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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (7)

Porto: Casa do Roseiral
Mais algumas ideias para a elaboração da Filosofia Médica:

1. Em Portugal, com os "filósofos" que temos, é impossível fazer o elogio da Filosofia: Eles mataram a Filosofia. Porém, a Filosofia atravessa um mau momento em todos os países ocidentais: as modas parisienses desgastaram a pesquisa filosófica e quebraram a continuidade da pesquisa fundamental. É preciso repensar a filosofia nas suas conexões com a ciência e a política: o mito positivista deve ser desinstitucionalizado. A Filosofia é conhecimento: esquecer isso é reduzir a filosofia a nada ou - o que é pior - a algo inofensivo. O Império da Opinião deve ser demolido e os seus portadores eliminados.

2. Os alemães têm produzido as melhores obras de Filosofia Médica. Hoje estive a ler algumas. Porém, o campo da Filosofia Médica é extremamente complicado. Sempre privilegiei a via que vai da patologia à fisiologia, mas neste momento vacilo: as teorias médicas disponíveis não captam a complexidade da biomedicina.

3. Steussloff & Gniostko (1968) escreveram uma obra monumental "A Imagem Marxista do Homem e Medicina", onde estabelecem como meta da medicina marxista o «homem social sadio». Ora, a medicina marxista é aqui pensada como antropologia. No entanto, acho ser possível questionar Marx sobre o problema do normal e do patológico: a minha intuição é que Marx concede prioridade ao patológico, até porque a sua "utopia social" é algo que ainda não foi realizado. Há portanto um repto marxista à abordagem de Comte.

4. De certo modo, Marx herda os problemas e as temáticas da medicina hipocrática e aprofunda-os. Ora, os princípios da medicina marxista permitem-nos detectar os erros das análises de Michel Foucault: o conceito de natureza não pode ser despachado. Direccionar o nosso olhar para a medicina permite-nos actualizar Marx. A Marxfobia é uma doença mental.

5. Só há um caminho para impedir a catástrofe: Usar a genética e a biomedicina para eliminar a maldade dos indivíduos de Direita.

6. O Jovem-Marx analisou conceitos-chave da Tradição da Medicina, em especial os conceitos de natureza e da relação do homem com outro homem que se comporta como "animal político". Deste modo, o seu Humanismo cristaliza-se a partir do Naturalismo.

7. Se a meta da medicina marxista é o homem social sadio, então podemos dizer que ela aprofunda a medicina hipocrática. A natureza pode eliminar o que torna a pessoa doente e restituir-lhe a saúde. Isto significa que a medicina grega é essencialmente formação do homem, é medicina antropoplástica, cuja arte terapêutica consiste no cuidado privado do corpo e num serviço público em prol da saúde denominado "politike". Com os novos progressos da medicina, é fácil recuperar estes conceitos gregos a partir da abordagem antropológica de Marx.

8. Ao esquecer a tradição marxista, a Esquerda europeia ficou sem orientação teórica e política. A Direita está a aproveitar essa amnésia da esquerda para destruir o Estado Social e o Serviço Nacional de Saúde. Marx continua a ser a luz que orienta as práticas políticas de esquerda; sem ele, não há política de esquerda.

9. Sou mesmo teimoso e não desisto facilmente das tarefas que me proponho: Pensar a biomedicina de modo a elaborar uma nova Filosofia Médica e uma Teoria Geral da Medicina. Passei todo o dia a estudar a evolução das ideias biológicas e médicas, na tentativa de descobrir um fio condutor. Porém, já ao fim da tarde, a minha mente foi caçada por uma ideia: a do desaparecimento do normal e do patológico ou, pelo menos, a emergência de uma abordagem plural. Quando passamos do macroscópio ao microscópio, torna-se oneroso classificar as doenças: a revolução do objecto e da óptica - a biologia molecular - faz desaparecer a nosologia. No entanto, suspeito que podemos actualizar a medicina hipocrática a partir desta revolução sem precedente.

10. A Clínica surgiu no século XVII, fazendo o termo referência ao leito onde o doente repousa. Ora, o desenvolvimento das teorias médicas nos finais do século XIX e no decorrer do século XX tornou desnecessária a clínica.

11. Ao longo da história, a medicina produziu mais mortes do que "curas". A sua amplitude contrastava com a sua fraca eficácia: muitas das pestes referidas pela história de Portugal foram crises de fome; as pessoas morriam de fome e não da peste. No entanto, nos conceitos da medicina hipocrática descobrimos ideias seminais que moldaram a evolução das ideias médicas.

12. Com a descoberta dos micróbios, o homem sentiu-se estranho num universo repleto de inimigos invisíveis. A bacteriologia levou à imunologia: a imunidade humoral é uma homenagem a Hipócrates.

13. "Abram os cadáveres": Esta palavra de ordem deu origem à anatomia e, posteriormente, à anatomia patológica. Logo aqui a medicina ocidental marca a diferença: a medicina chinesa é uma medicina sem anatomia. Porém, a dissecação dos cadáveres matou muitos "médicos" com a "picada anatómica". A ideia de infecção andava no ar, não podendo ser tematizada sem instrumentos.

14. O desenvolvimento da medicina foi bloqueado por diversas forças: a Igreja Católica tentou travar o uso dos cadáveres para a descrição anatómica e os "amigos dos animais" lutaram contra a experimentação animal sem a qual não haveria fisiologia. Porém, todos estes obstáculos foram superados e hoje todos beneficiam com o progresso da medicina. A história da anestesia pode ilustrar esta luta entre forças retrógradas e forças revolucionárias.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (6)

Cidade do Porto: Massarelos
1. Hoje foi dia de estudar o pai da psiquiatria americana: Benjamin Rush (1746-1818). Concordo com o seu amigo Jefferson: os seus tratamentos da loucura eram demasiado cruéis e condenáveis: aparelhos como o tranquilizador ou o girador são aparelhos de tortura. Mas o que me chamou a atenção foi a sua teoria da lepra da negritude dos escravos. A cor negra é uma doença que, segundo Rush, pode ser tratada. Em termos ideológicos, Rush diz o seguinte: o negro pode ser um empregado doméstico aceitável do ponto de vista médico, embora deva ser alvo de segregação sexual para impedir a transmissão de uma doença hereditária temida. Os brancos não devem tiranizá-los - os negros - e não devem casar com eles: a doença poderá ser curada no futuro.

2. Negando as diferenças entre doenças do corpo e doenças da mente, Benjamin Rush abusou da metáfora médica para medicalizar a vida social: o Pennsylvania Hospital foi a materialização da ideologia psiquiátrica que fez do desvio social uma doença mental.

3. Infelizmente, Portugal é um país entregue aos burros: O Bode Expiatório da psiquiatria institucional foi sempre o Homossexual. O auto de 1723 relata um caso que ocorreu em Lisboa, cuja sentença foi a flagelação e dez anos de serviço nas galés. A homossexualidade era tratada como um delito e o delito como uma heresia: o castigo era a relaxação - queima na fogueira - ou flagelação - açoitamento - e as galés. A chamada libertação dos loucos não ocorreu em Lisboa, mas sim no Porto: o Hospital Conde de Ferreira protagoniza esse movimento em Portugal, embora usasse ainda alguns instrumentos de tortura. Porém, ainda não temos uma história da loucura em Portugal.

4. A masturbação foi outra prática sexual condenada e punida pela Psiquiatria Institucional: a ideologia psiquiátrica da masturbação é deveras bizarra. Porém, ainda hoje os pacientes que se masturbam compulsivamente nas enfermarias são objecto de um tratamento clássico: as mãos são amarradas às grades da cama. Mas como devem ter reparado falei de masturbação compulsiva: o que quer dizer que há formas patológicas de masturbação. Devemos criticar a violência psiquiátrica sem deitar fora a Psiquiatria.

5. Enfim, concordo com a crítica da violência psiquiátrica levada a cabo pela Antipsiquiatria, mas também condeno os excessos deste movimento, em especial a política do orgasmo. Chegou a hora de mandar à merda o orgasmo. Descarta-te do sexo e cultiva a tua mente! Todos os movimentos de emancipação sexual fracassaram. Hoje sabemos que o sexo não liberta; pelo contrário, escraviza, destruindo a mente, a vida pessoal e social e a saúde mental e física.

6. A teoria da negritude de Benjamin Rush parece ser um disparate e assim é. Mas faz algum sentido no contexto americano oitocentista. Com efeito, por volta de 1792, começaram a surgir zonas brancas no corpo de um escravo negro chamado Henry Moss, que, no espaço de três anos, ficou completamente branco. Ele era portador de uma doença hereditária chamada vitiligouma doença não-contagiosa em que ocorre a perda da pigmentação natural da pele, tanto nos negros como nos brancos. (Rush desconhecia que a perda de pigmentação pode ocorrer nos brancos.) Ora, quando soube disso, Rush pensou que a cor biologicamente normal do negro era uma doença que, no caso de Moss, tinha sido curada de modo espontâneo. Daí que tenha sugerido que a cor negra era resultado do sofrimento de lepra pelos seus ancestrais africanos. Ora, nalguns casos, em especial entre os habitantes das ilhas de lepra do Pacífico Sul, a lepra é acompanhada pela cor negra da pele.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (5)

Cidade do Porto
Mais ideias sobre Filosofia Médica na sua relação com a Antipsiquiatria:

1. R. D. Laing legou-nos um conceito primordial: Segurança Ontológica. A Antipsiquiatria inspira-se no existencialismo de Sartre. A transição da segurança ontológica à insegurança ontológica permite compreender o modo de ser-no-mundo daqueles - os psicóticos - que a psiquiatria hospitaliza: o indivíduo ontologicamente inseguro pode viver três formas de angústia: ser tragado, implosão e petrificação e despersonalização. A Filosofia Dialéctica da Antipsiquiatria ainda não foi devidamente estudada.

2. A política de empobrecimento do Governo de Portas-Coelho mina completamente o sentimento de segurança ontológica dos portugueses, os quais não possuem um sentido de realidade forte em circunstâncias normais. A penúria lança-os na insegurança ontológica e perturba-os nas suas relações com os outros. Porém, no caso dos portugueses, em virtude da sua propensão para a loucura, é necessário introduzir novas manifestações de angústia, nomeadamente o vampirismo existencial e a inveja patológica. Portugal caminha na direcção de um país pobre e louco.

3. O meu encanto pela antipsiquiatria levou-me a desenterrar das estantes todas as obras dos fundadores deste movimento e a relê-las com mais atenção. Durante a minha vida só devo ter lidado com meia dúzia de esquizofrénicos e, por isso, não tenho grande experiência da experiência esquizofrénica. Hoje acompanhei o desenvolvimento intelectual de Laing e aprendi a reler "A Política da Experiência", talvez a sua obra mais antipsiquiátrica. E a apreciar o modo como Cooper politiza o movimento da antipsiquiatria à não-psiquiatria, a partir de uma mudança profunda da sociedade. Marx foi redescoberto pelos fundadores da antipsiquiatria. Ora, um tal questionamento radical da psiquiatria clássica implica uma reformulação do próprio campo da medicina.

4. A revolução antipsiquiátrica deve ser entendida como uma revolução da consciência que denunciou a violência exercida sobre os esquizofrénicos e os danos causados pelo imperialismo da norma. A revolução fundamental preconizada pela antipsiquiatria contra a dominação será o resultado de uma evolução da consciência humana: Laing libertou a subjectividade ao acentuar a continuidade entre o normal e a loucura. As consequências mais importantes da antipsiquiatria resultam deste acto de fazer ir pelos ares a barreira-ruptura entre o normal e a loucura.

5. Convém não ver uma ruptura entre The Divided Self (1960) e The Politics of Experience (1967). O conceito de experiência transcendental de Laing corresponde aos conceitos de reversão de Esterson e de anoia de Cooper: «A verdadeira saúde mental implica de uma maneira ou de outra a dissolução do ego normal, desse falso eu sabiamente adaptado à nossa realidade social alienada, a emergência dos arquétipos "interiores" mediadores da potência divina, o desembocar desta morte numa re-nascença e a re-criação de uma nova função do ego, em que o eu já não traia o divino, mas o sirva» (Laing).

6. A Antipsiquiatria fez uma crítica justa da psiquiatria clássica e sua ideologia clerical e da ciência e seus "métodos cegos", embora tenha fracassado no "tratamento" dos esquizofrénicos. Ora, a psiquiatria institucional aboliu-a dos manuais de psiquiatria e, quando a refere, é para dizer que os seus "bons loucos" são como os "bons selvagens" de Rousseau. Porém, o que interessa na antipsiquiatria é a sua teoria da experiência e a sua crítica justa da ciência objectiva. Além disso, a antipsiquiatria abre a medicina ao mundo social e, quando apresenta a norma como alienação, converte-se em crítica social e política. A adaptação social não é critério de saúde mental.

7. A psiquiatria institucional está ao serviço da manutenção da sociedade estabelecida e, nessa função, deve ser criticada: a antipsiquiatria pode ser encarada como crítica da ideologia psiquiátrica. Os antipsiquiatras foram grande profetas: o mundo presente confirma as suas profecias. Se tivessem sido escutados nos anos 60, o mundo não estaria hoje à beira do abismo. A vida saudável não pode ser dissociada da vida justa: a medicina precisa mais de filosofia do que de psicologia.

8. Aprovo o programa pré-revolucionário proposto por Cooper: a criação de Centros Revolucionários de Consciência. A psiquiatria pode integrar um tal programa de investigação científica. O atraso estrutural de Portugal tem uma dimensão humana: o país não se desenvolve porque os portugueses são seres mental e cognitivamente atrasados. A reformulação do programa pré-revolucionário de Cooper pode ajudar os portugueses a superar-se a si mesmos e a renascer como novas pessoas. 

9. Aprovo a crítica antipsiquiátrica da família e da escola. De facto, devemos gerar um movimento de Antipedagogia e defender a criação de anti-escolas e de anti-universidades. A mente arcaica dos portugueses refugiou-se na pedagogia para não aprender: o fracasso da educação em Portugal fornece-nos todos os elementos para pensar a antipedagogia

10. Defendo a libertação da subjectividade rebelde, mas não a situo ao nível da loucura. A psiquiatria institucional tende a colocar loucos e génios do mesmo lado da barreira entre norma e loucura, exigindo a ambos a adaptação social à média social. A noção antipsiquiátrica de viagem deve ser diferenciada: a viagem do louco é diferente da viagem do revolucionário. Neste terreno, o diálogo com a antipsiquiatria pode ser muito produtivo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (4)

Mais ideias sobre Filosofia Médica nas suas relações com a Psiquiatria:

1. Hoje tenho passado o dia chuvoso a estudar psiquiatria portuguesa e americana. tendo relido uma conferência dada por Goffman a uma audiência de psiquiatras. A psiquiatria tem um passado macabro que revejo no excesso de autoridade dos psiquiatras portugueses, desde o século XIX até ao 25 de Abril. Conheço de perto a síntese antropológica da medicina proposta pela psiquiatria portuguesa, embora não a entenda teoricamente. Devemos combater o imperialismo psiquiátrico no seio da medicina: não acredito na eficácia das psicoterapias e os novos ramos da psiquiatria - psiquiatria comunitária, psiquiatria geriátrica e psiquiatria forense, entre outros ramos - estão claramente ao serviço da manutenção do status quo.

2. Os profissionais da saúde mental temem a desmedicalização da psiquiatria. Em Portugal, a recepção do movimento da antipsiquiatria foi muito má: todos temiam ficar sem emprego. "A violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria" (David Cooper), isto é, a subtil e tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos "sadios", contra os rotulados de loucos. A neurocirurgia praticada por EGAS MONIZ foi um acto de violência da psiquiatria. Qualquer história arqueológica da psiquiatria devia ter um capítulo final consagrado à "Violência e Psiquiatria". 

3. Infelizmente, não temos um bom estudo sobre a vida e obra de EGAS MONIZ: os portugueses não sabem fazer análises finas do pensamento daqueles que pensaram neste ermo que é Portugal. Já escrevi 3 ou 4 textos sobre a homofobia de Egas Moniz: a sua prática psiquiátrica é pura violência da psiquiatria. A destruição de partes do encéfalo é mais devastadora do que o encarceramento dos loucos. Egas Moniz comportou-se como um psiquiatra fascista.

4. Ontem, num piso inferior do Shopping do Bom Sucesso, foi brutalmente assassinado um homem gay que tinha marcado um encontro clandestino: a busca compulsiva de parceiro sexual levou a um encontro com a morte brutal. Ora, o crime do Bom Sucesso traz à baila o estilo de vida promíscuo dos homens homossexuais. A busca compulsiva de novos parceiros sexuais coloca em perigo a vida dos homens homossexuais, não só em termos de doenças sexualmente transmissíveis, mas também em termos de saúde mental e de criminalidade: sexo casual é sinónimo de encontro com a morte. A comunidade homossexual exibe um vasto espectro de perturbações mentais: o modelo de intervenção psiquiátrica junto da comunidade homossexual é relevante para a Filosofia Médica. A psiquiatria comunitária pode ser avaliada a partir deste modelo de intervenção psiquiátrica.

5. E. Goffman caracterizou o Hospital Psiquiátrico como uma instituição total, dando destaque ao seu "ciclo metabólico": a entrada ou recrutamento, a mastigação e o regurgitamento dos seres humanos. A analogia biológica chocou os psiquiatras, bem como M. Mead, a qual alegou que o ser humano não é um excremento ou um vómito. Porém, a mesma analogia foi usada por David Cooper: «No hospital psiquiátrico tradicional, actualmente, a despeito da proclamação de progresso, a sociedade consegue o melhor de ambos os mundos - a pessoa, que é "vomitada" para fora da família, para fora da sociedade, é "engolida" pelo hospital e, então, digerida e metabolizada, fora da existência como pessoa identificável. Creio que isto deve ser encarado como violência». 

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 2 de novembro de 2013

Dossier Filosofia Médica (3)

 Mala Moçambicana
Eis mais algumas ideias sobre Filosofia Médica:

1. O nazismo forçou o exílio de muitos intelectuais alemães. Adorno que nunca foi feliz no seu exílio americano falou da sua "vida danificada". Ora, nascer português é nascer para a vida danificada. Esta é uma verdade terrível que devia ser discutida publicamente pelos portugueses. A maldade humana manifesta-se em diversos momentos da história. Mas não é permanente como a maldade portuguesa.

2. Deleuze dedicou um livro à explicitação da filosofia de Foucault sem no entanto ter alcançado esse objectivo. Desconheço a existência de uma análise da "Arqueologia do Saber" de Foucault, obra onde ele se debate com o estruturalismo. Além disso, a relação de Foucault com o marxismo ainda não foi explicitada, embora as entrevistas forneçam muitas indicações a esse respeito. Eu comecei a ler Foucault durante a minha adolescência: a articulação entre relação de produção (Marx) e relação de poder sem teoria política (Nietzsche) nunca me seduziu: o aparelho de Estado ocupou sempre um lugar de destaque no meu pensamento. Estou convencido de que podemos analisar o Hospital, a Prisão, o Exército, etc., a partir da teoria do poder de Marx sem rejeitar o contributo de Foucault.

3. Hospital Psiquiátrico: Foucault e Goffmann aliaram-se à Anti-Psiquiatria para demolir esta instituição de saúde. Devo reconhecer que sempre estive associado a essa tendência num terreno estritamente científico: a defesa de uma Psiquiatria Biológica. No entanto, não sou favorável ao fechamento dos Hospitais Psiquiátricos. A crítica de Goffmann do Hospital Psiquiátrico como instituição total é justa: aprecio tudo o que disse sobre os territórios do eu e sobre os processos de mortificação do eu. Estes fenómenos ocorrem em qualquer tipo de internamento. Precisamos de uma Filosofia da Hospitalização.

4. Infelizmente, ainda não temos uma História da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a vanguarda da medicina e da psiquiatria portuguesas. As obras fundadoras da Psiquiatria Portuense não estão disponíveis no mercado do livro. Barahona Fernandes tentou suprir essa lacuna dos estudos médicos portugueses escrevendo "A Psiquiatria em Portugal" como complemento de "Um Século de Psiquiatria" de P. Pichot. Porém, a obra é francamente medíocre. Barahona Fernandes limita-se a condenar a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault. 

5. Os médicos portuenses dão nome a diversas instituições de saúde espalhadas pelo país. Destaco três nomes: Júlio de Matos, Miguel Bombarda e Magalhães de Lemos, para já não falar de Ricardo Jorge. Júlio de Matos escreveu duas obras fundamentais: "Os Alienados nos Tribunais" e "A Loucura", nas quais se afirma como alienista-filósofo. Magalhães Lemos defendeu a face neurológica da psiquiatria. António Maria de Sena legou-nos uma obra profunda: "Os Alienados em Portugal". Enfim, uma série de obras que ainda não foram estudadas. De certo modo, a anti-psiquiatria tal como a entende Foucault percorre cada uma delas. O cerne da anti-psiquiatria é a luta  com, dentro e contra a instituição psiquiátrica: o questionamento do poder na prática anti-psiquiátrica leva à desmedicalização da loucura

6. António Mendes Correia é outro ilustre portuense que nos legou um conjunto de obras em diversas áreas científicas, da biologia à história, passando pela antropologia e pela criminologia: O Génio e o Talento na Patologia (1911), Criminosos Portugueses (1913), Crianças Delinquentes (1915), Antropologia (1915), Raça e Nacionalidade (1919), Homo (1921), Os Povos Primitivos da História (1924), A Antropologia nas suas relações com a Arte (1925), A Nova Antropologia Criminal (1931), Origens da Cidade do Porto (1932), Da Biologia à História (1934), Da Raça e do Espírito (1940), Uma Jornada Científica na Guiné Portuguesa (1946) e Antropologia e História (1954). A malvadez dos portugueses condena ao esquecimento as obras dos ilustres portuenses.

7. Interrompi o meu estudo sobre a evolução da psiquiatria portuguesa para estudar a situação da psiquiatria nos países asiáticos, tais como China, Coreia, Tailândia, Japão e Índia. Fiquei encantado com a abordagem cultural da psiquiatria asiática. Entretanto, tenho espreitado a psiquiatria forense americana, em especial o homicídio sexual em série porque ela me permite reintroduzir a noção de maldade, de modo a pensar a natureza perversa dos portugueses.

8. O aumento do número de assassinos em série nos USA levou alguns teóricos a reintroduzir a noção de maldade dentro da esfera da psiquiatria. As noções de mal e de pecado transitam da esfera religiosa para a esfera da psiquiatria e da filosofia, dando-nos uma plataforma conceptual de pensamento sobre a experiência humana universal de crueldade e dor (Cf. Andrew Delblanco, 1995). Doravante, a maldade ocupa um lugar privilegiado nos vocabulários profissionais da psiquiatria e da filosofia: as pessoas que cometem actos de crueldade devem ser consideradas responsáveis pelos seus actos, mesmo que uma doença mental possa estar presente.

9. Cesare Lombroso (1836-1909) acreditava que havia uma forte correlação entre certas configurações faciais e várias tendências criminais: o self exterior compartilhava assim da mesma "degeneração" manifestada pelo self interior do insano (Morel). De Cardano e Della Porta a Lombroso, passando por Gall, predominava o interesse pela fisionomia, no caso dos italianos, e pelo formato do crânio, no caso de Gall. Ora, em Portugal, a obra de António Mendes Correia situa-se nessa linhagem teórica da criminalidade: o ilustre portuense elaborou uma nova antropologia criminal - e do génio, tal como Lombroso, que urge analisar nesse contexto cultural.

10. A síndrome japonesa de ka-roh-shi - cujo significado literal é "morte por excesso de trabalho" - tem preocupado os psiquiatras japoneses. À carga de trabalho imposta pelas empresas japonesas aos executivos médios, eles acrescentam as pressões parentais. Com efeito, a elevada expectativa parental por desempenho académico está na base da criação de um sistema de escolas extremamente exigentes, onde os alunos continuam debruçados sobre os seus livros após o termo do seu já longo dia escolar. No Japão, as crianças estudam e fazem tudo para obter boas classificações escolares. Ora, as pressões familiares e sociais levam aqueles que não conseguem alcançar as notas exigidas à depressão ou mesmo à delinquência. A taxa de suicídio é alta no Japão. Em Portugal, as escolas já não funcionam: a paixão pela ignorância converteu as escolas portuguesas em recreios de engate.

11. O meu interesse pelas neurociências espirituais abriu a minha mente ao estudo de Tomio Hirai (1989) sobre uma forma de meditação Zen - Zazen - em relação ao tratamento psiquiátrico. O Zazen - a meditação sentada - está relacionado com os ensinamentos budistas e o estado de tranquilidade que proporciona é chamado satori (iluminação) que significa mente livre de ilusões. À medida que a meditação prossegue, a frequência de ondas alfa diminui gradualmente e aparecem as ondas teta rítmicas, alterações que correspondem àquelas que ocorrem durante o sono e estados de transe hipnótico. A filosofia da meditação Zen é mais interessante que a filosofia da psicanálise.

12. A disfunção psicossexual é frequente na China. Nos homens, a disfunção psicossexual pode tomar a forma de suoyang que significa "encolhimento do pénis". Na cultura popular, esta condição representa a perda da força yang (masculina) como resultado de actividades sexuais excessivas ou de possessão por espíritos maus (Wen, 1995). Além disso, a masturbação excessiva pode exaurir o yang do indivíduo, levando à condição mórbida conhecida como shenkui, equivalente ao nosso antigo conceito de neurastenia. O significado original de shenkui é deficiência renal, reflectindo a crença popular de que o rim armazena o sémen. A neurastenia cerebral - nao-shenjing shuai-ruo - está relacionada com esta neurastenia sexual, sendo ocasionada por excesso de estudos: tontura, falta de concentração e de memória e insónia são os seus sinais.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Dossier Filosofia Médica (2)

Contém uma exposição da Medicina Primitiva.
Mais ideias para o Dossier Filosofia Médica:

1. Ao repensar a Filosofia Médica, descobri que preciso pensar uma Filosofia da Medicina e uma Filosofia na Medicina. O surgimento da medicina-ciência - a biomedicina - implica uma nova epistemologia médica. Ora, a classificação das ciências médicas é uma tarefa complicada. Além disso, existem epistemologias regionais, tais como a epistemologia da genética e da imunologia.

2. O campo da Biomedicina tal como o conhecemos hoje é tão complexo que dificulta a tarefa de elaborar uma nova Filosofia Médica. Uma via interessante a seguir é a das doenças infecciosas: o seu estudo biológico ajuda a compreender a articulação de ciências-chave da biomedicina. A perspectiva médica das doenças infecciosas é antropológica, ao passo que a perspectiva biológica respeita tanto os homens como os parasitas. Porém, não sei se esta distinção deve ser mantida na nova filosofia médica.

3. Infelizmente, a antropologia filosófica não deu atenção ao homem-doente. O meu interesse pelo Hospital leva-me a propor uma Filosofia da Hospitalização capaz de reintroduzir o homem-doente no seio da antropologia filosófica. O comportamento perante a doença e perante a hospitalização revela estruturas antropológicas universais, tais como a visão reduzida do mundo ou a retirada do mundo hospitalar.

4. A passagem de uma concepção negativa para uma concepção positiva da saúde aproxima o campo da medicina do campo da filosofia: a medicina é algo mais do que o estudo, a prevenção e a cura da doença; ela interessa-se pelo fomento dos elementos que contribuem para a "boa vida" e estimulam a população a viver de modo saudável. A Filosofia da Saúde deve articular a Vida Saudável e a Vida Justa. É nesta articulação que podemos definir uma política da saúde.

5. A SIDA matou Michel Foucault que escreveu abundantemente sobre o nascimento da clínica e do hospital, embora o seu alvo predilecto tenha sido a loucura. A leitura da sua obra deixa-nos com uma visão negativa da medicina, cujos cuidados ele procurava quando entrava em depressão. Susan Sontag denuncia o predomínio da metáfora belicista no reino da imunologia, mas também ela precisou dos cuidados médicos para liquidar o seu cancro. Foucault e Sontag escreveram sobre medicina como se fossem utentes de um serviço de medicina primitiva, onde predomina a etiologia social em detrimento da etiologia científica. Eles falaram sobre as doenças sem conhecer o funcionamento do organismo.

6. Iatrofilosofia é a designação dada à Filosofia da Medicina. A Iatrofilosofia - ou simplesmente a Filosofia Médica - estuda os pressupostos filosóficos das ideias e das práticas médicas e investiga os problemas filosóficos surgidos na pesquisa e na prática médicas. A Filosofia Médica enfrenta dois grandes problemas que dificultam o seu crescimento: o primeiro problema iatrofilosófico é a caracterização da própria medicina, e o segundo problema iatrofilosófico é distinguir os seus próprios ramos e identificar as questões características e urgentes de cada um deles. Sem pretender ser exaustivo, posso destacar os seguintes ramos da Filosofia Médica: a Iatrologia, estudo dos problemas lógicos da medicina; a Iatrossemântica, estudo dos problemas semânticos da medicina; a Iatro-epistemologia, estudo dos problemas do conhecimento médico; a Iatrometodologia, estudo dos problemas metodológicos da pesquisa e da prática médicas; a Iatro-ontologia, estudo dos conceitos ou hipóteses ontológicos inerentes às teorias e práticas médicas; a Iatro-axiologia, estudo dos valores médicos, a começar desde logo pela saúde; a Iatro-ética, estudo dos problemas morais suscitados pela pesquisa e prática médicas; e a Iatropraxeologia, estudo dos problemas gerais colocados pela prática médica individual e pela gestão da saúde pública. A distinção destes ramos da Iatrofilosofia tem sido levada a cabo a partir da Epistemologia, a ciência das ciências. Uma Filosofia Médica sistematizada pode implicar outras articulações teóricas. Em vez das designações usadas, poderíamos ter usado outras, tais como Lógica Médica, Semântica Médica, Epistemologia Médica, Metodologia Médica, Ontologia Médica, Axiologia Médica, Ética Médica e Política Médica.

7. Como já vimos, as ideias de saúde, doença e terapia dependem criticamente da concepção de Homem adoptada pelos filósofos e médicos. A antropologia filosófica deverá integrar o homem-doente no seu corpo teórico. A abordagem biológica deve ser adoptada pela antropologia filosófica porque só ela permite elaborar um conceito geral de doença.

8. A Filosofia Médica articula-se com a BioFilosofia ou Filosofia Biológica. A prioridade da Filosofia Médica é pensar a problemática da BioMedicina e ajudá-la a clarificar os seus conceitos, teorias e práticas. Outra conexão a pensar é a que existe entre medicina e tecnologia: a Filosofia Médica também se articula com a Filosofia da Tecnologia

9. Ivan Illich acusou a medicina de ser mais uma religião e um comércio do que uma ciência e um apostolado: a medicalização da vida tem efeitos nocivos. Os médicos enquanto grupo profissional ignoraram as acusações de Illich, em vez de aproveitar a oportunidade para investigar o problema e realizar uma auto-crítica honesta, reconhecendo os elementos que reduzem a saúde a um negócio lucrativo e investigando a sua influência na formação universitária dos médicos e na estrutura da sociedade. Sem a ajuda da Filosofia, a Medicina não consegue clarificar os seus próprios problemas. A iatrogénese clínica, a iatrogénese social e a iatrogénese estrutural não são meras invenções de Illich; são realidades em andamento na sociedade capitalista.

10. A Filosofia Médica não é mera espectadora da actividade médica, mas exerce efectivamente um papel activo sobre a medicina. As Faculdades de Medicina devem incentivar os estudos iatrofilosóficos, de modo a propiciar a formação de médicos com competência filosófica e de filósofos com competência médica.

11. A Filosofia Médica está a ocupar cada vez mais "espaço" no meu cérebro-mente: Em Filosofia, precisamos de ideias-fundadoras capazes de iluminar a teoria que queremos elaborar. Ora, no caso da Iatrofilosofia, o homem deve ser definido de modo a incluir os estados de doença na sua essência enquanto ser condenado à morte. A finitude implica estados de doença no decurso do ciclo vital do ser humano: a abertura ao mundo é um risco; o organismo está permanentemente sujeito a ser agredido pelo ambiente.

12. Não podemos mudar aquilo que desconhecemos. Para mudar o mundo, é preciso conhecê-lo. A célebre tese de Marx sobre a transformação do mundo foi mal-interpretada: a filosofia de Marx nunca abdicou da teoria a favor da praxis. Nós conhecemos relativamente bem a dinâmica do capitalismo, mas este conhecimento não é suficiente para transformar o mundo: os agentes sociais da mudança já não são os mesmos do século XIX. O capitalismo introduziu mudanças significativas no mundo da vida quotidiana e no mundo da cultura e da personalidade. Conhecer os novos agentes sociais e os seus mundos fantásticos e saturados é uma prioridade da teoria crítica. Este conhecimento implica mudanças estruturais na agenda política da esquerda atenta ao mundo.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Dossier Filosofia Médica (1)

Uma mala moçambicana
«Procura-se a medicina, em geral, ignorando-se totalmente as teorias médicas, mas não sem ideias preconcebidas sobre os conceitos médicos». (G. Canguilhem).

Hoje partilho algumas ideias do Dossier Filosofia Médica:

1. A relação médico-doente deve ser revisitada pela filosofia médica: Um doente inteligente é aquele que sabe desafiar o médico, quebrando o ritual médico. O doente que se entrega à sabedoria médica sem a desafiar é tratado como uma coisa: a responsabilidade da reificação médica deve ser atribuída ao doente ignorante e passivo.

2. Hoje, ao contactar com alguns exemplares da população idosa masculina, conclui que há dois tipos de idosos masculinos: um simpático embora burrinho e outro detestável. Ainda não temos uma teoria das masculinidades portuguesas. O meu palpite é simples: Há um défice de masculinidade em Portugal.

3. O que é a imbecilidade? É julgar que todos os "sinais do mundo" se dirigem a si próprio. Ora, o mundo não gira em torno de ninguém: o imbecil que se coloca no centro do mundo atribui uma carga mágica àquilo que interpreta como "sinais do mundo" dirigidos à sua própria pessoa. O mundo da imbecilidade merece estudo.

4. Com o advento das neurociências, a psicologia tornou-se uma ciência sem objecto, e, como não há ciência sem objecto - isto é, ciência que tenha o nada como objecto, a psicologia desaparece do universo das ciências. A abertura do Dossier Filosofia Médica visa precisamente desalojar a psicologia médica que não pode resolver os problemas que herda da filosofia: o problema do normal e do patológico não é um problema científico mas sim um problema filosófico. A noção de homem total é filosófica e não psicológica. Desconstruir as ilusões de sabedoria da psicologia médica - produzida por psiquiatras - é desde logo lançar as bases de uma nova filosofia médica.

5. Os manuais de psicologia médica que reflectem a ambição-orientadora da psiquiatria no seio da medicina tratam invariavelmente de três tópicos: o doente e sua doença, o médico e sua medicina e a relação médico-paciente. A função apostólica atribuída-imputada por M. Balint aos médicos deve ser repensada, de modo a evitar as ratoeiras da linguagem psiquiátrica: a conversão médica do doente pode ser uma ilusão.

6. Numa aula, quando procurei articular a medicina psicológica e a medicina social com a medicina biológica, um aluno disse-me que estava a privilegiar o modelo médico. De certo modo, tinha razão porque uma reconfiguração destes três modelos que dê prioridade à medicina biológica implica o poder dos médicos. Porém, esse poder tem os seus limites: Sou contra a medicalização da vida.

7. Os psiquiatras que escrevem manuais de psicologia médica adoram apresentar uma série de casos que geram dificuldades na medicina biológica, de modo a justificar a sua intervenção psicológica. E, mais recentemente, usam o argumento dos custos desses casos para o serviço nacional de saúde. Ora, sem negar a existência desse tipo de doentes, podemos devolver aos psiquiatras a função apostólica que eles atribuem aos médicos: a sua presença é onerosa.

8. Repare-se que não estou a excluir a psiquiatria da medicina: o que estou a dizer é que os discursos psiquiátricos reforçam a medicalização da vida. Ora, uma das tarefas da filosofia médica é desmedicalizar a vida, dando uma certa autonomia ao doente. Aliás, são as indústrias farmacêuticas que estão interessadas na medicalização da vida, fazendo das pessoas eternos doentes.

9. Agora vou directo ao que interessa: A Esquerda não sabe defender o Serviço Nacional de Saúde. Em Portugal, o Estado financia a medicina privada através da ADSE. Ora, a Esquerda já devia ter abolido esse privilégio se fosse defensora do SNS. Todos conhecemos casos em que os beneficiários da ADSE dizem ser "ricos" porque recorrem à medicina privada. Tantas ilusões, tantas manias de grandeza!

10. Ao meditar as temáticas da Filosofia Médica, topei com a morte vodu, morte mágica ou morte por feitiço. Curiosamente, ainda não sabemos explicar a morte mágica a não ser mediante o recurso aos aspectos culturais do stress. Outra noção curiosa é a de que a inveja pode matar pelo olhar: o Mau-Olhado causa diversos tipos de problemas de saúde. Seria interessante fazer uma geografia cultural do mau-olhado: Portugal - país de invejosos - encabeça a geografia do mau-olhado.

11. Eis como a antropologia médica caracteriza a perspectiva do médico sobre a doença: racionalidade científica (1), ênfase sobre a mensuração objectiva e numérica (2), ênfase em dados bioquímicos (3), dualismo mente-corpo (4), visão das doenças como entidades (5) e ênfase sobre o paciente individual, não na família ou na comunidade (6). Há a tendência para criticar a mudança do método subjectivo de diagnóstico - os sintomas subjectivos do paciente, a interpretação subjectiva dos sinais físicos por parte do clínico - para o método objectivo que utiliza a tecnologia de diagnóstico para a colecta e a mensuração de dados clínicos. Ora, esta caracterização é simplista: a filosofia médica deve esclarecer a problemática da biomedicina.

12. A relativização do modelo médico é perigosa: a temática das metáforas das doenças associa-se, na imaginação das pessoas, a crenças tradicionais sobre a natureza moral e religiosa da saúde, da doença e do sofrimento humano, prejudicando a explicação e o controle das próprias doenças. Vê-se aqui a necessidade de elaborar uma filosofia para a biomedicina capaz de romper com as "doenças populares". Colocar a biomedicina ao lado das curas espirituais e da homeopatia é um disparate.

13. É muito complicado elaborar uma Filosofia da Doença. A normalidade é definida através da referência a determinados parâmetros físicos e bioquímicos. Para cada medida existe uma faixa numérica - um valor normal - na qual o indivíduo é considerado saudável. Valores superiores ou inferiores a esta faixa são anormais e indicam a presença de doença - entendida como desvio da normalidade. Assim, por exemplo, um valor inferior ao normal para a hormona da tiróide no sangue indica hipotiroidismo; um valor superior indica hipertiroidismo; e, se o valor for intermédio, indica que a tiróide esta a funcionar normalmente. Esta noção de doença como desvio da normalidade deve ser trabalhada.

14. Em Moçambique, discute-se muito o regresso dos curandeiros e dos feiticeiros. Porém, a sua explicação é simples: Quando o Estado não constrói uma rede hospitalar para fazer face aos problemas de saúde, a população que adoece recorre às "medicinas alternativas". As crenças tradicionais combatem-se através da educação e, sobretudo, de um serviço nacional de saúde.

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Programação de Novos Estudos

Cidade do Porto ao anoitecer
«Nós não desembarcámos neste planeta como alienígenas. A humanidade é parte da natureza, uma espécie que evoluiu ao lado de outras espécies. Quanto mais nos identificarmos com o restante da vida, mais rapidamente seremos capazes de descobrir as origens da sensibilidade humana e de adquirir o conhecimento sobre o qual fundamentar uma ética durável, um verdadeiro senso de direcção». (Edward O. Wilson)


«Gostaria de dizer ainda que o homem perdeu o seu rumo actualmente - o que poderíamos chamar de dilema da humanidade. Ele necessita alguma nova mensagem pela qual possa viver com esperança e significado. Penso que a ciência foi longe demais fazendo diminuir a crença do homem na sua grandeza espiritual e dando-lhe a ideia de que ele é meramente um insignificante ser material na frígida imensidão cósmica. (...) Creio que existe um mistério no homem, e asseguro que pelo menos é maravilhoso para o homem ter o sentimento de não ser um macaco apressadamente reformado, e que existe alguma coisa muito mais maravilhosa na sua natureza e no seu destino». (John C. Eccles)

«Para mim, agora (na hora da morte), a única realidade é a alma humana». (Charles Sherrington)

«O espírito é o homem que se conhece. Ele tem que ter continuidade através de períodos de sono e coma. Presumo então que este espírito tem de vir de uma ou de outra maneira após a morte. Eu não posso duvidar que muitos (homens) estabelecem contacto com Deus e se direccionam para se tornarem espíritos superiores. Mas estas crenças são pessoais, que cada homem deve adoptar para si próprio. Se ele possuir apenas um cérebro e não uma mente, esta difícil decisão poderia não ser dele». (Wilder Penfield)

«Se o homem é social por natureza, então ele desenvolve a sua verdadeira natureza só na sociedade». (Karl Marx)

Georg Lukács desenvolveu uma ontologia do ser social, onde faz alguma justiça a esta afirmação de Marx, mas não soube ver a sua implicação no campo da medicina ou mesmo da biologia. Vou dar continuidade aos estudos biológicos e biomédicos, mas desta vez realizados com uma preocupação antropológica: o objectivo destes estudos é preparar o terreno para a emergência de um novo paradigma do homem que deverá orientar toda a investigação no domínio da antropologia filosófica. Infelizmente, em Portugal e nos países de língua portuguesa, a antropologia filosófica nunca teve eco: interpreto esta indiferença lusófona em relação ao paradigma do homem como sintoma de uma insegurança dos utentes de língua portuguesa quanto à sua própria humanidade. Esta insegurança antropológica generalizou-se a toda a área cultural do Ocidente: o homem metabolicamente reduzido, dotado de inteligência reduzida e destituído de fibra moral e de honestidade intelectual, atribui aos animais as qualidades que deviam pertencer-lhe. (Os homens mais desonestos que conheço são os portugueses, que, como diz um amigo de São Paulo, referindo-se aos brasileiros, parasitam as sinapses dos outros, apropriando-se ilegitimamente dos pensamentos alheios sem mencionar os seus autores.) Esta transferência da humanidade do homem para o animal resulta de um processo de degenerescência genética e de degradação cultural em curso. Ao esbater as fronteiras entre o animal e o homem, a ciência biológica contribuiu para este processo, mas o grande responsável pela miséria humana é o capitalismo, cuja lógica do lucro está a devastar a terra. Uma das funções da Filosofia é denunciar o sonho totalitário que se abriga na noção de programação. (O behaviorismo antropológico não surgiu nos Estados Unidos da América por mero acaso: a programação do comportamento humano esteve sempre ao serviço da economia capitalista de mercado.) O desenvolvimento tecnológico não é, em si mesmo, inofensivo e neutral: a tecnologia é um imenso projecto de dominação total. (A ficção científica prevê um cenário futuro terrível: o homem a lutar contra um sistema - tecnológico ou alienígena - que lhe nega as suas qualidades humanas.) Eis alguns títulos previstos que parecem apontar no sentido da elaboração de uma tipologia diferencial apriorística das imagens do homem (Menschenbilder), tal como foi sugerida por Alois Dempf (1967):

1. A Imagem do Homem na Biologia de Monod.


3. O Materialismo Emergentista e o Problema Mente/Cérebro.

4. A Imagem do Homem na Ecologia: a Biodiversidade Ameaçada, o Homem Ameaçado.

5. A Imagem do Homem na Genética Molecular do Cancro.

6. Filosofia da Evolução e a Imagem do Homem.

7. Tecnologia e a Imagem da Humanidade Programada.

8. A Imagem do Homem na Medicina Legal e Forense. (Estive a pensar e cheguei à conclusão que sou mais competente a abordar - A Imagem do Homem na Patologia. A existência de uma anatomia patológica específica do homem permite ir ao encontro da antropologia da doença e do mórbido.)

Curiosidade extra-texto. Encontrei recentemente o meu projecto de juventude precoce de uma Crítica da Razão Tecnológica. Lembro-me de ter publicado alguns artigos sobre esse projecto que acabei por abandonar. Porém, ele ressurgiu neste texto programático e acho que estou mais maduro para o levar a cabo. A minha segurança intelectual revela-se no facto de saber que posso concluir qualquer projecto, lançando nova luz sobre os problemas que tento resolver. A Crítica da Razão Tecnológica foi pensada para suplantar Kant. Eu aprendi a ler lendo literatura para adultos, filosofia e ciência: quase não li nada indicado para a minha idade. Nunca me interessei por "coisas" para crianças: sacava os livros da biblioteca e lia-os. Hoje, à hora do almoço, escutei uma conversa entre pessoas vulgares e pensei: "Que pessoas burras!" O meu desejo mais básico de momento era eliminá-las: odeio mediocridade. Mas tive um outro pensamento muito calvinista: "Não há lugar na eternidade para almas idiotas".

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O Nascimento da Medicina Social

Capa do livro de Ricardo Jorge (1899)
«Cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas, e, como eles não são capazes de reconhecer os textos de Marx, passo por ser aquele que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, experimenta a necessidade de citar Newton ou Einstein? Ele utiliza-os, mas não tem necessidade de aspas, de nota de rodapé ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do Mestre. E como os demais físicos sabem o que fez Einstein, o que ele inventou e demonstrou, reconhecem imediatamente (a sua presença). É impossível fazer história actualmente sem utilizar uma sequência infindável de conceitos ligados directa ou indirectamente ao pensamento de Marx e sem se colocar num horizonte descrito e definido por Marx. Em última análise, poder-se-ia perguntar que diferença poderia haver entre ser historiador e ser marxista.» (Michel Foucault)

Ricardo Jorge (1858-1939) formou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1879, tendo apresentado uma dissertação sobre O Nervosismo no Passado, onde esboçou a história da neurologia. Em 1880, após ter defendido a sua dissertação do concurso para professor - Localizações Motrizes do Cérebro, assumiu a docência das cadeiras de Anatomia, Histologia e Fisiologia Experimental, mas o seu interesse inicial pelo saber neurológico levou-o a viajar pela Europa: Ricardo Jorge deslocou-se frequentemente a Estrasburgo e a Paris, onde assistiu às lições de Jean-Martin Charcot (1825-1893) e visitou os hospitais locais. Porém, em 1884, trocou a neurologia pela Saúde Pública: a sua obra Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa (1884) inaugurou uma nova abordagem da saúde pública em Portugal: «Cada vez mais insalubre, a cidade não tem nas condições devidas nem água, nem esgotos, esses dois elementos imprescindíveis de limpeza, que a experiência tem demonstrado reduzirem a cifra da mortalidade geral. O hospital é um antro infecto, onde se amontoam doentes fora de todos os limites da tolerância e num desprezo repugnante das leis mais comezinhas da boa higiene. As classes pobres, o mundo dos proletários, vegetam ancoradas nuns alvéolos húmidos e lôbrengos, sem ar e sem luz, e abandonadas a uma especulação torpe que tão sordidamente as explora com a miserável edificação das ilhas. Há a desfiar um estendal de misérias e vergonhas, de males e de incúrias. É forçoso lavrar um protesto contra tanto desleixo, contra tanta inépcia, contra tanta loucura criminosa» (Ricardo Jorge). Ao abraçar a causa da higiene, Ricardo Jorge estava perfeitamente convicto de que à medicina cabe um papel supremo na direcção mental e social: «Venha à medicina o primado, como o sonhara o espírito eminente de Augusto Comte, projectando-a ao ápice do seu sistema de hierarquia sociológica; porque só ela conhece o homem em corpo e espírito, nas suas imperfeições e nos seus vícios, nas suas misérias e fraquezas; porque só ela pela higiene, o mais florão da sua coroa, pode promover o bem-estar físico e moral, a evolução meliorista da actividade somática e intelectual» (Ricardo Jorge). Entre 1891 e 1899, Ricardo Jorge foi médico municipal do Porto, levando a cabo o seu saneamento (O Saneamento do Porto,1888), de modo a garantir o fornecimento de água pura, captada e canalizada, e a prática da desinfecção e do saneamento, e responsável pelo Laboratório Municipal de Bacteriologia, e, em 1895, tornou-se professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A sua consagração nacional e internacional como higienista e investigador ocorreu quando chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica - depois confirmada bacteriologicamente por ele próprio e Câmara Pereira - que assolou a cidade do Porto em 1899. Ora, para erradicar a peste no Porto, Ricardo Jorge iniciou operações profiláticas, como, por exemplo, a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, que desencadearam a fúria popular. Infelizmente, a saúde pública no Porto - oitocentista e novecentista - ainda não foi historiada. A obra seminal de Ricardo Jorge já pertence à era bacteriológica da Saúde Pública, inaugurada pelas descobertas científicas de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910), entre outros: o que quer dizer que a sua fórmula de medicina social retoma o modelo inglês que ligou - entre si - a assistência aos pobres, o controle da saúde da força de trabalho e o esquadrinhamento geral da saúde pública, de modo a proteger as classes mais ricas dos perigos gerais. O conhecimento de que "criaturas microscópicas" - e não vagos miasmas químicos (T. Sydenham, 1624-1689) - causavam as doenças contagiosas implicou a ampliação dos horizontes da Saúde Pública e da reforma sanitária: tornou-se possível proteger a comunidade contra as doenças transmissíveis, prolongando a vida dos seus membros, e operar o saneamento do ambiente. As medidas profiláticas tomadas por Ricardo Jorge para erradicar a peste bubónica no Porto desencadearam revoltas populares que, incentivadas por forças políticas, o obrigaram a abandonar a cidade e a ir para Lisboa, onde foi nomeado Inspector-Geral de Saúde em 1899, e retomou a sua actividade docente na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Da sua imensa actividade merece especial destaque a organização da luta contra a pandemia de gripe de 1918 - Pneumónica ou Gripe Espanhola - e contra as epidemias de tifo, varíola e difteria que surgiram como consequência das deficientes condições sanitárias do período pós-guerra.

Privados de uma história da Saúde Pública no Porto Oitocentista, não podemos reconstituir os episódios de fúria popular dirigida contra a figura de Ricardo Jorge, de modo a explicitar a forma de medicina social introduzida na cidade do Porto. Apesar disso, a referência à obra pioneira de Ricardo Jorge permite-nos abordar o nascimento da medicina social na Europa, tal como foi formulado por Michel Foucault, sendo no entanto movidos por uma preocupação política. O pensamento de Esquerda (Walter Benevides et al., 1974) tende a opor a medicina social à medicina individual, como se a socialização da medicina fosse uma conquista das classes trabalhadoras, em nome do Direito à Saúde garantido pelo Estado. Nesta perspectiva, a medicina socializada é uma medicina de Estado. Não admira que Leo Huberman e Paul Sweezy (1970) tenham recorrido ao modelo cubano de planificação da saúde pública para mostrar as virtudes da medicina socializada sob o regime socialista: «Uma única vida humana tem mais valor que todo o ouro do homem mais rico do mundo» (Che Guevara). Os estudos de Michel Foucault sobre o nascimento da medicina social introduziram alguma inquietude nesta maneira de conceptualizar a saúde, na medida em que defende a hipótese de que, «com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina colectiva para uma medicina privada, mas precisamente o contrário»: Desenvolvendo-se nos finais do século XVIII e início do século XIX, o capitalismo «socializou um primeiro objecto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência e pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política» (Michel Foucault): o que quer dizer que a medicina moderna que nasceu no final do século XVIII entre Morgagni (1682-1771) e X. Bichat (1771-1802), graças ao aparecimento da anatomia comparada, é uma medicina social fundada sobre uma determinada tecnologia do corpo social: «E nesta nova imagem - a do tacto - que se dá de si mesma, a experiência clínica arma-se para explorar um novo espaço: o espaço tangível do corpo, que é ao mesmo tempo esta massa opaca em que se ocultam os segredos, invisíveis lesões e o próprio mistério das origens. E a medicina dos sintomas, pouco a pouco, entrará em regressão, para se dissipar diante da medicina dos órgãos, do foco e das causas, diante de uma clínica inteiramente ordenada pela anatomia patológica. É a idade de Bichat» (Michel Foucault). A hipótese de Michel Foucault é tributária de duas grandes obras: a de Victor Bullough sobre a medicina na Idade Média, e a de George Rosen sobre a história da saúde pública. Entrando numa polémica deslocada e desnecessária com Marx, Michel Foucault distingue três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, que se desenvolveu na Alemanha no começo do século XVIII, a medicina urbana, que apareceu em França nos finais do século XVIII, e, finalmente, a medicina dos pobres e da força de trabalho, que emergiu em Inglaterra no segundo terço do século XIX. Michel Foucault é peremptório quando afirma que, embora o corpo tenha sido investido política e socialmente, o poder médico não começou por o atingir enquanto força de trabalho: «A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário, não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar, o Estado, em seguida a cidade e, finalmente, os pobres e trabalhadores foram objectos de medicalização» (Michel Foucault). (:::/:::)

1. Medicina de Estado. Marx, o cérebro mais filosófico da Alemanha, lamentou o atraso económico do seu país, sem no entanto lhe ter negado o mérito de ter produzido uma Staatswissenschaft, uma ciência do Estado, de resto bem explicitada por Hegel na sua Filosofia do Direito. (:::)

2. Medicina Urbana. A medicina social que surgiu em França nos finais do século XVIII não tinha como suporte a estrutura do Estado, mas o fenómeno da urbanização. 

3. Medicina da Força de Trabalho. Devido ao atraso nacional, Ricardo Jorge foi obrigado a trabalhar em duas frentes: o saneamento da cidade do Porto e o controle da população pobre, mas a sua obra sobre Higiene Social está mais próxima do modelo inglês (medicina dos pobres e dos trabalhadores) do que do modelo francês (medicina da cidade), repleta como está de brilhantes páginas de denúncia humanitária que nos fazem lembrar as que foram escritas por Marx e, sobretudo, por Engels. No decorrer do século XVIII, os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico. Michel Foucault destaca três razões para explicar a problematização médica dos pobres no segundo terço do século XIX: as grandes agitações sociais do começo do século XIX mostraram que os pobres já eram uma força política capaz de participar activamente na revolta contra o sistema (1). E esta nova força política evidenciou-se quando os serviços prestados pela população pobre foram substituídos pelo sistema postal e pelo sistema de carregadores (2): o povo pobre revoltou-se contra estes sistemas que lhe retiravam o pão e a possibilidade de viver. Finalmente, uma outra razão foi a cólera de 1832 que começou em Paris, propagando-se a toda a Europa (3): a cólera desencadeou uma série de medos políticos e sanitários em relação à população pobre, levando à divisão do espaço urbano em espaços pobres e espaços ricos. 

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O Nascimento da Psiquiatria no Porto

Hospital (Psiquiátrico) de Magalhães Lemos, inaugurado
em Outubro de 1962, Porto
«É sobretudo aos médicos judeus, peregrinos todos, que a medicina portuguesa deve o seu máximo esplendor. São no século XVI Amato e Rodrigo de Castro, Zacuto no século XVII, Ribeiro Sanches no século XVIII. A intolerância religiosa foi o principal estorvo que encontrou, entre nós, o desenvolvimento da medicina, como de resto o de todas as outras ciências». (Maximiano Lemos)

A História da Psiquiatria em Portugal está por fazer: o esboço traçado por Barahona Fernandes que introduziu a ergoterapia no Hospital de Júlio de Matos em Lisboa (1942), é insuficiente e paupérrimo. A pobreza psicológica dos portugueses - provavelmente um traço genético desta população ibérica - ajuda a compreender o seu desinteresse pela psicologia. Todas as histórias da psiquiatria que tenho lido, não referem um único autor português como precursor ou construtor da psiquiatria moderna. Isto não significa que não tenha havido em Portugal psicólogos e psiquiatras dignos de serem referidos nessas histórias da psiquiatria europeia. A única excepção a esta regra do silêncio é o nome de Egas Moniz (1874-1955), utilizado para mostrar como os portugueses tratam a vida mental dos seus doentes mentais: a psicocirurgia destrói grande massa de tecido nervoso, privando os doentes mentais de partes importantes do seu cérebro. No entanto, não podemos responsabilizar os autores estrangeiros pelo facto de não levarem em conta os contributos portugueses: os portugueses devem ser responsabilizados pelo facto de não serem levados a sério pelas comunidades científicas do mundo civilizado. Algumas histórias da psiquiatria - sobretudo as anglófonas - destacam um ou outro contributo espanhol, nomeadamente o de Juan Luis Vives (1492-1540), cujo tratado De Anima et Vita (1538) é visto como um precursor do De Passionibus de Descartes (1596-1650). Porém, no momento em que começou a emergir a psiquiatria moderna no decurso do século XVIII, estas histórias da psiquiatria deixam de mencionar autores ibéricos, concentrando-se exclusivamente nos movimentos ocorridos nos países europeus mais influenciados pela Reforma. Há, portanto, algumas datas a reter para compreender o desenvolvimento do discurso da loucura ao longo dos séculos XVII e XVIII. A primeira data a fixar é 1347, quando a Grande Peste Negra devastou grande parte da Europa, despovoando-a dramaticamente e dizimando algumas cidades. Desconhecendo a causa natural da peste bubónica - um bacilo transmitido pelo rato, os europeus começaram a culpar o demónio, os judeus ou a sua própria pecaminosidade pela escalada do número de mortos. Possuídas ou não pelo demónio, pelo menos essa era a crença oficial dos clérigos, algumas pessoas empreenderam dramáticas exibições de auto-mortificação, ao mesmo tempo que ocorriam crises histéricas envolvendo grupos inteiros que, como por exemplo os flagelantes da Hungria, se chicoteavam em público em orgias de auto-açoitamento. Mas o alvo preferencial da punição foram as mulheres, acusadas de serem bruxas e, por isso, responsabilizadas pela devastação. Alguns clérigos descreveram a mulher como um «templo construído sobre um esgoto». Em 1487, Heinrich Krämer e James Sprenger - dois monges dominicanos - publicaram a sua obra Malleus Maleficarum, cujo alvo era metade da espécie humana, isto é, as mulheres: «Toda a maldade é pouca comparada à maldade de uma mulher. Razão pela qual São João Crisóstomo diz: Não é bom casar. O que mais é uma mulher do que uma inimiga da amizade, uma punição inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, um prejuízo deleitante, um pecado da natureza, pintado em lindas cores!». Convertida em manual dos Inquisidores, esta obra legitimou a prática inquisitorial da caça às bruxas e aos hereges. Eis portanto outra data a reter: a da criação da Inquisição que, em Portugal, ocorreu em 1536, a pedido de D. João III (1531), tendo sido abolida tardiamente em 1821: «A bula da Inquisição foi concedida em 1536, embora já desde 1534 houvesse um inquisidor e seja deste último ano o procedimento contra Gil Vicente. O primeiro auto-de-fé realizou-se em 1541. Nos cento e quarenta e três anos que vão até 1684 foram queimadas mil trezentas e setenta e nove pessoas. Depois, o ritmo desceu, mas as execuções continuaram até ao tempo do marquês de Pombal. O maior número dos condenados à morte é formado por acusados de judaísmo, mas há muitas condenações por feitiçaria e por depravação de costumes» (José Hermano Saraiva). Mas, no caso dos dois Estados Ibéricos, há ainda outras datas anteriores a reter: Em 1492, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, decretaram a expulsão dos judeus dos seus Estados - Aragão e Castela - no prazo de quatro meses e sob pena de morte. D. João II autorizou a instalação das famílias judias mais ricas em Portugal a troco de altas quantias. Porém, em 1496, D. Manuel - sob pressão dos monarcas do país vizinho - ordenou a expulsão de todos os judeus de Portugal, tanto os refugiados castelhanos como os portugueses. É certo que D. Manuel tentou reter os judeus em Portugal, forçando o baptismo dos seus filhos e recusando meios de transporte para a sua saída por mar, mas estas medidas criaram uma cisão nacional entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Em 1506, Lisboa foi palco de motins em que os cristãos-novos foram ferozmente perseguidos: a peste que grassava na cidade levou os clérigos fanáticos e repressivos a culpá-los pela calamidade e o povo enfurecido investiu contra eles, fazendo mais de dois mil mortos. Este micro-holocausto lisboeta quebrou a unidade nacional, a qual já estava seriamente fracturada desde 1434. Entretanto, apesar do ofuscamento mental da Idade Média, foram realizados alguns esforços a favor dos insanos: o primeiro asilo da Europa foi construído em Hamburgo em 1375, seguido por outro em Valência em 1410 e, pouco depois, por mais outro em Londres. Com o desaparecimento da lepra no final do século XV, alguns leprosários ou lazaretos foram convertidos em asilos (casas dos loucos), onde os loucos coexistiam com os pobres e os portadores de doenças venéreas. O século XV fará um enorme esforço para compreender o insano como um doente e não como uma criatura possuída pelo demónio. Michel Foucault escolheu a Nau dos Loucos de Bosch - a Stultifera Navis de Brant - para caracterizar a loucura nos séculos XV e XVI, articulando-a com a Danse Macabre de Huyot Marchand e a Dança dos Mortos do Cemitério dos Inocentes: «Até à segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem, o fim dos tempos, assume o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma ameaça no próprio interior do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou-se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência. (...) A cabeça que se tornará crânio, já está vazia. A loucura é o já-está-aí da morte. (...) Agora, os elementos inverteram-se. Não é mais o fim dos tempos e do mundo que mostrará retrospectivamente que os homens eram uns loucos; é a ascensão da loucura, a sua surda invasão, que indica que o mundo está próximo da sua derradeira catástrofe; é a demência dos homens que a invoca e a torna necessária» (Michel Foucault).

A escolha destas datas não é arbitrária: há um fio condutor que as liga e que permite - ou não! - resgatar toda a história da "psiquiatria" portuguesa anterior a 1883, ao mesmo tempo que nomeia as causas estruturais do seu atraso. A expulsão dos judeus foi fatal para Portugal, não só em termos de desenvolvimento económico, mas também em termos de desenvolvimento cultural. A Espanha teve o seu Maimónides (1135-1204) que escreveu extensamente sobre as doenças da alma, ou mesmo Abraham Abulafia de Saragoça que desenvolveu a técnica do salto, mas Portugal também teve todo um conjunto de judeus nacionais que desbravaram o território da psicologia, uns de um modo mais revolucionário do que outros, bastando referir os nomes de Leão Hebreo (1460-1520), Abrahão Ferreira, Samuel da Silva, Uriel da Costa (falecido em 1640) e João Serram, para já não falar de dois portugueses não-judeus e de outro judeu - nascido na Holanda - dignos de figurar na história da psiquiatria: Pedro Hispano (falecido em 1277), Francisco Sanches (falecido em 1623) e Bento de Espinoza (1632-1677). Primeiro a expulsão dos judeus e depois a Inquisição privaram Portugal dos seus intelectuais mais proeminentes, colocando o ensino fora do circuito da ciência e da filosofia que se praticavam na Europa renovada pela Reforma. Nas fogueiras da Inquisição portuguesa ardeu o campo erudito da nossa cultura, onde a tradição árabe e judaica tinha suscitado alguns nomes de relevo. O outro lado deste fio condutor é a questão das mulheres: acusadas de serem aliadas das forças maléficas, as mulheres eram queimadas nas fogueiras da Inquisição. Libertar as mulheres da suspeita de bruxaria foi um dos movimentos seguidos pela "psicologia" para se autonomizar da tutela clerical. Mas antes de avançar neste terreno, destaco desde já a obra médica - profundamente racional e naturalista - de Rodrigo de Castro (nascido em 1546), descendente de cristãos-novos, que se dedicou às doenças das mulheres, sendo assim o fundador da ginecologia portuguesa numa obra que o imortalizou: De universus mulierum medicina. A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira consagrada à anatomia e à fisiologia dos órgãos genitais femininos, e a segunda à patologia e à clínicas respectivas. A sua análise está fora do âmbito deste estudo, bastando referir que, nos primeiros capítulos do livro terceiro da segunda parte, Rodrigo de Castro aborda a esterilidade, atribuindo-a à falta de actividade do esperma, às doenças do útero ou dos seus anexos e à impropriedade da idade da mulher, e a impotência do homem para o coito ou para a geração. Ora, no decurso deste longo período, a impotência do homem era atribuída à bruxaria. Assim, por exemplo, os dois monges dominicanos distinguiram dois tipos de impotência, uma devida à natureza e outra devida à bruxaria: «Quando o membro (viril) não pode ser excitado, e não pode realizar o acto do coito, isto é um sinal de frigidez da Natureza; mas quando ele é excitado e se torna erecto, mas, contudo, não pode desempenhar (a sua função), isto é um sinal de bruxaria». Para combater a crença em demónios e em espíritos infernais, os "psiquiatras" dos séculos XVI e XVII tiveram de assumir uma atitude racional perante a bruxaria. Em 1584, Reginald Scot (1538-1599) publicou a sua obra Discoverie of Witchcraft, onde procura demonstrar que as crenças populares sobre os pactos das bruxas com os demónios mais não são do que concepções imaginárias. Mas é no decorrer do século XVII que surgem as ideias mais inovadoras sobre a bruxaria. A sífilis surgiu pela primeira vez na Europa por volta de 1500. Embora estivesse mais suave no século XVII, a infecção manifestava-se como uma degeneração cerebral gradual, sendo por isso identificada como uma forma de insanidade, a qual levou os franceses a interessar-se, já no final do século XVI, pela loucura causada por amores frustrados. Em 1618, Charles LePois (1563-1633) defendeu que a histeria não tinha nada a ver com o útero, podendo assim ocorrer tanto nos homens como nas mulheres. O contributo mais significativo veio da Holanda: Johann-Caspar Westphal publicou Pathologia Daemonica (1707), onde descreveu uma série de doenças nervosas atribuídas até aí à bruxaria, tais como epilepsia, catalepsia, melancolia e determinadas condições dermatológicas, tratando-as a todas como obsessões. Utilizando o termo latino fascinatio (fascinação) para designar a bruxaria, Westphal definiu-a como um «intenso poder e acção da imaginação dirigida ao corpo de outra (pessoa)». Ora, este termo deriva do grego baskanon que significa amuleto. Fascinus era uma divindade na forma de um falo e o fascinum era um amuleto na forma de um pénis, usado na Idade Média pelas crianças em torno do pescoço para as proteger dos poderes maléficos da feitiçaria. Esta prática mostra como os homens exteriorizavam as suas dificuldades sexuais com as mulheres. Para se protegerem dos feitiços femininos, eles tinham de usar um falo extra - o amuleto - com poderes maiores do que aqueles da fascinatio, de modo a garantir a sua capacidade de funcionar sexualmente como homens. Edward Jorden (1569-1632), um alienista inglês, foi um dos primeiros médicos a considerar as mulheres - acusadas da prática de bruxaria - como pessoas infelizes que sofriam de alguma condição médica. A sua preocupação com as causas naturais da infelicidade dessas mulheres levou-o a ser testemunha em julgamentos de mulheres acusadas de feitiçaria. Num desses julgamentos - o de Elizabeth Jackson, Jorden utilizou dois termos para designar a perturbação dessa mulher: histérico e strangulatus uteri, termos que lhe permitiam compreender alguns dos seus sintomas, como por exemplo a falta de ar, as palpitações ou a paralisia, bem como a diversidade de ritmos dos ataques de histeria. Porém, o juiz não aceitou a explicação de que os ataques atribuídos à feitiçaria eram naturais, alegando que, sem a definição de uma razão natural e uma medicação natural para as perturbações da ré, não podia levar em conta o testemunho dos alienistas. A História da Loucura de Michel Foucault deixou de lado o horizonte religioso da feitiçaria e a sua evolução no decorrer da era clássica. Apesar de ter previsto um estudo sobre o horizonte religioso da feitiçaria, Michel Foucault não cumpriu essa promessa que o levaria a invadir o território da psiquiatria transcultural, um território que os portugueses descobriram precocemente quando ousaram o descobrimento do mundo. Os arquivos e as bibliotecas portuguesas guardam tesouros que ainda não foram revelados: a promessa não-cumprida de Michel Foucault pode ser realizada a partir de documentos portugueses, uns relativos à Inquisição, outros relativos aos contactos interculturais. Todos os contributos dos alienistas referidos, bem como o de Rodrigo de Castro que, sob o signo do regresso à medicina de Hipócrates, fundou a ginecologia portuguesa, geraram a erosão da crença em manifestações demoníacas, vendo as chamadas bruxas como mulheres mental e emocionalmente perturbadas. A Inquisição Portuguesa alimentou durante longos séculos essa crença, condenando muitas bruxas à fogueira. E no resto da Europa, a caça às bruxas regressou ao primeiro plano no século XVI e início do século XVII: as lutas entre protestantes e católicos foram acompanhadas por uma epidemia de processos por bruxaria. O espírito anti-autoritário de Paracelso (1493-1541) levou-o a denunciar os queimadores de bruxas, mas a obra que culmina este movimento é, sem dúvida, a de Thomas Hobbes (1588-1674).

O Hospital de Rilhafoles - instalado no velho convento de S. Vicente de Paula - data de 1848, tendo sido o primeiro asilo de alienados a surgir em Lisboa, mas, ao contrário do que diz Nuno Borja Santos, não foi o primeiro hospital psiquiátrico de Portugal, pelo menos na perspectiva da psiquiatria moderna: o Hospital de Rilhafoles era mais um depósito de alienados mentais do que um espaço de tratamento, que, sob a direcção de Craveiro, ainda deitava os doentes na palha, além de abusar dos meios ancestrais de contenção (coletes de forças, peias, correntes ou freios de ferro, cadeiras fortes, coleiras ou gravatas, peitilhos ou barbeiros), donde resultou a legenda de asilo de lunáticos. Em Portugal, a psiquiatria moderna nasceu no Porto e escolho como data do seu nascimento institucional a abertura do Hospital do Conde de Ferreira em 1883, sob a direcção de António Maria de Sena (1845-1890) que soube introduzir no nosso país o programa de humanização do tratamento dos doentes mentais de Philipe Pinel (1745-1826) e de Samuel Tuke (1784-1857), neto do Quacre William Tuke (1732-1822), que dirigiu o famoso Retiro de York situado no campo, tendo descrito a instituição em 1813. Pinel e Tuke são dois nomes famosos associados à libertação dos acorrentados: «O asilo de Pinel, retirado do mundo, não será um espaço de natureza e de verdade imediata como o de Tuke, mas um domínio uniforme da legislação, um lugar de sínteses morais onde se apagam as alienações que nascem nos limites exteriores da sociedade. Toda a vida dos internos, todo o comportamento dos vigilantes em relação a eles, bem como o dos médicos, são organizados por Pinel para que essas sínteses morais se efectuem. E isso através de três meios principais: (o silêncio, o reconhecimento pelo espelho e o julgamento perpétuo)» (Michel Foucault). Embora tenha privilegiado mais a ordem da legislação do que o crescimento do conhecimento, Pinel é considerado, pelo menos pelos franceses, como o pai da psiquiatria moderna, pelo facto de ter rejeitado a teoria humoral de Galeno - articulada com a teoria dos demónios por Arnold de Villanova (1240-1313) - e os tratamentos de purgação e de sangria por ela inspirados. (E o que dizer do tratamento da mania através da incisão de uma cruz no couro cabeludo, perfurando o crânio a fim de deixar escapar os demónios e os vapores mórbidos, recomendado por Villanova?) Pinel foi o director de dois grandes hospitais psiquiátricos em Paris: o Bicêtre (hospital de homens) e, depois, o Salpêtriére (hospital de mulheres), cujo nascimento foi magnificamente analisado por Michel Foucault. Pinel atribuía a doença mental à hereditariedade ou às paixões intoleráveis, tais como o medo, a raiva, o ódio, a exaltação ou a tristeza, e, levando à letra os princípios de Rousseau, defendeu e praticou no seu hospital a remoção das correntes - o uso de correntes foi um procedimento aconselhado por Félix Plater (1536-1614), o criador do termo alienação, para controlar os pacientes altamente perturbados - dos doentes mentais hospitalizados. A remoção das correntes dos indivíduos insanos já tinha ocorrido em Valência no início do século XV e, em França, Jean Baptiste Pussin removeu-as em Bicêtre, substituindo-as por coletes-de-forças, três anos antes de Pinel o ter feito em Salpêtriére (1800). Em 1794, Pinel apresentou na Sociedade de História Natural o seu Ensaio sobre a Loucura, onde retrata os doentes mentais como homens e mulheres desafortunados que merecem respeito e compaixão, tanto da parte dos médicos e dos assistentes como da parte da comunidade. Pinel escreveu histórias de casos «simpáticos e eloquentes» e, tal como Joseph Daquin (1733-1815), lutou contra todos os preconceitos do passado sobre os cuidados administrados aos doentes mentais, instituindo diversos tipos de tratamento moral: exercícios, entretenimento, actividades úteis, trabalho agrícola e permissão para andar livremente dentro do pátio e dos jardins do hospital. Além disso, Pinel incentivou os médicos encarregados dos doentes mentais a morar nos espaços interiores do hospital e a despender mais tempo para os conhecer. Com excepção de uma ou de outra recomendação mais exótica, as sugestões terapêuticas de Pinel tinham uma base racional e empírica, constituindo um grande avanço sobre as sangrias e as purgações praticadas pelos seus antecessores. Ao lidar com os loucos mais violentos, Pinel adoptou uma abordagem não-violenta, levando toda a equipa hospitalar a ir ao encontro deles, de modo a instalar algum medo e a tornar a resistência inútil. Com esta táctica, pretendia tornar possível o diálogo entre o louco violento e a equipa que o socorria. O esquema de diagnóstico das doenças mentais de Pinel era simples: melancolia, mania sem delírio, mania com delírio, demência e idiotismo, eis alguns rótulos usados por Pinel. O uso que ele fez do termo mania não corresponde à nossa noção de depressão maníaca (perturbação bipolar): Pinel usou-o para designar perturbações psiquiátricas severas, com ou sem perturbação do entendimento. A sua mania sem delírio incluía todos os casos de compulsão que implicavam actos violentos, sem no entanto haver defeito da razão. Pinel descreveu também a histeria, a anorexia, a bulimia, a hipocondria, as obsessões e as compulsões, observando que os doentes com obsessões religiosas eram extremamente difíceis de curar. Alguns casos que relata são muito semelhantes às nossas perturbações obsessivo-compulsivas. Por fim, Pinel referiu um caso de compulsão homicida, o de um missionário que imolou os seus filhos para lhes garantir a vida eterna no céu. A esta trilogia de nomes consagrados da psiquiatria moderna - Tuke, Pinel e Daquin - devemos acrescentar o nome de António Maria de Sena, cuja obra Os Alienados em Portugal (1885) é digna de figurar ao lado do Ensaio sobre a Loucura de Pinel (1794) e de A Filosofia da Loucura de Daquin (1791).

A construção do Hospital Conde de Ferreira iniciou-se em 1868, por disposição testamentária do Conde de Ferreira (1782-1866). Para dar cumprimento aos desígnios deste benemérito foi comprada a quinta da Cruz das Regateiras: uma extensa e aprazível propriedade, com 120 000 m2, com a abundância de água e boa exposição higiénica, o que possibilitou a existência de jardins, prados e terrenos cultiváveis, considerados factores indispensáveis na terapêutica psiquiátricaO projecto é da autoria do professor de arquitectura civil na Academia de Belas Artes do Porto, Manuel de Almeida Ribeiro, que se inspirou no Hospício Pedro II, inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro. Após a sua morte, a construção foi dirigida por Faustino José da Vitória (Director das Obras Públicas do Distrito do Porto), que fez várias alterações ao projecto inicial. A fachada do edifício é simples, elegante e harmoniosa. O frontão é encimado pela estátua do Fundador, em mármore de Carrara, obra do escultor Teixeira Lopes, mais tarde colocada sobre um plinto, no espaço ajardinado da entrada do Hospital Psiquiátrico. Segundo Domingos de Almeida Ribeiro, escriturário do testamento do Conde de Ferreira, a ideia da construção do hospital tinha sido inspirada por D. Pedro V, que lhe indicara a necessidade de um estabelecimento daquela natureza no Porto. A construção do edifício demorou cerca de 10 anos e nela foram gastos 524.183 réis. Inaugurado a 24 de Março de 1883, com doentes provenientes do Hospital de Santo António de Rilhafoles de Lisboa, o Hospital Conde de Ferreira é a primeira construção de raiz feita para a Psiquiatria em Portugal. Antes da sua fundação, os dementes eram encarcerados no porão do Hospital Geral de Santo António ou mesmo nas cadeias ou prisões da cidade do Porto. Para director clínico desta nova unidade especializada de saúde, a Misericórdia do Porto convidou António Maria de Sena (1845-1890), oriundo da Faculdade de Medicina de Coimbra, onde se doutorou com a tese Análise Espectral do Sangue e com o trabalho intitulado Delírio nas Moléstias Agudas, no concurso para professor daquela faculdade. António Maria de Sena criou um modelo de organização hospitalar ousada para o seu tempo, a favor daqueles que denominou «seres humanos infelizes, afectados do padecimento mais cruel»: «A alienação mental é um facto social de uma importância culminante. Merece estudo e pede a atenção dos governos. /Na classe tão numerosa dos inválidos, o alienado sobressai, com efeito, na generalidade da desventura, nas proporções da invalidez, não menos nas perturbações que causa ao estado social. /Desde o fim do século passado (século XVIII) que se desenvolveu um movimento de clemência a favor dos alienados em toda a Europa e América. /As autoridades públicas, as famílias, os estabelecimentos pios têm por estes infelizes o mais condenável desprezo, preocupando-se apenas com os perigos que podem advir à sociedade da sua existência em liberdade; (é preciso) ajudá-los, confeccionar leis protectoras dos desventurados, por dever de humanidade como também por verdadeiro interesse nacional» (António Maria de Sena). Além disso, eleito Par do Reino, em Viana do Castelo, sob um governo progressista, António Maria de Sena elaborou a primeira lei psiquiátrica em Portugal, a chamada Lei Sena, promulgada em 1889, a qual previa a construção de novos estabelecimentos hospitalares e de um «fundo de beneficência pública dos alienados». Em 1890, António Maria de Sena - o primeiro grande psiquiatra português que defendeu a higiene e profilaxia das doenças mentais - faleceu precocemente na Granja, com apenas 45 anos de idade. António Maria de Sena exerceu as suas funções directivas entre 1883 e 1890, tendo como médico-adjunto Júlio de Matos e médico-ajudante Magalhães Lemos. Após a sua morte, Júlio de Matos assumiu a direcção do Hospital de Alienados do Porto entre 1890 e 1911, quando aceitou suceder a Miguel Bombarda na direcção do Hospital de Rilhafoles (Lisboa): o seu adjunto, Magalhães Lemos, ascendeu a director do Hospital do Porto em 1911, tendo exercido essa função até ao ano da sua aposentação em 1924. O Hospital Conde de Ferreira é constituído por um vasto edifício que se desenvolve por quatro grandes alas e dois pavilhões envolvidos por jardins. Os doentes estavam distribuídos em duas partes distintas: a ala norte era ocupada por alienados do sexo masculino e a ala sul acolhia alienados do sexo feminino. O corpo principal do edifício dividia-se em três partes: as partes norte e sul eram destinadas à habitação dos doentes, sendo a parte central ocupada pelas instalações dos serviços gerais, casa da aceitação e laboratório de Antropologia. Os médicos, directores e adjuntos viviam nesta parte central e, no seu lado posterior, funcionavam a cozinha, a farmácia e a habitação dos restantes funcionários hospitalares. Em anexo, foi construído um pavilhão para observação médico-legal dos criminosos de ambos os sexos, assim como o laboratório. Poucos anos após a sua inauguração foram construídos dois pavilhões para doentes furiosos (8.ª enfermaria). Em 1904, foi construído mais um pavilhão para alojar criminosos (9.ª enfermaria), e, em 1907, verificou-se a abertura de um edifício para doentes agitados (10.ª enfermaria). De todas estas estruturas arquitectónicas merece especial destaque o panóptico portuense: uma estrutura fechada em forma de eneágono (nove lados) a que chamaram Pavilhão dos Furiosos, a qual servia para isolar os doentes mais agitados ou perigosos e, desses tempos de disciplinarização hospitalar, guarda ainda hoje vários objectos, como microscópios, um colete-de-forças e uma panóplia de máquinas de choques eléctricos introduzidas no hospital em 1922. Como se sabe, Michel Foucault foi buscar a figura arquitectónica do panóptico a Jeremy Bentham (1748-1832), para designar uma máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados, alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem. O modelo de organização em panóptico do edifício do Pavilhão dos Furiosos servia para controlar os loucos perigosos através deste dispositivo de vigilância hospitalar. Como complemento existiam estruturas de apoio, como as oficinas, a tipografia, a lavandaria, a rouparia, a cozinha, entre outras. Os doentes estavam distribuídos pelas quatorze enfermarias tendo como princípio a sua patologia - tipo e fase da doença: tranquila, convalescente, agitação, furor, estado imundo e incurabilidade - e a classe social. Os valores das mensalidades variavam em função da classe social a que pertencia o doente e a quantia paga determinava a qualidade da assistência que lhe era prestada. Todos os internados nesta instituição total do Porto podiam ocupar-se em actividades oficinais ou agrícolas, tendo-se assim inaugurado a psicoterapia colectiva pelo trabalho. No Hospital Conde de Ferreira, fizeram carreira alguns dos mais conceituados psiquiatras portugueses, como por exemplo Júlio de Matos e Magalhães Lemos, o primeiro dos quais não «herdou» as qualidades humanas do mestre, quando radicalizou a "sua" teoria da degenerescência. O nascimento do hospital psiquiátrico em Portugal obedece ao esquema genealógico estabelecido por Michel Foucault: o encarceramento dos loucos foi acompanhado por medidas jurídicas e administrativas que os libertaram das correntes de ferro para os encerrar de novo nas leis do internamento, dando-lhes a chancela de alienados, privando-os da liberdade e sequestrando-os nos asilos de loucos ou hospitais de alienados. Tal como Pinel ou mesmo Esquirol (1772-1840), António Maria de Sena contribuiu para a "invenção" das doenças mentais como entidades nosológicas, confinadas num espaço de observação clínica, mas, dada a sua filiação liberal e progressista, próxima das aspirações da Geração 70, soube defender a assistência aos doentes do espírito como um dever social e não como exercício de caridade, tendo por isso polemizado com Domingos Almeida Ribeiro, cujo catolicismo reaccionário proclamava a valia superior das instituições fundadas pela caridade cristã

Anexo: Este estudo começa a dar corpo à promessa anunciada em A Alienação Mental no Porto: Notas para uma pesquisa, e complementa em termos de psiquiatria o Esboço da Evolução do Hospital Moderno.

J Francisco Saraiva de Sousa