova antropologia criminal - e do génio, tal como Lombroso, que urge analisar nesse contexto cultural.

10. A síndrome japonesa de ka-roh-shi - cujo significado literal é "morte por excesso de trabalho" - tem preocupado os psiquiatras japoneses. À carga de trabalho imposta pelas empresas japonesas aos executivos médios, eles acrescentam as pressões parentais. Com efeito, a elevada expectativa parental por desempenho académico está na base da criação de um sistema de escolas extremamente exigentes, onde os alunos continuam debruçados sobre os seus livros após o termo do seu já longo dia escolar. No Japão, as crianças estudam e fazem tudo para obter boas classificações escolares. Ora, as pressões familiares e sociais levam aqueles que não conseguem alcançar as notas exigidas à depressão ou mesmo à delinquência. A taxa de suicídio é alta no Japão. Em Portugal, as escolas já não funcionam: a paixão pela ignorância converteu as escolas portuguesas em recreios de engate.

11. O meu interesse pelas neurociências espirituais abriu a minha mente ao estudo de Tomio Hirai (1989) sobre uma forma de meditação Zen - Zazen - em relação ao tratamento psiquiátrico. O Zazen - a meditação sentada - está relacionado com os ensinamentos budistas e o estado de tranquilidade que proporciona é chamado satori (iluminação) que significa mente livre de ilusões. À medida que a meditação prossegue, a frequência de ondas alfa diminui gradualmente e aparecem as ondas teta rítmicas, alterações que correspondem àquelas que ocorrem durante o sono e estados de transe hipnótico. A filosofia da meditação Zen é mais interessante que a filosofia da psicanálise.

12. A disfunção psicossexual é frequente na China. Nos homens, a disfunção psicossexual pode tomar a forma de suoyang que significa "encolhimento do pénis". Na cultura popular, esta condição representa a perda da força yang (masculina) como resultado de actividades sexuais excessivas ou de possessão por espíritos maus (Wen, 1995). Além disso, a masturbação excessiva pode exaurir o yang do indivíduo, levando à condição mórbida conhecida como shenkui, equivalente ao nosso antigo conceito de neurastenia. O significado original de shenkui é deficiência renal, reflectindo a crença popular de que o rim armazena o sémen. A neurastenia cerebral - nao-shenjing shuai-ruo - está relacionada com esta neurastenia sexual, sendo ocasionada por excesso de estudos: tontura, falta de concentração e de memória e insónia são os seus sinais.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Notas sobre a História de Moçambique

Estátua do Porto
Não encaro o colonialismo como um fenómeno civilizacional nefasto: se não fosse o colonialismo português lá onde construímos cidades lindas - como Lourenço Marques e Luanda - haveria hoje palhotas. As pessoas africanas não saberiam ler e escrever, nem sequer teriam história. Sim, convém lembrar que nem os índios brasileiros nem os africanos tinham inventado a escrita: eram - e, segundo Ryszard Kapuscinski, ainda são - povos tribais e selvagens. Um exemplo de tribalismo persistente: Mandela já está morto: O que é desagradável é a luta dentro da família. Um dos netos é chefe tribal e sacou os três cadáveres dos filhos de Mandela para os enterrar no território da sua tribo. Depois chega a polícia a mando de outro familiar, invade a propriedade, desenterra os cadáveres e leva-os... Enfim, a África do Sul ainda é território civilizado?

Já escrevi muito sobre Moçambique e não tenho vontade de regressar a esse tema. Porém, dado o predomínio de ideologias anti-ocidentais nefastas, sou forçado a tecer algumas considerações sobre o assunto. Apesar da existência de abundantes arquivos, os historiadores portugueses ainda não escreveram uma História (honesta) do Colonialismo Português ou uma História de Moçambique ou de Angola. Geralmente, no caso de Moçambique referem-se estas obras, nenhuma das quais escrita por um português:

1. FRENTE DE LIBERTAÇÃO DE MOÇAMBIQUE. História de Moçambique. Porto, Afrontamento, 1971.
2. HEDGES, David (coord.). História de Moçambique: Moçambique no auge do colonialismo 1930-1961. Vol.2, 2.ª edição, Maputo, Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane, 1999.
3. NEWITT, Malyn. História de Moçambique. Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1997.
4. PÉLISSIER, René. História de Moçambique: formação e oposição: 1854-1918. 2 vols., Lisboa, Editorial Estampa, 1987-1988
5. SERRA, Carlos (coord.). História de Moçambique: Parte I - Primeiras Sociedades sedentárias e impacto dos mercadores, 200/300- 1885; Parte II - Agressão imperialista, 1886-1930. Vol. 1, 2.ª edição, Maputo, Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane, 2000.
6. SOUTHERN, Paul. Portugal: The Scramble for Africa. Bromley, Galago Books, 2010.

A primeira e a quinta obras (Carlos Serra e Companhia) são extremamente sectárias: o marxismo usado pelos autores como grelha de análise histórica viola frontalmente a letra e o espírito dos escritos de Marx. Os autores deviam meditar os textos onde Marx trata da questão colonial: Marx nunca isolou o colonialismo da teoria do desenvolvimento capitalista para aplaudir uma teoria da luta entre raças. Há racismo nas obras referidas e, de facto, nós portugueses devemos aceitar o desafio lançado por estes pseudo-historiadores e confrontá-los com os seus próprios fantasmas raciais e, no caso dos outros autores, com as formas de colonização dos seus países. A eleição de Obama despertou nalguns desses autores o desejo de liquidar o "branco" e o Ocidente. Outros ficam desiludidos com os brasileiros pelo facto de não rejeitarem a herança ocidental. E, geralmente, são benevolentes perante as investidas do Islão. Descrevem - exagerando - os supostos crimes de ódio cometidos pelos portugueses, mas omitem a violência exercida pelos negros sobre os brancos. Estes dados são suficientes para denunciar a ideologia de rancor racial que está por detrás destas histórias, para já não falar do incitamento à violência racial. Angola e Moçambique, bem como outras ex-colónias portuguesas, caminharam para a democracia; no entanto, os partidos políticos ainda são designados como movimentos de libertação dos respectivos povos. É como se ainda vivessem sob o colonialismo português: a verdade é que eles expropriaram os portugueses julgando que a riqueza se reproduz por geração espontânea e pagaram o preço por esta infantilidade mágica: o recuo civilizacional e a destruição das cidades e do tecido produtivo. Hoje são os negros que exploram e oprimem a população negra. (Já era assim antes da chegada dos portugueses ou mesmo durante o período colonial.) Marx dizia que o capital não tinha pátria e a globalização confirma isso. Hoje podemos acrescentar que o capital não tem raça: os historiadores moçambicanos tratam os árabes com benevolência, ao mesmo tempo que tecem mentiras grosseiras sobre a "agressão imperialista", esquecendo que o capital não tem pátria e raça. (O imperialismo é um fenómeno de territorialização do capital.) Os historiadores ligados ao mundo anglo-saxónico não deviam confundir o imperialismo inglês com o colonialismo português: afinal, o apartheid é uma invenção anglo-saxónica. Meus amigos: Não há raças inocentes na história; há apenas raças, umas mais primitivas, outras mais desenvolvidas, que ocupam áreas culturais diferentes. E o cristianismo - apesar dos seus erros - ajudou a suavizar e a controlar muitos impulsos criminosos. Nós intelectuais devemos fazer todos os esforços para dizer a verdade: um intelectual mentiroso é um oxímoro e um intelectual terrorista é um cérebro patológico que deseja incendiar o mundo. O seu relativismo histórico anda de mãos dadas com o terrorismo. Os africanos já deviam saber que "intelectuais" deste calibre ajudaram a afundar e a empobrecer os seus países. Sem cérebros sadios não há desenvolvimento e paz! E sobretudo isto: os vossos inimigos - como os de todos os povos do mundo - são internos. Sejam objectivos: não culpem os outros pelos vossos pecados. (A Rússia optou pela colonização continental, tal como outros países da Europa Central, e como URSS teve a oportunidade de conquistar territórios distantes. Hoje é a China que sonha com o imperalismo colonizador. Quando referem o papel do cristianismo na colonização, os autores anglófonos aproveitam a ocasião para fazer a sua propaganda protestante, enquanto os moçambicanos falam de colonização mental sem usar o mesmo conceito para designar a acção do Islão. Mas há uma diferença entre Ocidente e Islão: o Ocidente despertou em vós um sonho social de emancipação, noção estranha ao Islão. Sim, até o marxismo é um fenómeno especificamente ocidental: ele está inscrito no genoma grego.)

Anexo: Carlos Serra diz este disparate sobre o "belo": «O belo é um fenómeno misterioso. Todavia, há sempre quem defenda a sua universalidade no sentido de que em qualquer parte do mundo sempre houve e haverá quem goste do belo, sendo o belo havido como uma substância que nasce conosco e que atinge especial profundidade em certos de nós. Porém, a concepção do belo requer condições sociais propícias ao seu nascimento, à sua reprodução e, particularmente, ao seu aprofundamento. Por outro lado, a unidade do belo está em sua diversidade social e nacional. A concepção do belo é social, não natural.» O que podemos dizer sobre isto? Merda que suja a estética e viola a biologia! Vejam como entra em acção o relativismo (sob a forma de construtivismo social delirante), o nacionalismo e a luta racial. O tema de fundo só pode ser os rostos africanos. Além disso, há aqui um paradoxo: a condenação da universalidade - atribuída ao Ocidente - e a afirmação da "unidade do belo na sua diversidade social e nacional" (étnica). E facto curioso: o autor esquece que foi o discurso universal que abriu as portas à emancipação. Mais: o que é o nascimento do belo?, a reprodução do belo?, enfim o aprofundamento do belo? Noções estranhas - cosméticas? - a qualquer estética! Afinal, o belo nunca foi tratado como uma "substância": não sei donde surgiu esta ideia peregrina. Belo e gosto... aqui há gato! Carlos Serra, comunista confesso, converteu o seu relativismo sociológico em irracionalismo.

E o que diz Carlos Serra sobre a biografia? Isto: «A biografia é um dos mais fascinantes e respeitados momentos da vida social. Dá às pessoas a crença de que o biografado contém nele a capacidade fantástica de mudar a vida e as relações de outrém. Na biografia o biografado é substancializado, magicamente tornado imune às relações sociais sem as quais, porém, não pode ser ele; é feito totalidade, unificação única, centro absoluto de um determinado mundo, o "ele era assim" do senso comum.» Até compreendo o que ele pretende dizer (a relevância das relações sociais), mas não posso estar de acordo com a condenação da biografia e do papel do indivíduo na história. Com efeito, o indivíduo não é apenas sociologia incorporada; é também biologia. Começo a crer que Carlos Serra usa e abusa da noção de substância... Será que pretende esburacar a materialidade compacta da sociedade? Ou melhor: a camada electrónica da matéria social? Mas se esburacar muito vai descobrir o vazio da matéria social. As massas populares - os colectivos - inclinam-se à passagem dos vencedores!

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A Emergência da Esfera Pública Portuguesa e Ultramarina

Porto: Edifício A Nacional (Marques da Silva)
... Notas para uma pesquisa.

Um acontecimento portuense possibilitou a emergência da esfera pública em Portugal e nas colónias ultramarinas portuguesas: a revolução liberal de 1820, que estalou no Porto no dia 24 de Agosto, dando origem à formação da Junta do Porto, composta por mais de 30 indivíduos entre militares, magistrados, desembargadores, oficiais de milícias e membros da aristocracia de província, e liderada por Fernandes Tomás, Silva Carvalho, Lobo Moura e José Ferreira Borges, todos homens de leis que tinham fundado o Sinédrio. O conceito de esfera pública, forjado por Jürgen Habermas, é um conceito polémico, no sentido de não estar completamente delimitado e definido, de modo a poder ser aplicado sem percalços ao estudo da modernização reflexiva dos países ocidentais. Terry Eagleton e John B. Thompson apontaram algumas falhas ou limitações do conceito de esfera pública, tal como o elaborou Habermas, mas nenhum deles abdicou do próprio conceito, o que demonstra a sua pertinência teórica para compreender a formação das sociedades modernas, na sua articulação dialéctica com o desenvolvimento dos mass media desde o século XVIII até aos nossos dias. Na sua obra inicial Mudança Estrutural da Esfera Pública, Habermas traçou o surgimento e a consequente destruição da esfera pública burguesa, que, como âmbito da comunicação e do debate público, estimulado pelo desenvolvimento da imprensa, criou um fórum de debate público, onde a autoridade do Estado podia ser criticada, questionada e obrigada a justificar-se diante de um público informado e pensante. Como demonstrou Hannah Arendt, a distinção entre o público e o privado data da Grécia Clássica, mas ela assume uma forma nova na Europa dos séculos XVII e XVIII, no contexto do desenvolvimento rápido da economia capitalista e do estabelecimento do Estado Constitucional burguês. A autoridade pública passou a referir-se cada vez mais à actividade relacionada ao Estado que definiu legalmente esferas de jurisdição e que possui o monopólio do uso legítimo da violência. A sociedade civil emergiu como o campo das relações económicas privadas que foram estabelecidas sob a égide da autoridade pública. O campo privado compreende tanto o domínio da expansão das relações económicas como a esfera íntima das relações pessoais que se tornaram cada vez mais desvinculadas da actividade económica e ancoradas na instituição da família conjugal. Ora, entre o domínio da autoridade pública e o domínio privado da sociedade civil e da esfera íntima, emergiu uma nova esfera do público: a esfera pública burguesa que consiste de indivíduos privados que se reúnem em determinados espaços públicos para debater, entre eles e com as autoridades do Estado, sobre a regulação da sociedade civil e a condução do Estado. O meio utilizado para essa confrontação com o poder político estabelecido era o uso público da razão, articulado por indivíduos privados envolvidos e comprometidos numa discussão que era, em princípio, aberta a todos, livre e sem coerção. A esfera pública burguesa desenvolveu-se inicialmente no campo da literatura, para depois, mais tarde, se ligar directamente ao campo da política. No final do século XVII e início do século XVIII, os salões e os cafés de Paris e de Londres transformam-se em centros de discussão e debate, funcionando como lugares públicos onde os indivíduos particulares podiam encontrar-se e discutir assuntos literários e problemas de interesse geral. O surgimento da indústria do jornal facilitou o fomento dessas discussões públicas: as folhas de notícias e os jornais transmitiam inicialmente informações de vários tipos, mas no decurso do século XVIII passaram a expressar cada vez mais pontos de vista políticos. A imprensa tornou-se assim um fórum-chave do debate crítico, de natureza política, alimentando uma discussão e uma crítica permanentes das actividades dos funcionários do Estado. Em Inglaterra, a imprensa desfrutou de maior liberdade do que em outros países europeus, como a França, a Alemanha e Portugal, onde era periodicamente sujeita a censura e a um controle restritivo por parte de funcionários públicos. A liberdade de imprensa e as outras funções críticas da esfera pública - liberdade de opinião e de expressão, liberdade de reunião e de associação, etc. - só foram incorporadas como lei quando se desenvolveu o Estado Constitucional. Em princípio, pelo menos em teoria, a esfera pública burguesa era aberta a todos os indivíduos privados, mas, na prática, estava restrita a um sector limitado da população, porque os critérios efectivos de admissão eram a propriedade privada e a educação. Estes dois critérios tendiam a circunscrever o mesmo grupo de indivíduos, o público leitor burguês do século XVIII, na medida em que a educação era determinada, em grande medida, pelos direitos de propriedade do indivíduo. Em A Questão Judaica, a propósito dos direitos do homem, Marx criticou justamente o carácter de classe subjacente à constituição da esfera pública burguesa. No entanto, apesar de alguns dos seus aspectos serem expressão velada e subtil de interesses de classe, a esfera pública burguesa personificava ideias e princípios que superavam e transcendiam as formas históricas restritas onde ocorria: a esfera pública burguesa teve o mérito de materializar a ideia de uma comunidade de cidadãos, reunindo-se como iguais num fórum que, sendo distinto da autoridade pública do Estado e dos domínios privados da sociedade civil e da esfera íntima, era capaz de formar uma opinião pública, através da discussão crítica, da argumentação racional e do debate público. É nesta sua função crítica que Habermas descobre o princípio crítico da publicidade: as opiniões pessoais dos indivíduos privados transformam-se em opinião pública, através do debate crítico-racional de um público de cidadãos, aberto a todos e livre de dominação.

O fórum da esfera pública burguesa foi completamente minado pelo desenvolvimento do Estado e das organizações comerciais em grande escala, sobretudo daquelas ligadas à comunicação de massas, no decorrer dos séculos XIX e XX: a esfera pública emergente foi de tal modo transformada que o seu potencial crítico foi diminuído ou mesmo empurrado para a clandestinidade. Dois desenvolvimentos sociais paralelos são responsáveis pelo nascimento da esfera social repolitizada, a qual destruiu a base da esfera pública burguesa: a expansão do Estado intervencionista que assumiu as funções de bem-estar na esfera social e o crescimento das grandes organizações industriais que tomaram um carácter semi-público. Ao escapar à distinção entre público e privado, a esfera social repolitizada permite aos grupos de interesse organizados procurarem obter uma fatia ampla dos recursos disponíveis, de modo a eliminar o papel do debate público permanente entre indivíduos particulares. Sob pressão destes dois desenvolvimentos sociais paralelos, as instituições que propiciavam um fórum para a esfera pública desapareceram ou, pelo menos, sofreram uma transformação radical: os salões e os cafés perderam a sua função crítica e as instituições da comunicação de massas transformaram-se em organizações comerciais de grandes dimensões. A comercialização da comunicação e dos bens culturais transformou o fórum de debate crítico-racional em campo de consumo cultural: o público que pensa cedeu o seu lugar ao público que consome cultura no decorrer do seu tempo de lazer, organizado, planeado e controlado pelo sistema de indústria cultural. A esfera pública emergente foi, deste modo, através da penetração das leis do mercado na esfera reservada aos indivíduos privados enquanto público, transformada num mundo fraudulento de pseudoprivacidade ou de privacidade sob holofotes, criado e controlado pelo sistema de indústria cultural: o debate crítico-racional tende a ser substituído pelo consumo e o contexto da comunicação pública dissolve-se nos actos estereotipados da recepção isolada e passiva. O conteúdo dos jornais foi despolitizado, personalizado e transformado em mero sensacionalismo, com o objectivo de aumentar as vendas: o público-leitor de jornais consome não só as notícias fabricadas como também os produtos publicitários, dos quais as organizações da imprensa recebem as suas rendas. Entretanto, já no decurso do século XX, surgiram novas técnicas de gerenciamento da opinião, utilizadas nas áreas do jornalismo manipulador ligadas aos assuntos políticos. Embora digam interpelar os indivíduos particulares, elas mais não fazem do que manipular a opinião pública, de modo a promover os objectivos particulares de grupos de interesse organizados. Segundo Habermas, os resíduos da esfera pública burguesa assumem assim um carácter feudal: as novas técnicas de gerenciamento da opinião são usadas para conferir à autoridade pública o tipo de aura e de prestígio pessoal que foi, no passado, conferido pela publicidade oficial das cortes feudais. A refeudalização da esfera pública transforma-a em palco e a política em espectáculo manipulado, onde os lideres e os partidos políticos procuram o assentimento de uma população despolitizada. Na época áurea da esfera pública burguesa, o princípio de publicidade era utilizado pelos indivíduos particulares contra o poder estabelecido e contra a autoridade publica. Mas, com a refeudalização da esfera pública, a publicidade converteu-se em princípio de integração manipulada: a cultura difundida pelos meios de comunicação de massas é uma cultura de integração, que, através da manipulação do seu público-consumidor, o exclui do espaço da discussão pública e dos processos de decisão. Com a subversão do princípio crítico da publicidade e a sua conversão em demonstração teatral com fins de aprovação, a própria democracia é posta em causa, bastando pensar na degradação do Parlamento em assembleia dominada e manipulada por interesses organizados, tanto pelos interesses dos escritórios de advocacia, como também pelos interesses do poder financeiro e dos grandes grupos económicos: os lideres e os partidos políticos - outrora instrumentos de formação de vontades, não nas mãos dos que mandam nos aparelhos partidários, como sucede hoje em dia, mas nas mãos do público culto - recorrem às novas técnicas dos mass media para obter o assentimento passivo dos eleitores, de modo a legitimar fraudulentamente os seus programas e compromissos políticos. Habermas abordou nesta obra inicial a nova ideologia que nasceu com o desenvolvimento da comunicação de massas, aliás um tema que as suas obras posteriores acabaram por abandonar. A teoria da nova ideologia de Habermas está intimamente ligada à concepção dos receptores de mensagens e de imagens como consumidores passivos, hipnotizados pelo espectáculo e manipulados pelas novas técnicas de gerenciamento da opinião: «A intimidade com a cultura exercita o espírito, enquanto que o consumo da cultura de massas não deixa rastros: ela transmite uma espécie de experiência que não acumula, mas faz regredir». Ambas as teorias de Habermas são tributárias da Dialéctica do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno: a nova ideologia produzida e difundida pelos mass media já não toma a forma de um sistema coerente de ideias ou de crenças separadas, como sucedia com as velhas ideologias políticas do século XIX, mas é inerente aos próprios produtos da indústria cultural, produtos estes que reproduzem o status quo e integram o indivíduo dentro do sistema estabelecido, eliminando qualquer elemento de transcendência e de crítica. Marcuse é peremptório quando escreve no seu Homem Unidimensional: «Esta absorção da ideologia pela realidade não significa, contudo, o "fim da ideologia". Pelo contrário, num sentido específico, a cultura industrial avançada é mais ideológica do que a sua predecessora, visto que actualmente a ideologia está no próprio processo de produção». Ora, segundo Habermas, as indústrias culturais - a teoria crítica da Escola de Frankfurt não permite utilizar este termo no plural e com razão! - criam uma "falsa consciência" e um "falso consenso": «A crítica competente de questões publicamente discutidas cede lugar a um mundo de conformismo, com pessoas ou personificações publicamente apresentadas; consent (consenso) coincide com o good will (boa vontade) provocada pela publicity (publicidade). Outrora, "publicidade" significava a desmistificação da dominação política perante o tribunal do uso público da razão; publicity subsume (hoje) as reacções de um assentimento descomprometido. À medida que se configura, mediante public relations (relações públicas), a esfera pública burguesa reassume traços feudais: os "ofertantes" ostentam roupagens e gestos de representação perante clientes dispostos a segui-los. A publicidade imita aquela aura de prestígio pessoal e de autoridade supra-natural que antigamente era conferida pela esfera pública representativa». Assim, dado serem mais o efeito de técnicas de fabricação da opinião do que o resultado da discussão livre entre cidadãos que fazem uso público da razão, os consensos obtidos nas sociedades modernas são consensos falsos e fabricados. Os conceitos de falsa consciência e de falso consenso aparecem aqui associados à concepção da ideologia como uma espécie de cimento social que circula no mundo social da vida quotidiana - ele próprio colonizado pelo sistema! - através dos produtos das indústrias culturais: a sua função é integrar e incorporar os indivíduos na ordem social vigente, de modo a garantir a sua reprodução social. Ora, como já disse, esses dois conceitos foram abandonados por Habermas nas suas obras posteriores, mais preocupadas com os processos de racionalização - uma herança de Weber! - que definem a modernidade, nas quais a falsa consciência é substituída pela consciência fragmentada que bloqueia o esclarecimento através do mecanismo da reificação. Os desenvolvimentos mais recentes da teoria marxista da ideologia levaram-na a descobrir na acção comunicativa quotidiana o local da ideologia, mas a sua análise não será levada a cabo neste estudo preparatório. Porém, antes de passar à esfera pública portuguesa, convém frisar que a ideologia burguesa, sobretudo na sua versão neoliberal, se deslocou para o campo da chamada ciência económica, que Althusser definiu como mera técnica de adaptação social. De certo modo, as ciências sociais são meras técnicas ideológicas: a crítica da ideologia converte-se finalmente, no nosso tempo indigente, em crítica das ciências sociais. (Chegou a altura de encararmos a própria ciência como ideologia! O tempo pertence à Filosofia!)

Os historiadores portugueses ainda não compreenderam que o movimento de transformações profundas da sociedade portuguesa iniciado pela revolução liberal de 1820 só se consuma com a queda da monarquia e a implantação da república a 5 de Outubro de 1910: a lentidão do processo revolucionário português, marcado e adiado por sucessivos golpes contra-revolucionários, ajuda a entender o atraso estrutural de Portugal, em grande parte devido à poderosa resistência que as elites nacionais - temendo pelo seu futuro - opõem à mudança social qualitativa. Em Portugal, as revoluções sociais nunca conseguem triunfar plenamente, porque não há verdadeiramente circulação das elites e mudanças significativas no regime de propriedade: os "mesmos" verdugos conservam o poder - económico, político, ideológico, religioso e cultural - desde a fundação de Portugal, fazendo da sua história uma espécie de sucessão de biografias, construídas, mantidas e renovadas ao abrigo do Estado. A História da Imprensa Periódica Portuguesa de José Tengarrinha é uma obra a-crítica, que, graças à definição escolástica dos conceitos, acaba por capitular perante a ideologia veiculada pelos mass media. Perante estas palavras de Tengarrinha, segundo as quais «o jornalismo nasceu, em Portugal como em qualquer outro país, da confluência de três factores distintos: o progresso da tipografia, a melhoria das comunicações e das relações postais e o interesse do público pela notícia», ficamos com a impressão de que o jornalismo caiu de para-quedas em Portugal, bastando criar as infra-estruturas necessárias no país para que o esfera pública portuguesa se desenvolvesse quase que por milagre. Definindo o jornal em função de três condições formais - a saber: periodicidade, encadeamento e conteúdo específico, Tengarrinha divide a história da imprensa portuguesa em três períodos: o primeiro período vai da Gazeta de 1641 à revolução de 1820; o segundo período vai da revolução de 1820 a fins do terceiro quartel do século XIX, quando a imprensa se estrutura como uma verdadeira indústria; e o terceiro período vai deste quartel do século XIX aos nossos dias. Esta periodização da história da imprensa portuguesa capta o momento crucial da constituição da esfera pública portuguesa, a revolução liberal de 1820, aliás na peugada de Adrien Baldi (1822): a imprensa de opinião, a imprensa romântica, eis os únicos conceitos que retenho da obra de Tengarrinha para compreender a constituição da esfera pública burguesa em Portugal. Antes de 24 de Agosto de 1820, apenas se publicavam em Portugal cinco jornais, dois dos quais no Brasil: a Gazeta do Rio de Janeiro (1808), e a Idade de Ouro do Brasil (1808), publicado na Baía. A censura pombalina impediu que o jornalismo independente - crítico e político - se desenvolvesse em Portugal, a exemplo do que sucedia em Inglaterra, Holanda e França. Em Portugal, a configuração da esfera pública burguesa sofreu as vicissitudes da história atribulada do liberalismo. Infelizmente, ainda não temos uma obra séria sobre a história do liberalismo português, capaz de tipificar a corrupção endémica que caracteriza estruturalmente a política portuguesa. Quem conheça relativamente bem o período liberal português sabe que Portugal é um país ingovernável: os políticos portugueses não governam para o bem público, mas para garantir o seu próprio enriquecimento pessoal: cada um dos políticos liberais que deu nome a uma ou mais ruas portuguesas foi um corrupto, talvez com excepção de Fernandes Tomás que morreu cedo. Os políticos corruptos do gabinete ministerial presidido pelo duque da Terceira - Agostinho José Freire, Silva Carvalho e Manuel Gonçalves Miranda - eram conhecidos como devoristas, pela sofreguidão insaciável que manifestavam de enriquecimento pessoal. Mas a lista de corruptos não se esgota nestes nomes: a chamada revolução de Setembro de 1836, com o seu rotativismo político, produziu novos corruptos, todos eles candidatos a ditadores: Passos Manuel, Sá da Bandeira, o duque de Palmela, Saldanha e tantos outros, além de serem ideologicamente flexíveis, também foram devoristas dóceis perante a Inglaterra e a oligarquia financeira. A imprensa denunciou publicamente muitos casos de corrupção, numa linguagem violenta e desbragada. Victor de Sá tentou fazer uma periodização do liberalismo português (1820-1834), distinguindo três períodos: o primeiro período liberal (1820-23) foi dominado pelas Cortes que decretaram as primeiras reformas liberais e votaram a Constituição de 1822. Este é o período que reflecte melhor o espírito liberal tal como foi encarnado por Fernandes Tomás, o grande mentor da revolução de 1820. A Constituição de 1822, directamente inspirada pela Constituição de Cádis, consagra três princípios fundamentais: a ideia de soberania nacional, tendo a nação como o único verdadeiro soberano; a supremacia do poder parlamentar sobre o poder real; e a limitação da autoridade real. Porém, uma reacção absolutista (1823-26), a conspiração militar contra-revolucionária em Lisboa, conhecida como Vila-Francada (27 de Maio de 1823), e acarinhada por D. Carlota Joaquina e D. Miguel, aboliu a Constituição e anulou as reformas, forçando os liberais a emigrar. Os adversários do constitucionalismo estavam divididos em duas correntes: a moderada, para a qual pendia D. João VI, e a radical chefiada por D. Carlota Joaquina, que organizou uma nova revolta, conhecida como Abrilada (10 de Abril de 1824). Do seu fracasso resultou a saída de D. Miguel de Portugal. O segundo período liberal (1826-1828), a seguir à morte de D. João VI em 10 de Março de 1826, adoptou a Carta Constitucional outorgada aos portugueses por D. Pedro, imperador do Brasil e herdeiro do trono de Portugal. Uma nova reacção absolutista (1828-1834) seguiu-se ao desembarque de D. Miguel em Lisboa, gerando nova emigração. O terceiro período liberal foi dominado pela guerra civil (1832-34), que terminou com a vitória definitiva dos liberais adeptos da Carta Constitucional outorgada por D. Pedro em 1826. Dois acontecimentos marcam o início deste terceiro período: o Tratado da Quádrupla Aliança (Inglaterra, França, Espanha e Portugal), que decide a defesa das instituições parlamentares na Península Ibérica em 22 de Abril de 1834, e a Convenção de Évora-Monte, que põe termo à guerra civil em 26 de Maio do mesmo ano. Admiro a tentativa de periodizar a história do liberalismo português levada a cabo por Victor de Sá, mas não concordo com a delimitação do terceiro período liberal que se iniciou em 1834: não faz sentido falar da Revolução de Setembro de 1836 e, depois, tentar distinguir entre o suposto liberalismo triunfante, por um lado, e o republicanismo e o socialismo, por outro. A velha prática portuguesa de governar - anular as decisões do governo anterior e tomar novas decisões, sem no entanto ir à raiz dos problemas para não estorvar o enriquecimento pessoal dos que governam em rotação - não permite a estabilização de um regime: a revolução de 1820 foi capturada pela rede corrupta do poder político estabelecido e aprisionada à lógica do enriquecimento pessoal tão evidente na extinção das ordens religiosas (18 de Junho de 1834) e na integração das suas propriedades nos "bens nacionais" e venda aos particulares. A ideia de república não é completamente estranha à revolução de 1820: os revolucionários vintistas nunca confiaram em D. João VI e a Constituição de 1822 limitava o poder régio e abria a porta à democracia, a forma de governo mais temida pela burguesia e aristocracia portuguesas. (E, para os portuenses ilustres, a nova sociedade ambicionada para o país conjugou-se com o desejo republicano: a primeira tentativa de implantar a república ocorreu no Porto a 31 de Janeiro de 1891. O Porto é o alfa e o ómega do grande projecto revolucionário português.) Os liberais triunfantes que formaram governos nunca foram democratas e a monarquia constitucional vacilou sempre entre o absolutismo moderado ou radical e o liberalismo truncado que, no governo, assumiu a forma de ditadura, como por exemplo a ditadura de Costa Cabral. Em termos políticos, a revolução de 1820 só se consumou com a implantação da república a 5 de Outubro de 1910, que, como se sabe, não foi amiga da democracia. Portugal é, visceralmente, anti-democrático: até mesmo os governos formados depois do 25 de Abril de 1974 não resistiram e não resistem à tentação ditatorial. Em Portugal, o poder político é corrupto e, sendo assim, não admira que a revolução de 1820 também tenha fracassado no plano económico, como o demonstra o atraso estrutural do país. Portugal pode ser lapidarmente definido como o país das revoluções sociais fracassadas ou, como alguém já o disse, como o país eternamente adiado. Conhecemos a imbecilidade dos povos, mas, em Portugal, essa imbecilidade também está instalada nas elites do poder, cuja imagística retórica - exibida sobretudo no Parlamento e na comunicação social - deve ser desmitificada se quisermos atingir as fontes não admitidas e, quase sempre, desagradáveis, da sua acção, de modo a adquirirmos uma consciência madura e inteligente da história de Portugal. 

A esfera pública portuguesa polarizou-se em torno dos periódicos publicados no Porto e em Lisboa. As massas populares nunca foram admitidas nessa esfera pública burguesa polarizada entre o Porto e Lisboa, cuja unidade tensa foi garantida pelos contactos entre as elites burguesas das duas cidades portuguesas, pela sua aliança contra os partidários do regime absolutista, encabeçados pela Igreja Católica, e pelos deslocamentos políticos e intelectuais de uma cidade para a outra. Uma bela frase proferida por Manuel Fernandes Tomás na sessão de 14 de Fevereiro das Cortes resume o espírito liberal que preside à configuração da esfera pública burguesa em Portugal: «Não concebo a possibilidade de existir um governo constitucional ao modo que a Nação o espera e deseja sem a Liberdade de Imprensa», pois, como acrescenta Agostinho José Freire na sessão de 15 de Fevereiro, «não é possível haver Constituição sem Imprensa livre: quem poderá informar o Governo dos perigos que o ameaçam, da má administração dos membros, da prevaricação dos magistrados e de todos os seus deveres se a Imprensa não for livre?» A crítica moderna que moldou a esfera pública portuguesa nasceu de uma luta contra o absolutismo, dentro do qual a burguesia portuguesa começou a criar, para si própria, um espaço discursivo próprio, ou, como diria Marx, a sua própria consciência de classe. Não admira, pois, que tenha sido confrontada com o regime repressivo do absolutismo, o regime do Portugal Velho, a que José Agostinho Macedo deu voz quando afirmou num dos seus opúsculos pestilentos que a Pátria está «sobejamente oprimida com o pestilencial flagelo dos periódicos», concluindo que «ao século da Política, que outra praga se devia adoptar que não fosse a dos periódicos políticos? (...) Portugal está coberto, alastrado, entulhado de periódicos, como o Egipto e mais do que o Egipto, de rãs, de gafanhotos, de moscas, de diabos». A Carta de Lei que mandava executar o Decreto das Cortes de 4 de Julho de 1821, promulgada em 12 de Julho, e, mais tarde, a Constituição de 1822 nos seus artigos 7º. e 8º., abolindo a censura prévia, estabelecem pela primeira vez em Portugal a liberdade de imprensa, a «língua da Nação», segundo Fernandes Tomás, fazendo nascer a imprensa de opinião, renovada e modernizada pelos jornalistas exilados, sobretudo em Inglaterra, que regressaram ao país após a revolução de 1820, que Almeida Garrett celebra no seu texto O 24 de Agosto: «Já temos uma Pátria, que nos havia roubado o despotismo: a timidez, a cobardia, a ignorância, que o tinha criado, que se prostrava com vil idolatria ante a obra das suas mãos, acabou. A última hora da tirania soou; o fanatismo, que ocupava a face da Terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no Inferno. Qual era dentre vós, que se não pudesse chamar oprimido? Qual há dentre vós, que se não possa chamar libertado? Qual foi o português, que não gemeu, que não chorou ao som dos ferros? Qual é o português que não folgará com a liberdade? (...) Escravos ontem, hoje livres; ontem autómatos da tirania, hoje homens; ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos, qual será o vil (não digo bem), qual será o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome - Liberdade?» Os absolutistas tinham razões de sobra para temer a abundância de periódicos e a sua crescente influência na formação da opinião pública portuguesa. Luz Soriano esboça um panorama expressivo da multiplicação de periódicos: «Nos fins de Novembro (de 1820) a imprensa periódica havia já tomado um grande ascendente no público, saindo em Lisboa diariamente os seguintes jornais: Gazeta de Lisboa, Diário do Governo, Minerva Constitucional, Mnemosine Constitucional, Portuguez Constitucional e o Patriota. Os não diários eram: Amigo do Povo, publicado às quartas-feiras; Amigo do Príncipe, às terças e sextas; Templo da Memória, às terças e quintas; Astro da Lusitânia, às segundas, quartas e sextas; O Liberal, às quartas-feiras; O Pregoeiro Lusitano, aos sábados; Diálogo dos Cegos, às terças e sextas; e, finalmente, o Cidadão Astuto, às segundas, quartas e sábados. Parece-nos que além destes havia mais uns dois ou três». O ano de 1821 foi efectivamente o ano áureo do jornalismo português do primeiro quartel do século XIX, atingindo-se então o número record de 39 novos periódicos, só ultrapassado no segundo quartel do século, sobretudo a partir de 1834: alguns destes novos jornais eram diários, editados no Brasil, Coimbra, Madeira, Porto e Lisboa, e a maior parte tinha carácter político e feição constitucional. Nos períodos liberais, o jornalismo transformou-se em poderosa arma ao serviço do constitucionalismo sonhado pelos vintistas revolucionários, como bem viu Alexandre Herculano em 1838: «Se a arte de escrever foi o mais admirável invento do homem, a mais poderoso e fecundo foi certamente a Imprensa. Não é ela mesma uma força, mas uma insensível mola do mundo moral, intelectual e físico, cujos registos motores estão em toda a parte e ao alcance de todas as mãos, ainda que mão nenhuma, embora o presuma, baste só por si para a fazer jogar». Convém alertar para o facto das histórias da imprensa portuguesa serem demasiado sectárias, procurando dar um protagonismo exagerado a Lisboa, em detrimento do Porto e da chamada província, ao ponto de não sabermos se um determinado jornal é portuense ou lisboeta. (Para todos os efeitos, sem a ajuda das estatísticas, de tabelas, de gráficos e de diagramas, é praticamente impossível analisar o enxame de periódicos que invadiram as cidades de Lisboa e Porto, o continente, as Ilhas Atlânticas e as colónias ultramarinas.) No Porto, cidade burguesa desde o século XII, o vintismo deu origem a um enxame de publicações que criticavam o poder político vigente, em nome do liberalismo e do constitucionalismo: o Diário Nacional, o primeiro grande diário da Cidade Invicta, publicado com a permissão da Junta Suprema do Reino e composto na Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e Filhos, foi lido pelos portuenses apenas de 26 de Agosto a 5 de Setembro de 1820; o Correio do Porto (1820), jornal miguelista redigido por João António Frederico Ferro; A Borboleta Constitucional (1821); o Patriota Portuense; a Folheta Mercantil; o diário Crónica Constitucional do Porto (1832-35), impressa durante o cerco do Porto em continuação da Crónica da Terceira; A Vedeta da Liberdade (1835), órgão onde António Rodrigues Sampaio fez a sua estreia jornalística, defendendo os princípios da chamada revolução de Setembro e alcançando grande audiência nacional; o Periódico dos Pobres no Porto (1834), cartista, que em 1838 se fundiu com O Artilheiro; e O Athleta (1838), setembrista. (:::/:::) Na altura em que as ruas do Porto começaram a ser iluminadas por candeeiros públicos a gás, por volta de 1862, a cidade tornou-se elegante e herdeira do romantismo, como demonstra o esgotamento da edição de A Rua Escura, de Coelho Lousada, ou a frequência entusiástica das temporadas líricas do S. João: os portuenses iniciaram-se no "vício" do café e do dominó. No café Guichard prepara-se o ultra-romantismo, no Lisbonense discutem-se negócios e no Águia D'Ouro joga-se à tarde e organizam-se rusgas à noite, em nome de uma dama do lírico. Graças ao contacto diário com os ingleses, a burguesia portuense tomou consciência de que a civilização passa mais pela qualidade do que pela quantidade, e, por isso, para se preparar para o futuro, enviava os seus filhos a estudar em Inglaterra. No seu romance Uma Família Inglesa (1868), Júlio Dinis esboça a morfologia social do Porto Oitocentista, distinguindo três regiões, a oriental ou bairro brasileiro, a central ou bairro portuense, e a ocidental ou bairro inglês: «O bairro ocidental é o inglês, por ser especialmente aí o habitat destes nossos hóspedes. Predomina a casa pintada de verde-escuro, de roxo-terra, de cor de café, de cinzento, de preto... até de preto! - Arquitectura despretensiosa, mas elegante; janelas rectangulares; o peitoril mais usado do que a sacada. - Já uma manifestação de um viver mais recolhido, mais íntimo, porque o peitoril tem muito menos de indiscreto do que a varanda. Algumas casas ao fundo dos jardins; jardins assombrados por acácias, tílias e magnólias e cortados de avenidas tortuosas; as portas da rua sempre fechadas. Chaminés fumegando quase constantemente. Persianas e transparentes de fazerem despertar curiosidades. Ninguém pelas janelas. Nas ruas encontra-se com frequência uma inglesa de cachos e um bando de crianças de cabelos loiros e de babeiros brancos». Na década de 80 do século XIX, havia no Porto 14 jornais diários e 80 não diários. A qualidade da imprensa portuense era superior à da imprensa lisboeta, porque era na imprensa do Porto que escreviam os grandes escritores nacionais. Os jornais portuenses deste período eram de grande audiência: o trissemanário O Comércio (1854), que em 1856 passa a diário com a designação O Comércio do PortoO Comércio do Porto (desde 1856); A Palavra, do visconde de Samodães, jornal católico e ultraconservador; A Grinalda, jornal literário; O Primeiro de Janeiro (1868) que, a partir de 1872, teve agência telegráfica; A Actualidade (1874), jornal dirigido por Teófilo Braga; Revolução Social (1887), o primeiro jornal portuense anarquista; e, para finalizar esta lista lacunar, Jornal de Notícias (1888). Quando apareceram, alguns destes jornais tinham, em média, quatro páginas, embora a maioria tivesse apenas duas páginas, onde se publicavam anúncios e notícias nacionais e estrangeiras, com recurso inicial a desenhos tipográficos. (:::/:::)

O vintismo promoveu a publicação abundante de periódicos nas colónias portuguesas. Como já vimos, no Brasil, antes da revolução de 1820, a imprensa periódica desenvolveu-se, dando origem à Gazeta do Rio de Janeiro e à Idade de Ouro do Brasil. A Gazeta do Rio de Janeiro apareceu a 10 de Setembro de 1808 e era publicada todas as quartas-feiras e sábados, por ordem e sob a direcção e inspecção do governo: cada número avulso custava 80 réis e a assinatura por semestre era de 3$800 réis. A partir de 1 de Julho de 1821 passou a sair três vezes por semana - às terças, quintas e sábados, e, de 1821 em diante, denominou-se apenas Gazeta do Rio, que, depois da independência do Brasil, era encimada pelas armas imperiais brasileiras. Em 1828, a Gazeta do Rio foi substituída pelo Diário do Governo. Em 1808, começou a ser publicado na Baía o segundo periódico brasileiro: Idade de Ouro do Brasil, que, sendo bissemanal e de pequeno formato, se tornou logo órgão oficial do governo. A Coroa Portuguesa impediu severamente o estabelecimento de tipografias no Brasil, para evitar a propagação de ideias «contrárias ao interesse do Estado». Esta repressão - bem visível no edital de 30 de Janeiro de 1809 do intendente-geral da Polícia da corte do Rio - atrasou o desenvolvimento intelectual e literário do Brasil, sem no entanto conseguir evitar a influência das ideias da Revolução Francesa sobre as elites urbanas brasileiras. Com a mudança da corte para o Brasil, a Impressão Régia estabeleceu-se na cidade do Rio de Janeiro, por Decreto de 13 de Maio de 1808, com o material tipográfico, de origem inglesa, que fora num dos navios da esquadra real. Foi nesta tipografia régia que se imprimiu a Gazeta do Rio de Janeiro: os originais eram sujeitos a exame meticuloso e nenhuma publicação podia ser feita sem ter sido antes submetida à censura da Intendência da Polícia. Não admira que, em 1808, tenha aparecido em Londres o Correio Braziliense, o primeiro periódico brasileiro, redigido em português por Hipólito José da Costa: o primeiro número desta publicação mensal saiu a 1 de Junho de 1808 e a colecção completa tem 28 volumes: a sua principal intenção era lutar pela independência do Brasil. Tanto o Correio Braziliense como O Investigador Portuguez em Inglaterra, outro periódico impresso em Inglaterra, eram muito lidos. O segundo periódico publicado no Rio de Janeiro foi O Patriota, e um terceiro, saído no mesmo ano de 1813, foi O Popular. Só a partir de 1821 - já depois da revolução de 1820 - é que foram publicados diversos jornais de qualidade, entre os quais se destacam O Amigo do Rei e da Nação e O Conciliador do Reino Unido, ambos de José da Silva Lisboa, e o Diário do Rio de Janeiro. A suspensão da censura prévia em Agosto de 1821 deu aso à intensificação do movimento jornalístico: os jornais alcançaram uma mais larga expansão e um maior efeito na opinião pública, exercendo uma profunda influência na preparação da independência do Brasil. Dos jornais fundados nessa altura merecem especial destaque a Sabbatina Familiar dos Amigos do Bem Comum, o Despertador Brasiliense, O Bem da Ordem, O Constitucional e o Reverbero Constitucional Fluminense. Depois da independência, o jornalismo brasileiro entrou num período de grande desenvolvimento e de notável expansão, como demonstraram Licurgo Costa e Barros Vidal na sua obra História e Evolução da Imprensa Brasileira. Nas colónias ultramarinas portuguesas, o desenvolvimento da imprensa começou após a revolução de 1820. Este desenvolvimento sofreu algumas quebras impostas pelo desenrolar do próprio processo revolucionário português, mas continuou sempre em progresso constante depois de 1834, atingindo uma expansão notável na Índia Portuguesa, em Macau, em Moçambique e em Angola: «No segundo quartel do século XIX até fins do terceiro foi a Índia Portuguesa, de todos os nossos territórios ultramarinos, que registou maior desenvolvimento jornalístico. Os periódicos eram notáveis, não apenas pelo elevado número e qualidade literária, como também pelo seu nível técnico, pois a indústria tipográfica atingira naquela província grande desenvolvimento e perfeição. Igualmente em Macau se assinala poderoso movimento periodístico, embora inferior ao da Índia» (Tengarrinha, 1965). Em Goa, surgiram a Gazeta de Goa (1821-26), um periódico político, e, mais tarde, a Crónica Constitucional de Goa (1835-36), que eram órgãos oficiais, como o Diário do Governo. Em Macau, a imprensa estreou-se com a Abelha da China (1822), cujo primeiro número apareceu em 12 de Setembro de 1822, sendo sucedida pela Gazeta de Macau (1824), Crónica de Macau, Português na China (1833-43), Farol Macaense (1841-42), Aurora Macaísta (1843-44) e tantos outros jornais. Também se publicaram em Goa o Constitucional de Goa (1935), a Índia Imparcial (16 de Agosto de 1843 a 9 de Fevereiro de 1844), o Correio de Nova Goa (1844) e a Abelha de Bombaim (1808-1861). Os governos ultramarinos editavam os seus próprios Boletins. Tanto quanto sei, o primeiro Boletim Oficial surgiu, em 1837, na capital indiana, com o título Boletim Oficial do Governo da Índia. O segundo Boletim Oficial ultramarino apareceu, em 1842, na província de Cabo Verde, com o título Boletim Official do Governo Geral da Província de Cabo Verde. Em 1845, apareceu o Boletim Official do Governo de Angola, e, quase dez anos mais tarde, em 1854, surgiu o Boletim Official do Governo de Moçambique. Os Boletins Officiais dos Governos das províncias de São Tomé e Príncipe e da Guiné apareceram, respectivamente, em 1857 e 1880. (Infelizmente, não tenho informação disponível sobre Timor, que também teve o seu Boletim Oficial.) O primeiro diário publicado nas colónias portuguesas foi o Heraldo, de Goa, cujo primeiro número surgiu a 22 de Janeiro de 1900. Em Moçambique, apareceram diversos periódicos, entre os quais se destacam a Imprensa (1870 a 15 de Março de 1873), o Jornal de Moçambique (1873), a África Oriental (1876), A Verdade (1871), O Gato (1880-82), o Imparcial (1885), o Distrito de Lourenço Marques (1885) e Moçambique (15 de Dezembro de 1888 a 1 de Janeiro de 1889). Além destes periódicos, foram publicados em Moçambique o diário Notícias (1937), o Jornal do Comércio, Lourenço Marques Guardian e o Jornal, bem como os seguintes semanários: Lusitânia, Miragem, Brado Africano, Oriente de África, União, Democracia, O Emancipador, Rádio Moçambique e Gazeta da Relação. Sem uma análise detalhada dos conteúdos destes periódicos moçambicanos, não podemos avaliar o seu enquadramento ou alinhamento político e literário. Mas suspeito que, nas suas páginas, se encontram as ideias germinais da independência de Moçambique e da democracia para Moçambique: o convívio próximo dos portugueses de Moçambique com os "ingleses" da Rodésia e da África do Sul, bem como com os brasileiros que lá viviam, alimentou desde cedo o desejo de seguir o mesmo rumo destas duas ex-colónias inglesas. Angola iniciou a sua imprensa com a Aurora, um semanário literário (1855). Seguiu-se mais tarde um periódico já de carácter noticioso, Colonização da África Portuguesa (1866). Outros periódicos angolanos que merecem ser referidos são o Comércio de Luanda (1867), a Verdade Imparcial (1888), o Cruzeiro do Sul (1873), o Farol do Povo (1883) e o Futuro de Angola (1882). Em 1937, existiam em Angola, além do Boletim Oficial, A Pátria, A Província de Angola, Diário da Manhã, Diário de Luanda, O Comércio e Angola Desportiva. Mas o mais importante é que os jornais não surgiram apenas nas capitais coloniais. Assim, por exemplo, apareceram em Quelimane, o Africano (1877) e Muem Exi (1889), que era um jornal republicano. Além destes periódicos, foram publicados, na Zambézia, o Correio da Zambézia (1877-87), em S. Tomé e Príncipe, o Equador (1860), em Bolama, a Fraternidade (1889), e, na província de Cabo Verde, a Cidade da Praia (1880), O Praiense (1889) e a Praia (1889). Das colónias ultramarinas portuguesas Guiné foi aquela que mais se atrasou no desenvolvimento da imprensa: o seu primeiro jornal independente, A Fraternidade, data já de 1883. Convém assinalar que, em Lisboa, se organizou o semanário Marinha e Colónias (1856-1857) e que, em Margão, apareceu o Ultramar em 6 de Abril de 1859. Com os públicos-leitores de jornais das colónias ultramarinas, a esfera pública portuguesa amplia-se à escala mundial: graças à revolução de 1820, liderada pela burguesia portuense, ela tornou-se uma esfera pública mundial. As leis sobre a imprensa, o ensino e os sufrágios que, em Portugal, restringiam o acesso à esfera pública, não tinham o mesmo vigor nas colónias que na metrópole, até porque por cada quilometro de distância de Lisboa se ganha um grau de liberdade. Assim, quanto mais distante estiver de Lisboa, mais liberdade desfruta uma cidade para definir a sua própria abertura ao mundo: o facto dos portugueses radicados nos territórios ultramarinos serem mais letrados, mais cultos e mais endinheirados do que os portugueses metropolitanos, associado ao facto de estarem ligados em grande medida ao funcionalismo público das administrações coloniais, justifica provavelmente a maior audiência e o maior âmbito de influência dos jornais ultramarinos, cujos públicos-leitores não se restringiam às camadas superiores e médias da burguesia, incluindo também a pequena burguesia ilustrada e o sector educado do operariado, como já sucedia no Porto e em Lisboa mas não na província. Os portugueses que viviam nas possessões ultramarinas eram mais civilizados, progressistas e cultos do que os portugueses que viviam na metrópole. Os públicos regionais dos jornais ultramarinos eram, portanto, mais amplos do que os públicos regionais do Porto e de Lisboa, para já não falar da província, onde predominava uma maior taxa de analfabetismo. Além disso, estavam libertos da repressão exercida por Lisboa: as ideias novas circulavam facilmente nas malhas arteriais e capilares das redes de contactos com territórios estrangeiros e seus habitantes. Em 1885, Brito Aranha fez o seguinte balanço do jornalismo nas colónias ultramarinas portuguesas: «No espaço de cinquenta anos contaram-se 150 jornais mais ou menos nas províncias ultramarinas, dos quais 70 pertenciam à Índia Portuguesa, 15 à Índia inglesa, 40 às quatro províncias da África portuguesa (19 em Angola) e 24 em Macau e nas possessões asiáticas da Grã-Bretanha, onde há famílias portuguesas. Alguns desses jornais da Índia, e especialmente os que se ocupavam da literatura, tiveram vida muito curta. Os mais antigos jornais de Nova Goa, em 1885, eram o Boletim do Governo, com 48 anos de publicação, e o Ultramar, com 27. Em Luanda, o Boletim, que contava 40 anos, e o Mercantil, que contava 15 anos. E em Macau o Boletim com cinquenta anos».

A fertilidade das imprensas coloniais portuguesas só pode ser justificada pela longa distância que separava as colónias da capital do Império: o espírito português desabrocha quando não tem Lisboa por perto. Os portugueses foram mais felizes nas colónias do que na metrópole: longe do raio de acção de Lisboa, eles são capazes de construir países desenvolvidos, diante dos quais a capital-metrópole se envergonha do seu espírito saloio e ladrão. Com efeito, não foi a entrada na União Europeia que modernizou Portugal, mas sim o retorno dos portugueses depois da descolonização: os chamados retornados sabem como Portugal era miserável, triste, pobre e analfabeto antes da sua chegada. Os portugueses de Moçambique chamavam "chouriços" aos portugueses metropolitanos que desembarcavam no aeroporto e no porto de Lourenço Marques, e, já depois do regresso a Portugal, continuaram a usar esse termo para designar os portugueses feios e sujos que encontraram por cá. Moçambique e Angola eram regiões mais desenvolvidas e civilizadas do que a "santa terrinha", designação pejorativa dada pelos portugueses moçambicanos e angolanos à "metrópole". Em 1975 ou 1976, para espanto dos retornados, os portugueses-chouriço não tomavam banho, não tinham cuidados de higiene, não sabiam o que era a Coca-Cola, a Fanta ou o Seven-Up, mal sabiam falar e escrever bem português, dizem que, nalguns sítios, iam para a escola descalços e rotos, não tinham casas-de-banho em muitas casas rurais e suburbanas, não tinham iogurtes para comer, enfim os retornados devem ter penado muito para aprender a lidar com esta gente feia e suja, saída de um cenário ranhoso de Fellini. Como é que o Porto conseguiu lidar com a proximidade perigosa de Lisboa? Ainda não sei responder cabalmente a esta pergunta. Penso que, durante o período colonial, o Porto comerciava com as colónias, enquanto Lisboa se contentava a distribuir os rendimentos sacados às colónias, iludindo-se com as suas próprias fantasias de grandeza. Se assim for, e julgo que as mercadorias exportadas do Porto para as colónias está aí para o confirmar, o Porto desfrutou de autonomia ao longo do tempo, autonomia que perdeu gradualmente depois do 25 de Abril, sobretudo a partir dos governos centralizadores de Cavaco Silva. (Cavaco Silva foi mais centralista do que Salazar! Roubou-nos os bancos, a sede de grandes empresas, e a imprensa periódica!) Privada das riquezas coloniais, Lisboa começou a explorar o próprio país, concentrando na sua área todos os fundos comunitários. Depois de ter perdido as colónias, Lisboa pensou que podia continuar a alimentar as suas fantasias de grandeza "chulando" os alemães e os holandeses. A actual crise económica revela as vigarices e os jogos corruptos do Estado Português: as elites portuguesas do poder perderam sempre-já a vergonha, porque tanto fingem ser aquilo que não são, como também são submissas em relação às elites europeias, estendendo facilmente a mão à esmola europeia e candidatando-se à "chulice". Todo o mal de Portugal tem uma única origem: a "capital" que engorda sempre os mesmos à custa do emagrecimento e do empobrecimento do país. Lisboa é de tal modo idiota que ainda não compreendeu a imagem que dela fazem os europeus do Norte. Nas conversas privadas, "Lisboa" significa "corrupção" e "vigarice". Mas esta imagem já se encontra no passado próximo e longínquo: há documentos de embaixadores e de cônsules de todos os tempos que são deveras humilhantes para os governantes portugueses, tratando-os sistematicamente como "idiotas culturais", isto é, como pessoas burras e incultas que podem ser enganadas com facilidade, desde que se conheçam os seus pontos fracos. Refiro estes documentos para dizer que não é o povo português que envergonha Portugal; são as elites do poder sediadas em Lisboa que envergonham os portugueses e o país. Como dizem os estrangeiros esclarecidos: Lisboa, a cidade que dá abrigo a Ali Babá e os 40 ladrões, é a desgraça de Portugal. Victor de Sá analisou a remodelação ministerial (20 de Abril) operada poucos meses antes da revolta popular de 1836, chamando a atenção para o carácter oligárquico e ditatorial do gabinete ministerial presidido pelo duque da Terceira. Retomo aqui esta análise para tipificar a corrupção política que atravessa toda a história de Portugal. O presidente do Ministério, que acumulava a pasta da Guerra, tinha integrado no seu morgadio, em 1834, pela apresentação de um simples requerimento e sem qualquer prova, o convento de Alverca e respectivo território. O duque da Terceira auferia honorários como presidente do Conselho e como ministro da Guerra, como conselheiro de Estado, como marechal-general do Exército, como membro do Supremo Conselho Militar, como governador da Torre de Belém e como caseiro-mor da rainha. Além disso, tinha recebido cem contos de réis pela sua fidelidade à causa de D. Pedro. A acumulação de ordenados e pensões é, pois, uma prática habitual em Portugal. Agostinho José Freire, ministro do Reino e autor da lei das indemnizações, acumulava os ordenados de director do Colégio Militar, de conselheiro de Estado e de ministro. José da Silva Carvalho, ministro da Fazenda e responsável pela supressão ruinosa do papel-moeda, recebeu a título de ministro honorário 10 346$666 réis, fortuna esta que acumulava com os ordenados na sua qualidade de ministro efectivo, de presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de conselheiro de Estado. As suas manobras financeiras valeram-lhe a alcunha de José do Chapelório. Manuel Gonçalves de Miranda, ministro da Marinha, recebeu 50 000 cruzados como pensão de ministro honorário desde 1823 até 1835. Joaquim António de Aguiar, ministro da Justiça, foi o único a não ser acusado de acumulações e prebendas. O conde de Vila Real, ministro dos Estrangeiros, era extremamente dócil à influência política, económica e financeira que a Inglaterra já exercia sobre Portugal desde as invasões francesas. O gabinete ministerial do duque da Terceira - a vitória da facção conservadora do liberalismo - exemplifica até à exaustão o padrão letal da prática governativa portuguesa - corrupção, jogos financeiros que arruínam o país, subserviência em relação às potências estrangeiras, estupidez, perda periódica de soberaniainsensibilidade social, desprezo pelo povo, instrumentalização do Estado em benefício pessoal e privado, acumulação de privilégios, cunhismo, falta de transparência, mentira institucionalizada, flexibilidade ideológica, oportunismo político, ausência de renovação, uso do Estado para favorecer grupos privados, histeria, falta de ética, imobilidade social e política, estagnação, exploração do povo, perseguição da oposição, institucionalização do crime de colarinho-branco, promiscuidade entre os negócios públicos e privados, monopolização do poder, tentação totalitária permanente, difamação pública dos opositores, etc. - que resiste ao espírito de mudança das revoluções sociais: não há revolução que lhe ponha termo e o 25 de Abril acabou por ser capturado pelo poder conservador - isto é, corrupto e antidemocrático - que domina Portugal desde a sua fundação. A história de Portugal pode ser vista como uma sucessão de tentativas fracassadas de instaurar a verdadeira democracia: tanto a revolução liberal de 1820 até à implantação da república como a revolução dos cravos do 25 de Abril foram duas experiências abortadas. Em Portugal, a grande transformação ainda não foi operada: ela exige sangue, a liquidação das chamadas elites nacionais e um novo regime de propriedade. Sem a realização de uma revolução sangrenta Portugal não tem futuro numa Europa envelhecida e condenada à morte. Sim, a Europa está cancerosamente moribunda, sem juventude e sem vigor, incapaz de se defender da invasão de um exército jovem proveniente do Norte de África ou de qualquer outro lugar do mundo bárbaro.

Em construção lenta. J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de março de 2012

O Diário do Porto: o Primeiro Periódico Português

Porto: Ponte D. Luís I
Alfredo da Cunha e Augusto Xavier da Silva Pereira afirmam ser o Diário do Porto o primeiro periódico a circular em Portugal: o seu primeiro número saiu, na cidade do Porto, a 5 de Abril de 1809, «com permissão e aprovação do governo». Rocha Martins caracteriza-o como «obra infame e infecta dum português alacaiado, dos que estão sempre prontos a rastejar, um daqueles "homens de viva quem vence"». O Diário do Porto era a folha oficial do invasor francês, que encarnava o espírito da liberdade contra o absolutismo régio. No seu primeiro número, tece grandes louvores ao marechal Soult, a quem chama «herói em cujo coração se disputam a primazia, o valor e a humanidade», e noticia abundantemente os avanços e vitórias do exército francês. (O Porto também teve o seu período francês, que, apesar de tudo, não durou muito tempo, porque os portuenses souberam organizar-se contra Junot e expulsar os franceses da cidade.) A colecção da Biblioteca Nacional de Lisboa compreende apenas cinco números, datando o último de 6 de Maio de 1809. José Tengarrinha, cuja História da Imprensa Periódica Portuguesa admiro, contesta sem razão a tese defendida por Alfredo da Cunha, alegando que o primeiro periódico português publicado diariamente foi o Diário Lisbonense, fundado por Estêvão Brocard, cujo primeiro número apareceu a 1 de Maio de 1809. Esta polémica não faz grande sentido, porque estamos diante dos dois primeiros periódicos portugueses, sendo o Diário do Porto quase um mês anterior ao Diário Lisbonense. O que importa destacar é que, em matéria de imprensa, Portugal e as suas colónias - incluindo o Brasil que, no período histórico que me interessa, ainda era uma colónia portuguesa - acompanharam sempre o movimento da imprensa mundial, sem nenhum tipo de atraso. Em Portugal, formou-se efectivamente uma esfera pública, política e literária, polarizada e «disputada» entre o Porto e Lisboa, para já não falar dos outros pólos ultramarinos, como por exemplo Rio de Janeiro (Brasil), Goa (Índia), Lourenço Marques (Moçambique) e Luanda (Angola). (O período áureo da esfera pública portuense vai dos finais do século XVII até meados do século XX: o Porto Oitocentista é o momento mais glorioso da esfera pública portuense.) Hoje vivemos o período de decadência dessa esfera pública, o período da sua refeudalização política. Associo esta corrupção da esfera pública à profissionalização do jornalismo e, no caso português, ao centralismo cavaquista que empobreceu dramaticamente Portugal: o jornalismo manipulador sepultou o jornalismo crítico. A perda da função crítica foi fatal para a esfera pública em todos os cantos do mundo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 9 de março de 2012

Vertigem: Houve uma Cultura do Renascimento no Porto?

«Há muito quem julgue que o Porto foi sempre, e é ainda, terreno sáfaro para a cultura do espírito. Cidade conhecida em todo o mundo pela fama do vinho que lhe usa o nome, terra eminentemente ciosa das suas ingénitas e tradicionalíssimas disposições para o balcão e para a oficina, há quem suponha que do Porto só saíram grandes industriais e negociantes - quando não apenas merceeiros e taberneiros boçais - e que, quanto a livros, por exemplo, não se conhecem aqui senão os de Dever-Haver. O Porto sabe que é essa a sua fama e não se dá ao trabalho de tentar destruí-la, de mostrar que não é bem assim. (...) Vou ter a honra de me ocupar hoje dos Portuenses que na época do Renascimento honraram esta terra pelo seu espírito culto e pelo seu talento, e tentarei mostrar que o Porto, nesse período intenso de renovação intelectual, não ficou extático na adoração do Bezerro de Oiro». (Artur de Magalhães Basto)

Magalhães Basto tentou esboçar o quadro da cultura do renascimento no Porto, mas não foi bem-sucedido neste empreendimento por causa da sua miserável visão do Renascimento: «Nos fins do século XV, os descobrimentos geográficos - portugueses e espanhóis - destruindo velhas concepções, demonstrando a inanidade de axiomas assentes e respeitados no transcurso de séculos, revelando horizontes novos à investigação e ao saber humanos, anunciavam uma esplendorosa alvorada. O Humanismo, essa paixão, levada ao fanatismo, das línguas e literaturas clássicas - que desabrochara, como quase não poderia deixar de ser, no país em que viveram Cícero, Virgílio, Ovídio e Horácio, Tácito, Tito Lívio e Suetónio, em que se falava uma língua continuadora directa da que estes falaram, em que se elevavam ainda os arcos triunfais e as ruínas do Coliseu, as esculturas e as inscrições antigas, onde, desde os séculos XIII e XIV, haviam surgido percursores do génio como Dante, Petrarca e Bocácio, em cujos centros de cultura encontraram carinhoso acolhimento os sábios gregos fugidos à invasão otomana - o Humanismo tinha desabrochado e irradiado da Itália. Conjugando-se com as novas verdades descobertas pelos marinheiros de Portugal à custa de anos seguidos de perseverança, de inteligência e de heroicidade em navegações mais ousadas que as do sábio grego ou do troiano, e fundindo-se com as tendências do Cristianismo e das nações ocidentais, como mostrou Burckhardt, o Humanismo produzia, afinal, esse incomparável reflorescimento intelectual, social e científico a que se dá o nome, tão sugestivo como pouco próprio se tomado à letra, de Renascimento. Inauguravam-se os Tempos Modernos...» (Magalhães Basto). Munido com este conceito de renascimento como revolução humanista, Magalhães Basto parte em busca do Porto Humanista, sem ter compreendido que, quando aparelhou quatro frotas de 1415 a 1471, entre elas a famosa armada da expedição de Ceuta, o Porto já era uma grande cidade marítima e comercial que mantinha intensas relações comerciais com Flandres, França, Inglaterra e países do Mediterrâneo e que promovia um conceito dinâmico de humanidade. A abertura ao mundo que define o Porto explica desde logo a facilidade com que muitas doutrinas políticas e filosóficas se aclimataram facilmente no seu solo: a cultura interna do Porto é, nos longos séculos da sua existência, uma cultura aberta ao mundo, não só às crenças alheias mas também às novas ideias, para já não falar das implicações económicas dessa abertura. Ora, a cultura de abertura ao mundo que caracteriza a cultura urbana do Porto, é, por definição, uma cultura da liberdade, intelectual e política. Max Weber estabeleceu uma distinção entre Binnenkultur e Aussenkultur que ajuda a compreender a cultura renascentista do Porto: a cultura urbana portuense é uma cultura indígena que, ao longo da sua história de contactos com o exterior, se abriu às culturas estrangeiras, tornando-se assim cultura cosmopolita. O conceito portuense de homem foi sempre-já um conceito dinâmico, lavrado e adquirido ao longo da sua história de contactos interculturais com outros povos da Europa e do mundo, como testemunham os belos textos renascentistas de Tomé Lopes e de Pero Vaz de Caminha. A maior parte dos historiadores portuenses não foram capazes de definir as linhas gerais da cultura indígena do Porto. Não basta afirmar que os portuenses têm espírito religioso sem fanatismos, aberto, tolerante, liberal, independente e autónomo, com os seus assomos de revolta contra todas as opressões, partissem elas do clero, da nobreza ou da realeza, para identificar a matriz da cultura indígena do Porto, até porque há um lado obscuro da alma portuense responsável pelo bloqueio periódico da própria cidade: a "experiência" ensina-me que os maiores inimigos do Porto são precisamente aqueles portuenses que usam o seu suposto orgulho "bairrista" para fechar as portas do futuro à Cidade Invicta. Há, portanto, um lado sombrio do Porto - o Grande Aldeão, como lhe chamou Almeida Garrett - que se revela à luz do dia nos rostos visíveis das suas personalidades públicas. Assim, por exemplo, Magalhães Basto, o ilustre historiador da cidade do Porto, embora tenha desejado esboçar a imagem do Porto Renascentista, acabou por cair na cilada da lenda da fobia portuense à instrução, devido ao fechamento da sua mente à cultura do espírito: o seu conceito de renascimento é de tal modo paupérrimo que o levou a procurar o Porto Renascentista lá onde ele quase não existia. A precariedade da cultura histórica e filosófica de Magalhães Basto reflecte-se fatalmente nas suas obras: a História do Porto, tal como a narra, é reduzida à mediocridade da sua própria mente, a qual ofusca os fragmentos do mundo portuense sobre os quais se debruça. Em vez de engrandecer o Porto, Magalhães Basto diminui o Porto, roubando-lhe o seu brilho natural: o Porto Renascentista elaborado por Magalhães Basto é uma mera importação do exterior, alcançada graças à acção das suas vereações que não se furtaram a tão grandes despesas para promover a vinda de bons mestres do exterior. Deste modo, o Porto torna-se estranho a si próprio: a sua cultura indígena é apagada pela cultura estrangeira. Magalhães Basto move-se num universo estático, precisamente o universo que foi abolido pelo renascimento, nomeadamente pelo renascimento portuense: «Com o Renascimento surge um conceito dinâmico do homem. O indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento. A identidade contraditória do indivíduo e da sociedade surge em todas as categorias fundamentais. A relação entre o indivíduo e a situação torna-se fluída; o passado, o presente e o futuro transformam-se em criações humanas. Esta "humanidade", no entanto, constitui um conceito generalizado, homogéneo. É neste momento que a "liberdade" e a "fraternidade" nascem como categorias ontológicas imanentes. O tempo e o espaço humanizam-se e o infinito transforma-se numa realidade social. Mas por muito dinâmico que o homem possa ser na sua interacção com a história, antropologicamente ainda é eterno, genérico e homogéneo. O homem cria o mundo, mas não recria a humanidade; a história, a "situação", mantém-se externa a ele. O conceito de homem não supera a noção de corsi e ricorsi, o movimento cíclico não se transforma numa espiral. Em certo sentido, através da análise concreta da psique e do comportamento humanos, os séculos XVII e XVIII alargam a investigação do homem, apesar da aparente regressão da concepção histórica da humanidade, tornando possível uma verdadeira antropologia histórica e a noção de autocriação do homem. De Hobbes a Rousseau, o passado da humanidade transforma-se - num plano superior - em história. Depois da Revolução Francesa, o próprio presente - em figuras tão importantes como Hegel e Balzac - se transforma também em história. Finalmente, com Marx e a negação da sociedade burguesa, é o próprio futuro que surge como história» (Agnes Heller). Quando lemos as obras dos historiadores portugueses do renascimento, ficamos com a impressão de que, para eles, ser humanista é saber falar fluentemente grego e, sobretudo, latim. Este é um critério muito dúbio para identificar a cultura renascentista, até porque o latim sempre foi a língua culta da Idade Média. Geralmente, a obra de Jacob Burckhardt é referenciada em quase todos os estudos sobre o renascimento italiano, mas no caso português os historiadores parecem não compreender uma das suas teses fundamentais: «Na Idade Média, as duas faces da consciência, a face objectiva e a face subjectiva, estavam de alguma maneira veladas; a vida intelectual assemelhava-se a um meio sonho. O véu que envolvia os espíritos era tecido de fé e de preconceitos, de ignorância e de ilusões; o mundo e a história apareciam com cores bizarras; quanto ao homem, apenas se conhecia raça, povo, partido, corporação, família ou sob uma outra forma geral e colectiva. Foi a Itália a primeira a rasgar o véu e a dar o sinal para o estudo objectivo do estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objectos, desenvolve-se o aspecto subjectivo; o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado. Deste modo, se elevara outrora o Grego em face do mundo bárbaro, o Árabe em face de todas as outras raças asiáticas. Não será difícil provar que foi a situação política que teve o maior papel nesta transformação». Infelizmente, os historiadores portugueses comportam-se como se não tivessem lido, pelo menos, o Discurso sobre a Dignidade do Homem de Giovanni Pico Della Mirandola: «O desenvolvimento da personalidade está intimamente ligado à faculdade de conhecimento de si próprio e de conhecimento dos outros. Entre estes dois fenómenos, temos de colocar a influência da literatura antiga porque a maneira de reconhecer e de descrever o indivíduo, como o humano em geral, é determinada principalmente por este intermédio» (Burckhardt). Ora, a cultura portuguesa da Renascença acrescenta ao descobrimento do mundo a descoberta do homem, mostrando-o à luz do dia em corpo inteiro e despido. Magalhães Basto está certo quando diz que o Porto sentiu a gloriosa madrugada dos tempos modernos: o espírito portuense foi subitamente dominado pela ânsia de expansão, de dilatação do mundo, de infinito, e por uma curiosidade sem limites de ver, de saber, de conhecer. Porém, Magalhães Basto esquece que o infinito não é apenas um conceito matemático; ele é também um conceito social que deve ser "extraído" da literatura renascentista do Porto: não basta dizer que um poeta é "humanista", porque fala grego ou latim, para fazer dele um renascentista; a sua obra expressa ou não a concepção renascentista do mundo que urge analisar. De acordo com este critério, a cultura renascentista portuguesa ainda não foi verdadeiramente analisada: há muito trabalho teórico e editorial a fazer. Se os italianos fossem como os portugueses de hoje, nunca teriam despertado a Antiguidade Clássica, deixando-a esquecida nas prateleiras das bibliotecas ou enterrada sob o peso brutal do betão; mas, para nossa felicidade, o povo italiano soube celebrar e ressuscitar o seu passado: «Em Itália, é simultaneamente o mundo culto e o povo que prestam homenagem à Antiguidade e querem fazê-la reviver porque recorda a todos a grandeza passada do seu país» (Burckhardt). Os poetas quinhentistas portugueses ergueram a sua voz contra a febre dos lucros e de aventuras e contra a quimera do ouro, alegando que a epopeia dos mares - cantada por Camões - desviava a atenção do conhecimento de si próprio e dos outros. André Falcão dirigiu estes versos a André de Resende: «Noutro tempo valeu mais que o ouro o engenho, /Agora engenho tem quem tem mais ouro, /E só ter ouro é um geral dissenso. /Esta falsa cobiça de tesouro /Leva cega após si honra e nobreza, /Do Tejo, Ana, Mondego, Minho e Douro/ Não falo já no mais da redondeza, /Cá em nosso Portugal principalmente/ Sangue e saber por vil metal se preza». (Há neste poema uma concepção renascentista do destino articulada com as noções de fado e de fortuna! Simplesmente brilhante!)

No século XV, havia inegavelmente um atraso cultural em Portugal, que nunca foi superado pela Universidade de Coimbra; pelo contrário, a Universidade de Coimbra foi a grande responsável por esse atraso. Por isso, os seus membros carecem de autoridade para falar da fobia portuense pela instrução: os maiores burros da história foram e ainda são os diplomados. Porém, a questão da instrução pública não é relevante para captar a qualidade da cultura nacional de um país. No passado, a maior parte da população era analfabeta, mas havia figuras geniais, enquanto no nosso tempo indigente há um excesso de diplomados e escassez absoluta de génios. Ora, a cultura do renascimento nunca foi uma cultura de massas: «Na constituição dos meios sociais, o Renascimento italiano é a contrapartida da Idade Média. Antes de mais, o princípio já não é o mesmo, pois nas altas relações sociais não há diferenças de casta, mas unicamente uma classe culta no sentido moderno da palavra, uma classe para quem o nascimento e a origem só têm influência quando se juntam à fortuna (propriedade) e aos lazeres que ela proporciona» (Burckhardt). A possibilidade de nivelamento das classes sociais é mais virtual do que real na sociedade capitalista, como demonstrou Marx quando analisa a acumulação primitiva do capital, o pecado original do capitalismo. Magalhães Basto resume o renascimento português neste parágrafo: «Desde o século XV desenhava-se neste recanto do Ocidente europeu, um belo movimento de renovação intelectual, criavam-se as bases da ciência náutica moderna, com um correspondente progresso das matemáticas, e nas primeiras décadas do século XVI, depois da reforma da Escola do Convento de Santa Cruz de Coimbra, e do regresso dos bolseiros que tinham ido estudar para os grandes centros cultos da Europa, começou um período brilhantíssimo, embora curto, em que as letras e as ciências atingiram entre nós um altíssimo nível». O facto de desconhecer os textos de Marx e de Engels sobre o Renascimento - como a aurora do capitalismo - leva Magalhães Basto a descobrir o centro de cultura renascentista em Portugal lá onde ele era precário e artificial, sem suporte na cultura económica do capitalismo: «Não foi o Porto, certamente, um centro de cultura intelectual como Coimbra, que, com a Escola de Santa Cruz, a Universidade e o Colégio das Artes, representou o foco mais intenso do movimento cultural português do Renascimento». A Universidade de Coimbra como pólo cultural de todo o país durante séculos é um mito - e um mito fatal e nefasto para o futuro de Portugal, como já sabia D. Diogo de Sousa, bispo do Porto! - de tal modo evidente que não vale a pena demoli-o aqui: Coimbra não estava económica e culturalmente à altura das grandes cidades renascentistas de Itália. Em Portugal, só havia duas cidades capazes de rivalizar com o esplendor renascentista das cidades "italianas", conforme reconhece o próprio Magalhães Basto, Porto e Lisboa: «Só uma cidade em Portugal pode apresentar uma galeria tão extensa e tão brilhante de literatos como o Porto: a cidade de Lisboa. Esta afirmação, feita pela primeira vez, se não estou em erro, por Costa e Silva, já há muito passou em julgado». Apesar de ter captado a imagem do Porto desperto para o capitalismo, Magalhães Basto tende a repetir os mesmos erros de análise cometidos por Teófilo Braga e Hernâni Cidade quando caracterizaram o renascimento português. No entanto, graças às suas investigações nos arquivos da cidade do Porto, consegue demolir o mito da fobia portuense à instrução. Gutenberg descobriu a tipografia por volta de 1440, pelo menos esta é a data em que Marshall McLuhan situa a origem da Galáxia de Gutenberg. No Porto, a imprensa surgiu já no final do século XV. Em 1497, Rodrigo Álvarez imprimiu as Constituições de D. Diogo de Sousa e os Evangelhos e Epístolas. Em 1540, Vasco Dias Tanco de Frejenal imprimiu o Espelho de Casados de João de Barros e, um ano mais tarde, as Constituições de D. Baltasar Limpo. Em 1555, Francisco Correia imprimiu a Arte da Aritmética de Bento Fernandes. A partir deste momento os impressores começam a ser cada vez mais numerosos, o que mostra que o Porto despertou atempadamente para a imprensa, sem desfasamentos temporais significativos em relação aos restantes países europeus. Com a descoberta da tipografia veio o mundo dos livros, para o qual o Porto despertou em meados do século XVI: Giraldo Montez, Bento Fernandes, Giraldo Mendes (1575), Francisco Nunes (1594) e Tomé Correia (1597) são alguns dos livreiros estabelecidos no Porto Quinhentista. É muito difícil articular a imprensa e o mundo dos livros com o ensino no decorrer deste período: o ensino quinhentista é talvez o capítulo mais obscuro da História da Cidade do Porto. Sabemos que o clero detinha o monopólio do saber neste período, bem como nos períodos anteriores: os ignorantes ou leigos eram todos aqueles que não tinham recebido formação eclesiástica. Apesar dos judeus rivalizarem com o clero no que se refere à posse do saber, não houve ensino não-eclesiástico no Porto até à última década do século XV. A insinuação maldosa de Fortunato d'Almeida desencadeia em nós uma estridente gargalhada de desprezo: o Porto não só acompanhou os progressos da instrução pública em Portugal, como também tomou a sua dianteira, ao produzir uma imensa galeria de humanistas ilustres. Na última década do século XV, já havia no Porto alguns mestres de primeiras letras, tais como por exemplo Fernando Alvarez, mestre de ensinar moços, morador à Porta Nova, Miragaia, em 1499, Gonçalo Teixeira, ensinador de moços, em 1499, Jerónimo Afonso, mestre de ensinar moços, em 1492-1524, e Aires Preto, mestre de ensinar moços, à Rua do Souto, em 1492. Além do ensino das primeiras letras confiado aos mestres de ensinar moços, o Porto já tinha aulas públicas de matérias mais sofisticadas: as chamadas escolas de gramática. Assim, por exemplo, em 1491, o Convento dos Lóios fornecia aulas públicas de gramática e moral: o estudo da gramática consistia na aprendizagem do latim, a base de toda a cultura humanista. Depois de terem aprendido a ler e a escrever a língua portuguesa, as crianças eram iniciadas na aprendizagem do latim, cujo ensino era ainda eclesiástico. (A longa domesticação escolar das crianças - e da infância - descoberta pelo Ocidente!) Porém, em meados do século XVI, começaram a surgir os mestres seculares, que eram pagos a preço de ouro pela Câmara Municipal do Porto: «A burguesia despojou da sua sagrada auréola todas as actividades que até então eram tidas por veneráveis e que eram consideradas com um piedoso respeito. O médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio foram transformados, por ela, em assalariados ao seu serviço» (Marx & Engels). Um acórdão da Câmara Municipal do Porto (1539) ajuda-nos a compreender o seu papel pioneiro no estabelecimento da instrução pública portuense: a Câmara Municipal do Porto não permitia a abertura de novas escolas de gramática, sem que os mestres mostrassem em provas públicas as suas habilitações e competências. Até mesmos os mestres que já exerciam a arte de ensinar foram submetidos a exames públicos. Interpreto este acórdão como uma exigência de excelência no ensino, através da limitação da concorrência privada desleal. O mais famoso mestre secular foi o flamengo Vicente do Prado, que, em 1544, habitava na Rua do Redemoinho, atrás da Sé-Catedral do Porto, recebendo 4 000 reais por ano. Marcial de Gouveia, irmão do famoso André de Gouveia, tão enaltecido por Montaigne, foi outro dos mais sábios mestres de gramática do Porto, que, tal como o seu colega Nicolau Clenardo, de Braga, dominava plenamente a língua de Cícero, recebendo 10 000 reais por ano. A Câmara Municipal do Porto também promoveu a vinda de bons mestres do estrangeiro, ao mesmo tempo que fundou um Monte-Pio das Alças, do qual saíram subsídios de estudo a cidadãos portuenses pobres. Alguns destes cidadãos pobres foram enviados para as melhores Universidades estrangeiras, onde recebiam instrução superior. Os alunos de gramática faziam já em 1539 - e por ordem da Câmara Municipal do Porto! - uma festa a S. Nicolau, na Igreja de S. Nicolau, em honra da ciência. Manuel Pereira de Novais conta-nos, na sua obra Anacrisis Historial, que o bispo do Porto, D. Diogo de Sousa, fundou em 1518 os Estudos, que passaram mais tarde a ser regidos pela Companhia de Jesus. Quando D. João III o convidou a contribuir para o sustento dos bolseiros no estrangeiro, D. Diogo de Sousa respondeu-lhe o seguinte, em 1527: «Não cureis de mandar a Paris 60 escolares a aprender teologia, mas mandei vir dela 60 lentes (a modo de falar, porque até dez bastariam para tudo) e então fazei um colégio mui comprido e mui grande e de poucas pinturas e lavores, onde se leia teologia e todas as artes e ciências que para ela são necessárias, e faça-se em lugar conveniente para isso, o que me a mim parece que seja esta cidade de Braga ou o Porto, pela qualidade de ares e temperança da terra». Já em 1527 D. Diogo de Sousa defendia a instalação de uma grande Escola Superior - ou Universidade - no Porto: a Universidade de Coimbra, a única que existia em Portugal, não merecia a confiança nem do cultíssimo prelado nem do rei, até porque os portugueses eram mandados para as Universidades estrangeiras para receber a instrução superior que não obtinham em Coimbra. Em Portugal, alguns sabem aquilo que deve ser feito para conquistar o futuro, mas os decisores políticos adiam por tempo indeterminado a efectivação dos planos adequados de desenvolvimento e, quando os realizam, já é tarde demais: a corrupção política instalada nos aparelhos de Estado bloqueia a sociedade portuguesa, condenando-a a um atraso estrutural jamais superado em qualquer período histórico. Não pretendo narrar a história da instalação da Companhia de Jesus no Porto: o Colégio Jesuítico de S. Lourenço só se tornou uma realidade efectiva em 1560, após 14 anos de resistência portuense à entrada dos jesuítas na cidade do Porto. Na sua Crónica da Companhia, o padre Baltasar Teles justifica este atraso - o lapso de tempo entre 1546 e 1560 - dizendo que os burgueses do Porto temiam que, atrás dos Estudos, viesse a Universidade. A existência de uma Universidade Jesuítica é melhor do que a não existência dessa instituição de ensino superior que emergiu no século XIII: o problema do renascimento português prende-se ao facto de não ter havido Reforma em Portugal. Lá onde houve Reforma as instituições foram secularizadas, cá onde a Igreja nunca foi questionada criavam-se instituições sob a sua tutela: a cultura genuinamente renascentista não podia fortificar e aprofundar-se em tais circunstâncias de secularização insuficiente. Receando o deslocamento da atenção do problema das subsistências - o eterno problema malicioso das elites portuguesas! - para a problemática da antipatia portuense pela instrução, Magalhães Basto prefere uma outra explicação: o Porto não simpatizava com a Companhia de Jesus, porque o seu espírito liberal não compreendia a obediência cega, a renúncia absoluta, a subordinação completa que ela impunha aos seus membros, e, por isso mesmo, não queria ter tão perto de si uma escola que havia de exercer sobre a educação da juventude uma acção não desejada pelos burgueses portuenses. Mas esses mesmos burgueses portuenses nada fizeram para criar uma Universidade Secular no Porto, preferindo enviar os seus filhos para as Universidades estrangeiras, muitas das quais já plenamente autónomas, onde adquiriam o saber que fez deles grandes humanistas, cá dentro e lá fora. A história do renascimento portuense é, de certo modo, a história das grandes fortunas burguesas do Porto. Sem o conhecimento rigoroso das fortunas portuenses, não podemos avançar muito mais: a burguesia portuense que lutou contra o poder episcopal, aliando-se - ou não - ao rei, conseguiu triunfar, ao quebrar todas as relações feudais, mas depressa se aglutinou, fundindo-se com a nobreza, contra a mobilidade social típica de uma sociedade de classes. A burguesia portuguesa, incluindo os burgueses do Porto, nunca foi a burguesia revolucionária descrita por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista: o renascimento foi abolido pela Inquisição Portuguesa, que, é certo!, encontrou no Porto forte resistência e oposição, até porque não queria ser cerceado dos seus privilégios municipais pelo crescente absolutismo da coroa portuguesa. Os Juízes de Fora ainda hoje não são desejados no Porto, tal é a força do seu espírito de autonomia!

Como é evidente para quem saiba distinguir entre crítica subjectiva e crítica objectiva, a crítica da visão do renascimento de Magalhães Basto, em nome da perspectiva aberta por Marx e Engels e retomada por Ernst Bloch e Agnes Heller, para já não falar de Ernst Cassirer, não implica o desprezo pelos resultados brilhantes das suas investigações nos arquivos do Porto: Magalhães Basto deu um contributo fabuloso para a elaboração da História da Cidade do Porto. Graças aos seus estudos, podemos apresentar a galeria de alguns portuenses ilustres do mundo de quinhentos, da qual foram excluídos muitos escritores, humanistas, professores espalhados por Paris (Belchior Belleago, professor no Colégio de Santa Bárbara em Paris), Roma (Pero da Cunha, professor no Colégio da Sapiência em Roma) e Salamanca (Henrique Henriques, professor nas Universidades de Salamanca, Granada e Córdova), homens de Estado e missionários que, apesar de serem portuenses, não residiram e não produziram na sua terra natal. Eis os nomes mais significativos da galeria portuense de ilustres humanistas:

Tomé Lopes. António Cruz reabilitou o nome e a obra de Tomé Lopes, o magnífico cronista portuense da viagem à Índia: «O escrivão Tomé Lopes embarcou, viveu, sentiu, e bem marcados no corpo e na alma, os sucessos da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, pelo espaço de dois anos: sendo o primeiro a descrevê-los de forma nova e não obediente à visão ou perspectiva dos grandes cronistas dos tempos próximos, também ele foi, e agora como cronista, o primeiro a afirmar-se possuído de nova mentalidade, no restrito campo da Historiografia. Também a partir de Tomé Lopes se pode concluir, e à semelhança do que sucedeu com Pero Vaz de Caminha, como já observou Jaime Cortesão, que o Porto "não era sáfaro de gente letrada e culta, ao romper a era de Quinhentos". Segura informação, uma vez que nada a contradiz, tem de ser aceite, se pretende saber da naturalidade do escrivão Tomé Lopes e logo se vem a admitir que ele nasceu no Porto. Sobejam motivos de ufania a esta cidade ribeirinha, que deu o nome a uma Nação e ao Império em que ela se volveu: mas não há-de, nem quer, nem deve a cidade enjeitar a glória de ter sido também um filho seu o primeiro cronista da Rota da Índia». A 8 de Julho de 1497, Álvaro de Braga partiu com Vasco da Gama, como escrivão de bordo da primeira viagem à Índia: o prémio do bom serviço por ele prestado no descobrimento da Índia foi ser nomeado escrivão da alfândega e almoxarifado do Porto, logo após ter regressado do Oriente. Em 1502, Tomé Lopes, escrivão de bordo de uma das naus do comando de Estevão da Gama, cinco ao todo, participou na segunda viagem de Vasco da Gama à Índia: as cinco naus do comando de Estevão da Gama partiram pouco depois das vinte naus comandadas por Vasco da Gama, para virem todas elas a formar, já no Oriente, a armada da segunda viagem à Índia. Tomé Lopes é o célebre autor de uma Relação ou crónica abreviada que é mais do que roteiro ou diário de bordo: trata-se efectivamente da primeira crónica da rota da Índia. Infelizmente, a historiografia portuguesa, lavrada em terras inimigas, tentou apagar o nome de Tomé Lopes, de modo a omitir a participação portuense nos descobrimentos ultramarinos. Porém, o valor da crónica de Tomé Lopes não passou despercebido no estrangeiro: traduzida para italiano, a Relação de Tomé Lopes teve, pelo menos, quatro impressões, a primeira devida a Montalboddo (Vicenza, 1507), e as outras a Ramusio (Veneza, 1550, 1554 e 1563), bem como uma em latim (J. Florian, 1550) e três em francês (Jean Temporal, 1556 e 1830; Charles Schefer, 1898). Só em 1867 é que a Academia Real das Ciências resolveu inseri-la na sua Collecção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, na língua de que se servira, ao redigi-la, o seu autor portuense. Não admira que, tanto no passado como no presente, a marca Porto tenha mais prestígio mundial do que a marca Portugal.

Pero Vaz de Caminha. Nasceu no Porto em 1450 e morreu na Índia em 1501, após ter escrito a Carta do Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500). Filho do mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto, sucedeu ao pai nesse cargo, em 1476, sendo cavaleiro da Casa de D. João II e de D. Manuel. Em 1497, foi encarregado pela Câmara do Porto da redacção dos capítulos a serem apresentados nas cortes de 1498, em Lisboa. Talvez tenha viajado até à Guiné antes de 1500, quando acompanhou Pedro Álvares de Cabral, porque fora nomeado feitor na Índia, onde morreu em 1501 num ataque dos mouros à feitoria portuguesa. Pero Vaz de Caminha conta-nos na sua Carta o que foi o primeiro convívio português com gentes e terras do Novo Mundo, e, dessa narrativa repassada, toda ela, de humanidade, recordo aqui um parágrafo: «E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito».

João Rodrigues de Sá de Meneses. Fidalgo e alcaide-mor do Porto, descendente do famoso Sá das Galés, do tempo de D. João I, João Rodrigues de Sá (1465-1576) - sobrinho de D. João de Meneses! - estudou em Itália em 1486, tendo sido discípulo de Ângelo Policiano. Autor de um poema sobre os brasões das famílias nobres de Portugal, traduziu do latim em trovas três longas cartas, cujo tom de saudade seduzia a alma portuguesa: Penélope e Ulisses, Laodêmia e Protesilau e Dido e Eneias. Estudou também o grego e foi venerado pela geração nova, que o saudou como "antigo pai das musas desta terra" (António Ferreira). O Porto de João Rodrigues de Sá tem algum do esplendor da Florença dos Médicis. Além de ser um homem atlético que praticava equitação, e culto que comentava Homero, Píndaro e Anacreonte, o alcaide-mor do Porto viveu no Paço da Marquesa, na velha rua das Eiras, a mais sumptuosa moradia portuense do seu tempo, um verdadeiro palácio luxuoso do renascimento, cujo interior ricamente adornado encontra paralelo no luxo da sacristia da Sé-Catedral do Porto. João Rodrigues de Sá convenceu Sá de Miranda a estudar a poesia de Petrarca. 

Diogo Brandão. Diogo Brandão (morreu em 1530) é o autor do Fingimento de Amores (vinte e sete oitavas em redondilha), «a melhor jóia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende» (Magalhães Basto): o poeta enamorado desce a região de Proserpina, aos domínios de Plutão, e vê os tormentos que sofrem os amorosos. Escreveu também um poema à morte de D. João II (em oitavas) e um vilancete à Virgem, composto no mesmo metro octossilábico, mas com a diferença de que as estrofes têm apenas sete versos (abbaacc). Teófilo Braga considerou-o como um dos precursores do Poema da Nacionalidade. O seu irmão, Fernão Brandão, também foi poeta, que, apesar de não ter morrido no Porto, quis ser sepultado na Igreja de S. Francisco, junto de outros membros da sua família.

Luís Pereira Brandão. Pertencente à família dos Brandões, Luís Brandão é o autor da Elegíada, uma obra estranhamente esquecida pelos portugueses. Nas suas Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Hernâni Cidade diz que «não vale a pena determo-nos na Elegíada, de Brandão», porque, tendo sido publicada oito anos após a entronização do primeiro Filipe, e dedicada ao Cardeal Alberto, arquiduque de Áustria e governador dos Reinos de Portugal, se contenta em «rimar, sem relevo poético, a história da vida e derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir». 

Francisco de Sá de Meneses. Pertencente à família dos Sás, Francisco de Sá de Meneses (1515-1584) é o autor de Malaca Conquistada, poema que, segundo Costa e Silva, lhe garante o primeiro lugar entre os poetas épicos portugueses depois de Luís de Camões. Encostando-se à história, o poema de Sá de Meneses mais não é do que uma paráfrase em verso da narrativa histórica de João de Barros, enriquecida pela sua tendência mística do futuro. Sá de Meneses, Conde de Matosinhos, que imortalizou o seu rio no poema Oh rio Leça, sucedeu ao Conde de Vimioso como camareiro-mor do príncipe D. João, tendo exercido o mesmo cargo nos primeiros anos do reinado de D. Sebastião e depois no de el-Rei D. Henrique, pelo qual foi elevado à dignidade condal, em recompensa dos serviços prestados como Governador do Reino durante a ausência de D. Sebastião. Depois da morte do Rei, Sá de Meneses retirou-se para o Porto, onde viveu até ao final dos seus dias, perto do ameno rio que tinha imortalizado. 

João de Barros. João de Barros, o homónimo do grande historiador português da Ásia, é o autor da Geografia de Entre-Douro e Minho. Mas a obra que mais revela o seu talento literário é o Espelho de Casados, onde tece uma série de considerações filosóficas sobre o matrimónio: o que seduz nesta última obra é a crítica mordaz da fabulosa história dos Amadises, das patranhas do Santo Graal e das sensaborias do Palmeirim, literatura insípida que, segundo o autor, nada ensina à juventude. O seu desprezo pela Idade Média leva-o a ridicularizar os romances de cavalaria, o que fez dele um verdadeiro homem do renascimento. Joaquim de Carvalho atribui-lhe o mérito de ter introduzido no léxico português o termo humanista. Embora não seja uma obra genial, ela tem o mérito de esboçar uma nova cultura humanista, permitindo compreender o pensamento renascentista do Porto. Como é evidente, não podemos exigir-lhe um quadro fiel da filosofia renascentista: cabe ao leitor inteligente emprestar-lhe esse quadro e, ao mesmo tempo, tentar apreender a sua peculiaridade no contexto europeu da cultura do renascimento. Há nela uma ética que ainda não foi pensada: «Os êxtases sagrados e os fervores piedosos, o entusiasmo cavalheiresco, o sentimentalismo rústico, tudo isso, foi, (pela burguesia), lançado às águas geladas do cálculo egoístico. Ela fez da dignidade pessoal um simples valor de troca. As numerosas liberdades reconhecidas e garantidas nos forais, foram eliminadas por ela e substituídas por uma liberdade única e sem vergonha: a liberdade de troca. Numa palavra, no lugar da exploração, camuflada pelas ilusões religiosas e políticas, ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, directa, brutal» (Marx & Engels). Para compreender a moral proposta por João de Barros, é preciso antes reler Marx.

D. Rodrigo Pinheiro. D. Rodrigo Pinheiro governou a Diocese do Porto entre 1552 e 1572. Doutor em Filosofia e Direito Canónico e Civil, o bispo do Porto falava e escrevia a língua latina com notável elegância e perfeição, e, como era grande conhecedor de Arqueologia e de História, forneceu ao beneditino Bernardo de Brito informações importantes para a Monarquia Lusitana. Sendo um homem rico, possuía a famosa Quinta de Santa Cruz da Maia (Quinta de Santa Cruz do Bispo), onde viveu bucolicamente, rodeado pela beleza do extenso bosque de frondosas ramarias, graciosas fontes de pedra, cascatas e capelas ou ermidas, fazendo dela uma espécie de "república das letras". O bispo do Porto acolhia na sua Quinta poetas e homens de saber, como se fosse um mecenas da cultura humanista portuense e galega: o poeta galego Cadaval Grávio e João Rodrigues de Sá dedicaram-lhe poemas em latim. 

Bento Fernandes. Bento Fernandes, mercador e cidadão do Porto, foi o primeiro portuense a escrever um tratado de aritmética, o célebre Tratado da Arte da Aritmética. Ricardo Jorge deu-nos uma descrição maravilhosa deste tratado que merece ser revisitada. Em 1519, tinha sido editado em Lisboa o Tratado de Aritmética de Gaspar Nicolas, do qual existe um exemplar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: as analogias entre os dois tratados são evidentes, com ambos a aplicar as regras de somar, diminuir, multiplicar e repartir ao mundo da troca de mercadorias. O estudo atento destes dois tratados, um portuense, o outro lisboeta, dirigidos aos negociantes que compravam ou vendiam mercadorias, tanto nas feiras portuguesas como nos mercados estrangeiros, revela a função ideológica da aritmética num mundo que estava a despertar para a produção contínua de mercadorias. Com efeito, o renascimento constitui o alvorecer do capitalismo, cuja lógica imanente requer o cálculo: capitalismo e matematização do mundo implicam-se reciprocamente. 

Bento Toscano. Sendo talvez o mais douto dos portuenses de quinhentos, Bento Toscano formou-se em Leis na Universidade de Coimbra, onde os alunos o procuravam como mestre e os mestres como sábio. No entanto, uma peripécia com a sua candidatura a lente catedrático da Universidade Conimbricense levou-o a afastar-se da vida académica e a fazer-se jesuíta, tendo morrido como tal: a religião deu-lhe a serenidade de alma que tanto procurava. Infelizmente, tanto quanto sei, a adesão aos jesuítas impediu que Bento Toscano tivesse tentado elaborar uma filosofia política renascentista. Há, no entanto, outros nomes portugueses que se destacaram no domínio da filosofia política: Jerónimo Osório (1506-1580), natural de Lisboa, Frei Gregório Nunes Coronel, natural de Lisboa, Pedro Barbosa Homem, natural do Porto, Lourenço de Cáceres, natural de Lagos, Pedro Afonso de Vasconcelos, natural de Leiria, e Martim Carvalho de Villasboas, natural de Guimarães, que, apesar de serem humanistas, opuseram à concepção da soberania total de Maquiavel, correspondente à total autonomia e auto-gerência da política, a concepção cristã de Estado. Em três obras fundamentais, De nobilitate christiana (1527), De gloria (1549) e De regis institutione et disciplina (1572), Osório discute as ideias de Maquiavel, insurgindo-se - em nome da maneira cristã de pensar, tal como se revela na doutrina tomista do Estado - contra todas as inovações políticas do renascimento, sobretudo a ânsia de completa secularização do Estado e a nova moral política. A defesa do cristianismo contra a deturpação de Maquiavel faz de Osório um pensador reaccionário, levando-o a rejeitar a moral política em que os meios de actuar são apreciados e justificados, em função da sua eficácia relativamente ao fim proposto, sem atender à sua intrínseca moralidade: à tese do cinismo político de Maquiavel opõe Osório a tese da honra, que considera o melhor princípio informador e configurador da política, e, sobretudo, as leis absolutas e divinas da ética cristã, fonte e modelo de qualquer ordenamento jurídico positivo. Na sua obra Discursos da Jurídica e Verdadeira Razão de Estado (...), publicada em 1627, o portuense Pedro Barbosa Homem dirige a sua crítica às doutrinas políticas de Maquiavel e de Bodin: o pensamento político do renascimento não era, portanto, estranho aos portugueses, que, em vez de o aprofundar, o combateram e o rejeitaram, em nome do velho humanismo cristão. Porém, no seio deste cenário nacional retrógrado, surgiu um nome que ousou pensar a política em termos renascentistas, Francisco de Olanda (1517-1589), natural de Lisboa: o seu sistema de pan-estética apresenta a política como "pintura", isto é, como actividade artística criadora e planeada, dirigida à efectivação da ordem harmoniosa sob o domínio do Império Português. Deste modo estético, um português divulgou em Portugal as ideias do seu mestre, Miguel Ângelo, alargando-as à esfera da política. 

Uriel da Costa. Magalhães Basto tem toda a razão quando lembra que os portuenses trataram sempre bem os judeus. Na cidade do Porto, a colónia israelita era muito numerosa, influente e, como seria de esperar, riquíssima. Graças à sua abertura ao mundo, nunca se registaram nas terras portucalenses, as da cidade do Porto, nem nos tempos do mais aceso fanatismo, as perseguições e os morticínios que ocorreram em Lisboa e noutras terras de Portugal. Durante a sua permanência no Porto, os judeus rivalizavam em saber com o clero, abrindo novos horizontes intelectuais ao ensino administrado aos portuenses. O Porto deve orgulhar-se de ter produzido, no século XVI, um pensador profundo que, segundo Duff & Pierre Kaan, «viveu profundamente e com grande paixão as duas maneiras por que a Humanidade tem interpretado o seu destino, uma pela qual ela tenta colocar-se com toda a lucidez em frente de si mesma, a outra em que ela ousa julgar o seu nada pela presença infinita, esmagadora, de Deus». Filho de pais cristãos, embora de ascendência israelita, Uriel da Costa - nome de baptismo: Gabriel da Costa - nasceu no Porto em 1585. Tinha 22 anos de idade quando sentiu a sua primeira e grande inquietação mental: Não será possível que tudo quanto se diz da outra vida careça de fundamento? Com a dúvida entranhada bem fundo no seu espírito, Uriel da Costa começou a estudar a Antigo Testamento, Moisés e os Profetas: a religião judaica estava mais próxima da Verdade do que o catolicismo. Para preservar a liberdade do seu espírito ameaçada pela Inquisição Portuguesa, fugiu do Porto com a sua mãe já viúva e quatro irmãos mais novos do que ele, tendo sido acolhidos na Holanda, onde fizeram a sua profissão de fé mosaica. Porém, inquieto como era, Uriel da Costa depressa detectou que as práticas dos judeus e a organização da comunidade não concordavam com os mandamentos da lei de Moisés. Da sua revolta contra os rabinos resultou a publicação, em Hamburgo, da sua obra Teses contra a Tradição (1616). Ora, esta obra escandalizou de tal modo os judeus que os rabinos de Veneza excomungaram-no, obrigando-o a regressar a Amesterdão, onde a comunidade hebraica o expulsou do seu seio. Lavrado em 15 de Maio de 1623, o termo da excomunhão diz «que Uriel seja maldito da lei de Deus, que lhe não fale pessoa alguma de nenhuma qualidade, nem homem nem mulher, nem parente nem estranho... A seus irmãos... se concede termo de oito dias para se apartarem dele». Abandonado pelos irmãos e pelos restantes judeus, Uriel da Costa não desistiu e escreveu uma nova obra, Exame de Tradições Farisaicas conferidas com a Lei Escrita contra a Imortalidade da Alma (1640), onde negou, dentro do averroísmo latino, a imortalidade da alma, alegando que a Lei de Moisés a este respeito era violada pelas instituições e tradições judaicas dos rabinos. Como seria de esperar, Uriel da Costa sofreu novas perseguições, sendo levado a abandonar a própria lei mosaica e a abraçar a Lei Natural, a única lei que leva o homem a viver segundo a razão e a lutar pela verdade e, sobretudo, pela liberdade inata aos homens. Deste modo, Uriel antecipa a problemática teórica do Tratado Teológico-Político de Baruch de Espinosa (1670). Passados alguns anos, a solidão levou-o a tentar reconciliar-se com a comunidade judaica, fazendo-se "macaco entre macacos", mas esta aproximação durou pouco tempo: Uriel foi denunciado por certas faltas graves contra o judaísmo e, na presença dos juízes, foi-lhe apresentado um dilema: cumprir uma pena humilhante ou ser excomungado de novo. Uriel preferiu a excomunhão, vivendo nos sete anos seguintes uma vida heróica de torturas, até que um dia, não podendo mais, resolveu submeter-se ao castigo. Dentro da sinagoga, despido o seu corpo até à cintura, com um lenço amarrado na testa, as mãos ligadas a uma coluna, descalço, Uriel recebeu diante de todos 39 açoites, no fim do que lhe foi levantada a excomunhão e depois de ter sido pisado por todos à entrada da sinagoga. O calvário de humilhações que foi a vida de Uriel levou-o por fim a encontrar na morte a serenidade da sua alma. Mas, antes de se suicidar em Abril de 1640, Uriel ainda escreveu uma carta dirigida à humanidade, Exemplar Humanae Vitae, na qual descreve a tragédia exemplar da sua consciência. O nome de Uriel da Costa, o mais ilustre filósofo portuense, precursor de Espinosa, é digno de figurar ao lado do nome de Francisco Sanches, outro grande filósofo do renascimento português, precursor de Descartes.

J Francisco Saraiva de Sousa