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sábado, 6 de julho de 2013

A Vertigem da Relatividade

Jardins do Palácio de Cristal, Porto
Anuncio um texto que pretendo escrever se o calor o permitir. Já critiquei diversas vezes o relativismo, mas desta vez pretendo fazê-lo numa perspectiva mais ampla que envolva uma crítica severa da filosofia anglo-saxónica, esse vazio terrível de pensamento, que ganha terreno nas universidades portuguesas, assumido por figuras cognitivamente reduzidas que, simulando o uso de argumentos lógicos, improvisam disparates de conhecimento vulgar da vida quotidiana. Aliás, a crítica do relativismo deve abranger a demolição do conhecimento à mão da vida quotidiana: a retomada do mundo da vida tem sido fatal para a Filosofia. A Gradiva é a editora portuguesa que mais tem contribuído para a difusão de livros medíocres de filosofia anglo-saxónica: as traduções são medíocres porque escritas num português feio, próprio de uma determinada escola profundamente provinciana e saloia, a herdeira de um Portugal Velho que urge superar. Vou tentar criar um vocabulário próprio para demolir o relativismo: a crítica radical do império relativista contemporâneo, repleto de ilusões, uma das quais afirma que o homem está cada vez mais inteligente, exige uma nova linguagem - e talvez uma linguagem mais técnica. Não convém escrever livros de divulgação filosófica: eles degradam a filosofia no seu momento mais sério, o de dizer a verdade. O relativismo predominante anda de mãos dadas com a globalização: o fim das grandes narrativas lançou o mundo num estado de paralisia mental e cognitiva. A cultura superior que é ocidental está em estado vegetativo: o meu desejo é fazê-la regressar à vida. Como é evidente, a crítica do relativismo implica a demolição de muitos mitos aparentemente simpáticos, um dos quais é o estado de paz mundial: um homem mais inteligente e mais pacífico - é algo que soa mal quando olhamos para a sociedade americana. A filosofia anglo-saxónica é altamente partidária: ela justifica o status quo americano, a globalização do capitalismo e a perpetuação da miséria e do sofrimento, ao mesmo tempo que abre as portas às tradições dogmáticas mundiais.

Os alunos que estudam Filosofia devem protestar contra o ensino de filosofia anglo-saxónica nas universidades: a chamada filosofia analítica - de resto, não dominada por esses professores vigaristas - tem fortes afinidades com a escolástica medieval e com a vulgata soviética; todas estas tendências de pensamento destacam a importância da lógica no seio da filosofia, uns para demonstrar a existência de Deus, outros para eliminar as questões metafísicas e gerar posições filosóficas que negam o sentido dessas questões: Qual é a finalidade da minha vida?, Por que tenho de morrer?, Donde venho e para onde vou?, enfim, Quem sou eu? Nós não devemos receber lições de homens - refiro-me a alguns filósofos analíticos estrangeiros - que colocam a sua inteligência ao serviço da lógica imanente do capitalismo. A Filosofia tem uma missão: projectar a vida justa. É fundamental salvaguardar o pensamento da colonização por parte do sistema vigente. Explicar "logicamente" a subjugação do homem concreto ao sistema vigente, como se não houvesse outras alternativas, é algo que não faz parte do ADN da Filosofia: a libertação da lógica da metafísica - lógica sem metafísica - e a sua conversão em instrumento formal fazem parte integrante do processo de formalização da razão que acompanha a lógica de desenvolvimento capitalista. A lógica usada pela filosofia analítica já não é uma disciplina filosófica: ela é uma técnica de adaptação ideológica e social que se aprende nas universidades. A expressão "filosofia anglo-saxónica" é uma contradição nos termos: não há verdadeiramente filosofia anglo-saxónica; a Filosofia é europeia. Ao editar livros de filósofos anglo-saxónicos, aliás os piores, a Editora Gradiva está a prestar um mau serviço à cultura filosófica portuguesa, ao mesmo tempo que funciona como aparelho ideológico de Estado colocado atempadamente ao serviço do projecto neoliberal do governo de Passos Coelho. Ora, os portugueses já sabem o que isso significa: empobrecimento, liquidação da democracia e destruição do Estado Social.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O Retorno a Marx

Um filme de terror ajudou-me a clarificar os meus conceitos positivos de História e de Natureza Humana. Quando o "psicopata" se dirigia em direcção das suas vítimas, com a faca na mão, pensava: mata essas criaturas que berram como leitões. Identificando-me com o "psicopata", via as vítimas como leitões que mereciam morrer. Inverti o sentido moral da narrativa: o princípio do mal era encarnado não pelo "psicopata", que se limitou a fazer o papel sujo da história, eliminando a escória pseudo-humana, mas sim pelas próprias vítimas. Só hoje quando fui tomar café é que compreendi que a minha identificação com o "psicopata" tinha algo a ver com a teoria marxista da história. Esta identificação reflecte um sentimento comum: nós - seres pensantes - estamos profundamente cansados da humanidade existente. Confesso: ver os leitões a serem degolados e esfaqueados deu-me prazer, não um prazer sádico mas sim um prazer estético, no sentido de libertar o mundo dos homens que se comportam como animais. Precisamos de espaço aberto para construir um mundo novo: o "psicopata" agiu de modo a libertar o espaço da presença desses homens - mais animais do que humanos - que bloqueiam o futuro. Sem violência não há verdadeiramente história: todos sabemos que os protestos organizados de rua não alteram o status quo. Marx e Engels sabiam isso: a violência é a parteira da história. Até aqui tenho estado a namorar com o princípio marxista da história como "hominização do homem" que é retomado por Marx no prefácio de 1859. Marx iniciou uma imensa revolução teórica que não chegou a concluir. (:::/:::)

Reler Marx - e trazê-lo à nossa presença - implica a tradução rigorosa da sua obra em língua portuguesa: as traduções existentes - tanto as portuguesas como as brasileiras - são péssimas. O desenvolvimento cultural de um país pode ser avaliado em função da sua actividade editorial e da qualidade das traduções. O atraso cultural de Portugal revela-se desde logo no desfasamento temporal entre a publicação das obras pioneiras e a sua tradução em língua portuguesa. Além disso, as grandes obras que marcaram o mundo ainda não foram traduzidas e as poucas que foram mal traduzidas estão desfasadas da sua conjuntura cultural. Mas o mais preocupante é que os leitores portugueses lêem essas obras como se elas fossem a última palavra sobre as matérias abordadas. O princípio de influência que predomina em Portugal entrava o seu próprio desenvolvimento cultural: quem não tenha uma figura influente na família não tem futuro em Portugal. Todas as instituições portuguesas, incluindo as instituições culturais, são regidas por este princípio de influência: elas são sempre-já capturadas pelas máfias reinantes. (:::/:::)

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Genes e Memes: Da biologia à cultura

Porto: Liceu Alexandre Herculano
«É tentador, para um biólogo, comparar a evolução das ideias à da biosfera. Porque, se o Reino abstracto (noosfera) transcende a biosfera mais ainda do que esta o universo não vivo, as ideias conservam certas propriedades dos organismos. Como estes, tendem a perpetuar a sua estrutura e a multiplicá-la; como estes, podem unir-se, recombinar, segregar o seu conteúdo; como estes, enfim, as ideias evoluem e, nesta evolução, a selecção, sem dúvida alguma, desempenha um grande papel. Não me aventurarei a propor uma teoria da selecção das ideias. Mas pode-se, pelo menos, tentar definir alguns dos principais factores que aí desempenham um papel. Essa selecção deve operar, necessariamente, a dois níveis: o do próprio espírito e o da função a realizar. /O valor de realização de uma ideia deve-se à modificação de comportamento que ele acarreta para o indivíduo ou para o grupo que o adopta. Aquela que conferir ao grupo humano que a fez sua maior coesão, mais ambição e confiança em si dar-lhe-á, por esse facto, um acréscimo de poder de expansão, assegurará a promoção da própria ideia. Este valor de promoção não tem uma relação necessária com a parte de verdade objectiva que a ideia pode comportar. A potente armadura que constitui para uma sociedade uma ideologia religiosa nada deve à sua estrutura em si mesma, mas ao facto de essa estrutura ser aceite, se impor. Por isso, só dificilmente se pode separar o poder de invasão de uma determinada ideia do seu poder de realizar uma determinada função. /O poder de invasão, em si, é bem mais difícil de analisar. Digamos que depende das estruturas preexistentes do espírito, entre os quais as ideias já vinculadas pela cultura, mas também, sem dúvida alguma, de certas estruturas inatas que, aliás, nos é bastante difícil identificar. Mas vê-se bem que as ideias dotadas de mais elevado poder de penetração são aquelas que explicam o homem, assegurando-lhe o seu lugar num destino imanente, no seio do qual a sua angústia se dissolva.» (Jacques Monod)

«Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem entre outras coisas uma consciência, e é em consequência disso que pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época histórica em toda a sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como seres pensantes, como produtores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos pensamentos da sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias dominantes da sua época». (Karl Marx)

A teoria da selecção das ideias proposta por Jacques Monod sofreu uma alteração substancial depois de Althusser ter criticado o idealismo subjacente à sua primeira formulação na lição inaugural no Colégio de França. Quando analisei a lição inaugural de Monod, procurei distanciar-me da crítica de Althusser, porque já tinha identificado uma afinidade estrutural entre a teoria das ideias de Monod e a teoria da ideologia de Marx. Num texto anterior, fui mais longe quando afirmei que a teoria da ideologia de Marx é uma teoria selectiva. A teoria da selecção das ideias foi, portanto, formulada por Marx, em primeira mão e não por Darwin, como parece pensar estupidamente Daniel Dennett, o que facilita desde logo a integração do materialismo histórico no seio da teoria sintética da evolução, como se depreende facilmente do «confronto» dos dois textos apresentados em epígrafe. Não adianta acusarem-me de ser reducionista: eu sou cientista e é nessa qualidade que opero a integração do marxismo na teoria sintética da evolução, mesmo que para isso tenha de reformular o materialismo histórico em função das indicações metodológicas fornecidas noutros textos. Diante da fotografia do Liceu Alexandre Herculano, um aparelho ideológico de Estado que garante a transmissão da cultura, Althusser seria obrigado a recuar e a meditar para finalmente reconhecer que a teoria da selecção das ideias não é estranha ao marxismo. Porém, o objectivo deste texto não é voltar a Jacques Monod, mas dar início à crítica da teoria da evolução cultural de Richard Dawkins. Quando leu a versão inicial do capítulo XI de O Gene Egoísta de Dawkins (1976), Nicholas K. Humphrey resumiu a sua teoria dos memes nestes termos: «Os memes devem ser considerados como estruturas vivas, não apenas metaforicamente mas tecnicamente. Quando plantas um meme fértil na minha mente, parasitas literalmente o meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exactamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. E isto não é apenas uma maneira de falar - o meme, por exemplo, para "crença numa vida após a morte" é, de facto, realizado fisicamente, milhões de vezes, como uma estrutura nos sistemas nervosos dos homens, individualmente, por todo o mundo». A memética de Dawkins e a noologia de Monod partilham a ideia crucial de que as ideias ou memes, tal como os vírus, são seres capazes de se auto-reproduzir, desde que parasitem um organismo: tanto os vírus como as ideias transitam de um organismo para outros e fixam-se sobre um código genético ou um código cultural, para aí transduzir uma informação criativa ou letal. No entanto, as ideias distinguem-se dos vírus pelo facto de se unirem e se combinarem em sequências organizadas, para formar mitos, ideologias e sistemas teóricos, que colonizam os cérebros e as culturas, os seus dois ecossistemas. Ora, a ecologia das ideias não pode ser compreendida fora do quadro da teoria do materialismo histórico de Marx. Considero que a teoria da ideologia é uma das maiores descobertas científicas de Marx. Nenhuma outra teoria científica provocou tanta polémica como a teoria da ideologia proposta por Marx. Infelizmente, apesar da abundância de literatura sobre a ideologia, ainda não possuímos uma grande obra sobre a história da controvérsia filosófica em torno da teoria da ideologia de Marx, até porque os próprios marxistas nunca se entenderam a esse respeito. Com a formulação da teoria da ideologia, o mundo social e cultural nunca mais voltou a ser visto da mesma maneira: a teoria da ideologia fornece-nos as lentes e os instrumentos teóricos adequados para analisar cientificamente a realidade social e histórica, ao mesmo tempo que elucida a história do conhecimento científico na sua luta permanente contra as ideologias existentes. Graças a Marx, nós podemos analisar os obstáculos epistemológicos, ideológicos e sociais que Darwin teve de ultrapassar para elaborar a sua teoria da selecção natural, fazendo-nos compreender a razão de ser da sua longa demora de mais de vinte anos. Paul Ricoeur nomeou três mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud, mas destes três nomeados só um lançou a suspeita sobre toda a história do Ocidente: Karl Marx, cujo paradigma científico da história deve ser integrado na teoria sintética da evolução. (Só os que sofrem de distúrbios mentais continuam a ler Nietzsche ou mesmo Freud, duas figuras dispensáveis, mais a primeira do que a segunda, evidentemente!) Relendo a correspondência entre Marx e Darwin, apercebi-me de que as revoluções científicas que realizaram foram impulsionadas por um longo trabalho filosófico. Durante mais de vinte anos, Darwin trabalhou na sua própria filosofia materialista. Há um materialismo filosófico produzido por Darwin que ainda não foi seriamente estudado: ele encontra-se formulado nos seus cadernos M e N. Marx foi infinitamente mais corajoso do que Darwin. Mesmo sem possuir a fortuna do seu colega naturalista, Marx desafiou o poder estabelecido, sendo por isso expulso da Alemanha e privado de uma carreira profissional capaz de lhe garantir o sustento. As revoluções científicas operadas por Marx e Darwin eram perigosas por três razões: ambas as teorias - a teoria da selecção natural de Darwin e a teoria da história de Marx - afirmavam que a "evolução" não tem qualquer objectivo (1) e não é orientada no sentido de conduzir inevitavelmente a coisas mais elevadas (2), e aplicaram uma filosofia materialista consistente às suas interpretações da natureza e da sociedade, respectivamente (3). Julgo ouvir alguém a dizer que estou a esquecer o aspecto comunista do pensamento de Marx que parece emprestar uma orientação ou um sentido à história do homem. A minha posição é sobejamente conhecida: considero o comunismo como um elemento estranho ao corpo teórico do materialismo histórico. No entanto, apesar de não podermos encontrar um propósito na natureza e na história, podemos tentar defini-lo e, de certo modo, foi isso que fez Marx. Sempre achei que os comunistas eram demasiado vitorianos, porque essa associação ou identidade entre evolução e progresso é uma invenção ideológica da sociedade vitoriana. Herbert Spencer é o pai ideológico desta identidade entre evolução e progresso, usada para classificar os europeus brancos no topo da evolução orgânica e os povos que habitavam as suas colónias no fundo. A evolução biológica e a evolução histórica não têm propósito, não são progressivas e são materialistas. Althusser compreendeu isso quando afirmou que, para Marx, a história é um processo sem sujeito nem fim(s), e o mesmo pode ser dito em relação à "visão da vida" de Darwin. Num outro contexto que não é estranho ao darwinismo, como demonstrou Hans Jonas, Sartre definiu o homem como uma paixão inútil. Doravante, utilizarei esta expressão sartreana para caracterizar o triunfo de Marx e Darwin sobre a arrogância do homem que, acossado pela perigosa ideia da evolução, tentou ligar as ideias de evolução e de progresso para justificar o seu domínio sobre todas as espécies que habitam o nosso planeta e a dominação do homem sobre o homem. As revoluções científicas de Marx e Darwin demoliram o preconceito antropocêntrico em todas as suas versões, obrigando o homem a encarar-se como um produto da evolução biológica e histórica. Dos cadernos de notas M e N de Darwin retenho três parágrafos: «O amor da divindade, efeito da organização, ó materialista?! Por que é que o facto de ser o pensamento uma secreção do cérebro é mais maravilhoso do que o da gravidade ser uma propriedade da matéria? É a nossa arrogância, a nossa admiração por nós próprios. /Platão diz no Fédon que as nossas "ideias imaginárias" provêm da pré-existência da alma, e não podem ser derivadas da experiência - por pré-existência, entenda-se macacos. /Para evitar declarar quanto acredito no materialismo, dizer apenas que emoções, instintos, graus de talento, que são hereditários, o são porque o cérebro dos filhos se parece com o dos progenitores». Um dia será necessário escrever uma obra sobre a relação entre Marx e Darwin, de modo a demonstrar como eles produziram novas teorias científicas a partir de uma perspectiva materialista, cuja versão mais completa é a de Marx. Ela tem um nome: chama-se dialéctica materialista ou teoria crítica e o seu materialismo é pluralista.

Daniel Dennett (1995) desenvolveu a teoria dos memes de Dawkins, de modo a integrá-la completamente na genética das populações. Apesar da minha aversão natural à filosofia de Dennett, sou obrigado a reconhecer o seu contributo para a clarificação do mecanismo da evolução cultural: alguns dos seus conceitos podem ser retomados, reformulados e depurados dos seus elementos ideológicos neoliberais. Há uma grande diferença entre Dawkins e Dennett: Dawkins é um cientista honesto que procura contribuir para o conhecimento do mundo, trabalhando cooperativamente com os outros, enquanto Dennett é um ideólogo do neoliberalismo que se serve do darwinismo para justificar o status quo. Sempre que fala da estrutura dos filtros, Dennett denuncia inadvertidamente a má-fé que preside ao seu trabalho de elaboração teórica: ele omite tudo aquilo que não se enquadra na sua estratégia xenófoba de fazer do darwinismo a ideologia triunfante do mundo anglo-saxónico. Este comportamento subliminar revela que até mesmo na sua ignorância real ou fictícia Dennett sabe que intervém num campo de batalha cujas linhas de ataque foram definidas por Marx. A honestidade intelectual de Dawkins levou-o a escrever que «cada indivíduo tem a sua própria maneira de interpretar as ideias de Darwin», na certeza de que «muito do que Darwin disse, em detalhe, está errado». Deste modo quase premonitório, Dawkins defendeu-se antecipadamente do abuso que Dennett fará mais tarde da sua teoria, acusando-o de não ter sido suficientemente corajoso para sacar todas as suas consequências filosóficas: a ideia perigosa de Darwin mais não é do que o uso ideológico que dela fez Dennett para justificar a miséria presente, como se os vencedores financeiros fossem os mais aptos de todos os homens. Nem sequer Darwin nos seus piores momentos de inspiração afirmou uma tal blasfémia. Darwin sabia que pertencer à classe dominante não é sinónimo de possuir maior aptidão darwinista: o fenómeno da degenerescência das classes dominantes não lhe era estranho. A cegueira teórica de Dennett impede-o de ver que, ao atribuir a evolução da cultura capitalista à selecção natural, está a responsabilizá-la por nos conduzir à catástrofe total, ou seja, à destruição da biosfera. Ao redireccionar a minha agressividade contra a filosofia de Dennett, estou a tornar a minha mente mais receptiva ao diálogo produtivo com a teoria da evolução cultural de Dawkins. A minha mente está voluntariamente aberta à invasão dos memes de Dawkins, embora tenha um sistema de defesa - e a melhor defesa é o ataque preventivo! - que analisa em detalhe cada um desses novos invasores. A nossa herança genética fez das nossas mentes masculinas campos de batalha e é por isso que usamos abundantemente metáforas belicistas para compreender o mundo. Mas o facto de sermos mentes "assassinas" forjadas na e pela caça não nos impede de colaborar uns com os outros, sobretudo quando temos um adversário comum a abater. V. C. Wynne-Edwards desenvolveu em 1962 uma teoria do controle homeostático da população nos animais que leva a uma generalização de maior amplitude sobre a origem de todo o comportamento social: a partir do sistema territorial dos pássaros tomado como a primeira forma de organização social, Wynne-Edwards definiu a sociedade como um grupo de indivíduos que competem, através de métodos convencionais, por prémios também convencionais. Ou, por palavras mais simples, a sociedade é uma irmandade forjada pela rivalidade. Tanto Maynard Smith como Dawkins criticaram esta teoria de Wynne-Edwards pelo facto dela supor a selecção de grupo, mas ela não deixa por isso de ser extremamente sedutora, sobretudo quando interpreta o comportamento epideítico dos animais como um ajuntamento deliberado em bandos a fim de facilitar o recenseamento da população, de modo a restringir a taxa de natalidade no interesse do grupo.

A teoria do gene egoísta de Dawkins deriva das ideias sociobiológicas de R. L. Trivers, mas no que se refere à sua aplicação ao homem os dois sociobiólogos divergem significativamente entre si: em vez de aplicar a sociobiologia aos seres humanos, como faz Trivers, Dawkins prefere propor para eles a sua própria teoria da evolução cultural, em que os memes substituem os genes. Esta teoria foi exposta pela primeira vez no último capítulo de The Selfish Gene (1976), tendo sido delimitada - ou mesmo afunilada - noutras obras posteriores, tais como The Blind Watchmaker (1986) e The Extended Phenotype (1982). Dawkins brinda-nos com um resumo da sua teoria na obra O Relojoeiro Cego: «Em The Selfish Gene aventei a hipótese de que pudéssemos estar, neste momento, no limiar de um novo tipo de "tomada do poder" genético. Os replicadores de ADN construíram "máquinas de sobrevivência" para si mesmos - os corpos dos organismos vivos, incluindo nós mesmos. Como parte do seu equipamento, os corpos desenvolveram um computador de bordo - o cérebro. O cérebro desenvolveu a capacidade de comunicar com outros cérebros por meio da língua e das tradições culturais. Mas o novo meio de tradição cultural abre novas possibilidades às entidades auto-replicadoras. Os novos replicadores não são ADN e não são cristais de argila. São padrões de informação, que apenas prosperam no cérebro ou em produtos fabricados artificialmente pelo cérebro - livros, computadores, etc. Mas, dado que o cérebro, os livros e os computadores existem, estes novos replicadores, a que atribuí a designação de memes para os distinguir dos genes, podem propagar-se de cérebro para cérebro, de cérebro para livro, de livro para cérebro, de cérebro para computador, de computador para computador. À medida que se propagam podem modificar-se - mutam. E talvez os memes "mutantes" possam exercer os tipos de influência que aqui designei por "poder replicador". Não esquecer que este se refere a qualquer tipo de influência que afecte a probabilidade de propagação própria. A evolução sujeita à influência dos novos replicadores - evolução mémica - está ainda na infância. Manifesta-se nos fenómenos que designamos por evolução cultural. A evolução cultural processa-se a uma velocidade de uma ordem de grandeza muito superior à da evolução fundada no ADN, o que nos faz pensar ainda mais na ideia de "tomada do poder". E se um novo tipo de tomada do poder replicador se está a iniciar, é concebível que parta para tão longe que deixará muito para trás o ADN seu progenitor (e a argila sua antepassada remota, caso Cairns-Smith tenha razão). Se assim for, podemos estar certos de que os computadores estarão na vanguarda». Deixando de lado a tomada electrónica do poder, que pertence à ficção científica, convém acentuar que a teoria da evolução cultural de Dawkins assenta numa analogia entre evolução genética e evolução cultural, entre genes e memes. Tudo o que é especificamente humano pode ser resumido numa única palavra: cultura, cuja transmissão é análoga à transmissão genética, no sentido em que, apesar do seu carácter conservador, pode dar origem a um novo tipo de evolução. É certo que já encontramos fenómenos de transmissão cultural entre algumas espécies animais, como por exemplo o canto das aves, mas é a nossa espécie que mostra realmente o que a evolução cultural pode fazer: Dawkins defende que, para compreender a evolução cultural do homem, é preciso desprezar o gene como a única base das nossas ideias sobre a evolução, e procurar outros tipos de replicadores e outros tipos de evolução. Com a emergência do homem surgiu um novo tipo de replicador e um novo tipo de evolução. Dawkins deu-lhe o nome de meme, um substantivo que transmite a ideia de uma unidade de transmissão cultural ou de imitação: «"Mimeme" provém de uma raíz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como "gene". Espero que os meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada a "memória" ou à palavra francesa même». Dawkins distancia-se da estratégia sociobiológica quando fala do fim do monopólio dos genes: «Por mais de três biliões de anos o ADN tem sido o único replicador digno de menção no mundo. Mas ele não mantém necessariamente esses direitos de monopólio para sempre. Sempre que surgirem condições nas quais um novo tipo de replicador possa fazer cópias de si mesmo, os novos replicadores tenderão a dominar e a iniciar um novo tipo de evolução própria. Quando essa nova evolução começar não terá, em nenhum sentido obrigatório, que se submeter à antiga. A evolução antiga de selecção de genes, produzindo cérebros, forneceu o "caldo" no qual os primeiros memes se originaram. Quando os memes auto-replicadores surgiram, o seu próprio tipo de evolução, muito mais rápido, teve início. Nós, biólogos, assimilamos a ideia de evolução genética tão profundamente que temos a tendência a esquecer que ela é apenas um dentre vários tipos possíveis de evolução». O âmbito de aplicação do darwinismo - confinado pelos sociobiólogos ao contexto limitado dos genes - é assim alargado até incluir a própria evolução cultural. A evolução por selecção natural ocorre sempre que existem três condições, a saber: variação, hereditariedade ou replicação, e aptidão diferencial. Os memes que habitam os cérebros ou outros produtos fabricados pelos cérebros replicam-se por imitação, usando como principal meio de transmissão cultural a linguagem humana, falada e escrita. As qualidades que determinam um elevado valor de sobrevivência entre os memes são idênticas às dos genes: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. A longevidade é talvez a qualidade menos importante de uma cópia de um determinado meme: ela depende do meio em que está inscrita, com as cópias impressas a terem maior duração do que as cópias armazenadas no cérebro de uma pessoa. A fecundidade é mais importante do que a longevidade de cópias específicas. Assim, por exemplo, a fecundidade de uma ideia científica pode ser medida contando o número de vezes que ela é citada ou referida nas revistas científicas nos anos subsequentes. A sua grande difusão ao longo do tempo atesta o seu elevado valor de sobrevivência. Quanto à fidelidade de cópia, os memes não são, de forma alguma, replicadores de alta fidelidade, estando a sua transmissão sujeita à mutação contínua e à mistura. Uma aproximação entre a teoria dos memes de Dawkins e a teoria das ideias simples e compostas de John Locke ou David Hume seria produtiva, mas aqui basta dizer que Dawkins leva a analogia meme-gene mais longe para introduzir o conceito de complexo co-adaptado de memes que se origina no fundo mémico, de modo a distinguir unidades mémicas grandes e pequenas, tal como tinha feito com o complexo génico. Quando os componentes de um tal complexo mémico estão fortemente ligados entre si, formando uma entidade capaz de ser transmitida de um cérebro para outro cérebro, Dawkins considera ser conveniente juntá-los como um único meme. Assim por exemplo, durante a Idade Média, a doutrina da ameaça do fogo infernal aliou-se à ideia de Deus, para compelir eficientemente à obediência religiosa: as duas ideias reforçam-se reciprocamente, formando um complexo co-adaptado de memes, e cada uma delas ajuda a sobrevivência da outra no fundo de memes. Os complexos de memes co-adaptados evoluem da mesma maneira como os complexos de genes, e a selecção natural favorece os memes que exploram o seu ambiente cultural para vantagem própria. Este ambiente cultural contém outros memes que foram seleccionados ou que estão a ser seleccionados, entre os quais há competição. O fundo de memes tem os mesmos atributos de um complexo evolutivamente estável, que resiste à invasão de novos memes. A selecção natural favorece sempre estes complexos evolutivamente estáveis de memes, em detrimento dos memes isolados e separados. A analogia entre o complexo evolutivamente estável e a hegemonia de Gramsci é supreendente: os complexos co-adaptados de memes enquanto complexos evolutivamente estáveis são hegemónicos, no sentido marxista do termo. Dawkins pensa os genes e os memes como agentes conscientes intencionais, de modo a acentuar a ideia metafórica de que eles trabalham para a sua própria sobrevivência, mostrando-os a competir entre si na luta pela sobrevivência. A linguagem de propósitos é aqui um mero jogo metafórico de linguagem, porque é a selecção natural cega que faz com que eles se comportem como se fossem intencionais. O que interessa destacar é que os memes e os genes competem entre si de modo egoísta e implacável: o tempo - mais do que o espaço de armazenamento - constitui objecto de forte competição entre memes rivais. O meme que dominar a atenção de um cérebro humano deve fazê-lo à custa da eliminação dos memes rivais, e, se possível, tentar utilizar todos os meios de difusão e de transmissão disponíveis para cativar a atenção de um maior número de cérebros. Dawkins termina a sua exposição com a ideia de que os genes e os memes podem reforçar-se mutuamente ou mesmo entrar em conflito entre si, como sucede no caso do celibato. Este conceito de conflito entre genes e memes é uma ideia produtiva que merece ser pensada, na medida em que há a possibilidade objectiva da evolução cultural destruir as próprias condições necessárias à evolução e conservação da vida. Mas, enquanto houver vida inteligente no nosso planeta, o homem pode estar certo que deixa atrás de si duas coisas quando morrer: os genes e os memes. Os primeiros sobrevivem pelo menos em grandes proporções durante três gerações, ao passo que os segundos - se forem bem-sucedidos como os memes de Sócrates e Platão - poderão prosperar durante vários milénios, imortalizando os nossos nomes. Segundo Dawkins, copiando um meme tão antigo quanto o meme de Platão, devemos procurar a imortalidade não tanto na reprodução mas sobretudo no nosso contributo dado para o fundo de memes. Mas eis uma dificuldade: se uma característica cultural evoluiu da maneira como o fez simplesmente porque é vantajoso para ele própria, que interesse há em falar de imortalidade? A ideia de memes como partículas quase imateriais e potencialmente imortais não é a mais adequada para uma teoria científica da evolução cultural. Ao romper com a estratégia sociobiológica, Dawkins corre o risco de transformar a cultura num domínio supra-orgânico. Não se trata aqui da reentrada do idealismo cultural pela porta das traseiras, porque na verdade ele nunca chegou a ser expulso do seu seio pela teoria dos memes tal como a formulou Dawkins: a inscrição social dos memes nos aparelhos e nas práticas sociais é uma peça fundamental da teoria da evolução cultural. Não admira que a teoria dos memes de Dawkins tenha dado origem a uma "espécie de religião do meme" (Unweaving the Rainbow, 1998), cujo sumo-sacerdote é Daniel Dennett, para quem a consciência humana «é ela própria um enorme complexo de memes». Basta confrontar esta noção de Dennett com a ideia brilhante de Mikhail Bakhtin, segundo a qual «a consciência individual é um facto sócio-ideológico», para captar os contornos da ideologia nefasta que contamina todo o trabalho filosófico de Dennett, que, mesmo depois de ter eliminado a consciência individual, continua a professar um individualismo mémico, como se este pudesse explicar alguma coisa, logo ele que deve ser explicado a partir do meio ideológico e social.

A teoria da evolução mémica de Dawkins tem muitas fragilidades teóricas, a primeira das quais é a própria delimitação deste novo replicador que é o meme. Mas, para analisar estas fragilidades teóricas, convém dar o exemplo do meme para a ideia de Deus: «Não sabemos como ela se originou no "fundo" de memes. Provavelmente originou-se muitas vezes por "mutação" independente. De qualquer forma, ela é realmente muito antiga. Como se replica? Pela palavra escrita e falada, auxiliada pela música e arte sacras. Por que tem um valor de sobrevivência tão elevado? Lembre-se que "valor de sobrevivência" não significa aqui valor para um gene no "fundo", mas valor para um meme num "fundo" de memes. A pergunta significa: o que há na ideia de Deus que lhe dá estabilidade e penetração no ambiente cultural? O valor de sobrevivência do meme para Deus no "fundo" resulta da sua grande atracção psicológica. Ele fornece uma resposta superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. Ele sugere que as injustiças neste mundo talvez possam ser corrigidas no próximo. Os "braços eternos" oferecem uma protecção contra as nossas próprias deficiências, a qual, como o placebo do médico, não é menos eficiente por ser imaginária. Essas são algumas das razões pelas quais a ideia de Deus é copiada tão facilmente por gerações sucessivas de cérebros individuais. Deus existe, mesmo que apenas sob a forma de um meme com alto valor de sobrevivência ou de poder infectante no ambiente fornecido pela cultura humana». Dawkins não define o meme para a ideia de Deus, limitando-se a dizer que provavelmente surgiu por mutação independente em vários locais do mundo ao longo da história do homem. No entanto, quando procura explicar o seu valor de sobrevivência, isto é, a sua atracção psicológica, recorre a razões que foram dadas pela teoria da ideologia de Marx, sempre no pressuposto não-demonstrado da superioridade do conhecimento científico em relação ao conhecimento ideológico que define o complexo de memes co-adaptados que é o positivismo (conhecimento filosófico). Desgraçadamente, apesar dos esforços de várias gerações de pensadores marxistas, a teoria da ideologia de Marx permanece incompleta, sendo ameaçada internamente por uma bifurcação fatal. A minha hipótese de trabalho é a de que podemos completar a teoria da ideologia integrando-a na teoria sintética da evolução: os memes ou as ideias inscrevem-se em práticas sociais inseridas numa totalidade negativa, atravessada por contradições e conflitos sociais. Assim sendo, o valor de sobrevivência do meme para a ideia de Deus não é o mesmo para todos os homens no espaço e no tempo: a ideia de Deus até pode assegurar o lugar de todos os homens num destino imanente, apaziguando a sua angústia, como sugeriu Monod, mas o seu valor de sobrevivência é desigual em função da posição ocupada pelos indivíduos no processo de produção. O Deus dos proprietários dos meios de produção - o "deus" da opressão - é diferente do Deus daqueles que foram violentamente despojados dos mesmos - o "deus" da consolação escatológica ou o Deus da libertação efectiva, ou, sendo aparentemente o mesmo Deus, ele ajuda a reproduzir a formação social que explora e oprime a maioria da população a favor de uma minoria de aves de rapina. De certo modo, ao inscrevermos as ideias nas práticas e nas instituições sociais, somos levados a descobrir vários alelos rivais que competem pela ocupação da mesma fenda cromossómica: um exemplo disso reside na filosofia de Ernst Bloch, onde a teologia conduz à revolução através de sucessivas mutações. O Deus da libertação exerce maior atracção psicológica sobre os cérebros humanos do que o "deus" da opressão, e, no entanto, este último tende a dominar o seu alelo rival devido ao poder político efectivo que a sociedade antagónica lhe confere: um é dominante, o outro é recessivo ou, como dizem os marxistas, dominadoA competição entre memes é muito mais complexa do que pensa Dawkins. A teoria da ideologia permite levar mais longe a analogia entre genes e memes, dando-lhe um outro fundamento mais próximo da teoria da natureza humana elaborada pela sociobiologia. Dawkins rejeita a aplicação da sociobiologia aos seres humanos, abdicando assim da busca das vantagens biológicas dos memes e dos vários atributos da civilização. O seu darwinismo entusiasta implica libertar a teoria da evolução por selecção natural do seu confinamento ao contexto limitado dos genes: o princípio fundamental de que toda a vida evolui pela sobrevivência diferencial de entidades replicadoras é suficiente para garantir uma explicação darwinista tanto da evolução genética como da evolução cultural. De certo modo, Dawkins aproxima-se da concepção de Arnold Gehlen, segundo a qual o homem é, por natureza, um ser-de-cultura. Mas esta aproximação é mais aparente do que real, porque Gehlen procura elucidar a posição peculiar que a homem ocupa no reino animal, a partir da sua constituição biológica específica. A antropologia filosófica de Gehlen foi retomada por Peter Berger e Thomas Luckmann para mostrar que o Homo sapiens é sempre homo socius: a especificidade humana aparece assim ligada ao reino social e não ao ser humano solitário. A teoria dos memes só pode ser compreendida em articulação com a teoria marxista da sociedade e da história: a vantagem dos memes é fundamentalmente vantagem social. O livro de Dawkins termina com estas palavras: «Somos construídos como máquinas génicas e cultivados como máquinas mémicas, mas temos o poder de nos revoltarmos contra os nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos rebelar-nos contra a tirania dos replicadores egoístas». Quando li pela primeira vez o livro de Dawkins, anotei em rodapé da página: a teoria de Dawkins possui um trunfo em relação à teoria sociobiológica de Wilson - não anula as ciências sociais. Hoje sou levado a lamentar o facto dela não ter conseguido aprofundar a integração das ciências sociais na nova síntese. O optimismo de Dawkins é eclipsado por aquilo a que Wilson chamou a necessidade humana de acreditar: «os homens preferem crer a saber». Edward Wilson definiu o marxismo como «uma sociobiologia sem biologia». De facto, os marxistas privaram o materialismo histórico da sua base na ciência natural, mais precisamente na biologia, esquecendo que há na obra de Marx uma concepção latente da ideologia descrita em termos de "ideias fixas", "ilusões", "espíritos" ou "fantasmas" que circulam pela sociedade para despertar nos seus membros superstições e preconceitos que bloqueiam o desenvolvimento social. Este cenário de indivíduos prisioneiros de imagens e expressões do passado só pode ser explicado pela biologia, isto é, pelo conjunto de trajectórias evolutivas cujo pleno ordenamento está limitado pelas regras genéticas da natureza humana. A natureza humana é uma mistura de adaptações genéticas especiais a um meio ambiente que, em grande medida, já desapareceu, o mundo dos caçadores-recolectores da Idade Glacial. A evolução cultural não é linear: nem a filosofia substituiu a religião, nem a ciência eliminou a metafísica. Nos nossos dias indigentes, a mitologia renasce, ameaçando o destino da filosofia e da ciência.

Advertência. Estou a abordar um problema extremamente complexo e difícil, para a resolução do qual ainda não temos todos os instrumentos científicos adequados. Penso que estamos no limite do projecto científico: a atracção pela tecnociência implica precisamente o esgotamento do programa científico. A dissolução da ciência na estrutura da tecnociência é o triunfo total da racionalidade instrumental. Infelizmente, o pensamento de esquerda produzido nas últimas décadas do século XX é uma espécie de suicídio. Para revitalizar a ciência e a filosofia - a sua aliança, é necessário queimar toda essa literatura que corrompe o espírito humano. Devemos ser ultra-selectivos nas leituras que fazemos: não vale a pena ler filósofos e literatos que intoxicam as mentes jovens com palermices suicidas. Os nossos problemas surgiram no século XIX. Daí a necessidade de fazer um ajuste de contas filosófico com o pensamento das suas grandes figuras intelectuais, entre as quais destaco Marx e Darwin. Marx era infinitamente mais optimista do que Darwin, embora nunca tenha excluído a possibilidade de regressão. Paradoxalmente, na era da educação e da comunicação generalizadas a mente humana regrediu. Se destruíssemos as estruturas que ainda suportam a civilização, a humanidade recuaria até à pré-história: a semente da igualdade institucionalizada produz regressão mental e cognitiva. A natureza não produz todos os homens iguais e, sempre que se tenta igualar todos, pelo menos no espírito das instituições sociais, o resultado é a regressão. É impossível conservar a civilização quando todos os homens se iludem: o pensamento de muitos é a catástrofe civilizacional. A essência do totalitarismo reside neste efeito de manada. Não estou seguro do sucesso deste empreendimento de fusão das teorias de Marx e Darwin: a vitória da estupidez humana fechou as portas ao futuro. Vivemos mergulhados na escuridão total. Ontem fui confrontado com uma versão da crise exposta por agentes da extrema-direita que responsabilizam a democracia pela situação obscura vigente. Embora tenha revelado outras conexões para a explicar, senti-me incapaz de fazer uma defesa da democracia em abstracto. Neste campo de batalha, a extrema-direita também tem os seus argumentos de peso. A esquerda converteu-se efectivamente em lixeira, tendo destruído tudo aquilo em que tocou, a começar desde logo pela educação. O ódio da esquerda pela biologia é absolutamente patológico: a esquerda deixou de estar ao serviço da vida quando se aliou às forças da destruição. A esquerda alucinada que se manifesta por esse mundo fora é de tal modo amiga da amputação que, para abolir a diferença biológica, está pronta para castrar os homens. O carácter regressivo da esquerda revela-se neste desejo de regressar ao indiferenciado. Uma noologia bem construída permite fundar uma patologia noológica, capaz de identificar as doenças do espírito humano, de as tratar e de as eliminar: há ideias letais que devem ser eliminadas. De certo modo, o mundo cerebral contemporâneo foi contagiado por uma terrível epidemia noológica que parasita sobretudo os cérebros mais indigentes e atrofiados. Compreendo a revolta dos extremistas de direita: ela é a voz da revolta da natureza contra a acção irracional do homem. Precisamos de uma nova teoria política. Precisamos acima de tudo de cérebros inteligentes e cultos, capazes de produzir as teorias de que necessitamos para salvar a humanidade e o mundo.

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 10 de junho de 2012

Genética do Comportamento: O colapso das ciências sociais

Experiência Genética
Nick Martin planeou uma carreira profissional na política, tendo iniciado uma licenciatura em Artes. Mas o seu interesse pela tensão existente entre as ideias políticas de igualdade perante a lei e a realidade biológica das diferenças individuais levou-o a iniciar o seu primeiro estudo de gémeos durante o seu período estudantil na Universidade de Adelaide (Austrália). Atraído pela análise genética do comportamento que se realizava em Birmingham, Nick Martin foi para Inglaterra para realizar a sua tese de doutoramento, onde trabalhou com Lindon Eaves e John Jinks. Martin e Jinks desenvolveram a análise genética da estrutura da covariância, em que se baseia em grande medida a análise genética multivariante. Os cálculos da potência dos estudos de gémeos revelaram que estes estudos deviam ser mais extensos que os realizados até aí. Martin regressou à Austrália para fundar o Registo Australiano de Gémeos, em torno do qual desenvolveu os seus estudos sobre genética da personalidade, alcoolismo e outros traços psiquiátricos, estando actualmente a realizar estudos de ligamento e associação para descobrir os genes implicados nos caracteres do comportamento humano.

Martin trocou a carreira política pela carreira de investigação científica no domínio da genética do comportamento. As massas anarquistas de "esquerda" suspeitam da genética: a ciência da hereditariedade é, para estas criaturas sem qualidades, uma ciência capitalista. Em 1969, foi publicada nos Estados Unidos da América a tradução inglesa do livro de Z. A. Medvedev - The Ascent and Fall of T. D. Lysenko. Deste maravilhoso livro retenho apenas dois parágrafos, um do próprio Lysenko e outro do seu discípulo Prezent. Sobre a competição entre membros de uma mesma espécie. Lysenko escreve em 1947: «A humanidade constitui uma só espécie biológica. Segundo os capitalistas, é da lei natural que os membros de uma espécie compitam entre si para obter os recursos necessários para sobreviver; os indivíduos mais bem adaptados, saem vitoriosos. O mesmo, dizem, ocorre com a espécie humana: os empresários vivem com luxo e os seus milhões de operários vivem na miséria, devido a que os empresários são mais inteligentes e capazes, dada a sua herança biológica». Prezent reforça a convicção de Lysenko: «O capitalismo, durante o seu período histórico florescente e no cume da sua cultura, produzia uma das criações supremas do pensamento biológico: o darwinismo, uma visão histórica do mundo orgânico. O capitalismo corrupto produziu, durante o período imperialista do seu desenvolvimento, um bastardo abortado da ciência biológica: a doutrina metafísica e anti-histórica da genética formal». Com o apoio de Estaline e mais tarde de Kruschov, Lysenko e Prezent - o teórico do lysenkysmo - apresentaram uma nova teoria da hereditariedade, rejeitando a teoria morgano-mendeliana como um produto capitalista que negava os princípios fundamentais do "materialismo dialéctico". Para eles, os genes não existiam: a hereditariedade era uma propriedade geral interna da matéria viva que, como tal, não necessita de um sistema genético separado, localizado nos cromossomas. Escusado será dizer que quando foram aplicadas às práticas agrícolas a teoria da hereditariedade de Lysenko (sic) e a sua pretensa descoberta do processo de vernalização - enfim, a biologia mitchurinista por oposição à biologia capitalista - produziram fracassos agrícolas desastrosos, levando a URSS a importar cereais do estrangeiro. O lysenkysmo não só criticou o darwinismo social, o que era e é justo, como também aboliu o ensino da genética mendeliana nas academias soviéticas, gerando um atraso estrutural da investigação biológica na URSS. Usar o lysenkysmo para condenar o materialismo dialéctico não faz sentido, bastando ler as obras de Marx e Engels para nos convencermos disso. No entanto, apesar das intuições geniais de Engels, a maior parte do marxistas seguiu a via das ciências sociais sem procurar clarificar a sua base natural. Os marxistas traíram a teoria da história de Marx. O medo da genética de Lysenko propagou-se a todos aqueles que lutam por uma igualdade nivelada por baixo, em nome da qual sacrificaram o desenvolvimento exaustivo do materialismo histórico. O resultado dessa luta fraudulenta salta à vista: os menos aptos ingressaram nas ciências sociais, enquanto os mais aptos optaram pelas ciências naturais. As ciências sociais abortaram sem ter conseguido aperfeiçoar o paradigma científico de Marx; as ciências naturais desenvolveram-se de tal modo que procuram realizar aquilo que não foi efectuado nas ciências sociais pelos menos aptos, cujo objectivo de vida é partilhar aquilo que é produzido pelos outros ou que deriva da sua actividade. A clivagem entre ciências sociais e ciências naturais é uma clivagem de competências: os menos aptos apoderaram-se do domínio das ciências sociais, provocando a sua estagnação. E são de tal modo destituídos de capacidades mentais que não se aperceberam de que a ideia de selecção não é estranha ao materialismo histórico. Vistas à luz do conhecimento de que dispomos hoje, as teorias de Darwin e de Marx não são teorias rivais; pelo contrário, elas são complementares, até porque ambas germinaram no século XIX no seio da sociedade inglesa. O que é a teoria da ideologia de Marx a não ser uma teoria da selecção social das ideias? A aproximação de Marx a Darwin permite concluir a teoria do materialismo histórico, ao mesmo tempo que prepara o terreno para a sua integração na teoria sintética da evolução. O marxismo soviético fracassou lá onde ele se distanciou do materialismo histórico: a queda da URSS não fez mossa na teoria da história de Marx.

Os meus últimos textos movem-se em terrenos movediços e perigosos. A tese que pretendo defender é a seguinte: a teoria sintética da evolução não está completa enquanto não integrar o materialismo histórico no seio do seu quadro teórico. Nem todos os sociobiólogos reagiram do mesmo modo ao estudo dos comportamentos humanos: os americanos mostram-se muito mais propensos a ver os seres humanos como organismos sociobiológicos do que os ingleses. Trivers (1976), Alexander (1975) e Wilson (1975) consideram que a selecção natural é responsável pela nossa formação, sendo necessário compreendê-la para conhecer as nossas identidades. Dawkins (1976) que nunca fez parte do círculo íntimo de Wilson está menos disposto a aplicar a sociobiologia aos seres humanos, os quais escaparam nos seus aspectos mais importantes às regras biológicas. Maynard Smith (1972) vai mais longe quando se dissocia completamente da sociobiologia humana, negando a sua relevância para o domínio do homem. Dawkins propôs a sua própria teoria da evolução cultural, na qual os memes - tipos de unidades intelectuais - substituem os genes. Uma ideia semelhante já tinha sido proposta por Jacques Monod sob a designação de teoria da selecção natural das ideias. O modelo da hominização esboçado por Engels permite explicar a emergência da cultura no seio do mundo natural, sem ceder ao idealismo. Quando falo da necessidade de integrar o materialismo histórico na nova síntese, refiro-me à articulação das duas formas de evolução, a biológica e a cultural. Os etólogos e os sociobiólogos perderam muito tempo a tentar produzir uma teoria da cultura quando na verdade ela já tinha sido produzida por Marx, em conformidade com a estratégia materialista da ciência. A teoria da cultura assume na obra de Marx a forma de uma teoria da história: a teoria da cultura é, portanto, teoria da história humana. Não se pode ser materialista no plano da biologia humana e idealista no plano da cultura humana. Este contra-senso que atravessa as obras de cientistas revolucionários deve-se ao facto do seu temor pelo comunismo os ter afastado da obra de Marx. Uma vez depurado deste elemento ideológico externo, o marxismo revela ser aquilo que sempre foi: um programa de investigação científica da história humana, fundado na ciência natural. Além disso, os cientistas revolucionários não podem negar a antiga visão tipológica do mundo, substituindo-a pelo esquema da evolução, com base na biologia das populações, e, ao mesmo tempo, conservar uma visão imobilista da história do homem. O conceito marxista de história como uma sucessão descontínua de formações sociais é o único conceito adequado à teoria sintética da evolução. Alguns destes cientistas recorrem à teoria das revoluções científicas de Thomas S. Kuhn para pensar a novidade revolucionária das suas teorias, sem no entanto compreenderem que essa teoria mais não é do que a aplicação do esquema marxista da história ao estudo do crescimento científico. De facto, o mundo nunca mais voltou a ser o que era depois de Marx. Como é evidente, esta integração do materialismo histórico na nova síntese não pode ser levada a cabo sem a participação da neurobiologia e da ecologia. É mais fácil começar pela segunda, reformulando a teoria marxista da reprodução social à luz da teoria da população, do que pela primeira, embora a genética do comportamento abra uma via nesse sentido, como veremos mais adiante. A síntese eco-marxista é um passo fundamental na estratégia de fusão do materialismo histórico e da teoria sintética da evolução. A dificuldade em relação à neurobiologia não reside na explicação neuronal dos comportamentos humanos: a integração de toda a super-estrutura ideológica e noológica implica o desenvolvimento prévio de uma biologia do espírito humano, em articulação com o paradigma da natureza humana. As neurociências têm proposto soluções para o problema mente/cérebro sem levar em conta um factor crucial de estruturação da vida mental: a sociedade. Embora nunca tenha abordado este assunto, pelo menos de modo directo e explícito, Marx abriu a via que permite clarificá-lo, desde os Manuscritos de 1844 até às suas últimas obras. Na Ideologia Alemã, podemos ler esta orientação teórico-metodológica: «E só agora, depois de já examinados quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, nos apercebemos de que o homem também possui "consciência". (Variante: o homem tem "espírito" e esse "espírito" manifesta-se como consciência.) Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão "pura". Desde sempre pesa sobre o "espírito" a maldição de estar "imbuído" de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para outros homens e que, portanto, existe igualmente só para mim, e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, as exigências dos contactos com os outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim. O animal "não se encontra em relação" com coisa alguma, não conhece de facto qualquer relação; para o animal, as relações com os outros não existem enquanto relações. A consciência é, pois, um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, todo-poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; é, por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efectivamente em sociedade. Este começo é tão animal como a própria vida social nesta fase; trata-se de uma simples consciência gregária e, neste aspecto, o homem distingue-se do carneiro pelo simples facto de a consciência substituir nele o instinto ou de o seu instinto ser um instinto consciente. Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o factor básico». (Marx, pelo menos na Ideologia Alemã, parece ser tentado a definir a "consciência" como uma espécie de interface entre o indivíduo e o meio natural e social. A "consciência" como interface pode ser um conceito produtivo.) Depois de ter tentado apresentar uma solução para o problema mente/cérebro, o naturalismo biológico, ao longo de mais de 300 páginas, John R. Searle conclui a sua viagem de redescoberta da mente afirmando que é necessário redescobrir o carácter social da mente. No entanto, quando noutra obra tenta realizar essa tarefa, esquece que a descoberta do carácter social da mente se deve a Marx, tendo sido desenvolvida e ampliada pelos estudos de L. S. Vygotsky, A. R. Luria e Mikhail Bakhtin, para já não falar de E. Fromm e de G. H. Mead. A recusa da teoria de Marx traduz-se sempre num desvio idealista: Tanto John Searle como António Damásio são idealistas quando tentam resolver o problema da natureza da mente sem levar em conta a sua formação socialA superioridade intelectual de Marx em relação aos biólogos reside no facto de não fazer moralismo: quase todas as teorias biológicas propostas acabam por conduzir a uma ética tão individualista - portanto, idealista - quanto o seu pressuposto individualismo metodológico. A integração do marxismo na teoria sintética da evolução desafia alguns dos seus princípios, obrigando-a a reformulá-los e a depurá-los dos seus elementos ideológicos liberais. Um desses desafios diz respeito à unidade fundamental da selecção natural. Estou convencido de que a sugestão de Dawkins é aquela que se adequa melhor à noção marxista de "portador" que aparece explicitada na opus magnum de Marx, O Capital: «a unidade fundamental da selecção (...) não é a espécie, nem o grupo, nem mesmo a rigor o indivíduo - é o gene, a unidade da hereditariedade», donde resulta que os seres vivos são «máquinas de sobrevivência» dos genes.

A genética constituiu um dos maiores avanços científicos do século XX, tendo começado com a redescoberta das leis de Mendel e terminado com a sequência completa do genoma humano. A genética do comportamento constitui uma ponte entre as ciências biológicas e as ciências do comportamento. Para estudar os factores genéticos do comportamento, a genética do comportamento utiliza diversas estratégias de investigação, como por exemplo os estudos de gémeos e de adopção (genética quantitativa), que investigam a influência dos factores genéticos e ambientais, e as estratégias para identificar genes específicos (genética molecular). A genética do comportamento aplica todas estas estratégias de investigação ao estudo do comportamento normal e anómalo, incluindo disciplinas como a genética psiquiátrica, que estuda as perturbações mentais, e a psicofarmacogenética, que estuda as respostas comportamentais às drogas. (:::/:::) O primeiro livro que definiu a genética do comportamento - Behavior Genetics de J. L. Fuller & W. R. Thompson - foi publicado em 1960. Os anos 60 do século XX foram caracterizados por inúmeras controvérsias sobre natureza (genes, herança) versus educação (meio). Um dia será necessário fazer a história destas controvérsias. A grande responsável pelo atraso da investigação genética do comportamento foi precisamente a psicologia, a "ciência" que foi demolida pela etologia, ecologia do comportamento e sociobiologia. O facto de alguns psicólogos trabalharem hoje no campo da genética do comportamento não nos deve impedir de olhar para a psicologia como a grande derrotada pelo progresso científico. O fundador do behaviorismo, J. B. Watson, descartou-se dos factores hereditários, alegando que as estruturas hereditárias podem ser conformadas de mil maneiras distintas, dependendo do meio em que a criança é educada. Nascia assim o mito da educação - o ambientalismo - que veio a ser destruído pela revolução etológica e pela revolução sociobiológica. Em 1992, a Associação Americana de Psicologia destacou a genética como o tema que melhor representava o futuro da psicologia, dando início à invasão da genética do comportamento por psicólogos. Ninguém é contra a participação activa dos psicólogos na investigação genética do comportamento, mas se compararmos os manuais de genética do comportamento com os manuais de outras disciplinas biológicas, verificamos a ausência de um paradigma da natureza humana desenvolvido em conformidade com a teoria sintética da evolução. A psicologia evolutiva não é argumento porque, ela própria, mais não é do que outra designação dada à sociobiologia. Ao longo da sua história já centenária a psicologia nunca conseguiu fazer a sua própria revolução científica: a sua prática normal é "anexar" as descobertas realizadas noutros campos disciplinares. Uma das descobertas científicas que ajudou a clarificar o papel dos genes no comportamento foi a fenilcetonúria (FKU), defeito devido a um único gene - o gene codificante de PAH, a enzima que converte a fenilalanina em tirosina, que era antes causa de um retardamento mental severo e responsável por cerca de 1% dos indivíduos atrasados institucionalizados. Estudos bioquímicos sobre as vias que unem genes e comportamento indicaram que a causa última do retardamento mental era a incapacidade para degradar a fenilalanina, que se traduz na acumulação de níveis elevados desta substância no sangue, danificando gravemente o cérebro em desenvolvimento. Os indivíduos que sofrem de FKU podem ser tratados administrando-lhes durante o período de desenvolvimento uma dieta baixa em fenilalanina. (:::/:::)

Ora, como se sabe, o cérebro constitui a conexão funcional entre os genes e o comportamento, sendo mais impressionante do que o genoma pelos triliões de sinapses em vez de biliões de pares de bases de ADN e pelas centenas de neurotransmissores em vez de quatro bases nucleotídicas do ADN. A neurobiologia - ou neurociência - estuda a função cerebral e, na actual conjuntura teórica, constitui uma das áreas mais activas da ciência. A genética do comportamento interessa-se não só pela descoberta dos genes relacionados com o comportamento, como também pelo modo como funcionam esses genes. Chama-se genómica funcional ao estudo de como funcionam os genes: ela abarca todos os níveis de análise, desde os genes até ao comportamento. Os biólogos moleculares estudam a função ao nível celular, identificando os produtos génicos - as proteínas - e examinando a sua função celular. A este nível a variação genética implica mudanças na estrutura tridimensional das proteínas. Um nível de análise superior é o das mudanças moleculares que ocorrem na sinapse: a plasticidade sináptica tem sido estudada pela neurogenética para compreender a aprendizagem e a memória como processos que implicam mudanças celulares na sinapse. Outros níveis superiores de análise da função cerebral são os dos padrões de estimulação entre neurónios e através de distintas regiões cerebrais e do comportamento do organismo inteiro. A neurogenética é o estudo genético da estrutura e da função cerebral em relação com o comportamento. Utilizando animais mutantes, isto é, animais portadores de mutações espontâneas, mutações produzidas por mutagénese química ou mutações dirigidas, a neurogenética já produziu resultados importantes em pelo menos três áreas: a do ritmo circadiano, onde descobriu vários genes clock cuja expressão controla este ritmo; a da aprendizagem e memória, onde se descobriram mudanças na estrutura e função da sinapse, impulsionadas geneticamente, que desempenham um papel crucial na sinfonia de transformações implicadas nestes processos; e a da resposta a fármacos. (:::/:::)

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Filosofia da Evolução e Antropologia Darwiniana

Human Evolution
«Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob petulâncias ideológicas, de que o homem precisa, em primeiro lugar, comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc.; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos e, por conseguinte, a correspondente fase de desenvolvimento económico de um povo ou de uma época constitui a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas ou mesmo as representações religiosas dos homens, e em relação à qual devem, portanto, explicar-se  - e não, como até agora tem acontecido, inversamente.» (F. Engels)

«Somos nós que criamos as nossas "prisões" e também podemos, com espírito crítico, demoli-las. (...) Não há falseamento antes da emergência de uma teoria melhor. (...) A crítica puramente negativa não pode liquidar um programa de investigação científica.» (Imre Lakatos)

Infelizmente, as traduções das obras de Marx e Engels existentes em língua portuguesa são péssimas. A sociobiologia seguiu a estratégia de atrair cérebros inteligentes para a sua área, enquanto as ciências sociais foram colonizadas por mentes muito pouco inteligentes. Esta clivagem de competências é particularmente evidente nas universidades portuguesas, justificando esta formulação genérica: os mais idiotas dos portugueses vão para as letras e as humanidades. A crise das humanidades é basicamente uma crise de competências, gerada e agravada, em Portugal, pelos esquemas corruptos de recrutamento do pessoal docente. A vida cultural portuguesa desmente claramente um dos princípios do darwinismo: os mais idiotas triunfam sobre os mais inteligentes através da fraude. De facto, tal com estão estruturados e organizados e tal como são leccionados por professores incompetentes, os cursos de ciências sociais e humanas, incluindo a Filosofia, podem ser abolidos por decreto sem causar qualquer tipo de dano sobre a vida cultural do país. O pior é que esta crise da cultura humanista não é apenas portuguesa; ela instalou-se em todas as partes do mundo, - e, o que é deveras preocupante, pelos menos para os países ocidentais, ameaça liquidar a própria Filosofia, a flor da complexidade da civilização ocidental. A filosofia que se faz actualmente está alienada do mundo e, por isso, tornou-se obsoleta, incapaz de orientar racionalmente a praxis de transformação qualitativa do mundo. Tenho defendido nestes últimos estudos a ideia de que a filosofia quebrou a sua relação privilegiada com a ciência, por um lado, e com a política, por outro lado. Ora, este duplo-vínculo que define a prática filosófica foi substituído pela relação perigosa entre filosofia e arte, a qual tem sido interpretada de modo a fazer da própria filosofia um género literário. Esta vulgarização da Filosofia é fatal, não só para o futuro da própria filosofia, mas também para o futuro da própria humanidade. Em vez de lutar pela integridade do seu território, os filósofos idiotas entregaram-no aos próprios cientistas, cuja competência não os habilita nem para a prática científica nem para a prática filosófica. Reina na cultura uma espécie de barbárie, a barbárie dos próprios agentes culturais, cujo sinal mais evidente é a estagnação dos conhecimentos nas diversas áreas do saber humano. O século XX promoveu diversas grandes revoluções científicas que alteraram radicalmente a nossa visão do mundo. Da Física à Biologia, passando pela Química, todas as ciências naturais sofreram profundas alterações de paradigmas, enquanto as ciências sociais e humanas nem sequer avançaram para a fase do paradigma, envolvidas em intermináveis discussões ideológicas que não levam a parte nenhuma. As revoluções biológicas - a molecular, a evolucionista, a etológica, a sociobiológica, a neurobiológica e a ecológica - reformularam radicalmente o paradigma da natureza humana, destruindo os pressupostos das ciências sociais e humanas, condenadas ao seu eterno estatuto ideológico. Se exceptuarmos a História, cujo paradigma foi elaborado por Marx, as ciências sociais e humanas são irrelevantes. Todas as teorias sociais assentam num conceito extraterrestre de natureza humana, a contrapartida ateia e secular do conceito sobrenatural ou teológico de homem: «Nós não desembarcámos neste planeta como alienígenas. A humanidade é parte da natureza, uma espécie que evoluiu ao lado de outras espécies. Quanto mais nos identificarmos com o restante da vida, mais rapidamente seremos capazes de descobrir as origens da sensibilidade humana e de adquirir o conhecimento sobre o qual fundamentar uma ética durável, um verdadeiro senso de direcção» (Edward O. Wilson). Edgar Morin pensou esta mudança de paradigmas da natureza humana como a substituição do paradigma insular - o homem isolado do resto da natureza e confiante da sua situação privilegiada no mundo - pelo paradigma peninsular, mas errou completamente quando avaliou o sentido das revoluções biológicas: cada uma delas e todas elas reformam radicalmente o paradigma da natureza humana. Este impulso reformista já vem detrás: a revolução darwinista teve efectivamente um impacto muito mais violento sobre a nossa visão do homem do que a revolução de Galileu. A defesa do sistema heliocêntrico de Copérnico por parte de Galileu - segundo o qual a Terra girava à volta do Sol - contrariava uma afirmação da Bíblia, mas não punha em causa a existência de Deus, ao passo que a teoria da evolução por selecção natural de Darwin nega a ideia de criação, tornando Deus supérfluo. As duas revoluções científicas relativizaram a existência humana. Quando Copérnico afirmou que a Terra não era o centro do universo, ela passou a ser vista como um planeta entre tantos outros planetas, que gira à volta do Sol diante do fundo panorâmico da Via Láctea. A revolução darwinista atingiu o próprio homem na sua substância mais íntima, nivelando-o com os outros seres vivos: o homem foi obrigado a aprender a ver-se como um produto da evolução biológica, abandonando a fé de que tinha sido criado directamente pela mão de Deus. Copérnico destronou a Terra, lutando contra o sistema geocêntrico de Ptolomeu, e Darwin destronou o próprio homem, lutando contra a teoria da criação. Mas - como sabem os teólogos - a queda de Deus traz consigo a queda do próprio homem, na medida em que a questão de Deus e a questão do Homem pertencem uma à outra. Darwin derrubou num só e mesmo golpe o teocentrismo e o antropocentrismo. A filosofia e a ciência germinaram apenas em solo ocidental, o que justifica a sua marca de origem: a luta feroz que as opôs desde o início ao mito e à tradição dogmática da religião cristã. O materialismo foi a estratégia adoptada para combater o domínio cultural do cristianismo. Até mesmo Sartre na sua crítica ao materialismo é obrigado a reconhecer o seu papel histórico tanto na ciência como na luta pela libertação: «Se eu considerar a fé materialista já não no seu conteúdo, mas na sua história, como um fenómeno social, vejo claramente que não é um capricho de intelectuais, nem o simples erro dum filósofo. Por mais atrás que remonte, encontro-a ligada à atitude revolucionária. O primeiro que quis nomeadamente desembaraçar os homens dos seus temores e das suas cadeias, o primeiro que quis, no seu domínio, abolir a servidão, Epicuro, era materialista». Marx escreveu a sua tese de doutoramento sobre Demócrito e Epicuro (1841), tendo desde logo abraçado o materialismo para contribuir pouco mais tarde para a libertação das classes trabalhadoras. Graças à criação do materialismo histórico, Marx conseguiu relativizar a própria existência social e histórica do homem, abrindo as portas ao futuro novo quando substituiu a luta pela vida - struggle for life - pela luta de classes. A superioridade da revolução teórica de Marx reside no facto de não entregar o homem ao desespero: o reconhecimento da relatividade da sua existência não implica necessariamente o seu naufrágio; pelo contrário, abre-lhe as portas da história que, ele próprio, faz aqui na Terra diante do fundo panorâmico da Via Láctea. Chegou a hora de colocar as cartas sobre a mesa. A aliança entre o projecto científico e a filosofia materialista tem sido extremamente produtiva: ela permitiu não só libertar toda a cultura da tutela da Igreja Católica e das Igrejas Protestantes, como também promover todo um conjunto de progressos científicos espectaculares, em especial no domínio da cultura material. No entanto, apesar de todas estas libertações operadas pela ciência, a estratégia materialista-redutora não consegue resolver os problemas filosóficos fundamentais que atormentam a alma dos homens, sobretudo as almas mais inteligentes. Este é o aspecto mais fraco e débil da estratégia científica. Desgraçadamente, aquilo que a estratégia materialista não resolve também não é resolvido por nenhuma outra estratégia teórica, pelo menos de modo a incrementar o crescimento real e efectivo do conhecimento científico. Tenho proposto um materialismo pluralista para salvaguardar a ciência de uma estratégia demasiado redutora do mundo, susceptível de entrar em colisão com a própria continuidade da vida na Terra. Estaremos nós condenados a escolher entre duas crenças indemonstráveis, a fé materialista ou a fé idealista-espiritualista? Filosofia e ciência estão condenadas a coexistir e a colaborar intimamente uma com a outra, de modo a prolongar a aventura humana num planeta saudável. A antropologia de Pascal ainda tem uma palavra a dizer: «É perigoso mostrar ao homem com demasiada insistência a sua semelhança com os animais, sem lhe mostrar a sua grandeza. É igualmente perigoso exaltar-lhe a sua grandeza sem lhe mostrar a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo na ignorância de uma e outra. Mas é muito útil mostrar-lhe uma e outra». 

A teoria de Darwin compreende duas linhas de pensamento que convém distinguir: a primeira é a teoria da relação genealógica geral de todos os seres vivos e a segunda é a teoria causal desta evolução. As duas teorias foram articuladas e unificadas por Darwin (1859) na sua obra On the Origin of Species by means of natural selection. A teoria da evolução já tinha sido formulada de diversos modos antes de Darwin, o qual se limitou a fazer dela o fundamento novo da biologia. O contributo original de Darwin é a explicação causal da evolução: a teoria da selecção natural. Quando iniciou a sua viagem ao redor do mundo no navio Beagle (1831-36), Darwin ainda acreditava na teoria da constância das espécies. Na sua autobiografia, Darwin refere dois acontecimentos que o obrigaram a abandonar esta teoria: a descoberta de fósseis de animais na América do Sul, cuja espécie se extinguiu ou existia em representantes divergentes (1); e as observações que realizou nas Ilhas Galápagos (2). O registo fóssil revelava as mudanças da fauna em épocas diferentes da história geológica da Terra, enquanto as observações feitas no terreno mostravam a distribuição das espécies não já no tempo mas no espaço. Ora, estas diferenciações distribuídas no tempo e no espaço colidiam frontalmente com a teoria da criação e da constância das espécies. Durante o seu período de estudos teológicos em Cambridge, Darwin foi marcado pela obra Teologia Natural de William Paley, onde este teólogo caracterizava a natureza como obra de Deus. Paley utilizou a organização do olho como prova principal da sua argumentação teológica: a finalidade expressa na organização das plantas e dos animais era a prova directa e irrefutável da sabedoria do Criador. (O bioquímico Michael Behe também utiliza nos nossos dias a organização do olho para desafiar a teoria da evolução.) O que intrigava a inteligência metódica de Darwin era a questão de saber como é que se podiam originar seres vivos a partir de alguns actos de criação espiritual: a teologia natural de Paley criava um abismo que não podia satisfazer as exigências da causalidade. Para introduzir o processo causal nesse hiato, Darwin socorreu-se da obra Principles of Geology de Charles Lyell, cuja análise das mudanças da superfície da Terra no passado aponta para a interacção das forças da natureza ao longo do tempo, de modo a formar um continuum único de uma cadeia complexa de causas e efeitos, com transições rotativas, as quais, não sendo resultado das catástrofes de Cuvier, mais não são do que os efeitos cumulativos de causas banais e comuns. Com a leitura das obras de Lyell, Darwin descobriu o princípio geral de uma solução para o problema da origem das espécies, faltando-lhe clarificar a propriedade específica das causas actuantes no processo de transformação orgânica. Esta solução procurou-a no domínio da domesticação dos animais e do cultivo de plantas. A multidão de raças e de espécies animais e vegetais criadas artificialmente mostravam a maleabilidade e a capacidade de transformação dos organismos vivos. Porém, o que mais chamou a atenção de Darwin foi o esquema da sua génese: em cada geração verifica-se uma variação mais ou menos ampla das propriedades dos indivíduos. O criador inclui na reprodução certas variações e exclui outras, de modo a gerar as raças ou espécies desejadas. Este procedimento é repetido de geração em geração até que, finalmente, através do efeito cumulativo (Lyell) da selecção artificial, surgem raças completamente novas, cujas características são diferentes das da forma original. Darwin utilizou esta prática de criação como modelo explicativo do processo da origem das espécies na natureza: «Vi cedo que a selecção é a chave do êxito do homem no seu trabalho de criar raças úteis de animais e plantas. Como se poderia aplicar a selecção a organismos foi, no entanto, por muito tempo, um segredo para mim». Darwin não podia admitir a existência de um processo planeado. Os cinco anos a bordo do Beagle não foram suficientes para o dotar de uma teoria da evolução capaz de explicar o seu mecanismo causal: a ideia de selecção natural só surgiu dois anos depois de ter regressado a Londres: «Em Outubro de 1838, isto é, quinze meses depois de ter principiado o meu inquérito sistemático, aconteceu-me ler por divertimento o ensaio de Malthus sobre a população e, por, a partir da observação longa e continuada dos hábitos dos animais e das plantas, estar bem preparado para apreciar a luta pela existência - struggle for existence - que continua em toda a parte, repentinamente atingi que, sob certas circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a ser preservadas e as desfavoráveis destruídas. O resultado disto seria a formação de novas espécies. Aqui, então, tinha finalmente conseguido uma teoria boa para trabalhar». Darwin recorreu à teoria da população de Malthus para construir a sua teoria da selecção natural. Malthus argumentava que a população humana aumenta em proporção geométrica, enquanto os recursos para a sua subsistência crescem apenas aritmeticamente, donde resulta uma luta pelos recursos mais escassos. Para Darwin, bem como para Alfred Russel Wallace, a luta humana pela sobrevivência constitui o modelo para todas as espécies: todos os organismos estão envolvidos numa feroz luta pela existência. Os dois primeiros capítulos da Origem das Espécies são dedicados às variações no estado domesticado e no estado selvagem, respectivamente. O primeiro capítulo ilustra a variedade de formas existente dentro das espécies e explica a origem destas raças pelo processo de selecção deliberada: «A chave está no poder do homem de realizar uma selecção cumulativa: a natureza provoca variações sucessivas; o homem acumula-as nas direcções que lhe são úteis». Os conceitos de variação e de selecção aparecem aqui intimamente ligados pela ideia de domesticação. O materialismo de Darwin revela-se plenamente na descoberta de uma analogia que lhe permite operar a passagem da domesticação para a natureza: em vez de postular uma força misteriosa, uma natureza personificada, Darwin deriva o princípio da selecção natural da luta pela sobrevivência decorrente da sobrepopulação num mundo de recursos limitados. Deste modo, ao propor uma força material directa, pela qual a natureza pode "seleccionar" entre as variações individuais para produzir tipos mais adaptados, Darwin introduziu um mecanismo de evolução que, além de contrastar com as explicações de Lamarck e Geoffroy Saint-Hilaire, compreende três fases: existem variações nos indivíduos de cada espécie, em morfologia, fisiologia e comportamento (princípio de variação); os descendentes parecem-se mais com os pais do que com os indivíduos não relacionados (princípio da hereditariedade); e variantes diferentes deixam diferente número de descendentes (princípio da selecção natural). Sensível ao aspecto materialista e ateu da teoria da evolução de Darwin, Engels - indecentemente criticado por Jacques Monod - resume bem a sua novidade revolucionária: «Na sua obra, que fez época, Darwin parte da base factual mais ampla que repousava na contingência. São precisamente as diferenças infinitas criadas pelo acaso entre os indivíduos no interior de cada espécie, diferenças que se acentuam até fazer rebentar o carácter da espécie e de que até mesmo as causas mais imediatas só podem ser demonstradas em casos muito raros, que obrigaram a reconsiderar o fundamento anterior de qualquer lei biológica: a noção de espécie na sua rigidez e na sua imutabilidade metafísicas de outrora. Mas sem a noção de espécie, toda esta ciência ruiria. Nenhum desses ramos poderia ignorar a noção de espécie como base: que seriam, sem ela, a anatomia humana e a anatomia comparada, a embriologia, a zoologia, a paleontologia, a botânica, etc.? Não só todos os seus resultados deveriam ser reexaminados como ainda pura e simplesmente suprimidos. A contingência deita pela borda fora a necessidade tal como esta foi concebida até aqui. A ideia de necessidade que se teve até agora faliu. Conservá-la significa ditar como lei à natureza a determinação humana arbitrária que entra em contradição consigo mesma e com a realidade; significa portanto negar toda a necessidade interna na natureza viva, proclamar de uma maneira universal o reino caótico do acaso como lei única da natureza viva». Dos três princípios estabelecidos por Darwin decorre mecanicamente todo o processo de evolução: Uma vez que os descendentes se parecem mais com os pais, se uma variante deixa mais descendentes que outra, registar-se-á uma mudança de composição da população na geração seguinte. Com o passar do tempo, a população ficará cada vez mais enriquecida da variante com maior taxa reprodutora e a espécie mudará progressivamente. A dinâmica deste processo provém da luta pela sobrevivência: a razão por que algumas variantes deixam mais descendência reside na sua melhor adaptação para obter recursos escassos e reinvestir estes recursos na reprodução. A maior eficiência de uma variante é a manifestação do seu grau mais elevado de perfeição na resolução dos problemas colocados pelo ambiente. O mecanismo proposto por Darwin vale tanto para a mudança como para a adaptação. A teoria da evolução de Darwin permaneceu incompleta, na medida em que ele nunca conseguiu explicar a natureza da variação natural nas populações sobre as quais actua a selecção natural. Embora o artigo de Gregor Mendel sobre a hereditariedade tenha sido escrito em 1865, a redescoberta das suas experiências só ocorreu em 1900. O darwinismo (teoria da transformação das espécies) e o mendelismo (teoria da hereditariedade) só foram reconciliados em 1918 por R. A. Fisher.  A teoria genética da evolução foi articulada nas décadas de vinte e trinta do século XX por S. Tshetverikov (1926), R. A. Fisher (1930), J. B. S. Haldane (1932) e Sewall Wright (1931). Em 1942, J. S. Huxley publicou a sua obra Evolution: The Modern Synthesis, que consagra a designação pela qual a nova teoria da evolução se tornou conhecida: teoria sintética da evolução, para a construção da qual também contribuíram G. L. Stebbins, G. G. Simpson, J. W. Valentine, T. Dobzhansky, Francisco J. Ayala e Ernst Mayr. A filosofia da teoria de evolução encontra-se bem elaborada nas obras de Theodosius Dobzhansky (1937, 1967, 1970, 1977) e de Ernst Mayr (1942, 1963, 1970, 1982, 1988). Infelizmente, não dispomos de nenhuma destas grandes obras do pensamento evolucionista em língua portuguesa. O mundo lusófono é profundamente imbecil.

Do ponto de vista epistemológico, podemos distinguir dois elementos na busca darwiniana de uma teoria causal da evolução: um elemento tecnomorfo e um elemento sociomorfo. Estes dois elementos estão intimamente relacionados entre si e as suas funções são complementares. Darwin começou por utilizar o comportamento do criador humano de novas raças como modelo explicativo do processo natural: o processo da transformação gradual das espécies é concebido como se uma inteligência, semelhante à do criador humano, dispusesse a selecção dos indivíduos com a finalidade de uma adaptação da espécie às condições existentes. A utilização deste modelo tecnomorfo forneceu a Darwin uma orientação para o princípio da selecção natural que vai muito mais além das experiências do criador humano, na medida em que os processos de transformação se desenrolam gradual e lentamente ao longo do tempo geológico, sendo por isso inacessíveis à observação humana directa. Para orientar a passagem do princípio selectivo do criador humano ao princípio selectivo objectivo na natureza, Darwin recorreu a uma concepção adicional. Numa carta dirigida a Engels, Marx identifica as semelhanças entre a selecção natural e a cena social inglesa: «É notável como Darwin reconhece, entre animais e plantas, a sua sociedade inglesa, com as suas divisões de trabalho, competição, abertura de novos mercados, "invenção" e a malthussiana "luta pela existência". É o bellum omnium contra omnes - "a guerra de todos contra todos" - de Hobbes». Mais tarde - na sua Dialéctica da Natureza - Engels retoma este elemento sociomorfo: «Toda a teoria darwinista da luta pela existência é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza viva, da teoria de Hobbes sobre a guerra de todos contra todos e da teoria económica burguesa da concorrência, assim como da teoria da população de Malthus. Uma vez realizada essa manobra forçada (cuja legitimidade absoluta, em especial no que respeita à doutrina de Malthus, é muito problemática), é muito fácil transferir de novo essas teorias da história da natureza para a da sociedade; e é ingenuidade demais pretender ter demonstrado assim que essas afirmações são leis naturais e eternas da sociedade». Na sociedade capitalista, os indivíduos competem e rivalizam uns com os outros para alcançar determinados objectivos ou recursos escassos: os vencedores são aqueles que superam os outros pelas suas qualidades favoráveis ou por se encontrarem numa situação mais favorável. Algo semelhante ocorre na natureza: os indivíduos de uma espécie procuram atingir o objectivo da conservação e da sobrevivência. Mas, devido à sobrepopulação e à escassez de recursos, estes últimos só são acessíveis a uma parte da população: a condição do sucesso é o grau da adaptação às condições externas. O darwinismo social surgiu quando as doutrinas de Malthus, combinadas com a teoria da selecção natural, foram aplicadas à sociedade capitalista do século XIX, servindo de base "científica" para o laissez faire. Segundo esta ideologia burguesa, os homens rivalizam entre si para interpretar o desenvolvimento dos grupos sociais em termos de luta pela existência, da selecção natural e da sobrevivência do mais apto. Os darwinistas sociais compreendem o conflito dos grupos sociais, naturais e raciais em termos estritamente biológicos, sendo a guerra e a competição os instrumentos primários da evolução social. Os grupos raciais ou económicos têm inevitavelmente interesses em conflito e, nessa luta, os mais fracos são eliminados pelos mais fortes ou sujeitam-se à minoria economicamente dominante. A teoria da selecção natural iniciou-se com a transferência de um conceito sociológico para o campo da biologia, para ressurgir depois no darwinismo social como aplicação das teorias biológicas à sociedade. Não admira que a livre concorrência nos negócios tenha sido considerada como uma forma de "selecção natural" que dá vantagem aos mais fortes sobre os mais fracos. Quanto mais intensa for a competição, mais rápido será o progresso: eis o credo do darwinismo social que renasce nos nossos dias sob a designação de neoliberalismo. John Maynard Smith reconhece que a teoria da evolução de Darwin foi influenciada pelo facto dele viver na era do capitalismo concorrencial, no decurso da qual algumas empresas aperfeiçoaram a técnica de produção para crescer em dimensão e opulência, enquanto outras entraram em falência. O liberalismo económico, com o seu princípio da livre concorrência, levou, como demonstraram Marx e Engels (1848) no Manifesto do Partido Comunista, onze anos antes da publicação da opus magnum de Darwin, a massa operária a um empobrecimento terrível. Terá sido Darwin indiferente a este empobrecimento terrível da classe operária? Num dos capítulos de The Descent of Man, Darwin (1871) afirma que, nos povos civilizados, «a selecção natural tem efeitos aparentemente escassos, embora os instintos sociais fundamentais sejam originariamente adquiridos por seu intermédio». Darwin nunca procurou aplicar de modo sistemático o princípio da selecção natural à sociedade humana, chegando mesmo a defender que devemos «assumir as consequências sem dúvida negativas da sobrevivência e da propagação dos fracos sem nos lamentar». Em 1880, Marx escreveu a Darwin para lhe pedir que revisse os capítulos XII (Divisão do Trabalho e Manufactura) e XIII (A Maquinaria e a Indústria Moderna) da edição inglesa de O Capital, que se baseavam na Origem das Espécies, a fim de ter a certeza de que o seu pensamento não tinha sido deformado. Darwin descartou-se dessa missão, alegando que as observações de Marx sobre os seus escritos não necessitavam de qualquer acordo da sua parte. É provável que Darwin nunca tenha lido o exemplar de O Capital que Marx lhe enviou, mas o principal prejudicado foi ele próprio que perdeu a oportunidade de aprender com Marx a melhor maneira de se defender contra o darwinismo social. É fácil descobrir vestígios desta ideologia na própria obra de Darwin, a qual é impensável sem o fundo histórico do capitalismo concorrencial. Sem este fundo social e histórico e sem a sua fortuna, a mente preparada de Darwin nunca teria elaborado a teoria da selecção natural. O facto dele ter evitado o diálogo produtivo com Marx explica, em parte, a deriva ideológica da sua teoria da evolução que fez dela a apologia do status quo. No entanto, a origem social de uma ideia não deve ser confundida com a sua verdade ou a sua produtividade: Darwin examinou as diferenças reais e materiais entre os organismos vivos e substituiu as entidades ideais - as espécies da antiga ordem estática do mundo - por entidades reais - os indivíduos e as populações - enquanto objectos convenientes de estudo, de modo a resolver a contradição entre a mudança e a fixação dos tipos ideais própria do idealismo platónico-aristotélico. A intuição revolucionária de Darwin foi a transformação operada pela selecção natural das diferenças entre indivíduos de uma espécie nas diferenças entre espécies no espaço e no tempo.

O marxismo soviético desvirtuou e adulterou toda a filosofia de Marx. Assumo, pelo menos provisoriamente, a crítica que Marcuse dirigiu contra a marxismo soviético, bem como a sua teoria da base biológica do "socialismo", para me distanciar da divisão canonizada entre o materialismo histórico - a ciência da história fundada por Marx - e o materialismo dialéctico - a filosofia dialéctica de Marx, mas vou mais longe: aquilo que me interessa na obra de Marx é o seu programa de investigação científica que nunca foi refutado, no sentido de ter sido substituído por uma teoria melhor. Será a sociobiologia o programa de investigação que pretende substituir o programa marxista? Com esta questão introduzo aqui um deslocamento que me permite pensar as relações entre a antropologia darwiniana e a antropologia marxista. A obra marxista que deve ser relida é, para espanto de muitos, a Dialéctica da Natureza de Engels, precisamente a obra utilizada pelos marxistas soviéticos para ossificar a filosofia de Marx. Trata-se de uma obra que não chegou a ser concluída: os conhecimentos científicos em que se baseia estão hoje ultrapassados, mas a sua «intenção» - ou melhor, o seu programa de investigação - é ainda muito actual. A peça fundamental desta obra é o fragmento O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem (1876?), onde Engels expõe o seu modelo de antropogénese, que reconhece a acção da alimentação carnívora - bem como da linguagem - sobre o desenvolvimento do cérebro: «o homem só se tornou homem com a alimentação carnívora». Mas o que encanta neste fragmento é a recusa da ideia de que o homem reina sobre a natureza: «nós e a natureza formamos um todo». Engels ridiculariza a ideia absurda e contra-natura de uma «oposição entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, ideia divulgada na Europa a seguir ao declínio da antiguidade clássica e que conheceu com o cristianismo o seu desenvolvimento mais elaborado». Stephen J. Gould lamentou o facto desta «brilhante exposição dos factos» não ter tido «impacto visível na ciência ocidental», mas todas as teorias da hominização posteriores acabaram por render tributo ao modelo proposto por Engels, dando-lhe o suporte empírico que não podia ter no século XIX. A omissão do nome de Engels em muitos tratados sobre a evolução humana só pode ser justificada por má-fé dos seus autores. Nenhum marxista soube articular a programa de investigação de Engels sobre a hominização com as indicações metodológicas dadas por Marx nos Manuscritos de 1844, de modo a elaborar uma antropologia marxista coerente: «As ciências naturais desenvolveram uma tremenda actividade e reuniram uma massa sempre crescente de dados. Mas a filosofia permaneceu-lhes estranha, da mesma maneira que as referidas ciências continuaram estranhas à filosofia. A sua aproximação momentânea não passou de uma ilusão fantástica. Nasceu o desejo de união, mas faltou o poder para a levar a cabo. (...) A indústria é a relação histórica real da natureza e, por consequência, da ciência natural, ao homem; se ela se conceber como a manifestação exotérica das faculdades humanas essenciais, poderá igualmente compreender-se a essência humana da natureza ou a essência natural do homem; a ciência natural abandonará então a sua orientação abstracta materialista, ou antes, idealista, e tornar-se-á a base da ciência humana, tal como ela já agora - se bem que de forma alienada - se tornou a base da vida humana real. Uma base para a vida e outra para a ciência constituem a priori uma mentira. A natureza, tal como se desenvolve na história humana - no acto de génese da sociedade humana - é a natureza real do homem; por conseguinte, a natureza, tal como se desenvolve na indústria, embora também em forma alienada, constitui a verdadeira natureza antropológica». A ideia nuclear da ciência natural como base da ciência humana conduz a um programa naturalista de investigação: «O homem é directamente um ser da natureza - dotado de poderes e faculdades naturais, que nele existem como tendências e capacidades, como pulsões». Não se trata aqui de retomar a equação "naturalismo = humanismo" do jovem Marx, mas de mostrar que a sua noção de homem como ser da natureza permite estabelecer um diálogo produtivo com a teoria da evolução. É certo que Darwin recusou dialogar seriamente com Marx, mas também é certo que Marx não se esforçou muito em compreender a teoria da selecção natural de Darwin. Seria um erro afirmar que a corrente passou no sentido Darwin-Marx, na medida em que a teoria da luta de classes já estava formulada muito antes de Marx ter lido a Origem das Espécies de Darwin. Marx rejeitou em bloco a teoria da população de Malthus e criticou Darwin por não ter levado em conta o trabalho. Compreende-se a aversão ideológica e política de Marx por Malthus, mas não se compreende que ela o tenha levado a abdicar da demografia para formular a sua teoria da reprodução. Clivagens ideológicas profundas entre Darwin, liberal e individualista de nascença, e Marx, socialista e igualitário de coração, prolongaram o hiato entre ciências da natureza e ciências humanas, hiato esse que ambos desejavam preencher. Chegou a hora de tentarmos restituir ao materialismo histórico a sua base na ciência natural. A minha hipótese de trabalho é a de que só conseguiremos levar a cabo esta tarefa teórica reformulando o conceito de natureza humana. As contradições que parecem existir entre os homens do século XIX que descobriram as leis do mundo orgânico e do mundo histórico, respectivamente Darwin e Marx, podem ser superadas, da mesma maneira que as contradições entre a teoria da selecção natural de Darwin e a teoria da hereditariedade de Mendel foram superadas pela teoria sintética da evolução. A realização de uma tal fusão colocaria desde logo a nova antropologia para além de Marx e de Darwin. No fundo, do que precisamos mesmo é de pensamento novo.

Adenda. Estou a detectar falhas nas teorias existentes, o que vai perturbar o desenvolvimento da minha hipótese de trabalho. A tese fundamental que tenho defendido é a seguinte: Apesar de Marx ter contribuído significativamente para a reforma do paradigma da natureza humana, o marxismo - em si mesmo - é insuficiente para elaborar uma antropologia filosófica, sobretudo quando fica privado da ideologia comunista que o moldou. O discurso que sobrepõe a segunda natureza do homem à sua primeira natureza deve ser abandonado: a partir do momento em que Marx e Engels viram no darwinismo a base natural da ciência humana, inserindo a própria História na história da natureza, eles ficaram tributários da antropologia darwinista, cujo paradigma da natureza humana é claramente biológico. O conceito de natureza humana é biológico: o conjunto de regras epigenéticas que define a natureza humana é refractário à utopia social de Marx. (De um modo geral, as utopias exigem a transformação do homem para poderem ser realizadas. Mas como o homem não é tão maleável como se pensa, as utopias acabam por abrir as portas a alguma biotecnologia totalitária. A história segue sempre o lado mau do caminho: ao tentar realizar um projecto utópico, o homem está a contribuir para a sua autodestruição, porque a utopia social é utopia técnica. A herança mamífera e primata do homem não permite depositar muita confiança neste mamífero dominante: a história está aí para o demonstrar. E, paradoxalmente, quanto mais nos afastamos das origens, mais distantes estamos de um estado de paz: a racionalidade é uma aliada do impulso agressivo. A história é catástrofe. Há um traço que é especificamente humano: a propensão para a loucura.) O resgate da filosofia de Marx exige o abandono desse projecto político que bloqueou o seu próprio desenvolvimento teórico, levando-o a desvirtuar a sua teoria da história, subjugada por um princípio que lhe é estranho: a política deve ser definida, em grande medida, em função da natureza biológica humana. Os ideólogos da sociologia ficam chocados com o determinismo biológico, mas sentem um enorme prazer em opor-lhe o determinismo sociológico, como se a tarefa da mudança social qualitativa fosse travada por um tal determinismo ideológico. Infelizmente, o determinismo sociológico é uma mera mistificação ideológica que não tem qualquer peso na definição de uma política de mudança: a força que deve ser levada em conta reside nos programas sociais da natureza humana. A sociedade não é algo estranho ao genoma humano. Não há sociedade humana sem genomas e os genomas funcionam como forças estabilizadoras: a variação resulta sempre de erros. Estou cada vez mais convencido de que não vale a pena estudar as ciências sociais e humanas, porque a sua integração na nova síntese as tornou obsoletas: ciências naturais, matemática, filosofia e história são suficientes. Não poderia concluir esta adenda sem deixar de referir a necessidade urgente de Ler a Origem das Espécies, de modo a ir ao encontro da Teoria Sintética da Evolução.

J Francisco Saraiva de Sousa