«O facto fundamental da existência humana não é o indivíduo enquanto tal, nem a colectividade enquanto tal. Consideradas em si mesmas, ambas as coisas são abstracções formidáveis. O facto fundamental da existência humana é o homem com o homem. O encontro do homem consigo próprio só pode verificar-se e, ao mesmo tempo, realizar-se como encontro do indivíduo com os seus companheiros». (Martin Buber) Martin Buber e Emmanuel Lévinas protagonizaram uma viragem na interpretação da existência humana, que, apesar de ser devedora da ontologia fundamentalde Heidegger, rompe com a sua noção de "existência monológica": "o homem não pode fazer-se inteiramente homem mediante a sua relação consigo próprio, mas somente graças à sua relação com outro homem" (Buber). A existência monológica é substituída pela existência dialógica: o "estar-dois-em-recíproca-presença" realiza-se e reconhece-se unicamente no encontro do homem com o homem, do eu com outrem (tu) e o Outro (Deus). Inicialmente denominado personalismo (E. Mounier), o pensamento dialogal (M. Scheler, F. Ebner, M. Buber, A. Brunner) confere a primazia à relação com o outro e, no caso de Lévinas, confere superioridade ao tu em relação ao eu, revelada na epifania do rosto. Para Buber, o problema antropológico emerge nas épocas históricas de crise de confiança, quando o homem perde o seu clima familiar e a segurança que tinha desfrutado até esse momento de crise, e quando o mundo e a sua posição no mundo se tornam problemáticos. A crise de confiança leva-o, nesses momentos de perda e de insegurança, a colocar a pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser pessoal e sobre o sentido da vida. Buber destaca dois factores que contribuíram para a maturação do problema antropológico: a dissolução progressiva das velhas formas orgânicas da convivência humana directa (1) e a relação do homem com as novas coisas e circunstâncias que surgiram como resultado, directo ou indirecto, da sua própria acção (2). O primeiro factor contribuiu para o aumento da solidão humana: o homem perdeu o sentimento de estar hospedado no mundo e o sentimento da segurança cosmológica que lhe eram garantidos pelas anteriores formas orgânicas de sociabilidade. A perda de segurança sociológica, isto é, de um lar na vida e no mundo, desencadeou o sentimento de abandono total e de solidão. O segundo factor fez do homem um "resíduo" atrás das suas obras técnicas, económicas e políticas: o homem deixou de dominar o mundo que criou e, por isso, experiencia torpeza e fracasso de alma. Edmund Husserl enunciou três proposições que clarificam o problema antropológico, sem o ter tratado de modo directo e exaustivo: o maior fenómeno histórico é a humanidade que luta pela sua própria compreensão (1); o homem converte-se em problema filosófico quando se encontra em questão como ser racional (2); e o homem somente é homem nas entidades humanas vinculadas generativa e socialmente (3). Com excepção de Alfred Schutz, o trabalho antropológico da escola fenomenológica (Scheler, Heidegger) encarou estas conexões sociais como um obstáculo contra o qual as pessoas tropeçam para chegar ao seu próprio eu verdadeiro ou autêntico. Buber retoma a terceira proposição de Husserl para mostrar que a essência do homem não se encontra nos indivíduos isolados: a união da pessoa humana com a sua genealogia e com a sua sociedade é fundamental para compreender a essência do homem. Martin Buber. A antropologia filosófica de M. Buber destaca fundamentalmente a estrutura dialogal ou interpessoal do homem e, contra a redução radical do homem a uma única dimensão, a relação com as coisas (Ich-Es), afirma a outra dimensão, a relação do homem com o outro homem (Ich-Du). Estas duas relações são caracterizadas, respectivamente, como experiência (Erfahrung) ou saber e encontro (Begegnung) ou diálogo. Arelação do eu com o tu constitui a relação por excelência, o primum cognitum de toda a antropologia filosófica. A filosofia de Buber mais não faz do que clarificar estas duas dimensões relacionais do homem. A relação com o mundo material desenvolve-se como uma relação senhor/escravo e é dominada pela prática e pela vontade de dominar o mundo que a orienta. Dado ser passiva, a matéria não é conhecida em si mesma e, por isso, não entra directamente na experiência: a experiência não é a realidade que medeia entre o homem e a coisa, mas a realidade que se encontra no homem, do qual provém todo o sentido. O ser do mundo tem de se submeter aos significados que lhe são atribuídos pelo homem. A relação com o tu é anterior à relação com o mundo e desenrola-se de modo completamente independente. Cada eu tem uma relação com o outro (o tu) e esta relação caracteriza-se pela imediatez: o outro está imediatamente presente, sem qualquer mediação conceptual ou outra. O tu é completamente diferente da coisa: está subtraído ao modelo senhor/escravo, ou seja, não está submetido ou dependente do eu. Buber exclui o domínio do eu sobre o tu e do tu sobre o eu: o encontro do eu e do tu não é, como sucede em Sartre, conflitual, na medida em que os dois pólos equivalentes da relação se constituem reciprocamente um ao outro. No encontro com o outro, o homem torna-se autenticamente eu e o outro, autenticamente tu. O espaço ou o horizonte da relação entre pessoas não é o mundo, mas o espaço interpessoal (o zwischen). Contra o idealismo, Buber elege, em vez da subjectividade, o encontro das pessoas, o intersubjectivo que se constitui na relação eu e tu, como o verdadeiro ser, e esta relação interpessoal está ligada a Deus criador que doa ao homem o ser. Isto significa que o encontro com o tu é também o caminho para Deus e que a relação interpessoal abre-se, integrando-a, a relação com o Tu absoluto. O tu é um mistério inefável que não pode ser submetido à experiência científica. Não sendo objecto, não está disponível e não pode ser conhecido plenamente: impõe-se como mistério inefável e reflecte no seu ser o parentesco com Deus. Na distinção entre os dois tipos de relação, Buber coloca o humano inteiramente na relação do eu com o tu, sendo impedido de ver que a relação com as coisas pertence à dimensão interpessoal. Emmanuel Lévinas. A antropologia filosófica de Lévinas pode ser lida como uma crítica radical da egologia baseada no cogito de Descartes, contra a qual afirma a primazia do outro como verdade fundamental do homem e como o lugar das suas dimensões metafísicas e religiosas: "a metafísica é ética". A interpretação do homem fundada no cogito e na orientação para o mundo material está marcada pela "vontade de poder" e viciada pelo mito da totalidade. A antropologia egológica pode ser caracterizada a partir de quatro níveis. Ao nível do conhecimento, procura reduzir toda a realidade à razão explicativa: a realidade é constituída pela razão e conhecê-la significa reduzir todas as coisas à unidade do sistema racional pensado pelo ego, de modo a eliminar toda a alteridade e a expandir o domínio do eu sobre a totalidade da realidade. Ao nível ético, predomina a ideia de afirmação de si mesmo: o eu realiza-se a si mesmo, afirma-se à custa dos outros, utiliza os outros como meios e, deste modo, converte-se em legislador de si mesmo, submetendo tudo ao tribunal da sua razão soberana. Ao nível social e político, a ideia de soberania do ego e a sua orientação para o mundo implica a ideia de imperialismo: a razão soberana do ego engendra a guerra que visa alargar e globalizar o seu próprio poder económico, político e militar sobre os outros, eliminando-os e sujeitando-os aos seus próprios objectivos. Ao nível metafísico e religioso, ignora o verdadeiro encontro com o outro e fecha-se na história, não deixando espaço para a transcendência e atrofiando a dimensão metafísica: a concepção imanentista conduz ao ateísmo. Em todos estes níveis, a egologia coloca no centro a totalidade e, deste modo, sacrifica os indivíduos, submetendo-os ao sistema do ego auto-suficiente que privilegia a sua relação com o mundo na realização de si mesmo. A antropologia interpessoal de Lévinas é uma antropologia da alteridade: a primazia que concede ao outro implica a certeza do outro como outro que se impõe com a sua própria força, introduzindo o homem numa experiência metafísica e religiosa (1), e o reconhecimento do outro, não somente ao nível da intimidade e da privacidade, mas fundamentalmente ao nível ético e objectivo (2): o outro deve ser reconhecido no mundo pelo facto de ser constitutivamente um ser indigente e necessitado. O outro revela-se na epifania do rosto e a sua presença é totalmente distinta da existência das coisas objectivas, no sentido de irromper por si mesmo na minha existência, sem que tenha sido constituído previamente pela minha razão e, portanto, inserido na totalidade racional. A epifania do rosto é a presença imediata do outro como absolutamente outro, que, impondo-se por si mesmo, rompe a tentativa de o reduzir a uma forma de totalidade. O reconhecimento do outro implica o reconhecimento concreto do outro no mundo, na medida em que a nudez do seu rosto é a presença do ser indigente e necessitado neste mundo. A nudez do rosto é toda a humanidade e simboliza a condição humana: todos os seres humanos desejam "ser alguém" frente aos outros e ser tratados como tais. A sua presença afecta a existência e eleva as relações interpessoais acima da esfera íntima e privada. O reconhecimento do outro no mundo é reconhecimento objectivo, não só no sentido da justiça, mas também no sentido do amor e da bondade. Porém, o outro é aquele que me olha de cima e que exige e tem direito a exigir. A relação do eu com o outro revela uma assimetria fundamental: a superioridade do tu em relação ao eu. Além disso, a relação interpessoal é o lugar onde se manifesta o absolutamente outro, ou seja, Deus, porque a exigência do outro, a sua presença soberana, é algo transcendente e absoluto, que supera a sua vontade arbitrária. Encontrar-se cara a cara com o próximo é encontrar-se perante Deus, que exige ser reconhecido na exigência de reconhecimento objectivo do outro: "A dimensão divina abre-se a partir do rosto do outro" (Lévinas). O rosto na sua expressão convoca, rompendo-o, no ser-aí humano preocupado com o seu ser-no-mundo, o eu responsável pelo outro: "A morte do outro homem diz-me respeito e questiona-me como se eu me tornasse, pela minha eventual indiferença, o cúmplice desta morte invisível ao outro que aí se expõe; e como se, antes de ser eu mesmo votado a ele, tivesse de responder por esta morte do outro e não deixar outrem só, na sua solidão mortal. É precisamente neste chamamento da minha responsabilidade pelo outro que me convoca, me suplica e me reclama, é neste questionamento que outrem é próximo" (Lévinas). Lévinas procura entender o sentido da morte, não a partir da morte própria ou da angústia da morte própria, mas a partir do "inter-humano" ou da socialidade, isto é, na proximidade do outro homem, cujo rosto apela à "minha responsabilidade pela morte de outrem". "O eu é, como dizia Pascal, detestável", no sentido de ser "a própria crise do ser do ente no humano" (Lévinas). Quando o eu é ser na primeira pessoa, afirmando o seu ser e tendo de responder unicamente pelo seu direito de ser, o seu ser-no-mundo ou o seu "lugar ao sol" mais não são do que usurpações dos lugares que pertencem aos outros. Estas usurpações reduzem os outros à condição de oprimidos, repelidos, excluídos, exilados, despojados, mortos, ou de reduzidos à fome, e expulsam-os para um "terceiro mundo": o eu usurpa toda a Terra e realiza-se como violência ou assassinato, ocupando o lugar dos outros. A actual crise financeira e económica revela a natureza dessa usurpação da Terra, mediante a qual os eus corruptos de colarinho-branco condenam a maioria dos seres humanos à miséria e à pobreza. O poder começa onde o conhecimento apreende o indivíduo que existe sozinho, não na sua singularidade, mas na sua generalidade: a rendição das coisas exteriores à liberdade humana significa, além da sua compreensão, a sua apropriação, porque "só na posse o eu conclui a identificação do diverso. Possuir é manter a realidade desse outro que se possui, mas suspendendo precisamente a sua independência. Numa civilização reflectida pela filosofia do Mesmo, a liberdade cumpre-se como riqueza. A razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder" (Lévinas). A concepção do "morrer por um outro" de Lévinas rompe com a ontologia heideggeriana do Dasein, na medida em que este ainda conserva a "estrutura do Eu". Para Heidegger, a morte é "poder ser o mais próprio", o "mais autêntico", e dissolução de todas as relações com outrem: "A possibilidade de se aniquilar é precisamente constitutiva do Dasein, e mantém assim a sua ipseidade. Esse nada é uma morte, isto é, a minha morte, a minha possibilidade (da impossibilidade), o meu poder. Ninguém me pode substituir para morrer. O instante supremo da resolução é solitário e pessoal" (Lévinas). Nesta perspectiva da autenticidade (Adorno), o morrer por um outro surge como um mero sacrifício. Ora, a relação com outrem, na qual a morte do outro preocupa o ser-aí humano, sem reconduzir à sua morte própria, indica "um além" (ou "um antes") da ontologia, e revela, ao mesmo tempo, "uma responsabilidade pelo outro": "A prioridade do outro sobre o eu, pela qual o ser-aí humano é eleito e único, é precisamente a sua resposta à nudez do rosto e à sua mortalidade" (Lévinas). A morte é, para cada um de nós, "o impossível abandono de outrem à sua solidão" e a "proibição desse abandono dirigido a mim". O temor pela morte do outro é o meu temor, mas um temor que não retorna à angústia pela minha morte: morrer por outrem e a morte do outro têm prioridade sobre a morte autêntica. J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Ora, a revolução dialógica já tinha sido operada por Marx: basta ler o Jovem-Marx e os seus Manuscritos de 1844! :)
Muito interessante.
Desde que resolveu publicar arte a minha net vê-se grega para abrir o seu blogue :(
Abraço.
Viva Manuel Rocha
Ya, já me tinham dito que é difícil abrir o blog! Penso que se deve aos vídeos!
Abraço
Vale a pena ver o vídeo sobre a fotografia de Helmut Newton!
Enviar um comentário