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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pensamentos nos limites da Ciência

Atlântida
Como estou cansado de discutir a situação política portuguesa, resolvi mudar de assunto. Eis alguns pensamentos nos limites da ciência partilhados no Facebook:

1. A Teoria do Astronauta Ancestral explora as dificuldades da ciência oficial e reduz a história da humanidade a um contacto civilizacional com extraterrestres provenientes de Oríon ou de Sírio. Porém, não consegue explicar a tecnologia extraterrestre que supera a velocidade da luz - uma impossibilidade à luz da nossa física - e o tipo de agenda civilizacional trazida aos humanos pelos extraterrestres. As civilizações desaparecidas referidas pelos seus adeptos legaram-nos grandes construções, dignas de admiração, mas a sua cultura religiosa, intelectual e política não é admirável e está muito aquém da nossa própria cultura. Não podemos admirar incondicionalmente civilizações que exibiam barbárie.

2. A arqueologia não pode pretender ser "a" ciência do Homem: as culturas andinas pré-colombianas colocam desafios que a arqueologia não sabe resolver, deixando assim a porta aberta aos invasores da teoria do astronauta ancestral. Exemplos de culturas que superam a imaginação arqueológica: Cultura de Caral-Supe, Cultura Nazca, Cultura de Tiahuanaco e Cultura Puma Punku. Sem documentos escritos ou tradição oral disponível, a arqueologia pouco pode fazer: o enigma permanece.

3. O recurso aos portais por parte da Teoria do Astronauta Ancestral para explicar um vestígio material - uma construção, por exemplo - por um enigma não é uma explicação científica: a teoria pressupõe um acontecimento estranho que, face à ciência disponível, é uma miragem. Podemos defender certas hipóteses de trabalho adiando a sua "solução", mas não devemos recorrer a uma quimera para explicar determinados acontecimentos ou construções das culturas desaparecidas.

4. Será necessário criar uma teoria antropológica para explicar o interesse da humanidade pela existência de extraterrestres? A NASA disponibilizou uma página onde se podem ver OVNI'S a circular nas proximidades dos satélites ou de naves de estudo: as "luzes" circulam. Ainda ninguém conseguiu explicar esse fenómeno. A humanidade parece temer estar sozinha no universo: Será este medo suficiente para explicar a crença em extraterrestres que nos visitam desde o passado distante? O fenómeno da religião não pode ser reduzido a um único enunciado: os deuses adorados pelos homens são extraterrestres que visitaram no passado distante a humanidade.

5. A Ciência não pode continuar a ignorar as hipóteses elaboradas pelos adeptos da teoria do astronauta ancestral e da ovnilogia. A verdade é que não sabemos explicar a função das Pistas de Nazca ou a monumentalidade de Puma Punku que, em língua Aymar, significa "A Porta do Puma". Como é que construíram os seus templos, palácios e túmulos homens que, tanto quanto sabemos, só conheciam um metal - o ouro? A cerâmica analisada pela arqueologia é, por vezes, tosca.

6. Os portugueses nunca foram bons etnógrafos. As únicas culturas desenvolvidas com as quais entraram em contacto foram a indiana, a chinesa e a japonesa. De resto, contactaram com as culturas da Amazónia e as culturas africanas, uma mais desenvolvidas do que outras. Ora, os documentos que nos legaram desses contactos interculturais são escassos e pouco objectivos. O português é uma raça de horizontes cognitivos estreitos. Por onde passam os portugueses fica o esquecimento.

7. A obra de poesia e a vida de Florbela Espanca são o testemunho derradeiro da alma desalmada dos portugueses: Ela temia depois de morta - a primeira morte - ser morta segunda vez pelos seus intérpretes ou estudiosos. Os portugueses com os seus estudos toscos e medíocres matam os poucos que ousaram pensar neste ermo mental que é Portugal. O testemunho derradeiro de Florbela Espanca que condena os portugueses: «Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me». Florbela deseja ser resgatada por uma alma que a compreenda porque, em vida, foi isolada pelos seres sem alma - zombies - que a rodeavam. Ora, esses seres sem alma foram - e são - homens portugueses que nunca lhe deram amor e compreensão: Eles adormeciam ao seu lado, usando-a como um manto que encobria dos outros a sua "sexualidade". Porém, noutros monólogos descosidos, Florbela teme que seja morta segunda vez quando esses mesmos homens tentarem compreender a sua vida e obra. Ora, todos nós sabemos que os estudos portugueses matam a obra dos grandes vultos do pensamento português, privando-os da publicidade merecida. Os portugueses são homicidas intelectuais: Eles matam a obra que tocam com a sua perversidade.

8. Hoje vou tratar da origem atlante da Cidade do Porto há 10 500 e 10 000 anos A.C.. O mapa da Península Ibérica não era o mesmo de hoje: abrangia apenas a Galécia dos mapas já partilhados no Facebook. O Porto foi fundado pelos sobreviventes da Atlântida após o dilúvio. Uma civilização desenvolvida estabeleceu-se nas margens do Rio Douro: os sobreviventes da Atlântida submergida pelas águas do dilúvio. Algures a uma grande profundidade dos subsolos do Porto há vestígios ocultos da fundação do Porto por uma humanidade anterior à nossa.

9. A História oficial não consegue explicar os grandes enigmas da Humanidade. Chegou a hora de encarar de frente essa dificuldade da história oficial e de elaborar novas hipóteses de trabalho. No que se refere à origem atlante do Porto, Platão, a Bíblia e talvez Homero fornecem as ideias fundamentais: o Porto foi fundado depois do dilúvio pelos sobreviventes da civilização da Atlântida. Ora, se eles foram iluminados pela inteligência de extraterrestres vindos das estrelas, então o Porto esteve e está na rota das estrelas nocturnas.

10. A Hipótese da Origem Atlante do Porto - o porto que acolheu os sobreviventes da destruição da Atlântida - tem um precursor: o antiquário António Cerqueira Pinto que, no Proémio à edição de 1742 do Catálogo dos Bispos do Porto de D. Rodrigo da Cunha, defende que o Porto foi fundado por Noé. Segundo Cerqueira Pinto, Noé entrou aqui no Douro com as suas galés. O dilúvio - tal como Tróia - não é um mito, mas um acontecimento catastrófico - provocado pelo choque de um asteróide com a Terra - que destruiu a Atlântida: alguns sobreviventes desta grande civilização entraram no Rio Douro e fundaram o Porto. A Cidade Invicta merece o nome que tem porque foi o porto-de-abrigo dos habitantes da Atlântida que sobreviveram à destruição da sua civilização. Os portuenses devem orgulhar-se de serem os descendentes remotos dessa humanidade desaparecida. O símbolo do Porto deve ser uma Pirâmide, a porta de contacto com o seres que vieram das estrelas.


11. A Hipótese da Origem Atlante do Porto pode parecer demasiado fantástica e encantadora, mas é uma hipótese que procura esclarecer elos perdidos, em especial o elo que liga a actual humanidade à uma humanidade anterior desaparecida, no nosso caso à humanidade que construiu a civilização da Atlântida. Os mitos da Idade do Ouro têm um fundo de verdade: a História é uma sucessão catastrófica de Humanidades. Quando a civilização de uma delas é destruída por uma catástrofe, os sobreviventes ajudam uma nova humanidade a descobrir a civilização. O Norte da Península Ibérica foi, algures no passado, uma zona civilizacional desenvolvida sob o impulso dos sobreviventes da Atlântida. Quem sabe se os genes arcaicos detectados nas suas populações não são genes dessa humanidade desaparecida! Há portanto uma Idade do Ouro do Porto a descobrir! O Imaginário Atlante do Porto está presente nas suas grandes construções: os portuenses não têm consciência de que as esculturas colossais que suportam o edifico da CMP são Atlantes. Podemos recorrer aos arquétipos de Jung para explicar esta sobrevivência da Atlântida no imaginário portuense.

12. Todas as figuras aladas do Porto são figurações de extraterrestres. A Arquitectura Urbana do Porto vista do céu corresponde a uma determinada constelação de estrelas: é necessário criar uma arquitectura astronómica para compreender o passado longínquo do Porto e a sua origem atlante. Nós não sabemos construir as Pirâmides do Egipto (10 mil anos A.C.) que provavelmente não foram construídas pelos egípcios, mas também não estamos a usar todas as técnicas fornecidas pela ciência para compreender as nossas origens. As origens remotas do Porto perdem-se nalguma constelação de estrelas que iluminam a nossa noite.

13. A Origem Atlante e, portanto, estelar do Porto faz dela uma Cidade-Estado, cujo destino não pode depender do capricho de uma humanidade inferior sediada em Lisboa. Os portuenses são descendentes da humanidade superior da Atlântica e, como tais, são filhos das estrelas. O Porto é o campo que liga a Terra ao Céu e aos seus viajantes estelares.

14. A minha imaginação poética paralisa o teu cérebro diminuto? Pois, fica a saber que nem todos os portugueses são idiotas como tu. O céu das estrelas destinou o Porto para uma grande missão e, para a cumprir, é necessário reinstituir a sociedade portuense como Cidade-Estado que escuta a voz oracular de uma constelação estelar longínqua.

15. O fundo existencial obscuro do Porto fala-nos através de pequenos vestígios que urge decifrar para iluminar a sua origem atlante. Utilizei aqui uma expressão conceptual forjada por Ernst Bloch para justificar a permanência do nosso núcleo existencial depois da morte. O encanto que o Porto exerce sobre os humanos prende-se com a força desse fundo existencial obscuro que persiste apesar da voracidade de cronos.

16. Platão descreveu a Atlântida. Este mapa (em cima) situa-a no oceano Atlântico: a Pirâmide dos Açores pode ajudar a apurar a verdade desta localização. O mapa a que tive acesso apresenta outra configuração geológica da Península Ibérica. O que interessa destacar aqui é que os atlantes sobreviventes estabeleceram-se no Porto.

17. Nos contos de Platão, Atlântida era uma potência naval localizada "na frente das Colunas de Hércules", que conquistou muitas partes da Europa Ocidental e África 9.000 anos antes da era de Solon, ou seja, aproximadamente 9600 a.C.. Após uma tentativa fracassada de invadir Atenas, Atlântida afundou-se no oceano "em um único dia e noite de infortúnio".

18. Os portuenses deviam ler a "Nova Atlântida" de Francis Bacon. A descrição da Atlântida de Platão recua atrás no tempo para descobrir a Idade do Ouro; Bacon retoma o tema mas projecta-o algures no futuro: trata-se de uma utopia técnica que projecta luz sobre o destino do Porto Cidade-Estado. Ou melhor, as utopias renascentistas são regressivas no sentido de retomarem um modelo de cidade ideal do passado; porém, Bacon elenca uma série de descobertas técnicas que lançam luz sobre o futuro.

19. A Hipótese da Origem Atlante do Porto implica uma conversão dos portuenses: uma mudança radical de perspectiva e de concepção do mundo. Os portuenses são convidados a romper com o imaginário efectivo e a criar novas significações para o seu mundo social, de modo a instituir o Porto como Cidade-Estado e a gerar novas instituições sociais.

20. Um arqueólogo português diz ter descoberto algures nas profundezas oceânicas construções e esculturas da Atlântida. Deixa ver as fotografias mas mantém tudo em segredo. A Pirâmide dos Açores é fundamental para a localização atlântica da Atlântida. A necessidade de pensar o passado do Porto leva-me a abandonar a teoria de J. V. Luce. O oceano Atlântico banha o Porto e o Rio Douro desagua nele. A vertigem apodera-se do pensamento: Olhar para o passado remoto é tentar ver numa tela escura.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Walter Benjamin e o Inconsciente Colonial

Walter Benjamin
«(Em Munique), sob a orientação do americanista Walter Lehmann, (Benjamin) já havia iniciado os seus estudos sobre a cultura mexicana e a religião dos maias e dos astecas no semestre de Verão - estudos estreitamente ligados aos seus interesses mitológicos. Nessas conferências, que eram assistidas por poucas pessoas e por raríssimos estudantes universitários regulares, Benjamin travou conhecimento com a memorável figura de (Frei) Bernardino de Sahagún, a quem devemos tanto a preservação das tradições maias e astecas (...). Algum tempo depois, em Berlim, vi o grande dicionário asteca-espanhol de Molino - trata-se do Vocabulario de la Lengua Mexicana de Alonso de Molina, 1571, 1880! - sobre a escrivaninha de Benjamin: ele tinha-o comprado para aprender a língua asteca, mas nunca realizou o seu projecto.» (Gershom Scholem)

Graças à biografia intelectual de Walter Benjamin de Bernd Witte, sabemos que, durante a sua estadia em Munique em 1916, Benjamin frequentou diversos seminários, entre os quais o seminário sobre a linguagem e a cultura do México Antigo de Walter Lehmann. O entusiasmo de Benjamin pelas culturas pré-colombianas contagiou Scholem, o qual se sentiu impelido a frequentar o curso de Lehmann quando foi para Munique em 1919, tendo lido e recitado diversos hinos religiosos. Numa carta dirigida a Benjamin, datada de 13 de Abril de 1933, Scholem compara os acontecimentos na Alemanha com a expulsão dos judeus de Espanha em 1492, que foi também o ano do início da conquista e da colonização da América por Cristóvão Colombo. Infelizmente, Benjamin não chegou a aprender a língua dos astecas, a língua nahuatl, e do seu entusiasmo pré-colombiano restam apenas dois fragmentos: Embaixada Mexicana e Trabalhos no Subsolo da Rua de Sentido Único. Ei-los citados na íntegra:


  • Embaixada Mexicana. "Je ne passe jamais devant un fétiche de bois, un Bouddha doré, une idole mexicaine sans me dire: C'est peut-être le vrai dieu (Nunca passo diante de um fetiche de madeira, um buda dourado, um ídolo mexicano sem pensar comigo: esse é talvez o verdadeiro deus)" (Charles Baudelaire). «Sonhei uma vez que fazia parte de uma expedição científica ao México. Depois de termos atravessado uma floresta virgem de altas árvores, fomos dar a um sistema de grutas à superfície da montanha, onde, desde os tempos dos primeiros missionários, continuava a viver uma ordem religiosa cujos irmãos prosseguiam a sua obra de evangelização dos nativos. Numa das grutas centrais, imensa e fechada numa alta abóbada gótica, celebrava-se missa segundo o rito mais antigo. Entrámos e ainda assistimos à parte mais importante: um sacerdote ergueu um fetiche mexicano diante de um busto de Deus-Pai em madeira, que se via a grande altura, numa cavidade da parede. E a cabeça de Deus moveu-se três vezes da direita para a esquerda, em sinal de negação» (Benjamin).
  • Trabalhos no Subsolo. «Vi em sonhos um terreno deserto. Era a Praça do Mercado de Weimar. Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir» (Benjamin).


Benjamin descreve dois sonhos: as imagens do México Antigo tomam assim a forma de sonhos. As narrativas coloniais - até mesmo o belíssimo Códice Florentino de Bernardino de Sahagún - nunca despertaram verdadeiramente o interesse de Benjamin: a sua escrita imagística identifica desde logo o seu apego pelas topografias míticas que organizavam o espaço em terrenos elevados e subterrâneos, em ligação com o mundo do sonho, tão do agrado do surrealismo, como se constata nestas duas imagens oníricas do México. A interpretação destes dois sonhos não é fácil: ela exige o conhecimento da estrutura que localiza geograficamente o Passagen-Werk (O Livro das Passagens), dando-lhe uma ordem espacial. Tomando à letra a ideia de Benjamin de representar "a esfera da vida graficamente num mapa", Susan Buck-Morss mapeou a esfera da vida de Benjamin, de modo a incorporar os quatro pontos cardeais: «A Oeste está Paris, origem da sociedade burguesa no sentido político-revolucionário; a Leste, Moscovo marca o (seu) fim no mesmo sentido. Ao Sul, Nápoles localiza as origens mediterrânicas, a infância mitificada da civilização ocidental; ao Norte, Berlim assinala a infância mitificada do próprio autor». Paris, Moscovo, Nápoles e Berlim são as quatro cidades visitadas por Benjamin durante os anos vinte e trinta que permitem decifrar os traços de uma geografia política. Segundo Susan Buck-Morss, o projecto das Passagens está conceptualmente situado no centro destes dois eixos leste-oeste e norte-sul: o primeiro eixo indica o avanço da história empírica em termos do seu potencial social e tecnológico, e o segundo define retrospectivamente a história como ruínas de um passado irrealizado. Daqui resulta que as Passagens de Benjamin mais não são do que uma construção espaço-temporal da modernidade porosa - a porosidade de Nápoles! - ao desejo inconsciente e ao mito, aos sonhos do passado e do futuro. Porém, à geografia política da vida e da obra de Benjamin falta-lhe a perspectiva da internacionalização desses espaços - passagens, galerias, boulevards de Haussmann, cidades e Europa - e da sua estruturação pelo colonialismo e pelo imperialismo. Benjamin nasceu na Alemanha Imperial, recém-unificada, na qual o nacionalismo e o colonialismo se reforçavam reciprocamente no imaginário dominante da época: propaganda colonial alemã servia-se das exposições de colecções coloniais nos museus de Dresden e Berlim e de espectáculos de montagem de aldeias africanas para legitimar a sua ambição imperial. É provável que tanto Benjamin como Adorno tenham visitado os museus etnológicos e assistido aos espectáculos. Adorno referiu-lhe essa falta quando criticou o seu memorando de 1935, Paris, Capital do Século XIX, alegando que Paris era não só uma capital histórica mas também - e sobretudo - a capital geográfica de um espaço internacionalizado pelo imperialismo. Apesar do seu interesse pela fantasmagoria das Exposições Mundiais - as precursoras da indústria cultural, e pela categoria marxista de mercadoria, Benjamin recusou envolver Baudelaire na dimensão internacional do capitalismo apontada por Adorno, cuja teoria económica já tinha sido elaborada por Lenine, Rosa Luxemburgo e Rudolf Hilferding. Benjamin viveu de 1933 até 1940 em Paris, o seu segundo lar, tendo recolhido durante este período o material necessário para produzir a história das Passagens. A ascensão do nazismo forçou-o em 1940 a abandonar a cidade de Paris para tentar sair da Europa rumo à América, onde estavam os seus colegas da Escola de Frankfurt. O ano de 1940 modifica brutalmente a sua contextualização geográfica, levando-o numa experiência malograda para além da sua velha Europa, que o III Reich ameaçava destruir. (Convém ler a peça de teatro de Bertolt Brecht, Terror e Miséria do Terceiro Reich, tão admirada por Benjamin!) No entanto, os seminários de Walter Lehmann já tinham aberto essa possibilidade, conforme testemunham os dois fragmentos mexicanos da Rua de Sentido Único, o primeiro dos quais estabelece uma ligação entre o México e Baudelaire. É difícil determinar o carácter histórico ou literário dessa ligação: os últimos anos de Baudelaire (1862-67) foram vividos no contexto dos projectos imperiais de Napoleão Bonaparte para o México e do breve reinado do imperador Maximiliano I, cuja execução em 1867 foi pintada três vezes por Manet. Além disso, o interesse de Benjamin pela estética de Jugendstil mostra que estava ciente da intersecção entre o colonialismo alemão, o desenvolvimento institucional precoce da etnologia alemã e a arte: o primitivismo como forma cultural sempre fascinou Benjamin. De uma forma ou de outra, histórica ou literária, Benjamin regista a relação imperial, o imperialismo referido por Adorno, sem no entanto reflectir explicitamente sobre ela.

No fragmento Trabalhos no Subsolo, Benjamin desenterra oniricamente uma igreja mexicana - o santuário mexicano pré-animista - sob a Praça do Mercado de Weimar e acorda rindo da piada. Que relação pode haver entre a Praça do Mercado de Weimar e o santuário mexicano? No memorando de 1935, Paris, Capital do Século XIX, Benjamin permite vislumbrar a resposta numa frase referente a Grandville: «As exposições universais exaltam o universo da mercadoria. As fantasias de Grandville impõem o carácter de mercadoria ao universo. Modernizam-no. O anel de Saturno converte-se numa varanda de ferro forjado para onde vêm de noite tomar ar os habitantes do astro: a moda prescreve o ritual de acordo com o qual o fetiche deseja ser adorado. Grandville alarga a pretensão da moda aos objectos de uso quotidiano, ao próprio cosmos. Seguindo-a até ao seu extremo descobre a sua natureza. Esta está em contradição com aquilo que é orgânico. Liga o corpo vivo com o mundo inorgânico. Percebe no que está vivo os direitos do cadáver. O seu nervo vital é o fetichismo atraído pelo sex appeal do inorgânico. O culto da mercadoria coloca-o ao seu serviço». (O ensaio de Susan Sontag dedicado a Benjamin tem como título Sob o Signo de Saturno!) A teoria do fetichismo da mercadoria de Marx permite dar a resposta: a Praça do Mercado de Weimar e o santuário mexicano são locais de ritual fetichista, portanto locais de troca e de adoração. Em A Herança deste Tempo, Ernst Bloch considerou a Rua de Sentido Único como uma obra típica da "maneira de pensar surrealista". Mas será que Benjamin - além de tomar o México como representação da relação colonial - o usou também para representar um novo primitivismo surrealista? De facto, no ensaio O Surrealismo, O Último Instantâneo da Inteligência Europeia, Benjamin defende que a verdadeira piada (chiste) é surrealista. Porém, a piada mexicana contida na pseudo-palavra mexicana Anaquivitzli é deveras surpreendente, como já vamos ver. Benjamin presta uma homenagem ao surrealismo quando afirma que os surrealistas foram os únicos a terem compreendido o significado actual do Manifesto do Partido Comunista, mas nem por isso deixa de criticar a sua concepção não-dialéctica da natureza da embriaguez: os surrealistas que recusam acordar do sonho não podem ver a piada. Ora, para Benjamin, a história começa com o despertar, cujo limiar é demarcado na forma do riso: Benjamin acorda do sonho a rir, tanto da imagem do santuário mexicano pré-animista (primeira piada) como da sua contemporaneidade e da sua coexistência com a Praça do Mercado de Weimar (piada sobre a piada). A piada mexicana está situada aqui e não lá - algures no México - e, em vez de ser concebida como um mero resíduo de um passado cultural, como parece sugerir a temporalidade implícita no pré-animismo, o sistema anterior à cisão iluminista entre sujeito e objecto, ela lança uma sombra sobre o mercado que está subterraneamente aqui e agora. Benjamin regista o colonialismo, tanto na sua dimensão espacial como nesse estranho objecto colonial que é a igreja mexicana, mas não o toma como objecto de reflexão, recuando perante a ideia de uma presença colonial a espelhar o carácter fetichista dos mercados europeus: quer dizer que Benjamin desperta, ri da piada e regista o colonial sem o pensar. Mas há outra possibilidade implícita na epígrafe de Baudelaire usada no fragmento Embaixada Mexicana: o fracasso da colonização espiritual da Nova Espanha, ou seja, o esmagamento do cristianismo pelo próprio sistema religioso que tentou destruir. Neste sentido, o Códice Florentino de Sahagún é uma obra paradoxal: ciente de que o Igreja Católica não tinha destruído a maquinaria da idolatria asteca, Sahagún documenta a história da cultura destruída pela conquista espanhola, com o objectivo de ajudar os missionários a reconhecer os sinais da idolatria praticada diante dos seus olhos e a destruí-los. Porém, ao assumir a forma da rememoração, o conhecimento das práticas religiosas destruídas pela conquista guarda a sua lembrança, abrindo assim o horizonte da subversão nativa: aquilo que era dado como quebrado e rachado pode emergir à luz do Sol e dificultar a conquista espiritual do México Colonial, isto é, da Nova Espanha. A epígrafe de Baudelaire sugere que o gesto do sacerdote, ao erguer o fetiche e ao apresentá-lo à imagem de Deus de madeira como a sua verdade, a sua representação ou a sua alternativa, mais não é do que uma piada sobre a igreja mexicana: o fetiche mexicano pode ser o verdadeiro Deus. A descrição deste outro sonho - Embaixada Mexicana - não inclui o momento do despertar pelo riso: Benjamin que fazia parte de uma expedição científica ao México confronta o leitor com a celebração de uma missa segundo o rito mais antigo, no decurso da qual um sacerdote ergueu um fetiche mexicano diante da imagem de Deus de madeira, cuja cabeça se moveu três vezes, em sinal de negação. Apesar deste fragmento onírico integrar muitas figuras e tropos das narrativas coloniais, tais como viagem, confrontação, ansiedade colonial e mimetismo, e da direcção da viagem-expedição continuar a ser a mesma, Benjamin inverte os sinais da avaliação do colonialismo: a colonização é reencenada de modo a fazer vir a missão e a mensagem das vítimas e não dos portadores da colonização. Como se sabe, a Rua de Sentido Único inspira-se no romance surrealista Le Paysan de Paris de Louis Aragon: a grande diferença entre ambas as obras é que Benjamin procura descobrir a constelação do despertar, em vez de permanecer no mundo dos sonhos, como sucede com Aragon. Ora, a descoberta da constelação do despertar é claramente ensaiada nos dois fragmentos oníricos do México. Em qualquer um destes fragmentos do México, Benjamin está demasiado desperto, embora no fragmento Embaixada Mexicana o limiar do seu despertar não tenha sido demarcado na forma do riso, como sucede nos Trabalhos no Subsolo. O despertar permite dissolver a mitologia no espaço da história através do trabalho do riso. Deste modo, é possível permanecer ligado a uma experiência da história, a única experiência que seduzia Benjamin, e, ao mesmo tempo, tentar redimi-la. As duas imagens oníricas do México inscrevem-se na intersecção da etnologia, da estética e da psicanálise, intersecção constitutiva do expressionismo - pensemos na pintura de Kirchner! - e do surrealismo. A descoberta freudiana do inconsciente abriu à reflexão um novo domínio de experiência: o inconsciente foi narrativizado, povoado e suprido de dramas pela literatura e pela antropologia, pela arte e pela filosofia, de modo a dar-lhe uma estrutura e a explicá-lo. Dotado de um inconsciente, o eu dividido dos europeus - estou a pensar na teoria do eu dividido de R. D. Laing e no seu conceito de segurança ontológica! - começou a ser explicado por ele, nos termos da ansiedade da história colonial: os terrenos elevados e subterrâneos, as montanhas e as grutas de Benjamin mais não são do que ilustrações coloniais do e para o inconsciente. Com efeito, as imagens do México registam histórias do colonialismo, e inscrevem-se na estrutura temporal da modernidade que narra e narrativiza a história à luz da ideia iluminista do progresso. (Marx cunhou o conceito de desenvolvimento desigual e Lenine pensou-o para explicar o atraso estrutural da Rússia, mas sempre no âmbito da história acumulativa, isto é, da história narrada à luz da ideia de progresso, com a qual Benjamin rompe!) Ora, esta ideia de progresso tal como Kant a tematizou impõe à escala global da história universal a não-contemporaneidade dos tempos geograficamente diversos e desiguais mas cronologicamente simultâneos. O santuário e a igreja do México Antigo situam-se num outro tempo, o passado do mito, que, não sendo (nosso) contemporâneo, não é presente. Porém, a piada sobre a piada da igreja colonial mexicana torna-a (nossa) contemporânea, fazendo dela a piada sobre a Praça do Mercado de Weimar, que, tal como as outras praças comerciais da Europa Iluminista, está submetida no presente ao culto fetichista da mercadoria e do mito do novo, cujas raízes mergulham fundo algures na acumulação primitiva do capital (Marx) e na exploração colonial. Ao não levar em conta a sugestão de Adorno, Benjamin desperta sem, no entanto, entrar no espaço da história que lhe daria acesso à geografia política global adequada para explicar o lugar da cidade de Paris de Baudelaire no âmbito do sistema colonial mundial: o colonialismo permaneceu inconsciente na obra de Benjamin. Mas convém ter em conta que Benjamin viveu em tempos sombrios, os terríveis e negros tempos do advento do nazismo na Europa, segundo a feliz expressão de Hannah Arendt, do qual escapou suicidando-se quando tentou em vão fugir para a América. (É uma ideia perigosa para o futuro do Ocidente esquecer que há mundo fora da Europa!)

Utilizei a expressão inconsciente colonial para referir aquilo que no pensamento de Benjamin permaneceu impensado, apesar de Adorno lhe ter sugerido a necessidade de pensar o colonialismo e o imperialismo, para elucidar a dimensão internacional do capitalismo subjacente à concepção das passagens e das lojas de antiguidades como mercados mundiais para o temporal. Utilizando o título de uma obra de Jürgen Habermas, a filosofia de Benjamin pode ser vista como um "discurso filosófico da modernidade", sobretudo da modernidade cultural, cujas linhas gerais foram traçadas por Susan Buck-Morss a partir do Passagen-Werk. A noção de história esboçada em Sobre o Conceito de História - as célebres teses sobre filosofia da história - é sobejamente conhecida para regressar novamente a ela. Em vez disso, prefiro indicar os Fragmentos sobre Filosofia da História e Política, onde Benjamin define o capitalismo como religião, destacando a obra de Max Weber como sendo pioneira na tarefa de elucidar a estrutura religiosa do capitalismo: «O capitalismo é uma religião de mero culto, sem dogma». (Max Weber definiu a teologia como racionalização do dogma!) Esta definição de capitalismo deve ter chocado os marxistas ortodoxos - ou vulgares! - que acusavam Benjamin de ser menos marxista do que eles. No entanto, ela encontra-se formulada de diversos modos na própria obra de Marx. N. Bukharin foi talvez um dos primeiros marxistas a desmistificar a polémica em torno do espírito do capitalismo, isto é, da psicologia dos empreendedores, lembrando que os trabalhos de W. Sombart, Max Weber e Hermann Levy não acrescentavam nada de novo àquilo que tinha sido dito por Marx nas suas obras, nomeadamente n'O Capital, onde podemos ler estas palavras: «O protestantismo desempenha um papel considerável na génese do capitalismo, mesmo que seja somente pela transformação dos feriados tradicionais em dias úteis (de trabalho)». Conforme nos lembra Bukharin, Marx indicou em diversas ocasiões que «a mentalidade puritana, económica e ao mesmo tempo trabalhadora, obstinada, prosaica do protestantismo, alheio à pompa e ao brilho do catolicismo, era a mentalidade da burguesia no seu período de crescimento. Esta teoria valeu-lhe numerosas zombarias. Ora, agora, os sábios burgueses mais eminentes retomam-na, mas evidentemente sem a atribuir a Marx. Sombart mostra que a acumulação dos traços mais diferentes (sede de ouro, amor ao risco, espírito inventivo, aliados à arte de saber contar, a razão fria e a moderação judiciosa) deu como resultado aquilo que se denomina "mentalidade capitalista". Esta mentalidade, naturalmente, não se formou por si mesma; ela constituiu-se parcialmente com a modificação das relações sociais: ao mesmo tempo que o corpo do capitalismo se fortificava, o seu espírito desenvolvia-se; todos os traços fundamentais da psicologia económica modificavam-se: na época pré-capitalista, a ideia económica fundamental do nobre era a da "conveniência", daquilo que "fica bem para a sua posição" (o dinheiro é feito para ser gasto, escrevia S. Tomás de Aquino); a economia era gerida de maneira irracional, sem contabilidade exacta, a tradição e a rotina dominavam; a vida desenrolava-se num ritmo lento (os dias feriados formavam quase a metade do ano); a iniciativa e a energia faltavam; a mentalidade capitalista, que sucedeu à mentalidade senhorial feudal, está ao contrário fundada sobre a iniciativa, a energia, a rapidez, a renúncia à rotina, a contabilidade racional e a reflexão, a sede de acumulação, etc. A transformação completa das relações de produção foi acompanhada de uma transformação completa da mentalidade». Os Fragmentos de Benjamin previam um diálogo produtivo com os pensamentos de Max Weber e de Ernst Troeltsch, no sentido de elucidar a estrutura religiosa do capitalismo. A reconstituição desse diálogo apenas mencionado por Benjamin está fora dos nossos objectivos neste estudo: o que importa destacar aqui é o aprofundamento da tese de Weber e o seu alargamento a todas as correntes ortodoxas cristãs: «O capitalismo desenvolveu-se no Ocidente de forma parasitária sobre o cristianismo - o que não se demonstra apenas com o exemplo do Calvinismo, mas também com o das outras orientações ortodoxas cristãs. De tal modo que por fim a história do cristianismo se tornou essencialmente a do seu parasita, o capitalismo». Esta concepção do capitalismo como parasita do cristianismo leva Benjamin a aprofundar a tese de Weber, dando razão a Jaime Cortesão quando, na sua teoria da mística dos descobrimentos portugueses, apresenta o franciscanismo e as ordens mendicantes como preparação espiritual e geográfica - já no decorrer do século XIII - para o espírito laico, precisamente o espírito do capitalismo de Weber e Sombart: «O cristianismo na época da Reforma não favoreceu a emergência do capitalismo - transformou-se em capitalismo». (Jaime Cortesão pensa aquilo que permaneceu impensado - o inconsciente colonial - na obra de Benjamin: a colonização portuguesa e europeia do mundo recém-descoberto pelos navegadores!) Ora, quais são os traços que permitem identificar esta transformação do cristianismo em capitalismo? Benjamin destaca três traços da estrutura religiosa do capitalismo reconhecíveis já no presente, embora haja um quarto ou mesmo um quinto traços. Estes traços religiosos do capitalismo, o parasita do cristianismo, estão interligados entre si e, de certo modo, decorrem uns dos outros. Em primeiro lugar, «o capitalismo é uma pura religião de culto, talvez a mais extrema que alguma vez existiu. Nele, tudo tem apenas significado numa relação directa com o culto, não conhece uma dogmática específica, não tem uma teologia. É deste ponto de vista que o utilitarismo adquire a sua tonalidade religiosa». Benjamin define o capitalismo como uma religião de culto, sem dogma e sem teologia, apesar de Marx ter falado da teologia de mercado, o que não cria dificuldades à tese de Benjamin. Em segundo lugar, ao «carácter concreto do culto liga-se outra característica do capitalismo: a duração permanente desse culto. O capitalismo é a celebração de um culto sans rêve et sans merci. Nele não existem "dias de semana", não há um dia que não seja festivo no sentido terrível da ostentação de toda a pompa sagrada, da mais extrema intensidade da veneração». Em terceiro lugar, «o capitalismo é provavelmente o primeiro caso de um culto que não redime, mas deixa um sentimento de culpa. Neste aspecto, este sistema religioso acompanha a queda de um movimento colossal. Uma imensa consciência de culpa, incapaz de redenção, apodera-se deste culto, e nele a culpa, em vez de ser redimida, é universalizada, gravada na consciência, até que o próprio Deus é apanhado nesta rede de culpa, para que, finalmente, ele próprio se interesse pela sua expiação. Não se pode, assim, esperar que esta aconteça no âmbito do próprio culto (capitalista), nem também de uma reforma desta religião, que teria de se agarrar a qualquer coisa de sólido nela, nem tão-pouco na recusa dela. Da essência deste movimento religioso que é o capitalismo faz parte a sua capacidade de ir até ao fim, até à culpabilização final do próprio Deus, alcançando o estado de desespero no mundo a que ainda se aspira. É este o lado historicamente inaudito do capitalismo, o facto da religião já não ser uma reforma do ser, mas a sua aniquilação. É a expansão do desespero até ao ponto em que ele se transforma em estado religioso universal do qual se espera que venha a salvação. É o fim da transcendência de Deus. Mas Ele não está morto (como pensava erradamente Nietzsche!), foi absorvido pelo destino humano. Esta travessia do planeta dos seres humanos pela casa do desespero na solidão absoluta da sua órbita é o ethos que Nietzsche determinou. Este homem é o sobre-homem, o primeiro que a religião capitalista começa a realizar em consciência». Em quarto lugar, o Deus do culto capitalista «tem de ser dissimulado, e só pode ser invocado no zénite da sua culpabilização. O culto é celebrado perante uma divindade não amadurecida, e cada ideia que dela se faça, cada pensamento, ofende o mistério do seu amadurecimento». Estes traços religiosos do capitalismo - a religião do culto permanente, incapaz de redenção, que universaliza a culpa e leva a humanidade de todo o globo terrestre ao estado de desespero infinito, condenando o ser à aniquilação - permite a Benjamin esboçar uma reinterpretação de toda a filosofia dos tempos modernos, sobretudo das concepções de Freud, cujo recalcado é o capital que cobra juros ao inferno do inconsciente, e de Nietzsche, cuja figura do sobre-homem - o vulgo super-homem! - é aquele que chegou sem voltar atrás, sem arrependimento, portanto o homem histórico que fez explodir o céu através da potenciação do que de mais humano há no humano. Ora, este espírito que nos fala a partir das notas de banco ou, como sucede hoje, do cartão de crédito, permite levar mais longe a concepção do capitalismo como aniquilação do ser, digna de preocupação acrescida: a religião capitalista promove uma doença mental própria da época capitalista, bastando referir as situações sem saída (em termos mentais) e a pobreza (em termos materiais), com as primeiras a induzir a culpa e o medo colectivo. Como é evidente, não vou explicitar esta grande narrativa da modernidade, a da cultura do capitalismo que prende e aprisiona todos na rede da culpa universal, tanto os colonizadores como os colonizados, tanto os ricos como os pobres, tanto os jovens como os velhos, tanto os homens como as mulheres, tanto os adultos como as crianças: a minha preocupação incide sobre a natureza do salto apocalíptico. O capitalismo não pode melhorar-se e reformar-se a si mesmo, nem sequer pode ser recusado: a sua palavra de ordem não é a salvação mas a aniquilação do ser. Ora, sabendo que a História «é o choque entre a tradição e a organização política» e que a Política é «a realização da essência do humano não elevada a uma potência superior», só há uma saída para esta situação sem saída - a expansão do desespero - em que o capitalismo nos lança: a sua destruição. A salvação conquista-se destruindo o capitalismo que conseguiu finalmente atingir o seu estado religioso universal - a culpa universal - no nosso tempo indigente. (O neoliberalismo é, na sua essência, religião de mercado, não uma religião da salvação mas uma religião do pecado. E as suas políticas monetaristas devem ser vistas como a consumação fatal e letal do fetichismo do dinheiro, um tema esquecido pelos marxistas. A crítica que os conservadores e os neoliberais fizeram ao marxismo, até mesmo antes do final da II Guerra Mundial, deve ser-lhes devolvida, porque afinal o capitalismo, o parasita do cristianismo, é uma religião que ameaça aniquilar o ser, lançando-nos a todos no desespero e no abismo.)

Bibliografia Colonial:
  1. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Choque de Dois Mundos: Montezuma II e Cortez.
  2. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). António Fernandes e o Império do Monomotapa.
  3. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). A Religião Maia.
  4. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Introdução à Religião Banto.
  5. Sousa, J Francisco Saraiva de (2012). Modo de Produção Asiático e Estagnação do Ocidente. (Trata da Religião Inca.)
  6. Sousa, J Francisco Saraiva de (2009). Os Bantos e a Homossexualidade.
  7. Sousa, J Francisco Saraiva de (2010). A Homossexualidade em Moçambique.
  8. Sousa, J Francisco Saraiva de (2010). A Homossexualidade em Angola.
  9. Darch, Colin & Hedges, David (1999). "Não temos a possibilidade de herdar nada de Portugal": As raízes do exclusivismo e vanguardismo político em Moçambique, 1969-1977. (A loucura delirante em pensamento! Há mais artigos aqui, um dos quais cria o mito de um Samora Machel, político e filósofo. Dois "marxistas" que não leram Marx e que responsabilizam os outros pelas suas próprias culpas. De certo modo, seduzidos pelo imperialismo soviético, forjaram um estranho racismo numérico, como se os seus povos ultra-desenvolvidos (sic) depois da descolonização tivessem alcançado o reino da abundância e da liberdade. A sua miopia intelectual é de tal modo devastadora que os impede de comparar o mundo africano antes e depois da descolonização. Lá onde ontem - no passado colonial - o arranque industrial estava conquistado há hoje o esquecimento: o modo de produção regrediu. A libertação prometida foi uma terrível fraude: a ditadura de partido único que conduziu Moçambique e Angola à guerra civil. Destruição e mais destruição: eis as antigas colónias portuguesas em ruínas. Depois de barbaramente expropriada, a herança material portuguesa foi praticamente destruída, restando apenas a herança cultural. A via do desenvolvimento não se conquista com a mistificação de um passado de resistência contra os colonizadores. Marx sabia que o que estava em causa era o capitalismo no seu movimento de globalização, à luz do qual o colonialismo pode ser compreendido. Os portugueses nunca tiveram uma varinha mágica capaz de fazer cair do céu pão para todos: a integração social e cultural dos nativos era uma obra civilizacional que exigia tempo e colaboração para se concretizar. Lendo estes "marxistas" africanos, fico com a impressão de que o sentido da resistência de que falam reside na resistência à civilização. Alguns até já usam a velha ideologia burguesa dos direitos humanos para mendigar pão, como se o Ocidente fosse uma civilização mágica. Ora, o Ocidente desenvolveu-se no e pelo trabalho, numa luta constante contra o pensamento mágico. Os mesmos erros de análise são cometidos aqui: Como se pode defender a construção de uma sociedade comunista ou livre através de propaganda geradora de ódio racial? Que conceito de sociologia é esse que faz dela um discurso terrorista? Como se pode libertar os africanos do estigma racial lembrando-lhes constantemente que não são "brancos"? Que tipo de país se pretende construir com esse conceito envenenado de racismo numérico?)

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O Triplo AAA de Portugal

Descobrimentos, viagens e explorações portuguesas
Hoje as Agências de Rating classificam Portugal como LIXO, esquecendo que Portugal é o único país do mundo que merece o triplo AAA, uma classificação antiga que lhe foi dada pelo Padre António Vieira para apresentar a expansão portuguesa como Luz do Mundo. António Vieira pregou o Sermão de Santo António (1682) em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, na ocasião em que o marquês das Minas, embaixador extraordinário de Portugal, fez a embaixada de obediência ao Papa Clemente X (1670). Eis um extracto desse Sermão:

«É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas nesse cantinho de terra pura e mimosa de Deus (...), nesse cantinho quis o Céu depositar a Fé, que dali se havia de derivar a todas as vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores, e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja, debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória.

«Medindo-se Portugal consigo mesmo, e reconhecendo-se tão pequeno à vista de uma empresa tão imensa, pudera dizer o que disse Jeremias, quando Deus o escolheu para profeta das Gentes: Et Prophetam in gentibus dedi te. E que disse Jeremias? Et dixit: A, A, A, Domine Deus, quia puer ego sum. A, A, A, Deus meu, onde me mandais que sou muito pequeno para tamanha empresa?

«O mesmo pudera dizer Portugal. Mas tirando-lhe Deus da boca estes três AAA, ao primeiro A, escreveu África; ao segundo A, escreveu Ásia; ao terceiro A, escreveu América; sujeitando todas três ao seu império, como Senhor, e a sua doutrina, como Luz: Vos estis Lux mundi» (António Vieira).

J Francisco Saraiva de Sousa

Pêro Vaz de Caminha: Um portuense no Brasil

A primeira Missa nas terras de Vera-Cruz, 1500
Pêro Vaz de Caminha, filho do mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto, nasceu no Porto em 1450, e morreu na Índia em 1501. Sucedeu ao pai no cargo de mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto em 1476, sendo cavaleiro da Casa de D. João II e de D. Manuel. Em 1497, foi encarregado pela Câmara do Porto da redacção dos capítulos a serem apresentados nas cortes de 1458 em Lisboa. Viajou até à Guiné antes de 1500, ano em que acompanhou Pedro Álvares Cabral na viagem que os levou à descoberta do Brasil. A sua missão era assumir o cargo de feitor da Índia, onde morreu no ano seguinte, em virtude de um ataque dos mouros à feitoria. Eis um extracto da Carta do Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500), carta enviada a el-rei D. Manuel para lhe dar notícia do achamento da terra do Brasil:

«(...) E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 dias de Abril, topámos alguns sinais de terra (...). E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra.

«Primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas, ao Sul dele, e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs mone o Monte Pascoal, e à terra a Terra da Vera-Cruz.

«(...) Ali ficámos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos adiante (...), até meia légua da terra, onde todos lançámos âncoras, em direito da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro.

«Ali lançámos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, e ali falaram. E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, quando dois, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijos para o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos. E eles os depuseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde, e não poder deles haver mais fala por azo do mar.

«A noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela (...). E sendo nós pela costa, obra de dez léguas donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada; e meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobre eles. E um pouco ante o sol-posto amainaram, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

«E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou em uma almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

«A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir ou mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e, metidos por eles cada um seus ossos de osso, brancos, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, e agudos na ponta com um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o que lhes fica entre o beiço e os dentes é feito como de roque-de-xadrez. E em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão, nem lhes estorva a fala, nem o comer nem o beber.

«Os cabelos seus são corredios, e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura, e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de aves, amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas (...).

«O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira, e uma alcatifa aos pés, por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço (...). E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão, pela alcatifa. Acenderam tochas. E eles entraram. E não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão, nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do capitão, e começou a acenar com a mão para a terra, e depois para o colar, como que nos dizia que em terra havia ouro; e também viu um castiçal de prata, e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata.

«Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz: tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha: quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram, como espantados. Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, fartéis de mel e figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes  água em uma albarrada; tomaram cada um o seu bocado e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora.

«Viu um deles umas contas de rosário, brancas. Acenou que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. e depois tirou-as e enrolou-as no braço; e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo (...)

«Sábado pela manhã, mandou o capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga, e alta de seis e sete braças. E entraram todas as naus dentro e ancoraram-se em cinco, seis, ancoragem dentro tão grande e tão formosa e tão segura que podem jazer nela mais de duzentos navios e naus (...). À tarde, saiu o capitão-mor em seu batel, com todos nós outros, e com outros capitães das naus em seus batéis, a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o capitão não querer, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu ele, com todos nós, em um ilhéu grande, que na baía está, e que na baixa-mar fica mui vazio (...).

«Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele, e assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esparavel e, dentro dele, levantar um altar mui bem corregido. E ali, com todos nós outros, fez dizer missa; a qual disse o Padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, da parte do Evangelho.

«Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta, e nós todos lançados por essa areia; e pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos; o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

«Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente (...), a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço (...).

«E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o Sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para melhor ser vista. E ali assinalou o capitão o lugar onde fizessem a cova para a chantar. E enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, abaixo do rio, onde ela estava. Trouxemo-la dali, com esses sacerdotes e religiosos diante, cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta. E quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela (a) ajudar-nos. Passámos o rio, ao longo da praia, e fômo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Ali andando nisto, viriam bem cento e cinquenta, ou mais.

«Chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza (...), armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada (...). Ali estiveram connosco, a ela, obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de giolhos assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos de pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco, e alçaram as mãos, estando assim até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós (...). E, acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos (...). E houveram por bem que lançassem a cada um sua, ao pescoço. Pelo que se assentou o Padre Frei Henrique ao pé da cruz, e ali, um a um, atada em um fio ao pescoço, lançava a sua, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta (...)» (Pêro Vaz de Caminha).

Na sua obra Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda (1958) defende uma tese curiosa sobre a América Portuguesa que merece ser repensada: a obsessão do ouro tolheu a mente dos portugueses quando receberam na nau os dois mancebos índios, como se eles fossem capazes de entender uma cultura que os transcendia, logo eles que faziam parte de uma tribo antropofágica. O grande acontecimento da história mundial realizado pelos portugueses foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia em 1498 pela frota de Vasco da Gama. Arnold Toynbee usou-o para formular uma nova periodização da história da humanidade, dizendo haver uma época pré-gâmica e outra pós-gâmica: quer dizer que uma é anterior ao feito maior dos navegadores portugueses, a outra posterior. Ora, nesta viragem decisiva da história, a primeira globalização, participaram portuenses, depois de terem contribuído para o desenvolvimento da arte de navegar, não só o Infante D. Henrique, mas também Tomé Lopes, autor das Navegações às Índias Orientais, e Pêro Vaz de Caminha, autor da famosa Carta do Achamento do Brasil, para só referir estes nomes. Cristóvão Colombo deu nome às civilizações ditas pré-colombianas, mas nós também podemos falar das culturas pré-cabralinas da América Portuguesa, duas das quais são as culturas tribais dos Tupinambás e dos Tupiniquins, dois grupos tribais rivais que se tornaram mais agressivos entre si a partir do momento em que os tupiniquins apoiaram os portugueses contra os tupinambás e os seus "aliados": os piratas franceses. Os historiadores brasileiros já utilizam essa designação quando falam da história pré-cabralina do Brasil. A historiografia do Brasil teve como pai fundador Pêro Vaz de Caminha, um cidadão do Porto, a cidade portuguesa que impulsionou o desenvolvimento da cultura urbana brasileira no período em que o Brasil acordava para a independência. As ligações entre o Porto e o Brasil são de tal modo profundas que podemos falar de um Porto Brasileiro - Júlio Dinis falou dele! - e de um Brasil Portuense.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Modo de Produção Asiático e Estagnação do Ocidente

Etrúria, o Berço da Europa, segundo Werner Keller.
Sarcófago Etrusco, 520 a.C.
«A noção elaborou-se cerca de 1853 e permanece presente em Marx até ao fim da sua vida. Engels em Anti-Dühring (1877), em A Época Franca (1882) retoma-a e enriquece-a, mas ela desaparece em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Engels deixa-a nas edições dos Livros II (1885) e III (1894) de O Capital que faz publicar após a morte de Marx. /A elaboração mais desenvolvida deste conceito de Marx encontra-se num manuscrito de 1855-1859, inédito até 1939, intitulado Formen die der Kapitalistischen Produktion vorhergehn, publicado em Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. O texto Formen constitui o esquema mais complexo de evolução das sociedades que Marx nos deixou. Deverá por conseguinte ser confrontado com A Origem da Família de Engels, escrita vinte e cinco anos depois. /Esta noção foi elaborada a partir de uma reflexão sobre documentos britânicos que descreviam as comunidades aldeãs e os Estados da sociedade indiana do século XIX. A essa informação acrescentaram-se leituras de narrativas de viajantes relativas ao Médio Oriente e à Ásia Central. Um facto impressiona Marx e Engels: a ausência de propriedade privada do solo. No manuscrito Formen, Marx descreve sete formas diferentes da apropriação do solo, quer dizer, da relação dominante de produção entre os homens nas sociedades pré-industriais. Estas formas sucedem-se até ao modo de produção capitalista, no qual a separação do trabalhador das condições objectivas da produção é radical. O texto de Marx apresenta-se por conseguinte como um esboço da evolução da propriedade da terra no seio da humanidade e sobretudo na Europa e é um fragmento separado da análise das formas de acumulação primitiva. Essa evolução vê suceder: a comunidade primitiva, o modo de produção asiático, o modo de produção antigo, o modo de produção esclavagista, o modo de produção germânico, o modo de produção feudal, o modo de produção capitalista.» (Maurice Godelier)

Este é mais um texto programático que se segue à tentativa não-partilhada de sistematizar o panteão inca: o conceito de modo de produção asiático, forjado por Marx em 1853, permite tematizar a religião inca, dando-lhe uma certa unidade. Ontem, na caixa de comentários do post anterior, teci algumas considerações sobre a religião inca, vacilando quanto à classificação dos seus deuses. Alfred Métraux utilizou o conceito de modo de produção asiático (ou, como lhe chamou Jiro Hoyakawa em 1934, modo de produção tributário) para caracterizar a sociedade inca, e sobretudo a civilização mochica - uma sociedade hidráulica no sentido de Wittfogel! - que a precedeu, mas não soube apreender as funções sociais da religião no seio de um tal modo de produção, encarado desde logo como uma passagem da comunidade primitiva para uma sociedade de classes, sendo levado a opor a religião oficial do Império Inca aos cultos das etnias subjugadas pelos incas, donde resulta uma espécie de sincretismo religioso. Hoje, após meditar os textos de Jean Chesneaux, Maurice Godelier e Karl Wittfogel, entre outros, descobri uma outra via para sistematizar o panteão inca em função de dois eixos fundamentais: o eixo das relações da religião com a natureza que não sofreu alterações significativas, e o eixo das relações da religião com as relações sociais que sofreu profundas modificações, tanto no domínio da unidade do grupo como no domínio da unidade entre o indivíduo e o grupo. Segundo Godelier, «a própria essência do modo de produção asiático é a existência de comunidades primitivas onde reina a posse comum do solo e organizadas, parcialmente ainda, sobre a base das relações de parentesco, e de um poder de Estado que exprime a unidade real ou imaginária destas comunidades, controla o uso dos recursos económicos essenciais e se apropria directamente de uma parte do trabalho e da produção das comunidades que domina». Ou, nas palavras de Jean Chesneaux, o modo de produção asiático caracteriza-se «pela combinação da actividade produtiva colectiva das comunidades aldeãs e pela intervenção económica de uma autoridade estatal que explora estas comunidades ao mesmo tempo que as dirige; esta exploração, de carácter global e não individual, foi denominada por Marx de "escravatura generalizada"». Antes da Conquista Inca, o modo de produção de numerosas tribos andinas assentava na produção de tubérculos no interior da comunidade aldeã local - a ayllu, onde residia um grupo de parentesco de linhagem, cujo chefe de aldeia - o curara - era o primeiro beneficiário da entreajuda comunitária. A propriedade da terra era comunitária: parcelas da terra eram redistribuídas periodicamente entre famílias restritas, cada uma das quais não podia transformar o direito de uso em forma de propriedade privada, separada da propriedade comum. Além disso, o trabalho também assumia uma forma comunitária: os aldeões ajudavam-se reciprocamente, de modo a cumprir as várias tarefas produtivas, cultivando as terras comuns para manutenção dos túmulos das divindades e dos chefes locais. Porém, quando foram conquistadas pelos incas, estas comunidades aldeãs sofreram uma profunda transformação: uma parte das suas terras foi expropriada e tornou-se domínio do Estado e da Igreja Incas. As relações de produção foram transformadas através da introdução de um novo modo de produção que assentava num regime de corveias: o Estado Inca concedeu às comunidades locais gratuitamente o direito de subsistir em troca da obrigação de trabalhar as terras que se tornaram domínio do Estado (terras da coroa) e da Igreja (terras dos templos). Como escreve John Murra: «Não se podia tocar a sério na auto-suficiência dos ayllus. O Estado preocupava-se em apenas extrair as corveias aos camponeses sem interferir na sua auto-suficiência». Porém, como observa John Murra, «a existência e a sobrevivência de uma estrutura sociopolítica como a do Estado Inca assentam tecnologicamente numa agricultura capaz de produzir sistematicamente excedentes para além das necessidades de subsistência do campesinato». Deste modo, graças ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura e à produção de excedentes, estavam criadas as condições necessárias para o aparecimento de uma sociedade de classes e de um Estado multi-tribal e pluri-étnico, que, para garantir a reprodução do novo modo de produção, introduziu um regime de corveias bem regulado, uma burocracia, uma contabilidade, e meios de armazenagem e de transporte dos produtos, sendo forçado a empreender grandes obras de interesse público, tais como a construção de estradas, de terraços, de jardins, de templos e de palácios, que cavaram ainda mais a distância entre o campesinato e as classes dominantes. Ora, a organização da vida material e da actividade produtiva pelo sistema político através da recolha de tributos ou de impostos acentuou a dicotomia entre a cidade e o meio rural, ao mesmo tempo que gerou uma contradição entre a manutenção das comunidades locais e a sua negação pelo Estado. É certo que os incas usavam a violência para obrigar as populações subjugadas a trabalhar para os conquistadores, reprimindo as revoltas e deportando populações inteiras, mas foram suficientemente inteligentes para usar a ideologia como meio de redução dessa contradição, de modo a dissimular e a justificar a opressão. Os incas usaram alguns dos elementos do modo de produção das tribos conquistadas para dar forma ao novo modo de produção, apresentando o poder político como expressão de uma comunidade superior que englobava o conjunto das comunidades locais: o Grande Inca - encarnando o Estado e descendendo em filiação directa do Sol ou do casal Sol-Lua - tornou-se o "pai de todos", o "rei protector" que garante a justiça, o que levou as religiões locais a adquirir uma nova função, não já uma função política, mas uma função cultural, a de definir a identidade dos grupos locais. Em vez de absorver as entidades locais de modo a eliminá-las, o Grande Inca apresenta-se aos súbditos como o pai de todas as comunidades locais, consideradas suas "filhas", fazendo reinar a justiça no seu seio e protegendo-as contra os inimigos. Estas breves considerações permitem aplicar a distinção entre culto central e cultos periféricos - quase cultos de protesto! - ao estudo da religião inca, cujo panteão é claramente hierarquizado, estando as deidades locais subordinadas às deidades do culto central no quadro de uma religião agrícola. De certo modo, a religião inca em torno do culto central - a legitimação ideológica da exploração e da opressão! - é uma invenção político-teológica de imperadores quase legendários: Pachacuti, Manco Capac e, sobretudo, Viracocha, o herói civilizacional deificado. (O culto dos antepassados das comunidades locais tende a ser absorvido ou eclipsado pelo culto do Imperador. Além disso, o recrutamento militar, um dos elementos do tributo que exigia o sacrifício da vida individual a favor do bem do grupo, implicou a ideia de uma compensação pós-histórica, nomeadamente no quadro do culto dos antepassados: surgiu assim uma nova sequência religiosa ligada à recompensa dos mortos na guerra e aos paraísos dos heróis. O sepultamento dos mortos e a mumificação dos Incas eram práticas relacionadas com essa nova preocupação. A múmia de cada Inca era conservada no palácio que o imperador tinha construído em vida e participava em certas festas religiosas: o domínio dos mortos continuava a imiscuir-se no domínio dos vivos, uma vez que conservava as suas terras. Huáscar chegou mesmo a expropriar as múmias reais das suas terras, o que lhe valeu a inimizade das linhagens reais que beneficiavam com a extensão dessas propriedades.)

O conceito de modo de produção asiático tem uma história política, articulada com a sua história filosófica, cujo desfecho, depois da Queda do Muro de Berlim, deu razão a Wittfogel contra os seus críticos "comunistas", alguns dos quais abandonaram o conceito para evitar que ele fosse usado para criticar o chamado "mundo socialista". Hoje, numa Europa cada vez mais capturada por uma classe dirigente burocrática, centralizadora e envelhecida, deve ser a própria "Direita de interesses" que teme o regresso do conceito de modo de produção asiático: A actual estagnação da União Europeia deve-se fundamentalmente às suas características "asiáticas" ou mesmo feudais no contexto de uma economia capitalista. Já devem ter reparado que, ao retomar o conceito de modo de produção asiático, pretendo não só refazer a teoria marxista da história, mas também e sobretudo libertar o marxismo do "comunismo", isto é, da sua colonização asiática ou da tentação de recuo à comunidade primitiva dita "comunista": elaborar uma teoria diferencial da história é, num só e mesmo movimento, inventar uma nova prática política para o marxismo, um novo projecto político capaz de livrar o Ocidente da estagnação e do despotismo oriental. Engels aprofundou à luz de Morgan uma das vias de passagem ao Estado: a via ocidental que conduziu à generalização da escravatura produtiva e da produção mercantil. Ao seu lado, a chamada via oriental conduziu - na Rússia, na Índia, na Mesopotâmia, no Egipto, em África, na China e no Peru - a formas despóticas de Estado e de sociedade de classes, sem destruir a antiga organização comunitária. Porém, apesar da existência de duas vias de passagem ao Estado e à sociedade de classes, o modo de produção asiático desenvolveu-se também na Europa (Charles Parain), sobretudo com os etruscos ou mesmo com as civilizações cretense e micénica. Graças aos gregos e aos romanos, e mais tarde aos germanos, cujo modo de produção germânico preparou o terreno para o feudalismo, a Europa conseguiu livrar-se do modelo asiático ou tributário para percorrer a sua própria via que a conduziu até ao capitalismo. É provável que a clivagem de desenvolvimento entre o Sul e o Norte da Europa encontre aqui a sua raiz mais remota: o modo de produção asiático significa maior progresso das forças produtivas realizado com base em antigas formas comunitárias de produção, pelo menos no período inicial, mas depois acaba por levar à estagnação milenar e à imutabilidade devidas à ausência de desenvolvimento da propriedade privada e da produção mercantil, vacilando entre a barbárie e a civilização. Marx viu isso e não vejo a necessidade de eliminar este elemento do modo de produção asiático, a não ser a necessidade de reconhecer os limites da teoria dos modos de produção para explicar todo o processo histórico sem levar em conta a biogramática do homem e outros factores, em especial os ecológicos. Com efeito, há povos que, apesar da colonização europeia, ainda não conseguiram avançar para novas formas de existência social, muitos dos quais nem sequer descobriram a escrita: eis aqui um facto incontornável que não pode ser omitido por uma teoria diferencial da história. Não vale a pena rejeitar o conceito para garantir um suposto universalismo que a história desmente claramente: a abandono do "comunismo" como projecto político livra a história dessa monstruosidade que é fazer dele o futuro comum de todas as sociedades humanas, como se o seu desenvolvimento dependesse do esquema imposto por Estaline. A civilização veio do Oriente - a história começa na Suméria! (Samuel Noah Kramer) - para o Ocidente, onde conheceu o seu maior desenvolvimento democrático e filosófico, e, no momento presente, ameaça voltar para o Oriente mais longínquo e distante da Europa, onde promete converter-se numa civilização de insectos. A utopia social de Marx e o pessimismo de Weber - a jaula de ferro! - perderam terreno a favor do declínio do Ocidente de Spengler: o Ocidente foi vítima do seu próprio universalismo que, uma vez consumado, implica o deslocamento da civilização para o Oriente, e os "déspotas" gerados no e pelo Estado Social - o equivalente das grandes obras estatais de irrigação do modo de produção asiático, servidas por um corpo de funcionários privilegiados! - começam a ser vítimas da escravidão generalizada, o que desmente qualquer esquema de desenvolvimento linear da sociedade: os europeus mimados estão a ser privados dos "direitos sociais" e da própria liberdade. A Europa já entrou em colapso: a profecia de Spengler está a cumprir-se e lá onde parecia existir democracia já havia uma forma embrionária de despotismo velado, encabeçado pelos burocratas, tecnocratas, economistas e gestores. O esquema de desenvolvimento ocidental esgotou-se e, com ele, a modernidade chegou ao seu fim: a abundância de diplomas uniformizou de tal modo a inteligência das pessoas que acabou por secar as fontes da inovação e a própria raça. Num mundo cada vez mais globalizado, torna-se difícil antecipar cenários futuros. Ao homem ocidental só lhe restam duas vias: ou aceita resignadamente o seu empobrecimento, o seu destino fatal, ou trava uma luta de vida ou de morte contra as classes dominantes sem ter a garantia de uma vitória final, a menos que a profecia maia se realize na longa noite de 21 de Dezembro de 2012 com a aniquilação do mundo. Então, perguntam-me: onde está o esboço de uma nova prática política? Nunca afirmei ser um filósofo da aurora: eu sou o filósofo da funda meia-noite, aquele que anuncia o fim catastrófico de um mundo. A Filosofia morreu no dia fatídico em que a burrice foi diplomada: a aurora mergulhou nesse instante no abismo sem fundo, o abismo que é hoje a vossa vida, a menos que arrisquem a vida na luta contra o sistema vigente. Afinal, depois de terem fingido ser aquilo que não eram, já não têm nada a perder, porque mais vale morrer a lutar contra a escravidão do que ser escravizado sabendo que não há salvação possível.

J Francisco Saraiva de Sousa 

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Religião Maia

Palenque: Templo de Las Inscripciones
«As principais fontes do nosso conhecimento sobre as deidades maias estão nos já referidos códices de Dresden, Madrid e Paris. Todos eles contêm muitas representações pictóricas de vários membros do panteão maia. (...) Damos fé do dualismo existente na mitologia maia quase tão completo como o da antiga Pérsia: o conflito entre a luz e a obscuridade. Nesta oposição, contemplamos, por um lado, as deidades do Sol, os deuses do quente e da luz, da civilização e da alegria da vida, e por outro, as deidades da obscuridade, da morte, da noite, da tenebrosidade e do medo. Destas concepções primárias de luz e de obscuridade se desenvolvem todas as formas mitológicas dos maias.» (Lewis Spence)

Os Maias já foram encarados como os Gregos da Mesoamérica, título que merecem se tivermos em conta a autonomia das suas Cidades-Estados e, em especial, a sua filosofia do tempo, mas a sua religião ainda não foi alvo de um estudo detalhado, realizado à luz de novas teorias da religião suficientemente poderosas para articular toda a imensa superstrutura da sociedade maia. A escassez de fontes escritas - indígenas ou espanholas - e a dificuldade de decifração do seu sistema hieroglífico não permitem esboçar uma visão dinâmica da religião maia. Uma cultura que produziu uma filosofia da eternidade do tempo não pode ser alvo do preconceito positivista que desvaloriza a sua religião, como se ela fosse um conjunto de crenças pré-científicas: a filosofia maia do tempo constitui a chave de leitura interna da sua religião. Quando estudamos a religião maia, temos dificuldade em distinguir as teorizações dos sacerdotes das crenças populares. A classe sacerdotal maia era uma classe de sábios-astrónomos. No topo da hierarquia sacerdotal encontrava-se Ah Kin Mai ou Ahau Kan Mai, que em Yucatán era o chefe supremo do poder sacerdotal. Além dos seus deveres administrativos e de aconselhamento dos governantes civis, o chefe do clero maia ensinava aos noviços a escrita hieroglífica, as genealogias, a realização das cerimónias de cura das doenças, os cálculos calendáricos, a astronomia, a adivinhação e o ciclo dos rituais. Em Yucatán, os oficiantes regulares do Grande Sacerdote do Sol eram chamados Ah Kin, "o(s) do Sol", sendo encarregados do ciclo completo dos sacrifícios comunais e das adivinhações. Os chilanes eram basicamente profetas e adivinhos que consultavam os almanaques adivinhatórios de 360 dias e de outros períodos de tempo para fazer profecias. Além disso, quando recebiam inspiração divina, entrando em transe, tinham visões, frequentemente induzidas por drogas sagradas como por exemplo o peyote (Datura) e os cogumelos alucinógenos. Assistidos pelos chaques, os nacones, outro grupo especializado de sacerdotes, arrancavam os corações das vítimas dos sacrifícios, entregando-os a Ah Kin, quem depois se encarregava das cerimónias. Na sociedade maia, os sacerdotes desfrutavam de um prestígio tão grande como o dos senhores nobres. Segundo o cronista Cogolludo, «os sacerdotes eram considerados como senhores», superiores a todos devido ao facto de formarem a classe culta da sociedade maia. Sendo consultados para todos os assuntos importantes da colectividade, tais como a determinação das datas das diferentes actividades agrícolas e das festas religiosas, a doação de nomes às pessoas e a feitura dos seus horóscopos, a predição dos acontecimentos futuros, a cura das doenças, a escritura dos códices, a transmissão das tradições, a educação dos sacerdotes, a realização dos cálculos para anunciar eclipses e outros fenómenos do céu, enfim a administração da justiça, eles castigavam e premiavam e, por isso, eram temidos e obedecidos por todos. No entanto, a sua alta posição social não os impedia de sujeitar-se à severa disciplina ritual observando as rigorosas regras do culto: os jejuns, as abstinências e os autosacrifícios. Os sacerdotes maias inventaram a escrita hieroglífica, a cronologia e o calendário, três dispositivos do saber que garantiram o seu domínio espiritual. As suas observações astronómicas levaram-nos ao conhecimento preciso das estações do ano que lhes permitia regular as actividades agrícolas. Conhecedores do curso dos astros, os sacerdotes eram considerados como promotores de fenómenos, investidos pelos deuses dos poderes necessários para ajudar a colectividade a controlar as condições atmosféricas, de modo a garantir o sucesso das suas colheitas e dos seus campos cultivados. Dado contar com a ajuda preciosa da astronomia e do calendário, a religião maia alcançou um domínio ideológico quase ilimitado: além de predizer o que os acontecimentos astronómicos anunciavam (eclipses, o princípio das águas, cheias, secas, inundações), os sacerdotes criaram uma astrologia que lhes permitia dominar todos os aspectos da vida colectiva e individual. No palco da luta entre forças divinas, os sacerdotes ajudavam os deuses benéficos a conquistar a sua vitória sobre os seus arqui-adversários e tentavam apaziguar a ira dos deuses maléficos. A construção de templos e de pirâmides, a veneração do poder sacerdotal, o cumprimento dos rituais, as ofertas e os sacrifícios constituíam os meios para obter dos deuses vida e saúde, sustento e felicidade. Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, os sacrifícios humanos eram praticados pelos maias (e também pelos incas), em grau inferior ao dos astecas, é certo!, como demonstraram as pinturas de Bonampak e os monumentos esculpidos. Os maias sacrificavam crianças, geralmente órfãs, até mesmo em altares locais como sucedeu no caso de um menino educado pelos frades franciscanos, testemunhado por Juan Couoh pouco depois da conquista definitiva de Yucatán, adultos, previamente encerrados em jaulas de madeira, e idosos, muitas vezes extraindo os seus corações, esfolando-os depois de terem sido lançados para a base da pirâmide, e repartindo partes dos seus corpos pelos participantes. Os sacerdotes e os seus ajudantes ficavam com as mãos, os pés e as cabeças dos sacrificados, e a sua carne era comida (canibalismo). Além destes sacrifícios humanos e, sobretudo, animais, os maias ofereciam aos deuses o seu próprio sangue. Os lugares do corpo escolhidos para o autosacrifício eram a língua, as orelhas, os cotovelos e o pénis. Segundo Diego de Landa, o autosacrifício realizava-se fazendo passar uma corda, repleta de espinhas, através da língua, e o sangue resultante dessa agressão corporal era recolhido em tiras de papel de cortiça para serem oferecidas aos deuses.

Cosmologia Maia. Os maias acreditavam que o céu estava dividido em 13 compartimentos, sendo suportado por quatro deuses ou génios, os Bacabes, cada um dos quais colocado num dos quatros lados do mundo. A cada uma das direcções do mundo correspondia uma cor: o vermelho era a cor do Leste, o branco a do Norte, o negro a do Oeste e o amarelo a do Sul. Uma quinta cor - o verde - correspondia ao centro. Assim, o Bacab vermelho (Kan) estava a Leste, o Bacab branco (Muluc) a Norte, o Bacab negro (Ix) a Oeste e o Bacab amarelo (Cauac) a Sul. Em cada um dos quatro pontos cardeais, havia uma ceiba sagrada, a árvore do algodão silvestre, chamada ceiba Imix. Associadas com as cores do mundo e as respectivas deidades, estas árvores ajudavam a sustentar o mundo, e, em cada uma delas, aninhava uma ave com a respectiva cor, como se verifica nos relevos de Palenque e de Piedras Negras. Tal como os astecas, os maias acreditavam que o mundo repousava sobre o tórax de um enorme caimão ou lagarto, o qual flutuava sobre uma vasta laguna. Além disso, os maias acreditavam - tal como os astecas - que existiam nove inframundos, um debaixo do outro, governados pelos nove Senhores da Noite. Dotados de aspectos diabólicos, os nove Senhores da Noite desempenhavam funções importantes nos calendários dos maias e dos astecas. Para os astecas, Mictlantecuhtli, um dos nove Senhores da Noite, era o deus principal do mundo das sombras, que, juntamente com a sua mulher, governava o quinto estrato inferior do mundo. Segundo os astecas, o mundo tinha sido criado cinco vezes e destruído em quatro ocasiões, sendo a época presente a quinta criação: quatro mundos precederam o nosso mundo e cada um deles ruiu em cataclismos no decorrer dos quais a humanidade foi exterminada. São os quatro Sóis, sendo o nosso o quinto Sol. Cada um dos Sóis é designado nos monumentos - como o calendário asteca ou a pedra do Sol - por uma data, a do seu fim, que evoca a natureza do desastre pelo qual terminou. Cada uma das quatro primeiras idades do mundo foi destruída de modo violento: o primeiro Sol, naui-ocelotl (quatro-jaguar), desapareceu num gigantesco massacre, no qual os homens foram devorados pelos jaguares; o segundo Sol, naui-eecatl (quatro-vento), foi destruído por Quetzalcóatl que fez soprar sobre ele uma tempestade mágica, transformando os homens em macacos; o terceiro Sol, naui-quiauitl (quatro-chuva), foi submergido numa chuva de fogo enviada por Tlaloc; e o quarto Sol, naui-atl (quatro-água), terminou num dilúvio que durou 52 anos. Os astecas acreditavam que o quinto Sol - naui-ollin (quatro-tremor de terra) - seria destruído por meio de imensos sismos. As tradições maias relativas ao número de criações e destruições do mundo variam em relação às tradições dos astecas. Alguma fontes indicam que vivemos na quarta idade do mundo, enquanto outras apresentam - em conformidade com o pensamento asteca - o mundo presente como a quinta idade do mundo. Ainda não conhecemos a duração que os maias atribuíam a cada uma destas idades do mundo. Mas sabemos que, para os maias, o caminho sobre o qual o tempo desliza estende-se até um ponto tão distante no passado que a mente humana não é capaz de compreender o seu carácter absolutamente remoto. No entanto, os maias tentaram retomar esse caminho em busca desse ponto inicial, tendo sido conduzidos a um período muito distante na insondável eternidade do passado. Uma inscrição maia remonta o cálculo a 90 000 000 de anos, e outra vai até 400 000 000 de anos. Ora, estes cálculos devem ter levado os maias a pensar que o tempo não teve princípio ou começo. Os maias interessavam-se mais pelo passado do que pelo futuro (uns escassos quatro milénios!), uma vez que, para eles, a história se repetia sempre que os influxos divinos voltavam a estar em equilíbrio. Tal como os astecas, os maias acreditavam que o mundo estava condenado a um fim repentino, devido provavelmente a uma combinação de influxos malignos. Por isso, os sacerdotes maias tentaram esquadrinhar o passado em busca dessa maléfica combinação de influxos que marcaria o fim de um período, não o fim do mundo tout court. Porém, como essa combinação não tinha destruído o mundo no passado, tão-pouco poderia destruí-lo agora. A concepção da história como repetição levou os maias a confundir o passado com o futuro e a introduzir a noção de ciclos de tempo que entrava em contradição com o seu conceito de tempo como uma marcha interminável dos seus carregadores divinos em direcção a um futuro tão eterno quanto o passado. Ora, a concepção sacerdotal da eternidade do tempo - a estrada ao longo da qual os carregadores divinos se revezavam não tinha princípio nem fim! - levada ao seu extremo entra em choque com a crença popular das criações e destruições do mundo. O tempo-caminho e o tempo-roda são duas concepções do mundo diametralmente opostas.

Panteão Maia. A religião maia desenvolveu-se e ramificou-se ao longo da história social dos maias. Do simples animismo dos distantes tempos pré-agrícolas em que todas as forças naturais deificadas eram adoradas com a intervenção mínima do feiticeiro, a religião maia converteu-se mais tarde num politeísmo ultra-complexo, que abrangia não só as forças elementares da natureza mas também os seres humanos, os animais e os vegetais, os astros e os fenómenos celestes, ou mesmo conceitos abstractos como por exemplo as divisões do tempo. Diz-se frequentemente que o politeísmo maia era mais limitado do que o politeísmo asteca, mas não partilho esta opinião, na medida em que os maias adoptaram muitos deuses estrangeiros sem ter chegado a fazer uma sistematização teológica completa do seu panteão sagrado, tal como a que foi realizada nos mosteiros pelos sacerdotes astecas, cujo pensamento teológico se exprimia por meio de manuscritos como o Borgias. No entanto, as suas categorias permitem realizar essa sistematização, tendo em conta as seis características fundamentais da religião maia identificadas por Eric S. Thompson. Em primeiro lugar, os deuses da chuva e da terra têm uma origem relacionada com répteis: traços de serpentes e de caimães combinam-se e misturam-se na sua representação, podendo aparecer combinados algumas vezes com traços humanos. Na arte maia, os deuses com forma puramente humana são muito raros. Em segundo lugar, a religião maia tende a destacar a quadruplicidade dos seus inúmeros deuses, ao mesmo tempo que os associa com as direcções e cores do mundo, deixando adivinhar a existência mística dos quatro num só. Em terceiro lugar, a religião maia destaca a dualidade de aspectos: os deuses podem ser tanto benevolentes como maléficos, podem mudar de sexo e até podem ser classificados em função da idade através da repartição de funções entre uma deidade jovem e uma deidade velha. A arte maia representa a malevolência pela adição de alguma insígnia da morte. Assim, por exemplo, Itzamná, senhor dos céus, do dia e da noite, Chaac, deus da chuva, e Yum Kax, senhor dos bosques e dos campos, eram deidades benévolas associadas ao Sol e à Lua que asseguravam as colheitas, enquanto Ah Puch, a morte, representada por um corpo descarnado ou com sinais de decomposição, era uma deidade maléfica, sendo acompanhada pelo cão, pela coruja ou pela ave mitológica Moan, todos eles de mau agoiro. Em quarto lugar, os deuses são ordenados de modo quase indiferenciado em grandes categorias: um deus pode pertencer a duas categorias diametralmente opostas, como sucede com o Sol que é tanto um deus celeste como um deus do inframundo. Em quinto lugar, a religião maia dá grande importância aos deuses relacionados com os períodos de tempo: os números, os 20 dias de cada mês, os 19 meses do ano, os 13 katunes (períodos de 20 anos) e outros períodos cronológicos são considerados pelos sacerdotes como deuses. E, finalmente, em sexto lugar, há na religião maia algumas incompatibilidades e duplicações de funções devidas à imposição de conceitos de ordem superior, forjados pela hierarquia sacerdotal, sobre o mundo simples dos deuses da natureza adorados pelos maias mais antigos e, sobretudo, pela plebe formada por camponeses. A multiplicidade de deuses implicava relações e interferências de tal modo complexas que uma deidade podia ser dotada de vários aspectos e várias deidades podiam relacionar-se com um só conceito. Ora, a existência de deidades benéficas e maléficas, e inclusive de caracteres favoráveis e contrários numa mesma deidade, revela o dualismo que caracterizava a religião mesoamericana: os seus conceitos de bem e de mal deificados e em luta perpétua. As forças da natureza deificadas lutavam entre si, umas aliadas e outras inimigas do homem, e o resultado deste antagonismo sacral era o destino do homem. Este dualismo encontra-se desde logo no núcleo originário da religião asteca, o seu mito da criação: o culto de um casal primordial Ometecuhtli, "o senhor da Dualidade", e Omeciuatl, "a senhora da Dualidade", ou Tonacatecuhtli (Senhor da Subsistência) e Tonacacihuatl (Senhora da Subsistência) -, responsável pelo nascimento de quatrocentos deuses e de todos os homens. Eis agora uma tentativa de sistematização do panteão maia:
  1. Deuses celestes. O Sol e a Lua eram os deuses mais importantes desta categoria, tendo sido alvo de um ciclo de lendas. Segundo uma dessas lendas, o Sol e a Lua foram os primeiros habitantes do mundo que, depois desta passagem pelo mundo, se mudaram para a morada celestial. O Sol era o patrono da música e da poesia e, ao mesmo tempo, um caçador célebre, ao passo que a Lua era a deusa do tecido e dos nascimentos. Além disso, o Sol e a Lua foram os primeiros seres que coabitaram, mas a Lua, devido à sua infidelidade conjugal, conquistou a reputação de ser de tal modo ligeira e fácil (aluada) que o seu nome se tornou sinónimo de libertinagem sexual. As flores da árvore de plumiera que constituíam o símbolo do acto carnal ficaram associadas tanto ao Sol como à Lua, tendo esta última adquirido também o estatuto de deusa do milho, da terra e de todos os seus frutos. Depois desta coabitação terrestre, o Sol e a Lua foram viver para a morada celestial: a palidez da luz da Lua - em contraste com o brilho da luz solar - deve-se ao facto do Sol ter sacado um dos olhos da Lua. Embora os sacerdotes não partilhassem esta crença popular, os plebeus maias explicavam os eclipses através das brigas entre estes dois deuses celestes, detentores de títulos honoríficos tais como Senhor e Senhora ou Nosso Pai e Nossa Mãe ou ainda Nosso Avô e Nossa Avó. Outra deidade relevante dentro do panteão hierárquico era Itzamná, que, apesar desta sua importância hierárquica, nunca conquistou um número significativo de devotos plebeus. Existiam quatro Itzamnás, cada um deles atribuído a uma das quatro direcções e cores do mundo. É provável que os quatro Itzamnás fossem os quatro monstros celestiais, geralmente representados como lagartos ou caimães de duas cabeças e algumas vezes como serpentes monocéfalas ou bicéfalas. O Códice de Dresden descreve os quatro monstros celestiais - os Chicchanes - como sendo metade humanos e metade ofídios, associando-os às quatro direcções e cores do mundo. As suas manifestações terrestres apresentam-nos como deidades da chuva e das colheitas e alimentos, o que nos leva a pensar que eram meras variantes dos Chaques. O céu era também habitado pelas deidades ligadas aos planetas e pelos Chaques. O deus Vénus e o deus da Estrela Polar, Xaman Ek, desempenham um papel crucial nos registos hieroglifícos maias e os Chaques mais não eram do que deuses da chuva, dotados de atributos de serpente. Fossem ou não manifestações dos Itzamnás, os Chaques podem ter sido elementos de uma religião mais antiga que sobreviveu entre os camponeses, rivalizando com os Itzamnás promovidos pela hierarquia sacerdotal. Também existiam quatro Chaques, cada um deles situado num dos quatro cantos do mundo: os plebeus maias acreditavam que eles enviavam a chuva mediante a aspersão da água que tiravam das cabaças que levavam consigo. Ora, se as cabaças fossem esvaziadas de uma só vez, o mundo ficaria submerso numa gigantesca inundação: o transporte das cabaças valeu-lhes o nome de (deuses) regadores. Além da chuva, os Chaques produziam os relâmpagos, lançando machados de pedra sobre a terra de modo a produzir raios. Algumas vezes representados como sendo de estatura gigantesca, os Chaques tinham como assistentes e músicos as pequenas rãs, chamadas uo, cujos sons emitidos anunciavam a chuva. Finalmente, Kukulcán, o nome dado a Quetzalcóatl em Yucatán, era o deus tutelar dos invasores mexicanos, que, sendo uma deidade estrangeira tardia, nunca desempenhou um papel relevante no panteão maia.
  2. Deuses da Terra. Os deuses da superfície da Terra eram responsáveis pela produção das colheitas. É provável que tenham existido sete deidades associadas à Terra, tal como havia treze deuses celestes e nove deuses do mundo subterrâneo. Os deuses da vegetação em geral e do milho em particular e os deuses do solo ocupavam um lugar de destaque: os deuses do solo estavam associados com as montanhas, as fontes, as confluências dos rios e outras manifestações da natureza. Os diversos produtos da terra tinham os seus próprios deuses, mas de todos eles o mais importante era o deus do milho, o deus de toda a vegetação, representado como um ser pleno de juventude e, frequentemente, com o milho a emergir da sua cabeça. O deus jaguar era um deus tanto da superfície da Terra como do seu interior e correspondia ao Tepeyóllotl dos astecas. Durante os cinco nefastos dias - dias sem nome - que ficavam no final do ano, os maias reverenciavam a estranha figura em forma de espantalho - Mam - que, depois disso, era lançada ao solo e depreciada até que voltasse novamente o fim do ano. Todos estes deuses da Terra partilhavam alguns atributos, entre os quais o lírio aquático, as conchas e outros símbolos relacionados com a água, assim como os atributos da morte.
  3. Deuses do inframundo. A noção cristã de salvação era absolutamente estranha à concepção religiosa asteca: a dignidade do homem residia na submissão aos seus deuses e ao seu destino. No calendário divinatório, tanto asteca como maia, o dia do nascimento fixava o destino do indivíduo e permitia prever a sua morte. De acordo com a narrativa de Sahagún, os astecas acreditavam que as almas dos mortos podiam ir para um de três lugares, destinos ou moradas: o céu, o paraíso e o inferno. Os guerreiros que tinham morrido no campo de batalha ou na pedra dos sacrifícios, bem como as mulheres mortas ao darem à luz, iam para o lugar onde vive o Sol: «Estes vivem em prazeres permanentes, bebem e saboreiam o suco das flores saborosas e odoríferas, nunca se sentem tristes nem têm qualquer dor ou desgosto, porque vivem na casa do Sol onde só há riqueza e prazeres... e por isso, todos desejam esta morte, pois os que morrem assim são muito louvados». No céu os guerreiros escoltavam o Sol nascente (Huitzilopcghtli) até ao zénite onde eram rendidos pelas mulheres mortas ao darem à luz. Todas estas almas eram «diferentes espécies de aves com rica plumagem». As pessoas que tinham morrido de diversas doenças, tais como hidropsia, lepra, papeira, cancro e epilepsia, e afogadas nas águas ou tocadas pelos raios iam morar para Tlalocan, o lugar dos pequenos deuses da chuva, chamados Tlaloques, onde «nunca faltam as maçarocas verdes de maís (milho), e as abóboras, e as ervas e as flores». Os mortos que iam para este paraíso terrestre não eram queimados mas enterrados, com a cara coberta de sementes de plantas. Finalmente, as pessoas destituídas de méritos - nobres ou plebeias - iam morar para o compartimento inferior do mundo subterrâneo, Mictlan, o reino infernal governado pelo deus e pela deusa da morte. Estes mortos - cobertos com ornamentações de papel - eram lançados à terra com as seguintes palavras: «Oh filho, eis-te morto, sofreste os trabalhos desta vida, já te levou o deus que se chama Mictlantecuhtli e a deusa Mictalcichuatl... e a tua lembrança não mais voltará». A seguir os sacerdotes encorajavam o morto para a longa viagem que ia fazer, alertando-o para as emboscadas que teria de vencer. Ao fim de vinte e quatro horas, o corpo era queimado e as cinzas recolhidas num pote. No fim do ano a sua morte era comemorada com cerimónias fúnebres que terminavam ao fim de dois, três ou quatro anos, altura em que o morto devia ter concluído a sua viagem. Os vivos já nada tinham a recear. Desconhecemos se estes conceitos astecas tinham o seu paralelo nas crenças maias. Foram identificados os glifos dos nove Senhores da Noite e dos inframundos, cujos nomes ainda não conhecemos: o primeiro desta série é o Sol da Noite, isto é, o deus Sol na sua viagem nocturna desde o Oeste até ao ponto de nascimento a Leste. Além disso, o equivalente maia do Tlalocan asteca parece ser uma morada governada por Cisin, cujo nome implica a ideia de fedor a carne podre, sendo representado como deus da morte. A ideia de uma morada paradisíaca para os guerreiros era estranha aos maias, pelo menos antes de terem sofrido a influência dos cultos guerreiros dos astecas.
  4. Deificação dos períodos de tempo e dos números. O mês maia era constituído por vinte dias e cada um desses dias era considerado como um deus, sendo alvo das orações dos mortais. Os números que acompanhavam os dias também eram deuses, correspondendo provavelmente às 13 deidades celestes, e, do mesmo modo, todos os períodos de tempo eram considerados como deuses. A divinização dos períodos de tempo e dos números pode causar alguma perplexidade nos homens de hoje, mas ela tinha a sua razão de ser entre os maias, preocupados com o fluir do tempo: a Escola Pitagórica também deificou os números e certas relações numéricas e, no entanto, ninguém se escandaliza (Cf. Werner Jaeger). A civilização maia, cujo apogeu ocorreu entre aproximadamente 600 e 990 d.C., dedicou particular atenção ao tempo, tendo elaborado um calendário de considerável complexidade para saber quando os deuses malignos estariam no comando, de modo a fazer o possível para evitar os seus malefícios para a agricultura, abstendo-se de agir em tais ocasiões e tentando apaziguar a sua ira. Esta tarefa foi facilitada pelo desenvolvimento de uma formidável forma de notação dos números: os maias usavam o conceito de valor associado à posição e tinham um símbolo para o zero. A representação dos números de primeira ordem fazia-se mediante pontos com valor da unidade e barras com valor de cinco, tendo o zero um signo especial, uma concha. Os números de ordens superiores escreviam-se com os mesmos elementos, colocados em colunas, valendo cada grupo de signos vinte vezes mais que o grupo imediato inferior. O seu sistema de numeração não era decimal como o nosso, mas vigesimal, estando baseado no número 20. No calendário maia, a unidade era o dia (kin); 20 kines formavam um uinal (um mês) e 18 uinales um tun (um ano incompleto de 360 dias); 20 tunes equivaliam a um katún e 20 katunes a um baktun (ciclo de cerca de 400 anos). Os maias também registavam períodos de maior duração: o pictun (20 baktunes), o calabtun (20 pictunes), o kinchiltun (20 calabtunes) e o alautun (20 kinchiltunes). O mês era constituído por 20 dias, cada um dos quais associado a um presságio específico. O conjunto de 13 meses de 20 dias formava um ciclo de 260 dias, o cerne do almanaque maia. A cada um dos 260 dias do ano sagrado (calendário ritual) estava associado um número de 1 a 13, havendo 20 nomes diferentes para os dias que eram arranjados de tal modo que a mesma combinação de número e nome só se repetia a intervalos de 260 dias.  Além do Ano Sagrado de 260 dias (calendário ritual), havia o Ano Solar de 365 dias (calendário solar), o chamado Ano Vago, composto de 18 meses de 20 dias cada um e cinco dias intercalares que eram considerados nefastos. O calendário sagrado (tzolkin) de 260 dias repetia-se sem interrupção independentemente do calendário solar de 365 dias: ele constituía a base dos horóscopos que regiam todas as actividades da vida dos maias, a começar pelo nascimento. Um ciclo maior que o do Calendário Redondo continha 18 980 dias e correspondia ao período ao fim do qual os ciclos de 260 e 365 dias coincidiam, sendo o número 18 980 o mínimo múltiplo comum de 260 e 365. Ora, este número de anos é igual a 52 Anos Vagos e a 73 Anos Sagrados. Porém, a unidade de tempo mais importante era o katun, que compreendia 20 anos de 360 dias, porque se esperava que os acontecimentos de um katun se aproximassem daqueles de um katun anterior que tivesse terminado num dia associado ao mesmo número. A Conta Longa - ou série inicial, distinta da Conta Curta, em que uma data era registada dentro de um ciclo de cerca de 260 anos - era um elemento fundamental do calendário maia: ela nada mais é do que uma contagem dos dias iniciada num ponto convencional que corresponde no nosso calendário ao dia 10 de Agosto de 3 113 a.C., provavelmente a data da última criação do mundo. A Conta Longa devia ser utilizada para datar acontecimentos históricos e comemorações, em vez de acontecimentos astronómicos: as inscrições maias decifradas revelam dados cronológicos e referências astronómicas e astrológicas, e o registo de datas fixas do calendário sugere o desejo de comemorar a passagem do tempo, registando a data em que um edifício foi dedicado ao culto, data expressa em termos do calendário solar, do calendário lunar e do calendário ritual, com as representações das divindades padroeiras dos diferentes ciclos cronológicos. O Códice de Dresden, um dos três livros maias, inclui um conjunto de tabelas para o planeta Vénus, dotadas de uma enorme precisão. Vénus era identificado com Kukulcan, o equivalente maia de Quetzalcóatl: o primeiro reaparecimento de Vénus como "estrela da manhã" após um período de invisibilidade constituía para os maias um momento particularmente aterrorizante. Com efeito, todos os ciclos maias tinham o seu reinício num único dia do Ano Sagrado de 260 dias: o dia em que Vénus era "1 Ahau". Os maias determinaram quantas revoluções sinódicas seriam necessárias para que Vénus voltasse a reaparecer como "estrela da manhã" no dia "1 Ahau": Se o período sinódico de Vénus fosse de 584 dias, as revoluções requeridas seriam 65, correspondendo a 146 do ciclo de 260 dias, porque o mínimo múltiplo comum de 584 e 260 é 37 960, o que é igual ao produto de 65 e 584 e ao produto de 146 e 260. Os sacerdotes maias sabiam que 584 dias era uma sobre-estimação do período sinódico médio de Vénus, tendo acabado por alcançar uma precisão da ordem de um dia em 5 000 anos. Observando que a revolução da Lua ao redor da terra era mais ou menos de 29 dias e meio, os maias elaboraram um calendário lunar em que as lunações eram calculadas alternativamente em 29 e 30 dias, excepto quando era necessário corrigir o erro acumulado pela interpolação de um mês extra de 30 dias. Ora, ao registar uma determinada data nestes calendários, os maias obtinham uma fórmula cronológica de uma precisão absoluta: o manuseamento dos calendários por parte dos sacerdotes permitiam-lhes realizar predições para todos os aspectos da vida colectiva e individual, atribuindo o seu destino à influência das deidades que regiam os períodos cronológicos e os próprios números. A posse da chave do tempo constituía o instrumento mais poderoso de domínio da classe sacerdotal numa sociedade dirigida por uma teocracia. A vida dos maias dependia da interpretação que os sacerdotes faziam da passagem do tempo. Ora, a passagem do tempo fascinou de tal modo os sacerdotes maias que os levou a elaborar uma verdadeira filosofia do tempo, na qual a eternidade do tempo contrastava com a insignificância infinitesimal do homem. Trata-se de uma filosofia fatalista que ainda não foi pensada com o rigor que merece.
  5. Outros deuses. Além dos deuses celestes, da superfície da Terra e do inframundo, havia outros deuses, cujo lugar é difícil de determinar. No decurso da época da conquista espanhola, os maias veneravam diversos deuses responsáveis pelas actividades comerciais ou mesmo pelas tatuagens. Ek Chuah era o nome dado ao deus dos mercadores e dos viajantes, o qual também era considerado como uma deidade guerreira. A deusa Ixchel conectava a Lua, o parto, a medicina, o arco-íris e as inundações, enquanto a deusa Ixtab era a padroeira dos suicidas por afogamento, cujas almas iam para o lugar do Sol. Estes deuses deviam ser meras manifestações de aspectos especializados de deuses com funções de natureza mais geral. Além da deificação dos heróis, tão comum no século XVI em Yukatán, os maias veneraram durante o Período Clássico algumas deidades de origem animal, como por exemplo o morcego, o cão, os pássaros mitológicos Moan e os mochos, atribuindo-lhes a missão de enviar a chuva à humanidade. O deus do machado ou cutelo de obsidiana também era venerado no Período Clássico. Esta diversidade de deuses deixa supor uma vontade superior pré-existente: os maias, pelo menos os de Yucatán, reconheciam a existência de um ser supremo, um deus vivo, verdadeiro e criador, que, sendo o maior dos deuses, não tinha figura nem podia ser representado por ser incorpóreo e invisível. Chamavam-lhe Hunab Ku e faziam proceder dele todas as coisas do mundo, mas não lhe prestavam culto, não só por ser invisível, mas também por estar muito distante dos assuntos humanos. Esta crença num deus superior aponta na direcção do monoteísmo, tendência que se encontra também entre os astecas. Tanto na zona de Chiapas como em Yucatán, as comunidades maias prestavam culto aos seus antepassados, isto é, aos fundadores das suas linhagens. Ora, o culto dos antepassados remonta aos tempos primordiais em que a organização em clãs tinha sido muito mais forte entre os maias do que na época da conquista espanhola. No nível mais tardio de Mayapán, foram descobertos oratórios familiares - altares - nas casas dos grandes senhores, onde queimavam incenso, que abonam a favor da persistência secular desta prática de deificar os antepassados. Infelizmente, não possuímos informação suficiente para comparar o culto maia dos antepassados com o mesmo culto praticado pelos gregos e pelos romanos, tal como foi analisado por Fustel de Coulanges: o que podemos dizer é que este culto era, provavelmente, o resultado da influência dos mexicanos, na medida em que o deus mais conhecido das linhagens, Zacalpuc, foi uma deidade invasora asteca. Os espanhóis descobriram em toda a Mesoamérica, incluindo a região maia, a adoração do deus Xipe Tótec, o terrível deus coberto com a pele humana de um esfolado e usando uma máscara de pele humana, cuja origem os astecas atribuíam aos tlapanecas, um pequeno grupo que habitava a costa do Pacífico, no estado de Guerrero. Era um deus da vegetação e os seus ritos em torno do esfolamento eram partilhados pela deusa do solo. Em toda a área dos maias, as grutas eram usadas como ossários e para a celebração de ritos religiosos, no decurso dos quais os maias utilizavam a chamada "água virgem", isto é, água não contaminada. Os maias acreditavam que, quanto mais inacessíveis fossem as grutas, maior seria a pureza das suas águas subterrâneas. Nas proximidades de Chichén Itzá, descobriram-se galerias de grutas subterrâneas, chamadas Balankanché, consagradas ao culto das deidades astecas da chuva, os Tlaloques, bem como a Xipe Tótec.
O deus do Milho e os mitos da Criação. Os freis espanhóis nunca compreenderam o carácter sagrado do milho e, por isso, os índios sujeitos à sua colonização mental tinham o cuidado de esconder deles que o milho era, efectivamente, um deus, o presente supremo oferecido pelos deuses aos homens. Além de ser a base económica da civilização maia, o milho constituía o núcleo central da sua adoração religiosa: todos os maias que cultivavam a terra erigiam no seu próprio coração um templo para venerá-lo. Sem este templo interior, os maias não teriam construído as pirâmides e os templos que tanto fascinavam as suas hierarquias clerical e civil: as pirâmides e os templos mais não eram - pelo menos para os camponeses que trabalhavam a terra - do que construções dedicadas à conciliação dos deuses do céu e da terra, de modo a proteger e a garantir a fertilidade dos seus campos de milho. Os maias comiam milho durante todo o ano e ano após ano: uma má colheita de milho implicava uma espécie de catástrofe. O milho era um aliado do homem na sua guerra perpétua contra os caprichos do clima, as pestes dos trópicos e a vegetação demasiado exuberante: a sobrevivência do milho garantia a sobrevivência do homem e dos seus filhos. Mas foram precisos muitos esforços para que os homens recebessem dos deuses este cereal sagrado. Uma lenda maia conta-nos a história do milho: O milho estava inicialmente escondido debaixo de uma montanha rochosa, tendo sido descoberto por um exército de formigas em marcha que escavaram um túnel até ao lugar secreto do milho. Quando as formigas começaram a transportar grãos de milho, a curiosa raposa viu-as e resolveu provar alguns desses grãos. Logo a seguir os outros animais e os homens tomaram conhecimento do novo alimento guardado num lugar onde só as formigas podiam entrar. Os homens pediram aos deuses da chuva que os ajudassem a ter acesso ao lugar: três deuses da chuva tentaram quebrar em pedaços a rocha através dos seus raios. Após o seu fracasso, os homens conseguiram persuadir o principal deus da chuva, o mais velho, a pôr à prova o seu poder. Embora tenha negado diversas vezes a sua ajuda, ele acabou por enviar o pássaro carpinteiro para descobrir o sítio mais débil da rocha através dos golpes do seu forte bico sobre a superfície da grande rocha. Uma vez descoberto o ponto susceptível de ruptura, o deus aconselhou o pássaro a proteger-se enquanto lançava o seu mais poderoso raio contra o ponto escolhido: a grande rocha quebrou-se em fragmentos. Desobedecendo às ordens do deus, o pássaro espreitou o disparo divino e foi atingido na cabeça por um pedaço de pedra: o sangramento abundante resultante desse ferimento é desde então responsável pela cor vermelha da sua cabeça. O disparo de fogo foi de tal modo potente que grande parte dos grãos de milho, até então de cor branca, ficaram um pouco chamuscados: algumas maçarocas ficaram ligeiramente queimadas, outras perderam a sua cor devido ao fumo e outras não sofreram qualquer dano, o que explica as quatro classes de milho: milho negro, milho avermelhado, milho amarelo e milho branco. O Libro de Chilam Balam de Chumayel utiliza uma linguagem poética quando diz que o milho - oculto dentro da pedra - assumiu a sua divindade no momento em que saiu da noite para a luz, identificando a pedra como sendo o jade, cuja cor verde simboliza a espiga de milho antes de amadurecer. O extenso relato deste Libro ilustra com precisão o tratamento reverencial que os maias dispensavam a esta fonte primordial do sustento diário: o milho. A mentalidade dos maias revela-se na sua atitude em relação à terra e aos seus frutos, e os seus rituais - o conjunto de cerimónias em torno do cultivo dos campos agrícolas - mostram como a sua religião era um produto subsidiário do sistema agrícola. Popol Vuh, a epopeia dos quichés, oferece-nos a versão mais completa do mito maia da criação. O carácter agrário da religião maia transparece claramente nas crenças cosmogónicas. Embora o relato só fale de três criações, pensamos que os maias acreditavam que o mundo tinha sido criado quatro ou cinco vezes. Três humanidades sucessivas foram criadas pelos deuses, logo após terem criado a terra, os bosques, as águas e os animais. No princípio, era apenas a água. Depois os deuses exclamaram "terra" e a terra apareceu, sendo a seguir coberta de árvores. Os deuses criadores fixaram o curso dos rios e povoaram a terra de animais, atribuindo a cada espécie o seu próprio habitat. Porém, como careciam do dom da palavra, os animais não eram capazes de louvar os seus criadores e de lhes dirigir súplicas. Por isso, os deuses resolveram criar uma espécie superior de animais. A primeira humanidade foi feita de barro. É certo que os homens de barro sabiam falar, mas, dada a sua imperfeição - eles dissolviam-se com a acção da água! - e a sua fragilidade, não corresponderam aos propósitos dos deuses: o facto dos primeiros homens não prestarem homenagem aos deuses levou-os - aos últimos - a recorrer à inundação para os destruir. A segunda humanidade foi feita de madeira: os homens de madeira falavam, comiam e reproduziam-se, mas as suas caras não tinham expressão facial e os seus corpos feitos de madeira eram secos. Eram criaturas dotadas de inteligência limitada e ingratas em relação aos seus criadores, sem sangue e sem coração, e de cor amarela. Desiludidos com estas criaturas de rosto endurecido, os deuses deram-lhes o mesmo destino da primeira humanidade: uma inundação destruiu os segundos homens, e os que conseguiram escapar à destruição, refugiando-se nas árvores, tiveram como descendentes os macacos. Finalmente, os deuses resolveram fazer uma nova humanidade, usando como matéria-prima a massa do milho amarelo e branco, precisamente daquele milho que tinha sido descoberto debaixo da montanha rochosa. Deste modo, surgiram os quatro primeiros homens capazes de servir os deuses. Eles foram de tal modo afortunados que podiam contemplar a maior parte da terra. Mas os deuses não desejavam que os homens fossem seus iguais, e, por isso, cobriram os seus olhos com uma espécie de neblina, de modo a limitar a sua visão. Depois criaram as mulheres para estes quatro primeiros homens. Logo a seguir chegou a aurora e surgiram a estrela da manhã e o Sol. Os homens de milho começaram a adorar os seus criadores, tendo sido os pais dos quichés, dos cakchiqueles e de outros povos maias das terras altas. Este mito mostra que o milho era mais do que a planta vital dos maias:o milho era a própria carne dos maias. Porém, convém ter em conta que, nos mitos da criação da Mesoamérica, o ponto culminante não é o aparecimento do homem, mas sim o momento da aurora: o homem não era - para os maias - uma criatura muito diferente dos restantes seres vivos, sendo visto no contexto geral da criação.

Bibliografia sumária:

  • Barrera Vásquez, Alfredo (1948). El Libro de los Libros de Chilam Balam. México: Fondo de Cultura Económica.
  • Códices Mayas (1930). Edição J. Antonio e Carlos A. Villacorta. Guatemala.
  • Landa, Diego de (1959). Relación de las cosas de Yucatán. México: Porrúa.
  • Memorial de Sololá, o Anales de los Cakchiqueles (1950). México: Fondo de Cultura Económica.
  • Popol Vuh, Las Antiguas Historias del Quiché (1947). México: Fondo de Cultura Económica.

J Francisco Saraiva de Sousa