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sábado, 2 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (3)

 Mala Moçambicana
Eis mais algumas ideias sobre Filosofia Médica:

1. O nazismo forçou o exílio de muitos intelectuais alemães. Adorno que nunca foi feliz no seu exílio americano falou da sua "vida danificada". Ora, nascer português é nascer para a vida danificada. Esta é uma verdade terrível que devia ser discutida publicamente pelos portugueses. A maldade humana manifesta-se em diversos momentos da história. Mas não é permanente como a maldade portuguesa.

2. Deleuze dedicou um livro à explicitação da filosofia de Foucault sem no entanto ter alcançado esse objectivo. Desconheço a existência de uma análise da "Arqueologia do Saber" de Foucault, obra onde ele se debate com o estruturalismo. Além disso, a relação de Foucault com o marxismo ainda não foi explicitada, embora as entrevistas forneçam muitas indicações a esse respeito. Eu comecei a ler Foucault durante a minha adolescência: a articulação entre relação de produção (Marx) e relação de poder sem teoria política (Nietzsche) nunca me seduziu: o aparelho de Estado ocupou sempre um lugar de destaque no meu pensamento. Estou convencido de que podemos analisar o Hospital, a Prisão, o Exército, etc., a partir da teoria do poder de Marx sem rejeitar o contributo de Foucault.

3. Hospital Psiquiátrico: Foucault e Goffmann aliaram-se à Anti-Psiquiatria para demolir esta instituição de saúde. Devo reconhecer que sempre estive associado a essa tendência num terreno estritamente científico: a defesa de uma Psiquiatria Biológica. No entanto, não sou favorável ao fechamento dos Hospitais Psiquiátricos. A crítica de Goffmann do Hospital Psiquiátrico como instituição total é justa: aprecio tudo o que disse sobre os territórios do eu e sobre os processos de mortificação do eu. Estes fenómenos ocorrem em qualquer tipo de internamento. Precisamos de uma Filosofia da Hospitalização.

4. Infelizmente, ainda não temos uma História da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a vanguarda da medicina e da psiquiatria portuguesas. As obras fundadoras da Psiquiatria Portuense não estão disponíveis no mercado do livro. Barahona Fernandes tentou suprir essa lacuna dos estudos médicos portugueses escrevendo "A Psiquiatria em Portugal" como complemento de "Um Século de Psiquiatria" de P. Pichot. Porém, a obra é francamente medíocre. Barahona Fernandes limita-se a condenar a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault. 

5. Os médicos portuenses dão nome a diversas instituições de saúde espalhadas pelo país. Destaco três nomes: Júlio de Matos, Miguel Bombarda e Magalhães de Lemos, para já não falar de Ricardo Jorge. Júlio de Matos escreveu duas obras fundamentais: "Os Alienados nos Tribunais" e "A Loucura", nas quais se afirma como alienista-filósofo. Magalhães Lemos defendeu a face neurológica da psiquiatria. António Maria de Sena legou-nos uma obra profunda: "Os Alienados em Portugal". Enfim, uma série de obras que ainda não foram estudadas. De certo modo, a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault percorre cada uma delas. O cerne da anti-psiquiatria é a luta  com, dentro e contra a instituição psiquiátrica: o questionamento do poder na prática anti-psiquiátrica leva à desmedicalização da loucura

6. António Mendes Correia é outro ilustre portuense que nos legou um conjunto de obras em diversas áreas científicas, da biologia à história, passando pela antropologia e pela criminologia: O Génio e o Talento na Patologia (1911), Criminosos Portugueses (1913), Crianças Delinquentes (1915), Antropologia (1915), Raça e Nacionalidade (1919), Homo (1921), Os Povos Primitivos da História (1924), A Antropologia nas suas relações com a Arte (1925), A Nova Antropologia Criminal (1931), Origens da Cidade do Porto (1932), Da Biologia à História (1934), Da Raça e do Espírito (1940), Uma Jornada Científica na Guiné Portuguesa (1946) e Antropologia e História (1954). A malvadez dos portugueses condena ao esquecimento as obras dos ilustres portuenses.

7. Interrompi o meu estudo sobre a evolução da psiquiatria portuguesa para estudar a situação da psiquiatria nos países asiáticos, tais como China, Coreia, Tailândia, Japão e Índia. Fiquei encantado com a abordagem cultural da psiquiatria asiática. Entretanto, tenho espreitado a psiquiatria forense americana, em especial o homicídio sexual em série porque ela me permite reintroduzir a noção de maldade, de modo a pensar a natureza perversa dos portugueses.

8. O aumento do número de assassinos em série nos USA levou alguns teóricos a reintroduzir a noção de maldade dentro da esfera da psiquiatria. As noções de mal e de pecado transitam da esfera religiosa para a esfera da psiquiatria e da filosofia, dando-nos uma plataforma conceptual de pensamento sobre a experiência humana universal de crueldade e dor (Cf. Andrew Delblanco, 1995). Doravante, a maldade ocupa um lugar privilegiado nos vocabulários profissionais da psiquiatria e da filosofia: as pessoas que cometem actos de crueldade devem ser consideradas responsáveis pelos seus actos, mesmo que uma doença mental possa estar presente.

9. Cesare Lombroso (1836-1909) acreditava que havia uma forte correlação entre certas configurações faciais e várias tendências criminais: o self exterior compartilhava assim da mesma "degeneração" manifestada pelo self interior do insano (Morel). De Cardano e Della Porta a Lombroso, passando por Gall, predominava o interesse pela fisionomia, no caso dos italianos, e pelo formato do crânio, no caso de Gall. Ora, em Portugal, a obra de António Mendes Correia situa-se nessa linhagem teórica da criminalidade: o ilustre portuense elaborou uma nova antropologia criminal - e do génio, tal como Lombroso, que urge analisar nesse contexto cultural.

10. A síndrome japonesa de ka-roh-shi - cujo significado literal é "morte por excesso de trabalho" - tem preocupado os psiquiatras japoneses. À carga de trabalho imposta pelas empresas japonesas aos executivos médios, eles acrescentam as pressões parentais. Com efeito, a elevada expectativa parental por desempenho académico está na base da criação de um sistema de escolas extremamente exigentes, onde os alunos continuam debruçados sobre os seus livros após o termo do seu já longo dia escolar. No Japão, as crianças estudam e fazem tudo para obter boas classificações escolares. Ora, as pressões familiares e sociais levam aqueles que não conseguem alcançar as notas exigidas à depressão ou mesmo à delinquência. A taxa de suicídio é alta no Japão. Em Portugal, as escolas já não funcionam: a paixão pela ignorância converteu as escolas portuguesas em recreios de engate.

11. O meu interesse pelas neurociências espirituais abriu a minha mente ao estudo de Tomio Hirai (1989) sobre uma forma de meditação Zen - Zazen - em relação ao tratamento psiquiátrico. O Zazen - a meditação sentada - está relacionado com os ensinamentos budistas e o estado de tranquilidade que proporciona é chamado satori (iluminação) que significa mente livre de ilusões. À medida que a meditação prossegue, a frequência de ondas alfa diminui gradualmente e aparecem as ondas teta rítmicas, alterações que correspondem àquelas que ocorrem durante o sono e estados de transe hipnótico. A filosofia da meditação Zen é mais interessante que a filosofia da psicanálise.

12. A disfunção psicossexual é frequente na China. Nos homens, a disfunção psicossexual pode tomar a forma de suoyang que significa "encolhimento do pénis". Na cultura popular, esta condição representa a perda da força yang (masculina) como resultado de actividades sexuais excessivas ou de possessão por espíritos maus (Wen, 1995). Além disso, a masturbação excessiva pode exaurir o yang do indivíduo, levando à condição mórbida conhecida como shenkui, equivalente ao nosso antigo conceito de neurastenia. O significado original de shenkui é deficiência renal, reflectindo a crença popular de que o rim armazena o sémen. A neurastenia cerebral - nao-shenjing shuai-ruo - está relacionada com esta neurastenia sexual, sendo ocasionada por excesso de estudos: tontura, falta de concentração e de memória e insónia são os seus sinais.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Dossier Filosofia Médica (1)

Uma mala moçambicana
«Procura-se a medicina, em geral, ignorando-se totalmente as teorias médicas, mas não sem ideias preconcebidas sobre os conceitos médicos». (G. Canguilhem).

Hoje partilho algumas ideias do Dossier Filosofia Médica:

1. A relação médico-doente deve ser revisitada pela filosofia médica: Um doente inteligente é aquele que sabe desafiar o médico, quebrando o ritual médico. O doente que se entrega à sabedoria médica sem a desafiar é tratado como uma coisa: a responsabilidade da reificação médica deve ser atribuída ao doente ignorante e passivo.

2. Hoje, ao contactar com alguns exemplares da população idosa masculina, conclui que há dois tipos de idosos masculinos: um simpático embora burrinho e outro detestável. Ainda não temos uma teoria das masculinidades portuguesas. O meu palpite é simples: Há um défice de masculinidade em Portugal.

3. O que é a imbecilidade? É julgar que todos os "sinais do mundo" se dirigem a si próprio. Ora, o mundo não gira em torno de ninguém: o imbecil que se coloca no centro do mundo atribui uma carga mágica àquilo que interpreta como "sinais do mundo" dirigidos à sua própria pessoa. O mundo da imbecilidade merece estudo.

4. Com o advento das neurociências, a psicologia tornou-se uma ciência sem objecto, e, como não há ciência sem objecto - isto é, ciência que tenha o nada como objecto, a psicologia desaparece do universo das ciências. A abertura do Dossier Filosofia Médica visa precisamente desalojar a psicologia médica que não pode resolver os problemas que herda da filosofia: o problema do normal e do patológico não é um problema científico mas sim um problema filosófico. A noção de homem total é filosófica e não psicológica. Desconstruir as ilusões de sabedoria da psicologia médica - produzida por psiquiatras - é desde logo lançar as bases de uma nova filosofia médica.

5. Os manuais de psicologia médica que reflectem a ambição-orientadora da psiquiatria no seio da medicina tratam invariavelmente de três tópicos: o doente e sua doença, o médico e sua medicina e a relação médico-paciente. A função apostólica atribuída-imputada por M. Balint aos médicos deve ser repensada, de modo a evitar as ratoeiras da linguagem psiquiátrica: a conversão médica do doente pode ser uma ilusão.

6. Numa aula, quando procurei articular a medicina psicológica e a medicina social com a medicina biológica, um aluno disse-me que estava a privilegiar o modelo médico. De certo modo, tinha razão porque uma reconfiguração destes três modelos que dê prioridade à medicina biológica implica o poder dos médicos. Porém, esse poder tem os seus limites: Sou contra a medicalização da vida.

7. Os psiquiatras que escrevem manuais de psicologia médica adoram apresentar uma série de casos que geram dificuldades na medicina biológica, de modo a justificar a sua intervenção psicológica. E, mais recentemente, usam o argumento dos custos desses casos para o serviço nacional de saúde. Ora, sem negar a existência desse tipo de doentes, podemos devolver aos psiquiatras a função apostólica que eles atribuem aos médicos: a sua presença é onerosa.

8. Repare-se que não estou a excluir a psiquiatria da medicina: o que estou a dizer é que os discursos psiquiátricos reforçam a medicalização da vida. Ora, uma das tarefas da filosofia médica é desmedicalizar a vida, dando uma certa autonomia ao doente. Aliás, são as indústrias farmacêuticas que estão interessadas na medicalização da vida, fazendo das pessoas eternos doentes.

9. Agora vou directo ao que interessa: A Esquerda não sabe defender o Serviço Nacional de Saúde. Em Portugal, o Estado financia a medicina privada através da ADSE. Ora, a Esquerda já devia ter abolido esse privilégio se fosse defensora do SNS. Todos conhecemos casos em que os beneficiários da ADSE dizem ser "ricos" porque recorrem à medicina privada. Tantas ilusões, tantas manias de grandeza!

10. Ao meditar as temáticas da Filosofia Médica, topei com a morte vodu, morte mágica ou morte por feitiço. Curiosamente, ainda não sabemos explicar a morte mágica a não ser mediante o recurso aos aspectos culturais do stress. Outra noção curiosa é a de que a inveja pode matar pelo olhar: o Mau-Olhado causa diversos tipos de problemas de saúde. Seria interessante fazer uma geografia cultural do mau-olhado: Portugal - país de invejosos - encabeça a geografia do mau-olhado.

11. Eis como a antropologia médica caracteriza a perspectiva do médico sobre a doença: racionalidade científica (1), ênfase sobre a mensuração objectiva e numérica (2), ênfase em dados bioquímicos (3), dualismo mente-corpo (4), visão das doenças como entidades (5) e ênfase sobre o paciente individual, não na família ou na comunidade (6). Há a tendência para criticar a mudança do método subjectivo de diagnóstico - os sintomas subjectivos do paciente, a interpretação subjectiva dos sinais físicos por parte do clínico - para o método objectivo que utiliza a tecnologia de diagnóstico para a colecta e a mensuração de dados clínicos. Ora, esta caracterização é simplista: a filosofia médica deve esclarecer a problemática da biomedicina.

12. A relativização do modelo médico é perigosa: a temática das metáforas das doenças associa-se, na imaginação das pessoas, a crenças tradicionais sobre a natureza moral e religiosa da saúde, da doença e do sofrimento humano, prejudicando a explicação e o controle das próprias doenças. Vê-se aqui a necessidade de elaborar uma filosofia para a biomedicina capaz de romper com as "doenças populares". Colocar a biomedicina ao lado das curas espirituais e da homeopatia é um disparate.

13. É muito complicado elaborar uma Filosofia da Doença. A normalidade é definida através da referência a determinados parâmetros físicos e bioquímicos. Para cada medida existe uma faixa numérica - um valor normal - na qual o indivíduo é considerado saudável. Valores superiores ou inferiores a esta faixa são anormais e indicam a presença de doença - entendida como desvio da normalidade. Assim, por exemplo, um valor inferior ao normal para a hormona da tiróide no sangue indica hipotiroidismo; um valor superior indica hipertiroidismo; e, se o valor for intermédio, indica que a tiróide esta a funcionar normalmente. Esta noção de doença como desvio da normalidade deve ser trabalhada.

14. Em Moçambique, discute-se muito o regresso dos curandeiros e dos feiticeiros. Porém, a sua explicação é simples: Quando o Estado não constrói uma rede hospitalar para fazer face aos problemas de saúde, a população que adoece recorre às "medicinas alternativas". As crenças tradicionais combatem-se através da educação e, sobretudo, de um serviço nacional de saúde.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Lénine: Da Política à Filosofia

V.I. Lénine
«A Física contemporânea está em trabalho de parto. Dá à luz o materialismo dialéctico. Parto doloroso. O ser vivo e viável é inevitavelmente acompanhado por alguns produtos mortos, restos destinados a ser evacuados com as impurezas. Todo o idealismo físico, toda a filosofia empiriocriticista, com o empírio-simbolismo, o empiriomonismo, etc., estão entre estes restos». (Lénine, 1909)

Lénine, o líder da grande Revolução de Outubro de 1917, é, para mim, o maior estadista do século XX. Sem o conhecimento da sua obra política e científica, nos domínios da economia política e da sociologia, não podemos compreender as suas intervenções filosóficas. Lénine dedicou duas grandes obras à Filosofia: Materialismo e Empiriocriticismo (1909) e Cadernos sobre a Dialéctica. A primeira destas duas obras não foi bem acolhida pela comunidade filosófica, bastando nomear Jean-Paul Sartre, Paul Ricoeur e Maurice Merleau-Ponty para evidenciar a recusa do materialismo. Sob o impacto desta crítica, nunca cheguei a ler Materialismo e Empiriocriticismo durante o meu período de formação científica e filosófica, embora conhecesse o conteúdo da obra através dos estudos que Althusser, Lukács e Lefebvre lhe dedicaram. Só muito recentemente comecei a ler a obra filosófica de Lénine. A obra compreende, para além dos dois prefácios e da Introdução, seis capítulos, seguidos de uma conclusão. Os três primeiros capítulos - A Teoria do Conhecimento do Empiriocriticismo e do Materialismo Dialéctico I, II e III - esboçam a célebre teoria leninista do conhecimento por oposição à epistemologia elaborada por Mach e Avenaritus. Convém lembrar que a filosofia empiriocriticista de Mach influenciou fortemente o pensamento de Einstein e de Heisenberg, pelo menos no início das suas carreiras científicas. A teoria leninista do conhecimento foi rejeitada pelos filósofos do chamado mundo livre e permaneceu incompreendida pelos filósofos do marxismo soviético. Os dois capítulos seguintes - Os Filósofos Idealistas, Irmãos de Armas e Sucessores do Empiriocriticismo (IV) e A Revolução Moderna nas Ciências da Natureza e o Idealismo Filosófico (V) - ocupam um lugar de destaque na economia da obra, sobretudo o capítulo V que trata da revolução científica que levou à emergência da mecânica quântica. Lénine rejeita a tese de Poincaré segundo a qual a crise da física clássica era a Crise da Ciência. Para Lénine, a física não estava em crise, mas em pleno processo de crescimento. Quando intervém no domínio da ciência, Lenine toma desde logo partido por uma das tendências fundamentais da filosofia: o materialismo que ele liga organicamente à prática científica. Deste modo, muito antes de estalar a polémica em torno da interpretação da mecânica quântica, Lénine já tinha tomado partido: optou pela interpretação materialista, afirmando a existência do seu objecto de estudo (tese de existência) e a objectividade do seu conhecimento (tese de objectividade). (A Filosofia Materialista intervém no domínio das ciências, traçando linhas de demarcação entre o científico que instaura e o ideológico que as ameaça. Embora critique o materialismo metafísico, Lénine desloca o foco da intervenção filosófica: em vez da clássica distinção entre metafísica e ciência, temos agora a distinção entre ideologia e ciência, a única que é adequada à teoria do materialismo histórico.) O último capítulo - O Empiriocriticismo e o Materialismo Histórico (VI) - é fundamental para compreender o que faltava a Engels e que Lénine acrescentou para esboçar uma filosofia marxista: a ligação da Filosofia à Política que Lénine define neste conceito brutal: a tomada de partido em filosofia. Porém, para compreender este conceito, convém lembrar que nos três primeiros capítulos Lénine distinguiu a Filosofia da Ciência, sobretudo quando analisa a categoria de matéria: a categoria filosófica de matéria é distinta do conceito científico de matéria, cujo conteúdo muda consoante o desenvolvimento do conhecimento científico. O carácter inalterável da categoria filosófica de matéria permite a Lénine «reduzir» a Filosofia a um campo de batalha, onde se confrontam «eternamente» duas tendências: o idealismo e o materialismo. Destas tendências o materialismo é a única que está profundamente ligada à prática científica. Ora, se a filosofia se vincula à ciência pela tese materialista da objectividade, a sua vinculação à política exige a intervenção de um conceito fundamental elaborado por Marx: o conceito de ideologia que Engels negligenciou. É certo que Lénine não clarifica este conceito, mas sempre que critica a negação filosófica do domínio da filosofia pela política usa-o para definir a nova prática filosófica do marxismo, em defesa do crescimento científico constantemente ameaçado pela ideologia. Curiosamente, a teoria crítica da Escola de Frankfurt nunca destacou o contributo de Lénine para a elaboração de uma filosofia marxista, embora a crítica ideológica que protagoniza já esteja em acção na obra teórica de Lénine. (Há aqui uma diferença fundamental: o optimismo científico e tecnológico de Lénine contrasta fortemente com o pessimismo dos críticos da racionalidade instrumental, Horkheimer e Adorno, um dos quais - Marcuse - procurou pensar uma nova ciência liberta da dominação. O carácter instrumental da ciência merece ser pensado, até porque a filosofia não pode ser pensada fora da sua vinculação com as ciências. Ao colocar o Ocidente no centro da reflexão filosófica, procuro evitar a aporia, com a ajuda de um conceito de história dialecticamente aberto sem garantia transcendental.) O conceito de dominação ocupa um lugar central no materialismo histórico, a ciência da História fundada por Marx. Estou convencido de que é possível resgatar Lénine de modo a fazer uma leitura leninista do marxismo soviético. Colocar Lénine contra os desvios grosseiros do marxismo soviético permite reformular um novo projecto político para o marxismo, um projecto ligado à noção grega de Cidade-Estado, cuja orientação democrática não era alheia ao socialismo. (A globalização helenística foi no passado fatal para a Cidade-Estado, tal como hoje a globalização é fatal para o Ocidente: os políticos ocidentais esqueceram a Guerra do Ópio.) Porém, um tal projecto político é profundamente ocidental: o marxismo é a única filosofia capaz de iluminar um Novo Ocidente, aquele que esteve sempre presente desde a sua origem grega. Os jovens que protestam nas ruas de diversas cidades mundiais devem ler Lénine, cuja crítica do espontaneísmo encontrou eco nas suas teses teóricas anti-empirista, anti-positivista e anti-pragmatista: «sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário» (Lénine).

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

É possível (re)começar a dialéctica marxista?

Porto: Ribeira
A Queda do Muro de Berlim gerou um retrocesso civilizacional. Os ideólogos neoliberais entoaram cânticos de triunfo: o marxismo podia ser finalmente enterrado. Porém, a crise de 2008 converteu o triunfo em derrota do neoliberalismo. O marxismo volta a estar na ordem do dia num mundo em que o Ocidente já não está sozinho. A globalização promovida pelo neoliberalismo virou-se contra ele e, o que é mais preocupante, contra o Ocidente. O neoliberalismo ameaça os próprios fundamentos da civilização ocidental: a sua expansão implica um retrocesso intolerável da cultura. A natureza e a cultura revoltam-se contra o capitalismo em todos os cantos do mundo, o qual gera os seus próprios coveiros à medida que se globaliza, como o demonstra o ódio que o mundo global nutre pelos Estados Unidos. Marx tinha razão quando previa que o capitalismo só entraria em colapso depois de se ter globalizado; no entanto, a globalização do capitalismo tem gerado contradições sociais não previstas pela teoria marxista. A dialéctica é obrigada a globalizar-se e, ao se globalizar, defronta-se com uma realidade-outra que lhe é estranha: o conceito filosófico de história da humanidade deve ser completamente revisto ou mesmo abandonado. A globalização do capitalismo já não é a globalização do domínio ocidental.

Surgiram diversos modelos dialécticos sem que nenhum deles tenha sido sistematizado de forma formal-abstracta. Geralmente, alega-se que a dialéctica está inscrita na própria realidade sem a qual não pode ser exposta. Sem conteúdos não há dialéctica. O marxismo ocidental produziu algumas figuras dialécticas notáveis. Georg Lukács praticou a dialéctica da auto-consciência histórica ou dialéctica sujeito-objecto; António Gramsci destacou as contradições teoria-praxis; Herbert Marcuse exerceu a dialéctica essência-existência e Colletti a dialéctica aparência-realidade. Todas estas figuras dialécticas derivam de Hegel. Walter Benjamin viu na dialéctica a descontinuidade e o aspecto catastrófico da História. Ernst Bloch concebeu a dialéctica como fantasia objectiva. Para Sartre, a dialéctica está enraizada na inteligibilidade da actividade ou praxis totalizante do próprio indivíduo. Em Henri Lefèbvre, a dialéctica aponta para o objectivo da humanidade desalienada. A dialéctica de Della Volpe consiste num pensamento não-rígido, não-hipostasiado, enquanto a dialéctica de Althusser representa a complexidade, a pré-formação ou a sobredeterminação das totalidades. As dialécticas de Della Volpe e de Althusser são claramente anti-hegelianas, sendo a de Althusser marcada pelas distinções de Mao Tsé-Tung e pelo desenvolvimento desigual de Lenine. Theodor W. Adorno destaca a crítica imanente e o pensamento de não-identidade: a sua dialéctica negativa ainda não foi bem-compreendida. Às figuras dialécticas do marxismo ocidental devemos acrescentar as figuras dialécticas elaboradas pelo marxismo soviético ou mesmo por outros dirigentes comunistas, tais como Mao Tsé-Tung e Che Guevara. A dialéctica de Lenine é extremamente complexa e, pela sua abertura a Hegel, merece um estudo mais detalhado. Cada uma destas figuras dialécticas tentou articular a dialéctica e o materialismo. Alguns autores pensam que essa articulação é impossível: o materialismo dialéctico é, para eles, impensável. É estranho como consideram ser impossível aquilo que foi realizado por todas estas figuras dialécticas. Tanto a dialéctica essência-aparência de Marcuse como a dialéctica negativa de Adorno realizaram essa articulação entre materialismo e dialéctica. Infelizmente, as obras destes filósofos deixaram de estar disponíveis em boas traduções. Hoje as livrarias estão repletas de merda: qualquer tolinho político escreve o seu livro e as manadas tendem a comprá-lo, não para o ler mas só por comprar. O ofuscamento está de tal modo generalizado que já não tenho vontade de partilhar nada com ninguém. Só o pensamento da aniquilação total da sociedade estabelecida conforta o meu espírito. A dialéctica é aniquilação: lá onde morre um homem ou centenas de milhares de homens há dialéctica. 

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Criação versus Evolução

PORTO: Sunset
Meus amigos pró-criacionistas:

A teoria da evolução não precisa de refutar a teoria da criação porque esta última é um tremendo absurdo. (Deus não explica nada porque - ele próprio - exige uma explicação!) Se o homem foi criado por Deus, à sua imagem e semelhança, então somos forçados a questionar a natureza desse "deus" que criou malvados idiotas. Quando olhamos para o mundo e para a história, aquilo que vemos não abona a favor da bondade da criação divina. O vosso "deus" é um monstro. Sempre achei que os homens de fé mais não são do que adoradores do Diabo! E não adianta recorrer aos "dados" da neurociência espiritual: eles não abondam a favor de nenhuma crença religiosa, até porque as neuro-imagens revelam a materialidade opaca da chamada "felicidade" dos homens-tubo-digestivo. Além disso, o programa de pesquisa subjacente é materialista e redutor: o que é feito do vosso espírito?

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 21 de julho de 2012

Filosofia e Matemática

«O medo da matemática é aquele pavor patológico e a humilhação confusa que a matemática provoca em centenas de milhões de pessoas, reacção que tem sido uma constante ao longo da história. Mas, enquanto a doença praticamente não mudou, as consequências para as suas vítimas, essas sim, mudaram dramaticamente. O medo da matemática, tal como a senilidade, é, na verdade, não um, mas o conjunto de vários males, cada um dos quais proveniente de determinada ideia errada acerca da matemática». (Michael Guillen)

O programa de Descartes pode ser resumido numa única expressão: matematização do mundo. O pai da filosofia moderna foi um matemático. Descartes criou a geometria analítica que consiste em reduzir qualquer problema de geometria ao correspondente problema algébrico, o qual é resolvido de forma simples e automática. No entanto, a geometria analítica, tal como é hoje ensinada, não se reconhece inteiramente na obra de Descartes, na qual descobrimos não tanto a geometria das coordenadas mas sobretudo a algebrização das construções de régua e compasso. O Discurso do Método de Descartes não é o livro que lemos habitualmente; ele continha três tratados científicos de grande interesse: a Dióptrica, um tratado de óptica que compreende uma teoria da refracção da luz que, pela primeira vez, dava a sua lei - a lei do seno - e um estudo dos novos instrumentos (telescópio, óculo de alcance); os Meteoros, um estudo dos fenómenos celestes, em especial dos fenómenos atmosféricos (nuvens, chuva, granizo, arco-íris e parélios); e a Geometria, um tratado de álgebra que revolucionou a concepção da matemática ao estabelecer uma ligação entre o domínio do espaço - quantidade contínua - e o domínio do número - quantidade discreta. A Geometria de Descartes contém uma teoria geral das equações com uma notação nova e, entre outras coisas, uma solução elegante, por métodos algébricos, do célebre problema geométrico de Pappus (Cf. Carl B. Boyer). O Discurso do Método mais não era do que o Prefácio destes três tratados científicos que a história da filosofia esqueceu. Ler o Discurso do Método sem ler a seguir os três tratados científicos equivale a não compreender a própria filosofia cartesiana. Descartes dedicava-se à ciência durante todos os dias da semana, reservando o Domingo para a especulação metafísica. No entanto, a metafísica é anterior à física. (:::/:::)

A Filosofia Contemporânea distanciou-se das matemáticas e das próprias ciências. Os filósofos marxistas dedicaram-se a muitos temas científicos mas de um modo superficial. O marxismo nunca chegou a produzir uma história marxista da matemática. Há, porém, algumas indicações nesse sentido. Assim, por exemplo, a teoria da racionalidade instrumental elaborada pela Escola de Frankfurt implica a articulação entre o desenvolvimento da matemática e o processo de formalização da razão, à luz do próprio desenvolvimento capitalista. A omissão da matemática não permite compreender o processo de dominação da natureza e do homem: o papel desempenhado pela ciência nesse processo de dominação depende da sua matematização. O fascínio dos números está ligado ao poder que eles concedem a quem os domine. Darei apenas um exemplo para reforçar a ligação estreita entre os números e o mercado. Imagine o leitor que, ao passar pela montra de uma sapataria, vê um par de sapatos que deseja comprar: os sapatos custam 50 euros e o leitor só tem 25 euros no bolso. Como não pode "tirar 50 de 25", o leitor resolve o problema dizendo que voltará amanhã. O que o leitor não sabe é que reside aqui uma das questões fundamentais da matemática donde decorreu todo o seu progresso ulterior. Os Hindus descobriram que se podia atribuir uma significação válida a subtracções tais como "50 tirados de 25", bastando admitir a existência de números negativos, que se designam uniformemente sob o nome de dívidas. Quando se tiram 50 de 50, fica zero: a subtracção obriga-nos a considerar o zero como um número, ao qual se aplicam as propriedades dos números naturais. No século XII, Bhaskara viu isso: o zero é o número cardinal de certos conjuntos, os chamados conjuntos vazios ou nulos. Sem o zero os números negativos - popularizados pelo termómetro - não poderiam ter sido concebidos. O conjunto dos números ordinários ou positivos e dos números negativos constitui o conjunto dos números qualificados: a todo o número positivo - natural, fraccionário, incomensurável - corresponde um número negativo. (:::/:::) Estas breves considerações são suficientes para mostrar que a crítica da racionalidade instrumental tem como alvo preferencial todo o projecto kantiano: a fúria do idealismo alemão dissolveu a própria realidade ou, mais precisamente, a realidade que opõe resistência à dominação. As questões kantianas devem ser reformuladas e, no decorrer desse processo, transfiguradas: a racionalidade instrumental é racionalidade matemática antes mesmo de ser racionalidade tecnológica. As matemáticas modernas surgiram com Descartes: a partir de 1637 escolhem-se habitualmente as primeiras minúsculas - a, b, c ... - para designar constantes e as últimas - x, y, z ... - quando se deseja exprimir quer variáveis, quer incógnitas. A notação literal - a representação das grandezas por letras, às quais se podem atribuir quaisquer valores - apareceu com a álgebra, abrindo uma nova era e criando uma linguagem internacional. (Fonex: acabo de dar uma machadada na narrativa de Adorno/Horkheimer!) Ora, a filosofia de Descartes é a filosofia da época da manufactura, o que quer dizer que é a filosofia da burguesia ascendente que desejava conquistar e dominar o mundo. A noção de homem como "dono e senhor da natureza" resume já a fúria do idealismo, a tendência filosófica que anda associada estruturalmente à dominação da natureza. A crítica da racionalidade instrumental dirige-se à fúria do idealismo: ela não pode recuar até à Grécia Antiga sem alterar o seu dispositivo conceptual, porque a noção de que "saber é poder" não se fundamenta na experiência, como pensava Bacon, mas na matematização do mundo, a qual não foi levada a cabo pelos gregos. A matemática é a linguagem da dominação: eis uma definição da matemática que faz estremecer os matemáticos, cuja ideologia espontânea de cientista é o platonismo. (:::/:::)

Adenda. Nunca pensei que iria viver na conjuntura-tempo mais indigente da história do homem: o que me preocupa não é tanto a pobreza material mas sobretudo a indigência cognitiva e a atrofia dos órgãos mentais dos meus contemporâneos. A actividade teórica é - hoje em dia - uma actividade solitária: aqueles que se dedicam a ela constroem teorias para ninguém, simplesmente porque não há público inteligente para elas. E sem público inteligente não há verdadeiramente discussão racional das teorias propostas: os públicos existentes comportam-se como meros ladrões que se apropriam das ideias alheias para uso caseiro. Tudo isto é estranho e, no caso português, muito triste: Possuímos todos os instrumentos necessários para elaborar teorias completas e, no entanto, não há ninguém capaz de os utilizar de um modo inteligente e racional. O homem contemporâneo perdeu capacidades mentais e cognitivas: quanto maior é o número de diplomados analfabetos, menor é o número daqueles indivíduos dotados de competências racionais. A massificação do ensino universitário liquidou o próprio conhecimento que deveria promover. Em Portugal, tudo é mais difícil porque, além do desemprego estrutural e da ausência de uma cultura do mérito, nunca houve uma verdadeira tradição teórico-crítica: os portugueses nunca tiveram apetência genuína pelo conhecimento, fugindo da razão como o Diabo foge da Cruz. O ensino transformou-se num sistema de mentira institucionalizada. Portugal é uma invenção mentirosa. E os portugueses são os seres humanos mais arcaicos que habitam a Terra. Teixeira de Pascoaes comparou-os com os macacos e, de facto, as universidades portuguesas são autênticos parques zoológicos de animais arcaicos. Os comentadores políticos portugueses que desfilam pelos canais de TV continuam a mencionar o "papão comunista" para justificar o capitalismo selvagem que se apoderou do mundo global desde o Colapso do Mundo Comunista. Infelizmente, os portugueses são demasiado indigentes - mental e cognitivamente - para compreender que estão perante os verdadeiros "papões" que bloqueiam o futuro do país. As conjunturas mudam a um ritmo alucinante, mas os rostos da mentira institucional são sempre os mesmos. Portugal afunda-se na estupidez das suas pseudo-elites, a enorme turba medíocre de devoradores dos bens públicos.

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de julho de 2012

Teoria Quântica e Filosofia

«A teoria quântica aboliu a noção de objectos fundamentalmente separados, introduziu o conceito de participação em substituição ao de observador, e pode vir a considerar necessário incluir a consciência humana na sua descrição do mundo». (Fritjof Capra)

«A natureza nada sabe sobre imperfeições; a imperfeição é uma percepção humana da natureza. Enquanto parte da natureza, somos também perfeitos; é a nossa humanidade que é imperfeita. E, ironicamente, é devido a essa nossa capacidade para a imperfeição e para o erro que somos livres - uma liberdade que nenhuma pedra nem nenhum animal pode saborear. Sem a possibilidade de erro e sem a real indeterminação que a teoria quântica implica, a liberdade humana não faz sentido. O Deus-que-joga-aos-dados libertou-nos». (Heinz R. Pagels)

«A essência da interpretação de Copenhaga é que o mundo deve ser realmente observado para ser objectivo. A realidade tem existência apenas quando a observamos. Vemos que, de acordo com a interpretação da mecânica quântica segundo a escola de Copenhaga, o universo indeterminado tem outra consequência - a realidade criada pelo observador. A noção de que o mundo existe num estado bem definido independentemente da intervenção humana chegou ao fim. Há qualquer coisa de muito especial no mundo quântico; podemos domesticá-lo com a nossa matemática, mas o certo é que ele é estranho - muito mais estranho do que podemos imaginar visualmente». (Heinz R. Pagels)

Os físicos e os filósofos estão centrados nos problemas de interpretação da teoria quântica, na tentativa de dar uma resposta à pergunta: O que é a realidade quântica? É falso afirmar que, no mundo contemporâneo, os filósofos deixaram de estar preocupados com as questões clássicas que preocupam os físicos. Basta referir dois nomes - Samuel Alexander e Alfred North Whitehead - para desmentir essa afirmação de John D. Barrow. O objectivo deste texto é reafirmar o meu compromisso: contribuir para a clarificação da filosofia da teoria quântica. Noutro dia, assisti a uma conversa entre um engenheiro, um estudante de engenharia e um electricista formado na antiga escola industrial: o que me chocou nessa conversa foi a estupidez arrogante dos dois primeiros intervenientes. Embora não seja especialista em mecanismos eléctricos, compreendi desde o início a armadilha que o electricista prático montou para confrontar os diplomados arrogantes com a sua estupidez: eles desconheciam algumas leis físicas básicas que o electricista utiliza quando conserta os electrodomésticos. Este episódio mostra o estado do ensino superior em Portugal: a produção em série de burros diplomados, não só no campo das letras, o que não é surpreendente, mas também nas áreas das ciências e das engenharias. Nós, os amantes do conhecimento, somos oásis vulneráveis rodeados por um imenso deserto de estupidez diplomada que está a liquidar a cultura superior: a ralé diplomada ao abrigo do processo de Bolonha funciona como uma espécie de formigueiro que invade os oásis de conhecimento para os paralisar ou mesmo destruir. Nas universidade portuguesas, não há lugar para o mérito: o mecanismo que as domina expulsa do seu seio a competência, de modo a garantir a perpetuação da mediocridade instalada. Os burros afastam os competentes para não serem confrontados com a sua burrice visceral: o ensino universitário português é uma terrível mentira. Não adianta tentar descobrir argumentos ou exemplos para atenuar essa verdade essencial: a captura das universidades portuguesas pelo bando organizado dos burros diplomados. A universidade portuguesa - privada e pública - é lixo. Produzir textos sobre mecânica quântica é perder audiência - e esta perda é sintomática: ela indica o vazio cognitivo instalado nos cérebros dos burros diplomados. A arrogância que exibem é uma espécie de mecanismo de compensação: os "génios" portugueses (sic) são génios ocultos; eles nunca se revelam porque não há nada para ser revelado. Neste imenso deserto da estupidez, só temos um caminho a seguir para escapar à malvadez pseudo-diplomada: dialogar com os verdadeiros génios que já morreram há muito tempo. Falar com os mortos é, no fundo, um monólogo que nos livra da nefasta companhia dos vivos que povoam os espaços criativos da sociedade. A indigência cognitiva predominante é avessa à produção de grandes teorias, as quais não têm público. Perdidos nesta imensa mobilização da ignorância, somos obrigados a buscar a nossa própria salvação privada, em vez do compromisso com o projecto da esperança social. Fechamo-nos à sociedade da estupidez para lhe resistir: o nosso desejo é assistir ao seu colapso.

Os meus últimos textos apresentaram o materialismo aleatório como a filosofia mais adequada da mecânica quântica. No entanto, a interpretação de Copenhaga tem sido usada para liquidar o próprio materialismo. Não foi por mero acaso que referi Whitehead. Como se sabe, Whitehead é o autor de duas obras fundamentais, para já não referir Principia Mathematica escrita em colaboração com Russell: Science and the Modern World (1926) e Process and Reality (1929), nenhuma das quais foi traduzida em língua portuguesa. A sua filosofia é muito complexa e difícil: quem não tenha treino filosófico e científico não compreende o seu conteúdo. Aqui vou apenas elucidar brevemente a sua crítica do materialismo, a partir da sua obra de 1926. Na base do materialismo encontra-se a teoria de que existe a matéria ou de que só existe a matéria, sendo a matéria concebida como algo a que lhe é próprio a localização simples (simple location), uma simples localização no espaço e no tempo. Nesta concepção da matéria, o tempo é um acidente da matéria imutável e o instante (instant) carece de duração. Para Whitehead, a matéria tal como a concebe o materialismo é uma dupla-abstracção: o ente é concebido unicamente nas suas relações com outros entes e, destas relações, tomam-se em consideração apenas as relações espaço-temporais. O esquema materialista desenvolveu-se com Galileu e tornou-se em esquema dominante na ciência da natureza. Apesar disso, Whitehead considera-o falso pelo facto de negar a existência objectiva das qualidades secundárias, entrando assim em confronto ou desacordo com a experiência, e a responsabilidade humana. Whitehead vai mais longe quando afirma que o materialismo destrói o seu próprio fundamento, a indução, porque se as partículas materiais se encontram isoladas e apenas entrelaçadas mediante relações espaço-temporais, não é possível, com base no que ocorre num ente, concluir nada sobre o que está a ocorrer noutro ente. A crítica do materialismo realizada por Whitehead é extremamente abstracta: o que foi dito é suficiente para a apreender, mas o seu carácter abstracto exige uma clarificação. A filosofia é, para Whitehead, o esforço de racionalização completa da experiência humana. Aristóteles dizia que só há ciência do geral, o que significa - na linguagem de Whitehead - que não há conhecimento sem abstracções. No entanto, apesar do pensamento ser abstracto por necessidade, Whitehead está consciente de que as abstracções são perigosas quando conduzem à intolerância intelectual, a qual exclui da realidade todos os elementos que não se acomodam no esquema-sistema abstracto. A intolerância intelectual mais não é do que a propensão a considerar os seus princípios como outros tantos dogmas e a tomar as abstracções pela própria realidade. Whitehead deu-lhe o nome de falácia da concreção fora de lugar (fallacy of misplaced concretness), a qual ameaça liquidar a cultura superior.  A filosofia tem como tarefa principal criticar as abstracções, examinando as ideias que os cientistas aceitam sem objecção e comparando os diversos esquemas abstractos. Além disso, a filosofia constrói o seu próprio sistema teórico, a partir de intuições mais concretas que as intuições da ciência, tomando-as emprestadas aos artistas e aos génios religiosos e articulando-as com as suas próprias intuições. A necessidade da filosofia num mundo cada vez mais indigente resulta do facto dela submeter os sistemas abstractos fabricados por esses homens à vigilância da razão. A filosofia é racional não só no desempenho desta tarefa de exame crítico dos sistemas abstractos, mas também no seu método: a razão não pode continuar a capitular perante a ditadura dos factos. Ao denunciar esta capitulação da razão perante os factos, Whitehead defendeu o regresso de um verdadeiro racionalismo, o qual se fundamenta na intuição imediata da racionalidade do mundo. Ora, esta ideia de que o mundo se encontra dominado por leis lógicas e pela harmonia estética não pode ser mostrada indutivamente ou demonstrada dedutivamente, porque ela resulta de uma intuição directa, cuja crença (belief) correspondente torna possível a ciência e a filosofia. O racionalismo proposto por Whitehead já não é o racionalismo clássico: o fundamento das coisas deve ser procurado na natureza dos entes reais determinados, porque lá onde não há ente não há fundamento. O regresso do concreto - o contacto com o concreto - é um tema comum às filosofias de Whitehead e de Husserl, para as quais a experiência que nos revela a verdade não se reduz ao conhecimento sensível. A crítica materialista da fenomenologia, em especial da teoria da intuição, foi realizada por Georg Lukács. O carácter empirista da metafísica de Whitehead revela-se no facto de ser descritiva: o filósofo explica o abstracto e descreve o concreto.

Whitehead tem razão quando afirma que o materialismo perdeu actualidade quando surgiram a teoria ondulatória da luz, a teoria atómica, a teoria da conservação da energia e a teoria evolucionista. Todas estas teorias descobriram factos que rompem com os marcos do materialismo. Porém, o golpe fatal que "matou" o materialismo foi-lhe dado pela teoria quântica, que, segundo Whitehead, exige uma concepção orgânica da própria matéria. A filosofia do organismo elaborada por Whitehead que culmina com uma teoria de Deus teve eco em Portugal na filosofia criacionista de Leonardo Coimbra. Ela reconhece os seguintes factos da experiência: a mudança, a duração (endurance), a interpenetração (interfusion), o valor, o organismo e os objectos eternos. E o seu principal argumento contra o materialismo continua a ser mais filosófico do que "quântico": o materialismo é definido como a doutrina que atribui realidade a uma abstracção cómoda e até mesmo fecunda no domínio da ciência, mas o corpo - tal como foi concebido por Galileu e Descartes - não existe. O conceito fundamental da filosofia da natureza de Whitehead é o de acontecer ou acontecimento (event), o qual abarca todos os outros conceitos, tais como os de mudança, persistência, interpenetração, valores, organismos e objectos eternos. (Os matemáticos e os físicos tendem a ser muito platónicos: há um mundo abstracto - o mundo das ideias - que priva Deus da sua liberdade infinita!) O mundo não é composto de coisas isoladas umas das outras, mas de acontecimentos ou daquilo que ocorre ou acontece (happens). Um corte temporal do acontecer é um caso (occasion). Todo acontecer é uma captação e um organismo. Uma captação porque apreende em si o universo inteiro. E um organismo porque as suas partes não se encontram justapostas mas formam um todo e o todo determina as partes. Daqui resulta que cada acontecer é, como a mónada de Leibniz, um espelho do universo. O acontecer é a unidade sintética do universo como captado ou apreendido e o mundo uma comunidade orgânica gigantesca em que tudo é influído por tudo e em que não existe uma única relação externa. (Usei o termo "acontecer" em vez de "acontecimento" para evitar introduzir cristalizações ou imobilidades num universo dinâmico!) As noções de espaço e de tempo usadas por Whitehead para mostrar o erro do materialismo - o espaço como abstracção das relações de interpenetração recíproca dos aconteceres e o tempo como abstracção das durações sucessivas dos aconteceres - aproximam a sua filosofia da filosofia vitalista de Bergson, embora rejeite o seu anti-intelectualismo. O contributo de Whitehead para a clarificação da filosofia da teoria quântica foi reconhecido por David Bohm: «A noção de que a realidade deve ser entendida como processo é muito antiga, remontando pelo menos a Heráclito, segundo o qual tudo flui. Em tempos mais modernos, Whitehead foi o primeiro a dar a essa noção um desenvolvimento sistemático e extensivo». O ponto de partida de Whitehead e de Bohm é o mesmo, a noção de realidade como processo, mas as implicações daí derivadas são diferentes: David Bohm elaborou uma teoria da ordem implicada, segundo a qual qualquer elemento contém, dobrado dentro de si, a totalidade do universo que inclui tanto a matéria como a consciência. Bohm é um físico que se notabilizou graças à teoria das variáveis ocultas. A sua primeira teoria foi elaborada em 1951 com base em ideias expostas em 1926 por Louis de Broglie. Segundo esta teoria, existe no espaço, além dos campos de forças, um potencial quântico, que, ao contrário desses campos de forças, não transporta energia e não pode ser detectado directamente. As partículas sofrem-lhe os efeitos e, de certo modo, servem-se dele para comunicar entre si. Assim, por exemplo, nas experiências sobre o paradoxo EPR, as duas partículas que se afastam uma da outra estão permanentemente ligadas por esse potencial quântico: a medição que efectuamos numa delas modifica instantaneamente o potencial que exerce influência na outra, e daí a correlação que observamos entre os resultados das medições. O potencial quântico é a variável oculta não local da teoria de Bohm, a qual também explica a experiência de Aspect e a experiência das fendas de Young. No entanto, a teoria de Bohm deixa de servir quando as partículas, animadas de uma velocidade próxima da luz, colidem entre si e dão origem a outras. Para explicar este último fenómeno, é necessário fazer intervir a teoria da relatividade de Einstein. A teoria de Bohm não foi conciliada com essa teoria: a explicação deste fenómeno é dada pela teoria quântica relativista de campo. (Bohm abdicou dos gravitões!) Mais tarde, em 1980, Bohm elaborou a sua teoria da ordem implicada, de resto já em gestação no tal potencial quântico: a noção básica é a de que a realidade mais profunda não é o espírito, nem a matéria, mas uma realidade de dimensão superior que lhes serve de base comum e na qual prevalece a ordem implicada, onde deixam de ter validade as noções de espaço e de tempo. Esta teoria tem o mérito de propor um novo modelo de realidade que se opõe à visão do mundo como algo fragmentado: a noção do mundo como totalidade adquire assim um novo estatuto científico. (A teoria estocástica de Edward Nelson permite conciliar a teoria da relatividade e a noção de potencial quântico.) A noção de acontecimento como espelho do universo - de Whitehead - traz consigo a noção de totalidade expressiva, a de Leibniz e a de Hegel, com a qual Marx rompeu. Não admira que a filosofia de Whitehead implique como seu coroamento uma teoria de Deus, isto é, uma teologia, que retém alguma coisa do materialismo da necessidade e da teleologia. Há, porém, uma outra noção de totalidade que rejeita as noções de Origem, Sujeito e Fim: o materialismo aleatório - esboçado por Althusser - convida-nos a pensar o mundo como processo sem sujeito. O materialismo aleatório afirma-se na sua diferença radical conquistando as posições e as linhas de defesa do adversário: o que quer dizer que, para elucidar a realidade quântica, deve confrontar-se com as teorias filosóficas rivais, desalojá-las e tomar posse dos seus territórios. A teoria quântica não pode rejeitar o conceito de potencial quântico por ser a criação arbitrária de uma nova entidade física, ao mesmo tempo que «namora» com um nada ideológico que é Deus (no sentido religioso do termo). Mas o materialismo aleatório também deve abrir-se à estranheza radical do mundo quântico: abertura mental deve ser a atitude dos filósofos e dos cientistas que trabalham nas últimas fronteiras do conhecimento, nas quais não é possível traçar uma linha de demarcação entre filosofia e ciência. Afinal, a última palavra não pertence a ninguém.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Althusser, Materialismo Aleatório e Mecânica Quântica

Oporto: House Music
Finalmente, depois de uma busca que durava há mais de três anos, descobri duas obras já dadas como perdidas na minha biblioteca, uma das quais da autoria de Althusser. Nutro uma enorme admiração pelo pensamento filosófico de Althusser: considero que foi um dos poucos filósofos contem-porâneos que mais contribuiu para a elaboração de uma teoria da filosofia e de uma teoria da ideologia. A filosofia, sobretudo a filosofia académica em Portugal, tem estado entregue nas últimas décadas a pessoas profun-damente incompetentes e imbecis: o resultado disso é a morte da própria filosofia. Se Portugal tivesse sido dirigido por uma elite do poder esclarecida, não teria chegado à situação de bancarrota cultural - científica e filosófica - em que vive. Hoje sabemos que Portugal tem sido governado por uma classe dirigente medíocre e mafiosa, cujos membros usam a universidade para promover os seus próprios interesses: um político português que transita para o ensino superior é, por natureza, um anti-professor. A estupidez começou primeiro na política, para logo a seguir invadir o mundo dos negócios e o mundo universitário. Portugal é o reino da estupidez fraudulentamente diplomada pelas universidades particulares criadas para esse fim: diplomar a ralé portuguesa que usa os aparelhos partidários não para fomentar políticas de desenvolvimento nacional, mas para benefício próprio. O atraso estrutural de Portugal em todos os níveis sociais deve-se à mediocridade das suas elites e ao imobilismo social que geram para salvaguardar as suas posições e interesses. A indigência cognitiva dos portugueses contribui para a sua própria auto-exclusão do processo civilizacional. É por isso que não levo a sério os portugueses: conheço-os demasiado bem para saber que as suas palavras, os seus diplomas e as suas posições não têm valor. Portugal está mergulhado na mentira institucional. A teoria da ideologia de Althusser permite pensar esta mentira institucional, mas não é sobre ela que pretendo pensar: a minha atenção vai incidir sobre a "filosofia para o marxismo" proposta pelo último Althusser. Numa entrevista concedida a Fernanda Navarro, Althusser esboçou as linhas gerais do materialismo aleatório, encarando-o como a filosofia mais adequada para a teoria marxista da história. Este esboço não está isento de dificuldades teóricas, sobretudo quando tenta articular as anteriores posições teóricas tomadas por Althusser nesse campo de batalha que é a filosofia. O materialismo dos encontros aleatórios seduz-me, pela simples razão de ir ao encontro de duas "propriedades" da mecânica quântica: o indeterminismo e a não-localidade, as quais implicam uma certa globalidade. Althusser não fala uma única vez da mecânica quântica, embora o seu materialismo aleatório possa ser repensado como uma crítica da interpretação ortodoxa da mecânica quântica, a da Escola de Copenhaga. E o seu anti-humanismo teórico - o de Marx - pode ser repensado como a rejeição do Princípio Antrópico. Quem é que ainda não leu as patetices espiritualistas sobre o princípio antrópico cosmológico escritas por Errol E. Harris? É preferível alimentar a imaginação com a filosofia da natureza proposta por Rupert Sheldrake, a qual tem uma ligação metafórica com a teoria dos campos quânticos! Não é preciso falar directamente da mecânica quântica para contribuir para a elaboração da filosofia mais adequada para justificar os seus fundamentos. Steven Weinberg relata-nos um episódio muito instrutivo sobre a relações entre filosofia e ciência: «Há cerca de um ano, enquanto Philip Candelas (do departamento de física da Universidade do Texas) e eu esperávamos pelo elevador, a nossa conversa centrou-se num jovem teórico que fora bastante promissor enquanto estudante de doutoramento e que depois desaparecera. Perguntei a Phil o que teria interferido com a investigação do ex-estudante. Phil abanou a cabeça com tristeza e disse: "Ele tentou compreender a mecânica quântica"». Filosofia e ciência estão embarcadas no mesmo barco: se uma delas for derrubada ou afundada, a outra cai logo a seguir. A aliança entre filosofia e ciência é orgânica: não há filosofia sem ciência e não há ciência sem filosofia. Quando falamos do divórcio entre filosofia e física, devemos ter em conta que esse divórcio foi tematizado por uma filosofia que não representa toda a filosofia: trata-se, portanto, de um divórcio ideológico que desvirtua a cooperação entre pensamento filosófico e pensamento científico, para já não falar do pensamento religioso, que operou a grande revolução científica do século XVII, como demonstrou Alexandre Koyré. Apesar de criticar a "filosofia dos filósofos", Steven Weinberg reconhece que a mecânica quântica precisa da ajuda dos filósofos: «A ajuda de filósofos profissionais para tentarmos perceber o que estamos a fazer seria bem-vinda, mas, com ou sem a sua ajuda, continuaremos a fazê-lo». Os fundadores da mecânica quântica foram, eles próprios, filósofos: a filosofia não foi estranha ao nascimento da mecânica quântica, bastando ler os seus textos fundadores para detectar a sua presença. O facto de ser uma teoria ainda-não-concluída torna provavelmente a mecânica quântica pouco atractiva para os filósofos profissionais, embora um dos filósofos referidos por Étienne Klein - Jean-Paul Sartre - tenha referido o princípio de incerteza de Heisenberg para reforçar a sua filosofia (idealista) do sujeito, segundo Althusser, aceitando para todos os efeitos a interpretação da Escola de Copenhaga. Como é evidente, dado nunca ter abordado explicitamente este assunto, desconheço a posição de Althusser em relação à filosofia da mecânica quântica. No entanto, nas entrelinhas dos seus textos, detecto uma aproximação enigmática às posições tomadas por Karl Popper que odiava os membros da Escola de Copenhaga. Na linguagem de Althusser, podemos dizer que a interpretação da Escola de Copenhaga é dominada por uma tendência idealista, contra a qual se deve definir uma posição materialista. Althusser é um filósofo materialista, não um materialista mecanicista mas um materialista pluralista: o seu pluralismo tem algumas afinidades com o pluralismo de Popper, embora divirja dele no que respeita à teoria da história. O reducionismo de Weinberg - a sua atitude face à natureza - não teria seduzido Althusser. Mas, se tivesse lido outros filósofos além de Wittgenstein, Weinberg teria sido seduzido pelo materialismo aleatório de Althusser. Como tenho defendido nos últimos textos, a mecânica quântica só estará concluída quando despoletar uma imensa revolução filosófica. Os heróis do materialismo aleatório de Althusser - Demócrito, Leucipo, Epicuro e Lucrécio - devem ser substituídos pelos físicos das partículas elementares, se quisermos fazer desse novo materialismo a filosofia da mecânica quântica. Há, no entanto, um obstáculo a ser superado: a interpretação da Escola de Copenhaga é mais favorável à unificação da ciência do que a interpretação materialista ou realista. No entanto, em vez de desistir da tarefa de pensar os fundamentos da mecânica quântica, devemos recordar a engenhosa ilustração dada por Althusser para pensar as duas tendências da filosofia: o filósofo idealista é o homem que, ao tomar o comboio, conhece desde o início da sua viagem as estações de saída e de chegada, a origem e o fim do trajecto, enquanto o filósofo materialista toma sempre o comboio "em marcha", sem conhecer nem a origem nem o destino da sua trajectória. Com esta ilustração, acabo de tomar uma posição filosófica que me possibilita converter uma tese idealista numa tese materialista, sem abdicar da tarefa de unificar a ciência e a filosofia. Faço-o movido pelo interesse de alcançar um objectivo teórico: uma filosofia para o marxismo - ciência da história - é também uma filosofia para a mecânica quântica. A unificação foi sempre o grande sonho da razão.

Althusser é um filósofo surpreendente e, ao mesmo tempo, irritante: ele nunca levou até ao fim todas as suas brilhantes "intuições". A sua proposta de uma filosofia para o marxismo implica necessariamente uma revisão substancial da teoria da história e da sociedade de Marx, mais conhecida pela designação de materialismo histórico. Depois da aproximação que realizei entre a teoria da evolução de Darwin e a teoria da história de Marx, chegou a hora de a reformular em função dos conhecimentos fornecidos pela mecânica quântica. Embora não a mencione uma única vez, a mecânica quântica está presente na reflexão de Althusser, em especial nos conceitos de singularidade e de acção à distância. Se Carl Sagan conhecesse a teoria da história de Marx, não teria escrito alguns disparates perigosos sobre as viagens no espaço e no tempo, sobretudo as viagens ao passado que, na sua perspectiva alucinada, permitiriam transformar a história numa "ciência experimental", com o resultado fatal de abolir o nosso próprio mundo histórico, em nome das viagens interestelares. Não é a teoria da relatividade restrita de Einstein que aqui está em causa, como é evidente, a qual afasta do nosso alcance uma das maneiras de alcançar as estrelas, a possibilidade de construção de uma nave mais rápida que a luz - o limite de velocidade cósmico, mas a própria noção de história de Sagan. Estou consciente de que piso terrenos tanto mais perigosos quanto mais persigo o objectivo de unificação da ciência e da filosofia. Não devemos seguir o exemplo do jovem candidato a físico que, ao procurar entender a mecânica quântica, desistiu da própria ciência. O caminho da ciência, como já dizia Marx, é extremamente difícil e, para muitos de nós, penoso, no sentido de não ser valorizado pelos nossos contemporâneos envolvidos em práticas consumistas destrutivas. O nascimento da mecânica quântica - sistema de teorias no qual as partículas não têm posições e velocidades exactamente definidas mas que, em muitos aspectos, se comportam como ondas, e, de forma semelhante, as ondas de luz se comportam, em muitos aspectos, como partículas - e a sua ruptura epistemológica com a física newtoniana já foram descritos diversas vezes por centenas de cientistas e filósofos da ciência. Aqui convém apenas recordar que a mecânica quântica substituiu o determinismo da física clássica pelo indeterminismo da nova física: «A física do século XX desenvolveu-se a partir da anterior física "clássica", inspirada na obra de Isaac Newton nos finais do século XVII. Newton descobriu as leis fundamentais do movimento e da gravitação e aplicou-as com enorme sucesso à descrição detalhada do movimento dos planetas e da Lua. No século que se seguiu às descobertas de Newton, uma nova interpretação do universo surgiu: o determinismo. De acordo com o determinismo, o universo pode ser encarado como um grande relógio mecânico posto em movimento no início dos tempos pela mão divina e depois abandonado. Dos maiores aos mais pequenos movimentos, toda a criação material evolui de uma forma que pode ser prevista com precisão absoluta pelas leis de Newton. Nada é deixado ao acaso. O futuro é tão precisamente determinado pelo passado como o movimento de um relógio. Apesar de as nossas mentes humanas não poderem, na prática, seguir o movimento de todas as partes deste grande mecanismo e, assim, conhecer o futuro, podemos imaginar que a mente omnipotente de Deus pode fazê-lo e, portanto, ver todo o passado e todo o futuro à sua frente como uma sucessão de montanhas» (Heinz R. Pagels). Quando os físicos entraram em contacto com a estrutura atómica da matéria em finais do século XIX, a imagem determinista do mundo começou a ruir, porque as unidades atómicas da matéria se comportavam de uma forma aleatória que a física determinista não podia descrever. Um conjunto de novas descobertas experimentais permitiu a elaboração de uma nova física, a teoria quântica, entre 1900 e 1926, evidenciando-se a ruptura com a física newtoniana depois de 1926: «Em que consiste esta peculiaridade quântica? A física da nova física quântica contrasta fortemente com a antiga física newtoniana, que veio substituir. As leis de Newton trouxeram a ordem ao mundo visível dos objectos e acontecimentos a que estamos habituados, como a queda de pedras, o movimento dos planetas, o fluir dos rios e as marés. As características básicas da imagem newtoniana do mundo eram o seu determinismo - o relógio do universo está totalmente determinado do princípio ao fim dos tempos - e a suposição tácita de que as pedras e os planetas existem objectivamente mesmo quando nós não os observamos directamente; se lhes voltarmos as costas, eles permanecem no mesmo sítio. Na teoria quântica, estas interpretações aparentemente sensatas do mundo (como o determinismo e a objectividade) não podem ser conservadas. Apesar de o mundo quântico ser racionalmente compreensível, não pode ser visualizado como o mundo newtoniano. (...) A teoria quântica não só nega a ideia tradicional de objectividade, como também destruiu a imagem determinista do mundo. De acordo com a teoria quântica, alguns acontecimentos, como as transições electrónicas nos átomos, ocorrem ao acaso. Não existe nenhuma lei física que nos diga exactamente quando é que uma transição vai ocorrer; o máximo que podemos fazer é determinar a probabilidade de uma dada transição. As mais pequenas rodas do grande relógio, os átomos, não obedecem a leis deterministas. Aos inventores da teoria quântica - Niels Bohr, Louis de Broglie, Erwin Schrödinger, Wolfgang Pauli, Werner Heisenberg e Paul Dirac, para já não falar de Albert Einstein - deparara-se mais uma diferença radical em relação à imagem newtoniana do mundo - a realidade criada pelo observador. Eles descobriram que a teoria quântica implica que aquilo que um observador decide medir influencia o resultado final dessa medida. O que acontece no mundo quântico depende da forma como o observamos. O mundo não existe independentemente da nossa observação; aquilo que existe depende em parte do que decidimos observar - a realidade é parcialmente criada pelo observador. São estas propriedades do mundo quântico - a sua falta de objectividade, a sua indeterminação, a realidade criada pelo observador - que o distinguem do mundo habitual percebido pelos nossos sentidos. É a elas que me refiro como "peculiaridade quântica"» (Pagels). A revolução quântica - e relativista - colheu de surpresa o marxismo, cujo materialismo, sobretudo o de Engels e Lenine, ainda se movia no quadro da tradição racionalista do materialismo da necessidade e da teleologia. Althusser compreendeu isso quando tentou pensar uma filosofia para o marxismo. A minha reflexão move-se na proximidade das teorias de tudo: vejo o materialismo aleatório como a janela através da qual podemos vislumbrar uma teoria unificada, capaz de fornecer explicações para uma grande variedade de factos, com uma contribuição mínima de premissas para as conclusões.

A teoria do materialismo aleatório esboçada por Althusser é ainda uma teoria provisória que deve ser reformulada à luz dos novos conhecimentos fornecidos pela mecânica quântica, tendo como leituras de fundo as obras The Principles of Quantum Mechanics de P. A. M. Dirac (1947), Mathematical Foundations of Quantum Mechanics de J. von Newmann (1955) e The Many-Worlds Interpretation of Quantum Mechanics de B. S. De Witt & R. D. Graham, org. (1973), entre algumas outras obras clássicas. Ela foi esboçada como uma filosofia para o marxismo. Daí que o seu conceito central seja uma nova concepção da história dos homens. Althusser retoma Demócrito e os mundos de Epicuro para recordar a sua tese central: antes da formação do mundo, uma infinidade de átomos caia no vazio, em forma paralela. Esta tese central tem duas implicações fundamentais: 1) não havia absolutamente nada formado antes de haver mundo, e 2) todos os elementos do mundo existiam já isolados, desde toda a eternidade, antes mesmo de haver mundo. Esta tese central e as suas implicações devem ser reformuladas em função dos novos conhecimentos físicos adquiridos. Mas a sua implicação filosófica fundamental pode ser formulada deste modo: antes da formação do mundo não existia nenhuma Origem, Sentido, Causa, Razão ou Fim. O materialismo aleatório rejeita toda a teleologia porque não é um materialismo do sujeito, mas o materialismo de um processo sem sujeito que domina a ordem do seu desenvolvimento, sem um fim atribuível. Foi Epicuro quem defendeu a não-anterioridade do Sentido, opondo-se assim a Platão e a Aristóteles.  A seguir adveio o clinamen, isto é, um desvio que ocorre sem se saber como, nem quando nem onde. O clinamen desencadeia o desvio de um átomo na sua queda no vazio e provoca um encontro com outro átomo. O mundo nasceu de uma sequência durável de encontros, mais precisamente de um desvio aleatório e não da Razão ou da Causa Primeira. Mas o encontro não cria nada por si mesmo: o encontro dá realidade aos próprios átomos que, sem ele e o desvio, não seriam mais do que elementos abstractos e isolados, sem consistência nem existência. Só depois de formado o mundo é que se instaura o reino da razão, da necessidade e do sentido. O que interessa no materialismo aleatório não é tanto a descrição que Epicuro deu dele, a qual deve ser revista, mas o facto dele possibilitar pensar um materialismo de um processo sem sujeito. Ora, esta noção encontra-se, de algum modo, incorporada na proposta sem fronteira de Hartle-Hawking, segundo a qual o espaço e o tempo imaginário formam, em conjunto, uma superfície finita em extensão mas sem fronteiras ou limites. Assim, o espaço-tempo seria como a superfície da Terra, mas com mais duas dimensões. Ora, ao defender que o universo não tinha fronteiras no começo, sendo um todo auto-contido, Hawking descarta-se de Deus porque, num tal universo, Ele não é necessário para dar início ao universo, o qual existe por si mesmo, sem que Deus o tivesse criado. Em vez de se entregar à tarefa de pensar a filosofia da mecânica quântica, Althusser prefere pensar a recusa heideggeriana da questão da Origem, Causa e Fim do mundo como um movimento contemporâneo análogo ao atomismo e ao epicurismo: Heidegger não só recusou a questão da origem, como também - sob inspiração de Epicuro - elaborou uma filosofia que implica uma visão do mundo que lhe restitui uma espécie de contingência transcendental do mundo, para o qual somos lançados, bem como do sentido do mundo que nos orienta para a abertura ao Ser, mais além do qual não há nada para procurar nem nada para pensar. A sua expressão "es gibt" - mundo - significa que o mundo é um "dom" - uma dádiva - para nós mortais. Porém, Althusser vai mais longe quando afirma que, em vez de pensar a contingência como modalidade ou excepção da necessidade, devemos pensar a necessidade como o devir-necessário do encontro dos contingentes. Deste modo, Althusser reanima a tradição materialista esquecida pela história da filosofia, cujas figuras mais importantes foram Demócrito, Epicuro, Maquiavel, Hobbes, Rousseau (2º. Discurso), Marx e Heidegger. Para reactivar este materialismo aleatório que elaborou categoriais tais como, por exemplo, vazio, limite, margem, ausência de centro, deslocamento do centro para a margem (e vice-versa) e liberdade, é preciso rejeitar os materialismos registados pela história da filosofia, incluindo aquele que tem sido atribuído a Marx, Engels e Lenine, na medida em que eles pertencem à tradição racionalista do materialismo: o materialismo aleatório opõe-se, portanto, ao materialismo da necessidade e da teleologia, uma forma disfarçada de idealismo. A proposta de Althusser é, do ponto de vista filosófico, extremamente sedutora, na medida em que nos permite pensar a história da filosofia como esquecimento do materialismo aleatório, canalizando o seu impulso na direcção de um idealismo da liberdade. Sem percorrer este longo e espinhoso caminho não podemos avaliar a sua produtividade, mas de uma coisa podemos estar certos: o desvio idealista operado pela tradição filosófica dificulta a tarefa de elucidar os fundamentos da mecânica quântica. No entanto, ao recusar toda a origem, Althusser é levado a pensar uma filosofia do vazio. Esta filosofia afirma que o vazio preexiste aos átomos que caem sobre ele, ao mesmo tempo que postula um vazio filosófico: em vez de partir dos famosos "problemas filosóficos", a filosofia do vazio começa por os eliminar para partir do nada. Ou mais precisamente: a filosofia do vazio afirma o primado do nada sobre a forma, o primado da ausência sobre a presença. O nada funciona aqui como o nada de objecto, que permite a Althusser retomar a sua anterior tese de que a filosofia não tem objecto, no sentido em que a ciência tem um objecto. Deste modo, Althusser radicaliza a crítica de toda a filosofia (idealista) na sua pretensão de dizer a Verdade sobre as coisas. O carácter fragmentário das declarações de Althusser não nos permite ir mais longe. O que posso dizer é que esta noção de vazio primordial requer uma reformulação à luz da mecânica quântica, na medida em que parece parasitar uma noção ultrapassada de espaço. A teoria dos mundos de Epicuro já não pode constituir o ponto de referência para a elaboração de um materialismo aleatório. É certo que Althusser vai mais além de Epicuro quando radicaliza e actualiza o seu pensamento, de modo a convertê-lo em crítica radical de toda a tradição idealista, mas, sem disso se aperceber, permanece prisioneiro de noções ultrapassadas. O que Althusser diz a seguir deixa-me perplexo: o materialismo aleatório afirma o primado da materialidade sobre tudo, incluindo o aleatório. A formulação abstracta deste primado não nos permite avaliar a sua produtividade, sem termos realizado análises prévias e pormenorizadas sobre o seu alcance real. Penso que Althusser está a pensar em Aristóteles, quando este diz que a matéria se diz de muitas maneiras. O primado da materialidade não se reduz ao primado da matéria nua; ele é generalizado, de modo a incluir o primado do dispositivo experimental, a materialidade de um gesto ou mesmo a materialidade de um traço - da escritura - que, segundo Derrida, se encontra no fonema emitido por uma voz que fala. Althusser é peremptório quando afirma que o primado da materialidade é universal. Ora, o carácter universal do primado da materialidade permite-lhe reformular a tese marxista do primado da infra-estrutura económica, cuja universalidade depende das forças produtivas: «Ça dépend, palavra aleatória e não dialéctica», usada por Marx na Contribuição à Crítica da Economia Política. Sendo assim, tudo pode ser determinante em última instância, tudo pode dominar, e, na superestrutura, o que é determinante é também a sua materialidade: a teoria da ideologia de Althusser mostrou a materialidade da superestrutura e da ideologia, permitindo pensar o deslocamento da materialidade - sempre determinante em última instância - em cada conjuntura concreta. Haverá ainda lugar para a dialéctica num tal materialismo aleatório? Ou será ele o substituto real do materialismo dialéctico? A dialéctica - hegeliana ou marxista, idealista ou materialista - é mais "congruente" com a interpretação da Escola de Copenhaga do que com uma interpretação materialista da mecânica quântica. A noção de objecto é ainda uma categoria dialéctica: o materialismo aleatório - rigorosamente pensado - é levado a abandonar essa noção de objecto e o par a que pertence (sujeito-objecto). Estaremos nós preparados para romper completamente com o idealismo, para pensar a tradição subterrânea da filosofia? Quem sabe se ao pensarmos esta tradição esquecida pela história da filosofia, não estaremos a dar os primeiros passos para revelar a energia e a matéria escuras do universo?

O processo de Bolonha, esta terrível invenção de eurocratas destituídos de inteligência, está a bloquear o crescimento do conhecimento científico: as orgias que promove vão no sentido de liquidar a persistência e a continuidade de uma linha forte de formação e de investigação. Em Portugal, o processo de Bolonha tem sido usado para diplomar analfabetos que pertencem à rede do poder corrompido. De certo modo, Bolonha é isso mesmo: a possibilidade de diplomar os "burros". Com a sua política de empobrecimento generalizado, o governo português vai levar Bolonha ao seu limite extremo: a liquidação da formação e da investigação. Hoje compreendemos a razão de ser da insensibilidade dos políticos portugueses em relação ao conhecimento: a falsidade das suas qualificações leva-os a abolir a cultura do mérito em todas as esferas da sociedade portuguesa. As classes dirigentes portuguesas são os carrascos de Portugal. Mas, afinal, o que é que o recente caso polémico da pseudo-licenciatura de Miguel Relvas - ministro do actual governo português - tem a ver com a mecânica quântica? Pergunta desconcertante que me permite introduzir a história nesta reflexão. Althusser não pensou a filosofia da mecânica quântica: em vez disso, esboçou uma filosofia para o marxismo, ao mesmo tempo que reformulou os princípios da ciência da história fundada por Marx. Graças à teoria do Big Bang, a história deixou de ser uma noção estranha ao universo dos físicos que se dedicam à cosmologia, a ciência do cosmos considerado no seu conjunto e na sua evolução. Estou convencido de que é possível aproximar as duas noções de história. E, além disso, penso que Althusser abriu esse caminho. A teoria althusseriana da história é demasiado complexa para ser aqui exposta. Dela retenho apenas a sua derradeira versão que introduzo aqui formulando uma tese: Há uma coexistência de histórias que se sobredeterminam. A formulação deste tese permite desde logo fazer a aproximação entre a história do cosmos e a história dos homens, e, no entanto, ela parece rejeitar a unificação teórica desses dois conceitos. Althusser começa por afirmar que há dois tipos de histórias: a História dos historiadores e dos outros cientistas sociais, e a História no presente, que a língua alemã designa com a palavra Geschichte. Esta distinção introduz o escândalo no seio da teoria althusseriana da história, ao ponto de nos levar a duvidar da própria fundação da ciência da história por Marx. Mas o escândalo torna-se aparente quando compreendemos o sentido da manobra que opera esta distinção entre duas histórias: abrir o caminho a um novo projecto político. Tudo se passa como se, para realizar a unificação da história do cosmos e da história dos homens, fossemos obrigados a desenvolver uma teoria diferencial da história humana, de modo a possibilitar um novo pensamento político. Ou dito em termos provocantes: a unificação é, em última instância, política. A introdução da política na mecânica quântica é uma proposta sedutora: afinal, o que é a filosofia a não ser a política na ciência? Nutro uma admiração reservada pela interpretação da mecânica quântica dada por Fritjof Capra: "reservada" porque não é necessário recorrer ao misticismo oriental - hinduísmo, budismo, pensamento chinês, taoísmo e zen - para compreender a novidade radical da mecânica quântica e da sua visão do mundo. Tal como a Filosofia, a mecânica quântica é uma invenção ocidental que só pode ser compreendida nos termos da sua cultura filosófica. Culturas que não chegaram a descobrir a filosofia e a ciência não podem ser convocadas para as interpretar. Até mesmo uma interpretação em termos de misticismo ocidental seria confrontada com o facto deste só ter sido possível a partir de grandes avanços científicos e filosóficos: misticismo ocidental e misticismo oriental não pertencem à mesma família. Porém, a chave que nos permite clarificar os fundamentos da mecânica quântica não se encontra no misticismo, mas na tradição subterrânea do materialismo ocidental, aquela que não foi registada pela história da filosofia. Althusser afirma que os historiadores podem falar de "leis" da História porque consideram apenas o facto consumado, o da história passada. Assim, nesta perspectiva, a história apresenta-se como um objecto fixo e estável, cujas determinações podem ser estudadas como as de um objecto físico, um objecto acontecido, morto. A fonte da ideologia espontânea dos historiadores encontra-se nesta concepção da história consumada, da qual sacam estatísticas determinantes e deterministas, sem levar em conta a história viva. A língua alemã dispõe de uma palavra para designar a história viva: Geschichte. A história no presente é determinada em grande parte pelo passado já acontecido, mas só em parte, porque a história presente está aberta também a um futuro incerto, imprevisto, ainda não-consumado e, portanto, aleatório. A história presente só obedece a uma "constante" que não é uma lei: a constante da luta de classes. Marx nunca utilizou o termo "constante": ele utilizou a expressão "lei tendencial". Uma tendência não possui a forma ou a figura de uma lei linear, na medida em que pode bifurcar-se sob o efeito de um encontro com outra tendência e assim até ao infinito. Em cada cruzamento de caminhos, a tendência pode tomar uma via imprevisível, o que indica que a história presente é sempre a história de uma conjuntura singular e aleatória. Barry Hindess & Paul Q. Hirst levaram esta concepção até ao ponto de libertar o marxismo da história dos historiadores, lembrando que a história é um texto potencialmente infinito, voltado sobre si mesmo e constantemente a ser reescrito. O conceito que se destaca desta nova concepção da história é o de conjuntura singular e aleatória. Uma conjuntura é uma combinação ou encontro aleatório de elementos, em parte existentes mas também imprevisíveis. Assim, toda a conjuntura é um caso singular como todas as individualidades históricas e como tudo o que existe. Esta concepção da história presente permite a Althusser criticar a interpretação do marxismo apresentada por Karl Popper: os objectos do marxismo não são do tipo da história consumada, mas da história viva que se faz e surge das tendências aleatórias, cujas formas são estranhas ao determinismo das leis físicas clássicas. O marxismo precisa do materialismo aleatório para pensar a abertura do mundo ao acontecimento, à imaginação inaudita e à prática viva. Como já tinha mostrado num outro estudo preparatório, há uma forte afinidade entre a filosofia de Althusser e a filosofia do primeiro Wittgenstein. Para confirmar a abertura ao acontecimento, Althusser cita a célebre frase que abre o Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein: «O mundo é tudo aquilo que acontece» ou, segundo a tradução de Russell, «O mundo é tudo o que é o caso». Ora, a tese de que o mundo não é mais do que casos, situações e indivíduos singulares totalmente distintos entre si, é a tese fundamental do nominalismo. No esboço da história do materialismo apresentado por Marx n'A Sagrada Família, o nominalismo é visto como «a primeira expressão do materialismo». Mas Althusser vai mais longe do que Marx quando afirma que o nominalismo é já o materialismo, que, segundo certos estudos etnográficos, reina nas sociedades primitivas, tanto ao nível do pensamento como ao nível da realidade e da prática social. Para os membros destas sociedades primitivas, só existem seres singulares, cada um dos quais é designado por uma palavra singular: o "aqui e agora" não pode ser nomeado por uma palavra mas simplesmente indicado ou assinalado com o dedo. O acto de indicar com o dedo, em vez de recorrer à palavra, significa o primado do gesto sobre a palavra, do traço material sobre o signo. Embora tenha sido desenvolvido de forma sistemática no decorrer da Idade Média por Duns Escoto e Guilherme Ockham, com o primeiro a interrogar-se «se a matéria não poderia pensar», o nominalismo ocidental recua até Homero, Hesíodo, os sofistas e os atomistas (Demócrito e Epicuro). Infelizmente, Marx não chegou a elaborar uma teoria da história, no sentido do acontecimento histórico imprevisto, único e aleatório: o único filósofo que se aproximou da história política no presente foi Maquiavel. O materialismo aleatório força o materialismo histórico a abrir-se ao mundo do acontecimento, ao mesmo tempo que o convida a pensar uma nova prática política. A mecânica quântica obriga o materialismo histórico a operar uma viragem quântica. E, ao levar a bom-porto esta viragem, desenvolvendo uma nova teoria da história, o marxismo estará a contribuir para a elaboração activa de uma teoria unificada e global. Os físicos têm dialogado com filósofos menores, cujas obras geraram pequenas tempestades à superfície da água sem quebrar o próprio copo. Marx revolucionou tanto a filosofia como a ciência da história. Não consigo imaginar uma teoria unificada que não integre a sua teoria da história reformulada à luz do materialismo aleatório. Vejamos esta breve descrição do mundo quântico dada por Fritjof Capra: «A teoria quântica derrubou os conceitos clássicos de objectos sólidos e de leis da natureza estritamente deterministas. No nível subatómico, os objectos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em padrões de probabilidade semelhantes a ondas; estes padrões não representam, em última instância, probabilidades de coisas mas sim probabilidades de interconexões. Uma análise cuidadosa do processo de observação na Física atómica tem demonstrado que as partículas subatómicas não possuem significado enquanto entidades isoladas, só podendo ser compreendidas como interconexões entre a preparação de uma experiência e a sua posterior medição. A teoria quântica revela, assim, uma unidade básica no universo. Mostra-nos que não podemos decompor o mundo em unidades menores dotadas de existência independente. À medida que penetramos na matéria, a natureza não nos mostra quaisquer "blocos básicos de construção" isolados. Ao contrário, surge perante nós como uma complicada teia de relações entre as diversas partes do todo. Estas relações incluem sempre o observador, de maneira essencial. O observador humano constitui o elo final na cadeia de processos de observação e as propriedades de qualquer objecto atómico só podem ser compreendidas em termos de interacção do objecto com o observador. Por outras palavras, o ideal clássico de uma descrição objectiva da natureza perde a sua validade. A partição cartesiana entre o eu e o mundo, entre o observador e o observado, não pode ser efectuada quando lidamos com a matéria atómica. Na Física atómica, jamais podemos falar sobre a natureza sem falar, ao mesmo tempo, sobre nós próprios». Não há nada nesta descrição que não possa ser traduzido numa linguagem marxista clássica. A tese de doutoramento de Marx foi sobre os sistemas de filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro. Althusser foi, no entanto, mais longe quando adoptou a linguagem quântica - ou atomista: a de Epicuro - para pensar a novidade radical da descoberta científica de Marx. Se Fritjof Capra conhecesse a teoria de Marx ou mesmo a dialéctica de Hegel, não teria sido tão acrítico na recepção das ideias orientais: a interacção do objecto com o observador implica a ideia de um universo dinâmico num sentido não "intuído" pelo misticismo oriental. A leitura do livro de Capra é instrutiva pelo facto de mostrar que, lá onde predomina o misticismo oriental, a mecânica quântica está ausente.

J Francisco Saraiva de Sousa