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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Anotações sobre o Conceito de História de Horkheimer

Max Horkheimer
A obra filosófica de Jürgen Habermas ofuscou a teoria crítica: os ensaios que escreveu sobre a filosofia da história de Horkheimer não lhe fazem justiça. Convém denunciar a conservadorismo de Habermas que, sob o impulso do funcionalismo, renuncia à ideia de História para se entregar a uma teoria do agir comunicacional incapaz de definir um novo projecto político. Os textos tardios de Horkheimer são ocasionais e fragmentários. A sua leitura não é fácil, até porque Horkheimer ficou desesperado com a aporia subjacente à "dialéctica do esclarecimento". Porém, quando afirma que a dialéctica materialista é forçada a renunciar à ideia de reconciliação mas não à interrogação que a esperança incumprida das vítimas abre sobre a história, a razão e a acção humana, a aporia evapora-se no ar. Como já dediquei muitos textos ao pensamento de Horkheimer, não vou recapitular o seu pensamento tardio, o qual procura evitar a suposta aporia mediante a «recuperação» da ideia de Outro: ânsia de justiça plena. O que interessa questionar aqui é a tese fundamental da sua filosofia da História: A lógica imanente da História conduz inevitavelmente ao mundo totalmente administrado. Só as catástrofes podem interromper este curso da História: a praxis débil sugerida por Horkheimer não pode alterar o rumo da história; apenas pode tentar conservar alguns elementos culturais, tais como a teologia ou a liberdade. A sociedade administrada é semelhante à sociedade dos insectos sociais. Numa tal sociedade, o homem «desenvolve-se» como espécie animal, abdicando da sua "humanidade". A sociedade administrada de Horkheimer corresponde grosso modo ao meu conceito de sociedade metabolicamente reduzida: ambas apontam para a supressão da «vontade livre» e a liquidação do sujeito. A base desta filosofia pessimista da História reside na finitude radical do homem e do pensamento e na «relatividade» do mundo. A minha filosofia apocalíptica da História está muito próxima desta concepção de Horkheimer: ambas rejeitam a ideia messiânica; ambas apontam para a política como "tarefa infinita"; enfim, ambas são a-comunistas. Com efeito, a rejeição da ideia messiânica é uma recusa consciente de "colonizar o futuro". Porém, a relatividade do mundo não nos permite rejeitar - como faz Horkheimer - a revolução em nome de uma praxis débil. A situação histórica mudou desde o tempo de Horkheimer: Hoje a revolução está na ordem do dia, tal como esteve nos anos 30 do século passado. O que distingue a minha filosofia da História da filosofia de Horkheimer? Não é o pessimismo que, no meu caso se inspira na angústia maia e asteca perante a caducidade do existente, mas a não necessidade de recorrer a Deus para descobrir um sentido para a História, embora este recurso teológico não perturbe a minha mente. A colisão futura de um asteróide com a Terra - por exemplo - pode pôr termo à aventura histórica do homem. Ora, sabendo que uma catástrofe natural - ou não - pode liquidar o homem, não preciso do Outro para incentivar a revolta das vítimas contra os carrascos: o homem não tem nada a perder e mais vale uma vida breve mas heróica do que uma vida longa de miséria. No entanto, a minha filosofia - assim como a de Horkheimer - não abdica da ideia de pecado original: o mal radical. Com estas breves notas mostrei que nem eu nem Horkheimer rompemos com Marx: ambos lutamos para que a Filosofia não se torne pensamento pueril numa sociedade totalmente administrada e racionalizada. A Filosofia só pode ser reconstruída deixando de lado as obras dos filósofos que a dominaram nas últimas décadas: funcionalismo e estruturalismo andam de mãos dadas na rejeição da História. 

J Francisco Saraiva de Sousa 

domingo, 16 de dezembro de 2007

A Alma na Era do Consumo

Arnold Gehlen escreveu uma obra fantástica, «Die Seele im Technischen Zeitalter», que, apesar de ter sido traduzida para o português, permanece estranha à «alma lusitana». Toda a sua obra gira em torno do «problema do Homem», que foi tratado na sua obra fundamental de antropologia filosófica, «Der Mensch, seine Natur und seine Stellung in der Welt», e, na primeira obra referida, embora posterior a esta última, analisa, numa perspectiva psicosociológica, o homem moderno na era da técnica.
Aparentemente, a sua teoria parece não ultrapassar aquela exposta por David Riesman: a do indivíduo «manipulado de fora» (alterdirigido), isto é, a do indivíduo como receptor e utente de sinais de radar. Esta figura contemporânea de indivíduo é o resultado, objectivo e subjectivo, do processo de industrialização que introduziu uma cesura na história do homem, o que possibilita falar do limiar daquilo que Gehlen chamou posthistoire, frequentemente pensada como precursora ou mesmo o anúncio da pós-modernidade.
Porém, a teoria de Gehlen é mais ambiciosa, dado abranger a arte (estética) e a moral, bem como o problema da autoridade funcional, em vez da estratificação em classes sociais, a atenuação social da desigualdade de bens, não confirmada pelas recentes transformações sociais, e a cultura industrial global. Mas, dado uma análise completa do seu pensamento estar fora do escopo deste post, penso poder concentrar-me na sua noção de "experiência em segunda mão" e definir o indivíduo predominante na sociedade actual como um «ser em segunda mão»: Cada um traz na cabeça um mundo imaginário de informações acumuladas sem sentido, com escassa coesão, consistindo somente de esboços de resultados e processos cujo valor objectivo e verdadeira substância está fora do alcance do seu julgamento, mas que parecem ser peremptórios e de palpitante interesse. Esta experiência em segunda mão estende-se a todo o planeta (Gehlen). Por conseguinte, o nosso mundo pode ser descrito como um caos de informação incoerente de material imaginário, a descoberto e inacabado, que se encontra em rápida transformação e, ademais, superiluminado (Gehlen).
Bombardeado permanentemente por este caos de informações incoerentes, difundidas pelos mass media e pela publicidade manipuladora, a formação de opiniões dispensa o processo de elaboração individual e acaba por se reduzir à aquisição passiva de "opiniões em segunda mão", o que no plano da moral se traduz por uma "moral em segunda mão". Tudo isto somado mostra que vivemos ou, pelo menos, caminhamos para uma situação em que a esgotamento do pensar desqualifica definitivamente o ser humano. (Fenómeno observado frequentemente na blogosfera e na incapacidade dos bloguistas criarem a sua própria agenda, sem serem vítimas das práticas de agenda-setting impostas pela mediasfera.)
De facto, hoje olhando, já na proximidade do Natal, para a enchente de pessoas que acorrem às grandes áreas comerciais, em busca de produtos de consumo, dificilmente descobrimos, por detrás dos seus rostos, a presença, ainda que atrofiada, de um self (eu) capaz de pensar por si próprio e de controlar o seu próprio projecto de vida. Os olhares - observados com atenção - revelam ser metabolicamente reduzidos e, portanto, incapazes de pensar. Esta incapacidade de pensar significa efectivamente a desqualificação da humanidade desses animais entregues exclusivamente ao intercâmbio metabólico com a natureza, de preferência sem trabalho e esforço, alterdirigidos por informações emitidas que não compreendem, até porque todas as suas faculdades mentais ou cognitivas estão mais ou menos atrofiadas. Até a sua vida sentimental passou a ser em segunda mão.
Estas criaturas saturadas movem-se por habituação, são apáticas e esquecem com muita facilidade. Alheadas do mundo e distantes da realidade, são uma farsa, com exterior, ainda que obeso, mas sem interior: puros vazios heterónomos dirigidos por radares ou por estímulos condicionantes. Tudo se converteu numa encenação através da qual as massas recebem passivamente estímulos e obedecem-lhes cegamente. (O tipo de pessoa que aceita facilmente um líder autoritário ou que aderem facilmente ao fascismo!)
Estas observações dificilmente parecem ser concordantes com a «imagem do homem» proposta filosoficamente por Gehlen na sua opus magnum: o "ser carencial" e "destituído de instintos", "precocemente nascido" e, portanto, necessitário de um longo processo de maturação, devido à sua "imaturidade", que só pode sobreviver como "ser de cultura" e "de acção", para superar a sua fragilidade biológica que faz dele um "ser em risco", parece não ser muito adequada ao estudo fundamentado da situação do homem na era da técnica, ou melhor, na era da "ditadura do consumo". A sua fraqueza congénita ou constitucional é compensada pela sua "abertura ao mundo" e pela sua capacidade de mudar o mundo, transformando-o num mundo de cultura que possibilita o desenvolvimento normal. Contudo, para ser um ser de cultura e de acção, o homem precisa de ser dotado de um órgão especializado, o cérebro sofisticado, portanto, uma especialização que faz dele um ser capaz de criar o seu próprio mundo. Embora não dotado de muitas especializações, aquelas que podemos observar noutros animais, o homem é dotado da maior especialização, o cérebro humano e a sua infinita curiosidade, que lhe permite superar as suas fragilidades instintivas ou morfológicas.
Ora, se esta perspectiva for verdadeira, teremos de concluir que o homem como ser em segunda mão deixou-se aprisionar num sistema que o reduz à sua animalidade frágil, ideia retomada de Herder: aquela que o torna novamente um ser carente, mas, desta vez, destituído daquelas características que poderiam fazer dele um animal humano: um ser que precisa de agir para criar um mundo de cultura que compense a redução dos seus instintos. O homem consumidor "abdicou" da sua humanidade a favor da sua animalidade, tornando-se um ser a-cultural, apático, inactivo e domesticado.
Convertida em bens de consumo ou em opiniões em segunda mão, a cultura foi transformada em nada, ou seja, foi liquidada, e, sem ela, o homem comporta-se como um animal que reage passivamente a estímulos, como se fosse destituído de alma! A cultura de consumo é uma cultura sem alma, portanto, anticultura, e, segundo a sentença racionalista que diz que os chamados "animais irracionais" não têm alma, mas apenas um corpo mecânico que reage de forma programada, portanto, condicionada interna ou externamente, este homem carente de alma pode muito bem vir a ser tratado como "gado doméstico", o que já vai acontecendo cada vez mais no nosso mundo global. A sua existência justifica a escalada de violência que observamos por todo o mundo e, se nada for feito, só nessa violência poderá ser forjado um novo tipo de humanidade, capaz de retomar a sua herança cultural.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Elites do Poder e Sexual Bondage

Diversos estudos americanos e europeus demonstraram que os colarinhos-brancos de determinados sectores das elites do poder (Janus et al., 1977), portanto homens que ocupam posições dominantes na sociedade, recorrem regularmente ao serviço de prostitutas para os dominar. Isto significa que os homens que ocupam posições dominantes na sociedade, tais como políticos ou empresários bem sucedidos, são homens submissos que, devido à dificuldade de encontrar mulheres heterossexuais dominantes (Baumeister, 1988; Weinrich, 1987), recorrem ao negócio emergente denominado «dominatrix»: mulheres dominadoras profissionais («dominatrices») que satisfazem as necessidades sexuais de homens submissos-receptivos, supostamente não-homossexuais (Scott, 1983).
Quer sejam prostitutas ou não, estas mulheres dominadoras podem atar ou acorrentar os seus clientes de colarinho-branco, dar-lhes palmadas ou chicotadas, açoitá-los, dominá-los e humilhá-los. Muitas destas práticas são suficientes para satisfazer as necessidades dos seus clientes, que também podem masturbar-se durante a sessão de submissão ou de sujeição sexual.
E em Portugal? A nossa pesquisa mostrou claramente que as práticas de sexual bondage são muito frequentes entre os portugueses e que um número significativo de homens portugueses prefere o papel submisso-receptor, mesmo que não sejam homossexuais. Muitos desses homens ocupam efectivamente posições de relevo na sociedade portuguesa. Contudo, no que se refere aos homens homossexuais e bissexuais, convém frisar que um número significativo desses homens prefere o papel dominador na execução de actos muito hipermasculinos, tais como rimming, dildo, cookbinding, watersports, enema, fistfucking, scatologia e catheter. (Talvez mais tarde resolva partilhar mais dados.)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Crítica e Sociedade

«Tudo fervilha de comentários; de autores há grande penúria». (Montaigne)
Numa sociedade sem oposição, como a nossa, e não me refiro à ausência de oposição política credível ao governo socialista de José Sócrates, convém lembrar um dos filósofos que dedicou toda a sua vida a criticar a sociedade estabelecida, em nome de um princípio de realidade mais livre, justo e solidário: Herbert Marcuse. Mas, antes de passar ao seu texto, desejo retomar Montaigne, que, numa única frase, caracterizou profeticamente o estilo de pensar da nossa gente metabolicamente reduzida: «Tudo fervilha de comentários; de autores há grande penúria». De facto, ouvindo os nossos comentadores, jornalistas, políticos ou até amigos, concluímos que, sem assunto ordenado, sagaz e competente, a conversação degenera em tolice. Os luso-tolinhos falam, sem se darem conta que «os reis e os filósofos defecam, e as senhoras também». O comentário feito sem conhecimento, competência e espírito crítico, é sintoma de atrofia cognitiva e mental. O tratamento consiste em apostar novamente num ensino centrado na aprendizagem de conteúdos objectivos de conhecimento, sem os quais a crítica degenera em retardamento mental.
Aqueles que desejam salvar a sua mente encontram neste texto de Marcuse uma orientação crítica, que os pode ajudar a livrar-se das pseudo-verdades do positivismo do pensamento único, do «politicamente correcto» e da sua falta de coragem, de modo a conquistar a sua autonomia. Os bloguistas devem ler este texto e meditar seriamente na sua compulsão opinativa e bajuladora em relação a supostos poderes estabelecidos na blogosfera. Vejam como Marcuse opõe a dialéctica ao positivismo:
«A filosofia de Hegel é, na verdade, aquilo de que foi acusada pelos seus opositores imediatos: uma filosofia negativa. Ela é, na sua origem, motivada pela convicção de que os factos que aparecem ao senso comum como indícios positivos da verdade são, na realidade, a negação da verdade, tanto que esta só pode ser estabelecida pela destruição daqueles. A força que move o método dialéctico está nesta convicção crítica. A dialéctica está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas do ser são perpassadas por uma negatividade essencial, e que esta negatividade determina o seu conteúdo e movimento. A dialéctica constitui a oposição rigorosa a qualquer forma de positivismo. De Hume aos positivistas lógicos da actualidade o princípio de tal filosofia tem sido o prestígio definitivo do facto, e o seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato. O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma “filosofia positiva” que englobaria todo o saber e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e acrítica da sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os factos, a renunciar a transgredi-los e a submeter-se à situação vigente. Para Hegel, os factos, enquanto factos, não têm autoridade. Eles são propostos pelo sujeito, que os mediatiza pelo processo de compreensão do seu desenvolvimento. A verificação repousa, em última análise, neste processo, ao qual se relacionam todos os factos, e que lhes determina o conteúdo. Tudo o que é dado tem que se justificar ante a razão; esta nada mais é que a totalidade das capacidades da natureza e do homem.
«A filosofia de Hegel, entretanto, que começa com a negação do dado e conserva por toda a parte tal negatividade, chegará a concluir que a História atingiu a realidade da razão. Os conceitos hegelianos básicos estão ainda vinculados à estrutura social do sistema dominante e, sob este aspecto, pode dizer-se que o idealismo alemão preservou a herança da Revolução Francesa.
«Mas a “reconciliação da ideia com a realidade”, proclamada na Filosofia do Direito, de Hegel, contém um elemento decisivo que anuncia mais do que a mera reconciliação. Este elemento foi preservado e utilizado pela doutrina posterior de negação da filosofia. A filosofia atinge a sua meta quando formula a visão de um mundo no qual se realiza a razão. Se neste momento a realidade reunir as condições necessárias para materializar a razão, o pensamento pode deixar de se referir ao ideal. A verdade exigiria então a prática histórica real para realizar o ideal; ao deixar este de lado, a filosofia renuncia à sua tarefa crítica, transferindo-a a uma outra força. O ápice da filosofia é, pois, ao mesmo tempo, a sua renuncia. Libertada da preocupação com o ideal, a filosofia desobriga-se também da sua oposição à realidade. Isto significa que ela deixa de ser filosofia. Não se conclua, porém, que o pensamento deva compactuar com a ordem existente. O pensar crítico não cessa, mas assume nova forma. Os esforços da razão voltam-se para a teoria social e para a prática social» (Herbert Marcuse, Razão e Revolução).
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Maldita Geriatria

O meu post sobre "Marx e José Sócrates" deu origem a uma troca de ideias fértil entre mim e a minha amiga Helena, autora do blogue «Socióloga Avense». Apesar das nossas simpatias partidárias serem diferentes, partilhamos muitos pontos de vista, como se pode verificar consultado a secção de comentários desse post, bem como doutros.
No meu último comentário, desafiei a Helena a meditar sobre a "geração grisalha", aquela que teve a vida facilitada, sobretudo no domínio da função pública, e que vão ter uma reforma garantida, embora não tenham sabido governar bem Portugal, sobretudo depois do 25 de Abril de 1974. Por isso, dado o estado precário do país e o desemprego galopante, coloquei a questão de saber se vale a pena continuar a sacrificar o futuro de Portugal por causa das "regalias" e dos "direitos adquiridos" dos funcionários públicos e das elites nacionais. Esta malta incompetente domina a vida pública há mais de 30 anos: o tempo passa, mas eles permanecem nos seus postos, quais monarcas. A geriatria constitui um problema e até mesmo os já reformados com reformas chorudas continuam a acumular empregos, roubando-os aos desempregados, muitas vezes com melhores qualificações e competências do que eles.
Se isto continuar assim e se não se fizer nada para expulsar esses párias corruptos da vida pública, justifica-se uma revolta dos desempregados contra os instalados que não querem partilhar os seus múltiplos empregos, e sobretudo uma insurreição dos jovens contra a geração dos velhos incompetentes e gananciosos. Portugal precisa mudar de rosto! Caso contrário, é preciso expulsar a geração grisalha incompetente e tirar-lhe todas as regalias adquiridas, condenando-a à miséria, aquela a que ela condena todos os outros. Devem ser julgados e condenados pelos crimes cometidos contra Portugal e o seu futuro. Além disso, os portugueses deviam recusar endividar as gerações futuras para garantir este sistema de privilégios injusto e irracional. Se não trabalharam bem durante a sua longa existência, não merecem reformas. Que regressem à casa dos seus pais nas aldeias e cultivem os terrenos para garantir a sua subsistência. Esta "geração feliz" precisa sentir na sua própria carne os efeitos que produzem na carne daqueles que nunca tiveram ou terão a vida facilitada. A política é uma questão de natalidade e não de mortalidade. Deixemos a "brigada do reumático" morrer sem conforto médico ou reformas. O futuro já não lhes pertence. Façam o favor de morrer e morrer rapidamente, não todos, mas aqueles que nunca trabalharam e deram um contributo para o desenvolvimento de Portugal.
As pseudo-elites que nos «governam» são simplesmente "rascas", néscias e, por isso, más (em termos morais), porque, se fossem competentes, o país não estava como está: na miséria e sem perspectiva futura, com um presente recheado de assaltos e de crimes organizados. Em vez de se preocupar com o tabaco, o governo devia preocupar-se com a droga. Em vez de se preocupar com o falso "apito dourado", o governo devia preocupar-se com o crime organizado, como lhe lembrou Rui Rio. Em vez de ir enriquecer as recentes "natas do plano tecnológico", o governo devia estudar bem quais as áreas que merecem investimentos e que possam garantir um desenvolvimento económico sustentável. Em vez de tomar medidas educativas gratuitas, o governo devia já saber que o problema está em cima, no ensino universitário, como o demonstram os casos tristes das universidades privadas. Antes de falar, os "catedráticos" deviam sondar os seus conhecimentos ou, como se diz por ai, ver se ainda se lembram da tabuada, porque fazem uma triste figura nos ecrãs da TV. É esta a geração que tem governado Portugal e que recusa abandonar o poder, explorando descaradamente a população portuguesa. Isto não é democracia, mas oligarquia corrupta e ladra: pseudo-democracia cleptocrática. (Veja este post "Amamentai-vos e Crescei e Amamentai-vos!" no blogue Hípias Maior.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 2 de dezembro de 2007

Economicismo Perigoso

Na sua obra «A Miséria da Filosofia», Marx apresenta uma classificação dos economistas bastante actual, apesar da economia moderna fazer tudo para denegrir o seu nome ou o seu contributo, de resto reconhecido por Joseph A. Schumpeter.

Marx distingue três escolas de economistas: a escola dos economistas fatalistas, que compreende os clássicos (Adam Smith e Ricardo) e os românticos, a escola humanitária e a escola filantrópica. Todos os economistas destas escolas «são os representantes científicos da classe burguesa», aos quais Marx opõe «os socialistas e os comunistas», «os teóricos da classe proletária», onde se inclui. Mas actualmente há uma nova classe de economistas que, ao contrário dos clássicos, não encara a miséria como «a dor que acompanha qualquer parto, na natureza como na indústria», adoptando intencionalmente traços das restantes escolas. Como os românticos, são «fatalistas indiferentes que, do alto da sua posição (adquirida na segunda metade do século XX), lançam um soberbo olhar de desdém sobre os homens locomotivas que fabricam as riquezas». Sabem que «a miséria é gerada em tão grande abundância como a riqueza», mas preferem negar «a necessidade de antagonismo», por vezes deplorando «o infortúnio do proletariado», quando, na verdade, estão interessados na manutenção das desigualdades sociais, que justificam a subjugação apresentada como fatalista da política à economia, a sua economia burocrática e o pensamento único.

Este economicismo classista que pretende reduzir tudo à economia - o homem, a sociedade, a cultura e a natureza são colonizadas pela economia instrumental e funcional - é o maior inimigo da democracia e, desde a queda do muro de Berlim, já não consegue encobrir o seu rosto, que mostrei no meu post Notas sobre Burocracia. Com efeito, tal como os economistas filantrópicos de Marx, os economistas burocratas do nosso tempo «querem conservar as categorias que exprimem as relações burguesas (relações de desigualdade social injusta), sem ter o antagonismo que as constitui». Por isso, inventaram (algumas) políticas de segurança social: o seu rosto pseudo-humanitário, as quais, além de serem (racionalmente) insustentáveis, criam párias sociais, isto é, animais profundamente dependentes e, portanto, submissos. O sentido de muitas destas políticas é contrário ao «desenvolvimento da individualidade» e das suas potencialidades subjectivas exigido por Karl Marx. É este Marx liberal, finalmente liberto da prisão do «marxismo soviético», que deve ser resgatado pela Esquerda socialista ou social-democrata, bem como a sua crítica da economia política, conforme mostrei neste post Prós e Contras: O Trabalho.
J Francisco Saraiva de Sousa

Marx e José Sócrates

Lembro-me de ouvir uma entrevista do nosso Primeiro-Ministro, José Sócrates, dada antes de ter vencido as eleições, onde revelou uma das suas leituras: Eduard Bernstein e o seu socialismo reformista, isto é, «evolucionário», brilhantemente criticado por Rosa Luxemburgo. Embora a questão reforma versus revolução que ainda parece dividir a Esquerda esteja ultrapassada, convém conhecer essa história do socialismo nos seus próprios textos e, para iniciar esse estudo, recomendo o livro de C. Wright Mills, «Os Marxistas», que fornece alguns textos fundamentais dos pais do socialismo, a partir da qual o leitor pode posteriormente escolher a sua própria bibliografia.
Dessa obra de Bernstein retenho a sua célebre frase: «Os chamados objectivos finais do socialismo não são nada, mas o movimento é tudo», de resto severamente criticada por G. Plekhanov. De facto, vista em retrospectiva, esta frase pode ser elucidativa quanto à natureza das políticas socialistas em curso, desde que não se considere a crítica «quase sempre destrutiva», porque, como se apressa a acrescentar Bernstein, «para um partido que tenha de acompanhar uma evolução verdadeira, a crítica é indispensável e a tradição pode tornar-se um peso, uma cadeia opressora». E Bernstein soube defender a via reformista para a social-democracia recorrendo aos textos de Marx e de Engels.
Dado ter lido atentamente Bernstein, durante a sua juventude política, podemos supor que José Sócrates, quando propôs o plano tecnológico, inicialmente o «choque tecnológico», tivesse em mente alguns textos de Marx. Mas quais são esses textos que o PM leu mas não quis partilhar? Como sabemos, em matéria de desenvolvimento tecnológico, portanto, das forças de produção, Marx é muito prolixo, a ponto de K. Axelos ter escrito uma obra intitulada, «Marx, Pensador da Técnica», aliás elogiada por Henri Lefebvre.
Mas só muito recentemente tive a ideia de que essa obra de Marx só podia ser «Miséria da Filosofia», dirigida contra Proudhon, o economista, contra o qual Marx se afirma pela primeira vez como economista e filósofo. Nesta obra, encontramos esta frase tão citada tanto pelos adeptos como pelos adversários de Marx: «As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais. O moinho manual dar-vos-á a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial». Esta frase tem servido de lema a todos os defensores de uma visão tecnológica da sociedade e das mudanças, de resto conciliável em muitos aspectos com a obra de Marshall Mcluhan e Derrick de Kerckhove, e é nela que vejo o fundamento filosófico, isto é, marxista do plano tecnológico, de resto já mencionado em diversos posts, em particular neste: Prós e Contras: A Sociedade em Rede. Ao apostar «nas novas oportunidades e na qualificação», o plano tecnológico visa transformar a sociedade portuguesa e dinamizar o seu desenvolvimento tecnológico e a inovação, de modo a tornar a nossa economia produtiva e competitiva. Deste plano parece resultar uma nova noção de socialismo, a que podemos chamar socialismo tecnológico: acelerar a mudança tecnológica e, por seu impulso, modificar a sociedade e a economia portuguesas. Há aqui um objectivo claro, simples mas claro: sem mão de obra qualificada e inovação tecnológica, não é possível mudar os rumos da sociedade portuguesa e muito menos garantir um Estado com preocupações sociais. Com efeito, as novas tecnologias são intrinsecamente democráticas e parecem trazer no seu bojo a promessa de uma sociedade mais justa, livre e autónoma; mas, para que essa promessa tecnológica intrínseca, se realize, é necessário implementar políticas que salvaguardam a potencialidade democrática e criativa das novas tecnologias, possibilitando o acesso responsável de todos os cidadãos ao novo espaço público virtual. A individualidade promete desabrochar neste novo espaço virtual. E Marx, como lembra A. MacIntyre, era um «individualista», ou melhor, um liberal.
Contudo, Marx diz algo mais: Marx diz que «os mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, em conformidade com as suas relações sociais». E lembra-nos que «estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios». Isto sugere um conceito que temos defendido recorrentemente neste blogue: Sem a aposta na formação humanística, o plano tecnológico carece de alma: Memória e Amnésia Histórica do Socialismo e sobretudo Socialismo e Políticas do Sentido explicitam esta ideia. José Sócrates está certo quando «abandona» certos aspectos ou, pelo menos, reformula-os, da tradição socialista, sempre respeitando e procurando reforçar a democracia política, mas ainda não avançou com uma concepção (mesmo que negativa) de socialismo que esteja em conformidade com as mudanças radicais que o seu governo está a executar. Precisamos de um modelo orientador de sociedade socialista e, sem o impulso das humanidades, em particular da Filosofia, esse modelo corre o risco de nunca chegar a ver a luz do sol. "Sonhar para a frente" (Bloch) é aquilo que sempre definiu o socialismo (social-democracia) e que distingue a Esquerda Socialista da Direita. Só a crítica pode galvanizar esse sonhar acordado e obrigar o Partido Socialista a acompanhar a verdadeira evolução do mundo global, sem se descaracterizar ou sem esquecer a sua tradição, ela própria uma tradição crítica, bem visível nesta obra de Marx: «Miséria da Filosofia», a qual convido a ler.
Alguns leitores poderão pensar que o recurso ao texto de Marx não acrescenta nada ao plano tecnológico. Mas esta reacção só pode desencadear um sorriso filosófico. O que verdadeiramente está em causa é a reintrodução do pensamento na política e José Sócrates tem essa dívida não só em relação a Marx (a sua tradição política) mas em relação ao filósofo chamado Sócrates, que trouxe o pensamento para a política. Deste modo, o PM pode defender-se melhor das ameaças internas da democracia, as novas classes dirigentes, que defendem um economicismo fatalista, de resto denunciado por Marx nessa mesma obra. (Convém lembrar os "comunistas" que Marx não é património do Partido Comunista, que não sabe ler Lenine e a sua aversão pela luta sindical, sobretudo quando essa luta é metabolicamente reduzida, visando manter privilégios muito pouco justos e "igualitários".)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Filosofia Clínica e Reconstrução da Identidade

No post anterior apresentei uma obra de K.J. Gergen e, neste post, quero desafiar os filósofos a profissionalizar a sua actividade, pelo menos em alguns sectores. Uma área de profissionalização é ou deveria ser em Portugal a Filosofia Clínica. Por isso, recomendo a leitura de outra obra de Sheila McNamee e Kenneth J. Gergen, «Therapy as Social Construction» (1995).
Esta obra revela a riqueza de uma abordagem construtivista social do processo terapêutico, sobretudo no domínio da saúde mental, destacando a noção de vidas construídas socialmente, com fortes implicações nas nossas noções de eu, identidade e projecto de vida. Estas noções não são determinadas por um único "roteiro cultural", mas sobredeterminadas pelo contexto social e cultural do qual não podem ser dissociadas. Isto significa que a terapia construtivista social assenta num diálogo entre o terapeuta e o "cliente": estes trabalham juntos na co-criação de novas histórias de vida mais satisfatórias.
Mas esta é apenas uma perspectiva da terapêutica, aliás muito circunscrita ao domínio das chamadas "doenças mentais", como se nas outras doenças não fosse igualmente necessário "cuidar da alma" dos pacientes. A Filosofia apresenta outras abordagens, nomeadamente a fenomenológica, e não precisa que outros (psiquiatras, psicólogos clínicos, assistentes sociais, etc.) as apliquem em seu lugar: A filosofia académica deve zelar pelo futuro dos seus membros (alunos).
Para que os meus leitores não fiquem perplexos, darei alguns exemplos: A filosofia de Marx exerceu uma influência decisiva sobre o pensamento de Erich Fromm e de Wilhelm Reich, a filosofia dialéctica de G. LuKács permitiu a Joseph Gabel compreender melhor o mundo da loucura (a esquizofrenia), a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre foi assimilada pelo movimento da antipsiquiatria, liderado por R.D. Laing e D.G. Cooper, as terapias cognitivas (Aaron T. Beck) estão muito marcadas por determinadas tendências da filosofia da mente e pelo cognitivismo, a etnopsiquiatria (Devereux) ou a antropologia psicanalítica de Géza Róheim são profundamente marcadas pela filosofia, a psicologia de Karl Jaspers é já um clássico da psiquiatria, bem como a de William James, e até mesmo a filosofia existencial de Heidegger deu origem à analise existencial aplicada à psiquiatria por L. Binswanger ou às brilhantes análises de E. Minkowski, para referir apenas os casos mais evidentes dentre centenas deles que percorrem toda a história conjunta da medicina e da filosofia. O problema é que a filosofia ensinada nas Universidades portuguesas desconhece realmente a sua própria história e riqueza conceptual.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Conferência sobre o Self

Em 2005 fui convidado por um professor para apresentar uma conferência sobre comunicação numa Escola Secundária do Porto. Cheguei à Escola e fui bem recebido pelos seus professores, em particular pela sua Presidente do Conselho Directivo. Achei a recepção patética, mas só quando chegámos à sala é que tomei consciência que o público-alvo da conferência não eram os alunos mas a «nata de professores da Escola». Quem conheça bem a forma de funcionamento do ensino em Portugal, sabe o que isso significa. Contudo, preferi provocar o luso-destino triste e vazio e improvisar uma conferência sobre comunicação e self, breve, densa, hipercrítica e estimulante, para motivar os professores. E como é difícil motivar professores! Muito difícil!
Durante a exposição detectei algum vazio nos olhares dos meus ouvintes, o que também não é invulgar quando se lida com professores portugueses. Por isso, procurei sempre ser claro e provocativo, mas evitando olhar muito para eles, para não me distrair ou perder a «pica». Quando terminei, esperava que me colocassem questões pertinentes que ajudassem a clarificar melhor o meu pensamento. Mas só escutei elogios deslocados e pensei: «Que burrinhos!» Afinal, como pretendia revelar a multiplicidade de "eus", mantive um deles em inglês, sem o traduzir: o próprio self. E os meus ouvintes, como verifiquei no final, não sabiam o que significava self, continuando a ensinar, ou melhor, a fingir que ensinam até hoje, com aquele ar de "ambulantes vazios" mas extremamente nefastos, aguardando unicamente a reforma. Em Portugal, ser professor significa aguardar a reforma. De facto, ninguém pode acusar os professores de não serem reformistas!
Desde esta conferência fui obrigado a repensar a minha teoria do Self e, neste cenário metabolicamente reduzido, interrogo-me se por detrás daqueles rostos vazios e dos movimentos patéticos existe algo semelhante a um Eu. Confesso que ainda não consegui detectar esse eu e, por isso, dedico-me a estudar a psicologia do zombi (morto-vivo), isto é, da ausência de um eu vivo e actuante, obrigando-me a denunciar os luso-discursos patéticos produzidos por figuras patéticas no domínio da filosofia da mente e das neurociências, e confrontando-os constantemente com a sua figura carismática, Daniel Dennett, o feiticeiro vodu.
J Francisco Saraiva de Sousa

Socialismo Biológico

Desde a minha adolescência, mais precisamente desde a infância, trabalho num projecto ambicioso: repensar o socialismo, de modo a livrá-lo dos equívocos e dos erros cometidos pela Esquerda ao longo da sua história. Este projecto tem sido alvo de uma grande oposição, a começar pelos professores, com quem ingenuamente o partilhei, nas suas linhas muito gerais e vagas.

Afinal, medindo bem as coisas, não era assim tão ingénuo como acabei de dizer, porque sempre soube, mesmo antes de ler Jean-Paul Sartre, que não devia acreditar nos outros, sobretudo quando os outros são portugueses. Citei Sartre para despistar a mente tortuosa de alguns eventuais leitores, mas podia ter dito que a minha acção e pensamento já eram orientados por uma ideia biológica do socialismo, de resto um termo que não me atrai muito, dado colidir com a minha noção biológica de self. Mas, como resolvi aceitar a autoridade de Marx e permanecer-lhe no fundamental fiel, mantenho o termo socialismo, até porque o partido político com quem tenho afinidades é o Partido Socialista.

Afinal, Marx e Engels elogiaram a obra de Darwin e o último comparou a descoberta de Marx no domínio da História à descoberta de Darwin no domínio da Vida. Existe, portanto, um laço estreito entre o fundador do "socialismo científico" e o pensamento biológico, de resto bem estudado por Engels nalgumas páginas magníficas da sua obra tremendamente mal-tratada, «Dialéctica da Natureza», uma das obras clássicas que estudei cuidadosamente, mesmo antes de ler «O Capital» de Karl Marx. Ao contrário das correntes marxistas ortodoxas, nunca neguei este laço entre o marxismo e a biologia e sempre condenei os disparates soviéticos anti-evolucionistas e anti-geneticistas. O "genoma" não me era nada estranho e foi esta "intimidade genómica" que me protegeu e me impediu de abraçar abertamente qualquer tentativa real de realização do socialismo, sentindo repulsa pelo «comunismo». De facto, o meu a-comunismo foi justificado pelo desenrolar da História.

É evidente que sempre estive mais próximo do chamado marxismo ocidental do que do marxismo soviético, cuja análise foi brilhantemente feita por Herbert Marcuse numa obra com o mesmo nome. Acabo de mencionar o filósofo que mais me marcou durante um período difícil: trabalhar secretamente no meu projecto e continuar a sobreviver num meio hostil e maldoso, a sociedade portuguesa. À distância, Marcuse dava-me razão e ânimo para continuar a lutar pela reformulação do socialismo. Aquele ânimo que raramente encontramos nas Universidades Portuguesas, enfaticamente definidas por uma amiga como «antros onde a filosofia (entendida, primordialmente, como actividade de questionamento e reflexão dos valores estabelecidos) perece aflitivamente - salvo raríssimos intentos» (Aveugle.Papillon, no post anterior). Mas os ministros da educação, da cultura e da ciência parecem fingir ignorar esta percepção nacional do ensino universitário, talvez por também eles serem ofuscados pela sua própria inércia mental, coberta de pequenos saberes práticos transmitidos em fórmulas burocráticas, pouco criativas e a-críticas.

Já editei neste blogue um post em que apresento brevemente o pensamento deste meu mestre: Sociedade Obscena, e noutro post defendi a necessidade de construir uma política socialista do sentido, Socialismo e Políticas do Sentido, numa perspectiva meramente sociológica, sem revelar a sua base biológica. Marcuse forjou a expressão "socialismo biológico" e procurou esboçar uma política radical, mas não foi totalmente bem sucedido, em parte devido ao freudo-marxismo protagonizado pela Escola de Frankfurt, em parte devido à animosidade hermenêutica que os mestres de Frankfurt nutrem pela biologia da evolução, em particular pela teoria da selecção natural de Darwin, de resto bem clara na obra de Horkheimer, «O Eclipse da Razão».
Já sabia tudo isto na altura e, agora, que possuo a teoria do socialismo biológico não a quero partilhar com pessoas muito más, os portugueses invejosos. Talvez aconteça algum evento que me leve a mudar de ideias, mas até ao momento oculto quase todas as pistas que conduzem a esse meu pensamento. Trabalho sozinho em circuito ultra-fechado. Contudo, se surgir um movimento de resistência contra as políticas da educação e se os estudantes universitários se libertarem do medo e tiverem coragem para denunciar a incompetência da maior parte dos seus professores, sobretudo os de Filosofia, como fazem anonimamente, em privado ou via e-mail, talvez essa revolta conduzida de modo justo e responsável me convença a abrir o jogo. Até lá considero-os pessoas metabolicamente reduzidas e pouco corajosas, incapazes de vencer o medo que destrói as suas mentes e a gula oportunista que os move. Lembrem-se que, afinal, são meros animais e, se já pensam como as classes dirigentes, a vossa vida será uma ilusão inexoravelmente condenada a perecer, sem nunca terem admirado tudo aquilo que constitui a Vida. (É evidente que "brinco" com os meus leitores: muitos dos princípios do novo socialismo que defendo têm sido expostos em quase todos os meus posts, alguns mais fundamentados do que outros, e a "crítica transcendente" que uso a par da "crítica imanente" é claramente orientada pela nova problemática.)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Prós e Contras: O Trabalho

O meu post anterior era uma provocação dirigida ao programa «Prós e Contras» dedicado ao trabalho (26 de Novembro de 2007) que ainda está a decorrer. Tinha a ideia de desconstruir as concepções que foram e continuam a ser expostas, de resto muito pouco discutidas. Mas mudei de objectivo, preferindo ser mais positivo ou, como se diz, mais «optimista». Por isso, vou alinhavar alguns pontos da discussão, dando-lhes um rosto, sem deixar transparecer as minhas análises psicológicas e políticas das pessoas envolvidas. Contudo, sem o pretender intencionalmente, já tomei uma posição crítica, tal é o meu hábito de usar a «negação determinada», isto é, o «procedimento» crítico inventado por Hegel e levado ao extremo da perfeição por Adorno.
O engenheiro que falou da "qualificação e inovação" lançou algumas provocações, começando por dizer que se tinha perdido duas horas do programa a debater aquilo que todos sabem: o "diagnóstico". Logo a seguir, afirma que o problema não diz respeito ao "capital" e ao "trabalho", mas envolve a sua própria classe profissional: os técnicos e os engenheiros, embora depois tenha sido obrigado a reconhecer que a "economia do conhecimento" não dá empregos e não resolve todos os problemas do trabalho, da segurança e do crescimento económico. Se excluirmos a emoção tipicamente portuguesa, até podemos estar de acordo no que se refere à qualificação e requalificação dos trabalhadores e dos empresários, como lembrou Vítor Ramalho, mas será que o engenheiro dos computadores é a pessoas mais indicada para elaborar políticas? A mentalidade de engenheiro é extremamente instrumental e um dos problemas que deveria ter sido debatido é precisamente a racionalidade instrumental e o seu impacto negativo sobre a sociedade, o homem, a vida e a natureza. Os conhecimentos técnicos são necessários para modernizar muitas empresas, tradicionais e as novas empresas tecnológicas, mas não lhes compete (aos técnicos) elaborar as orientações políticas e, muito menos, culturais e civilizacionais da nação e da Europa.
Com esta indicação, vamos ao encontro da "profundidade" exigida por Vítor Ramalho: a economia não é um fim, mas um meio da política, isto é, a economia deve estar subordinada à política. As decisões são políticas e são elas que devem ser objecto da discussão pública. Aliás, devemos ir mais longe e dizer que é necessário libertar a política dos constrangimentos ideológicos dos conhecimentos técnicos e adaptativos de todo o género, incluindo as ciências económicas, administrativas, empresariais, etc. Estes conhecimentos são instrumentos usados pela ideologia dominante, precisamente a que está ligada ao poder económico e financeiro, para apresentar a situação como incontornável: a "crise permanente" (Carvalho da Silva) que amedronta as pessoas, sujeitando-as à "fatalidade" de estarem sempre confrontadas com a mera subsistência e sobrevivência e, por conseguinte, anulando-as como "animais humanos", com interesses que possam transcender a garantia sempre precária do seu mero metabolismo. É certo que a gestão corrente de um Estado moderno exige estes conhecimentos técnico-burocráticos, mas não compete aos seus portadores ditarem orientações de fundo, fazendo-as passar como se fossem políticas. Este aspecto da actual governação dos Estados europeus está a destruir a própria política.
Por isso, a aposta na formação e requalificação, isto é, o plano tecnológico, levada a cabo pelo governo socialista de José Sócrates, não pode ser reduzido à sua dimensão estritamente tecnológica, economicista e profissional. Sem uma visão política autónoma, assente na tradição ocidental e na sua cultura superior, o plano tecnológico é cego e pode negar a vida a gerações de pessoas que, segundo o seu "fatalismo" subjacente, tiveram o azar de nascer muito antes da globalização, de resto reduzida à sua dimensão económica e financeira, enfaticamente caracterizada por António Saraiva como a "voracidade dos tempos globais". É função da política esclarecida, sobretudo da política socialista, fazer justiça e dignificar a vida, protegendo-a destes "assaltos metabólicos e gordos de mau colesterol" que não olham a meios para alcançar fins pouco honestos e éticos, portanto, pouco racionais, colocando o mundo em perigo.
No plano do conhecimento, há uma hierarquia que deve ser conservada, porque foi ela que configurou e deu continuidade à aventura ocidental: A filosofia é a matriz da nossa civilização e cabe-lhe a ela orientar os seus destinos. Até a política deve ser sua «escrava». Quem não entende esta evidência histórica, não merece respirar o ar que respira. E, nesse caso, quando o inimigo teima em levar a sua avante, não podemos descartar a hipótese de uma "ditadura pedagógica" (Platão, Marcuse). A justiça é um bem comum, pertence a todos e não a uns poucos, e ela está em perigo quando a democracia é usada para camuflar uma oligarquia cleptocrática, cujo eixo circula através dos economistas, dos advogados e dos engenheiros: a nova classe dirigente. (De resto, todos os "factores" são importantes e todos eles devem ser levados em conta. de modo a salvaguardar a liberdade, a justiça e a fraternidade.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Trabalho e Lazer

«O trabalho, dizem os economistas, é a fonte de toda a riqueza. É-o sem dúvida… conjuntamente com a natureza que lhe fornece a matéria que ele transforma em riqueza, Mas é infinitamente mais ainda. É a condição fundamental primeira de toda a vida humana, e é-o a tal ponto que podemos dizer: o trabalho criou o próprio homem». (F. ENGELS)
Marx mostrou que, na era da industrialização, o trabalho tornou-se trabalho assalariado e, como tal, deixou de estar associado às necessidades humanas imediatas e entrou no processo anónimo de produção. O trabalhador converteu-se numa peça da engrenagem produtiva, desapossada de poder e de vontade. O trabalho passou a valer pelo salário e, deste modo, tornou-se alienante e inumano. É certo que o trabalho garante a possibilidade de consumo (sensação de satisfação), mas também conduz ao vazio e à frustração (sensação de insaciabilidade).
A era pós-industrial, a nossa era, é confrontada com o aumento do desemprego, do trabalho precário e a tempo parcial e, simultaneamente, com o crescente trabalho qualificado. Actualmente, o trabalho deixou de ser um mecanismo capaz de promover a «igualdade social», tornando-se um factor de desigualdades, porque o seu valor continua a ser o dinheiro que se obtém pela venda da força-de-trabalho, e o emprego é cada vez mais um bem escasso. É, portanto, o poder aquisitivo que determina o valor do trabalho. O valor deixou de ser valor-de-uso e tornou-se valor-de-troca. A qualidade de vida passou a ser determinada pelo dinheiro: "Mais dinheiro, mais qualidade de vida".
Além disso, o trabalho vale em função do papel social do trabalhador: a classe trabalhadora, entregue ao trabalho produtivo dos serviços, e a «classe dominante», dedicada às profissões liberais e ao poder político e executivo empresarial e bancário, são dois universos absolutamente distintos, que oscilam entre o trabalho precário e os profissionais de colarinho-branco que autolegitimam injusta e abusivamente o seu estatuto superior. Cava-se, assim, um fosso entre aqueles para quem o trabalho é fonte de subsistência, sempre precária porque indefinida e escassa, e os que encontram supostamente no trabalho a sua «auto-realização».
A Doutrina Social da Igreja Católica defende a ideia de que o trabalho é «fonte da identidade e da auto-realização humanas», aliás uma ideia «marxista», que merece ser pensada, embora a questão que clarifique o sentido do trabalho possa ser outra, aquela colocada por Friedmann: «O homem da civilização do futuro, já nascido depois da fábrica atómica e da nova tecnologia, poderá vir a realizar-se e a encontrar a sua felicidade no tempo livre?». Com efeito, o trabalho só se tornou um tema digno de reflexão filosófica com a economia política clássica (Ricardo e Adam Smith) e, sobretudo, com as filosofias de Hegel e de Marx, este último, considerado por Hannah Arendt, como «o grande filósofo do trabalho».
O marxismo sempre denunciou o trabalho assalariado e o seu carácter alienado. Contudo, esta denúncia foi realizada sem levar em conta as ambiguidades políticas da sua própria concepção de trabalho, de resto denunciadas por Hannah Arendt e Georges Friedmann. Daí que a maior parte dos marxistas tenha caído na tentação de dar expressão à tese de Marx dos dois reinos – o reino da necessidade e reino o da liberdade, francamente desfavorável a uma visão positiva do trabalho.
Convém reler as «Metamorphoses du Travail» de André Gorz, uma dessas vítimas da concepção negativa do trabalho, de modo a centrar a nossa atenção em três aspectos básicos: a racionalização económica que nos leva a trabalhar como o fazemos não é, de modo algum, racional no sentido pleno, isto é, libertadora ou emancipadora. Pelo contrário, produz desintegração social (1), degradação da vida individual (2) e desigualdade (3).
Gorz elaborou um projecto político com o objectivo de combater estas consequências da racionalização económica, que deveria ter três direcções que se complementam e convergem: 1) uma distribuição do trabalho solidária que crie sociedade, isto é, relações sociais mais humanas; 2) uma desmistificação do trabalho, que, graças à tecnologia, já não teria que ser a principal ocupação da vida; 3) e aquilo a que Marx chamou «o livre desenvolvimento da individualidade», pelo aproveitamento do tempo libertado de trabalho.
1. Criar sociedade. Dado que o mercado ameaça destruir a sociedade, a programação global do trabalho equivale a programar uma nova forma de entender a sociedade e de viver em sociedade. A racionalidade económica capitalista criou mais riqueza, num sentido quantitativo, mas não conseguiu corrigir a desigualdade e a falta de solidariedade entre os homens, nem contribuiu significativamente para a melhoria adequada da qualidade de vida individual. Um modo de produção que favorece e acentua o atomismo e a maximização dos lucros, na medida em que obriga a ganhar mais dinheiro para consumir mais, não contribui efectivamente para dignificar a vida individual.
Esta tarefa cabe ao Estado, ou, como diz Gorz: é função de uma política socialista «criar sociedade», subordinar a racionalidade económica a fins sociais, em particular éticos ou políticos, combater o défice de sociedade que o capitalismo implica. Isto significa que é necessário começar a pensar qual deve ser o significado do trabalho na vida humana, chegar a uma concepção de trabalho digna e adequada para que a sociedade adquira coesão e a vida pessoal não se degrade. Trata-se, portanto, de elaborar uma política do trabalho capaz de minorar os efeitos negativos da racionalidade económica, procurando harmonizá-la com a racionalidade da vida.
2. Desmistificar o trabalho. Segundo Gorz, também é necessário que os indivíduos vejam o trabalho de uma outra forma, como qualquer coisa que dá sentido às suas vidas. Este sentido parece derivar não do tempo de trabalho, mas do tempo livre: Os teóricos mais radicais pensam ser absurdo continuar a dar ao trabalho o melhor «tempo» das nossas vidas, quando, nos tempos modernos, as novas tecnologias permitem reduzir o tempo de trabalho e aumentam o tempo de ócio, o tempo para viver. Se formos capazes de distribuir equitativamente esse trabalho, que necessita já de menos mão-de-obra humana, porque esta foi substituída pela técnica, o tempo de descanso e de liberdade pode aumentar para todos. Essa visão diferencial dos «tempos» não é uma reivindicação exclusiva de Gorz, mas da sociedade em geral. Contudo, esta distinção entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio invalida a tarefa de dignificar o próprio trabalho, e os seus defensores ainda não perceberam que os tempos de lazer, além de serem empresarialmente organizados pelo mercado (Adorno), são gastos a consumir (Arendt), numa conjuntura em que a tecnologia dispensa o trabalhador, tornando o trabalho como fonte de subsistência (emprego) num bem escasso.
3. O livre desenvolvimento da individualidade. O ideal seria a continuidade perfeita entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio: o trabalho como diversão, como reclamava Marcuse. Porém, isto só é possível para algumas pessoas e para certas actividades de trabalho - intelectual, artístico, artesanal. Gorz diz que «a satisfação existencial depende da actividade fora do trabalho mais do que qualquer outro factor». O trabalho precisa de deixar de ser o mais central, para se converter numa actividade entre outras. Para Gorz, seria necessário abrir caminho a uma nova utopia: a da «sociedade do tempo livre». A ironia é que esta utopia está a realizar-se num sentido não desejável: o aumento do desemprego e, terrivelmente, do tempo livre, gasto à procura de emprego. Neste novo cenário, torna-se necessário glorificar o trabalho como fonte essencial de identidade e de realização pessoal, de resto uma ideia que já tinha sido avançada por Wilhelm Reich que via no trabalho uma fonte de saúde. Além disso, esta noção positiva do trabalho manifesta-se claramente nos textos de Marx e de Engels, nomeadamente naquele que aparece neste post em epigrafe.
Esta visão positiva do tempo de trabalho e do tempo da vida (também presente no pensamento de Marx) depende tanto de uma forte vontade política socialista, como da educação para o trabalho. A globalização não parece ser favorável à concretização de uma concepção justa e distributiva de trabalho. Com efeito, não só tende a tornar mais barato o trabalho, como também fomenta o desemprego, numa época em que o Estado está a perder autonomia em relação ao poder económico. O que está em causa hoje em dia é a própria subsistência das pessoas e é neste domínio do trabalho e do emprego pleno que as políticas socialistas podem fazer a diferença qualitativa, humanizando o trabalho mais penoso (1), e distribuindo melhor o trabalho, a fim de que um maior número de pessoas possa ter emprego para desfrutar, em seguida, a liberdade e a possibilidade de fazer outras coisas e de se ocupar naquilo que mais preenche a sua vida (2). Deste modo, podemos talvez libertar qualitativamente os homens do «reino da necessidade», isto é, da preocupação pela mera subsistência, abrindo-lhe as portas do «reino da liberdade«, onde devem aprender a ser autónomos e solidários, sem que sejam vítimas da concepção unidimensional e muito portuguesa de que o sentido do trabalho se encontra na profissionalização aparente, obtida de modo corrupto, isto é, na (falsa) identidade pessoal na e para a profissão, vista como eliminação dos concorrentes e megaconcentrações de empregos. Esta é a concepção dos luso-corruptos que negam distribuir o trabalho de modo equitativo e justo. Para eles, o êxito profissional é inseparável do lucro económico, aliás estabelecido pelos próprios, e a qualidade de vida mede-se pela quantidade de dinheiro que cada um consegue sacar abusivamente ao Estado, como se eles fossem o Estado.
A «utopia da civilização do lazer», outrora defendida por certas correntes do marxismo, deve ser abandonada, porque esquece que vivemos num mundo cada vez mais global, numa sociedade consumista, ameaçada pelas desigualdades sociais e pelo desemprego. O lazer converteu-se em tempo de consumo: a jornada de trabalho foi reduzida para possibilitar o tempo livre, mas a sua ocupação não deu origem ao surgimento de «individualidades livres e desenvolvidas». Ora, esta concepção do trabalho-lazer foi admiravelmente minada por Hannah Arendt:
«Cem anos depois de Marx sabemos quão falaz é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites».
Este é um texto de improviso escrito como uma denúncia antecipada das asneirolas que vão ser ditas hoje à noite no programa «Prós e Contras» dedicado ao Trabalho.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 24 de novembro de 2007

Suicídio e Política

Temos muitas teorias do suicídio, sociológicas, psicológicas, psicanalíticas, antropológicas e neurobiológicas, e, actualmente, esta área do conhecimento tende a profissionalizar-se, como se o suicídio fosse mais um assunto de especialistas. Infelizmente, a guardiã do pensamento Ocidental, a Filosofia, tem sido omissa a este respeito e muito subserviente aos actuais poderes instituídos, fechando-se em si mesma como se não tivesse um exterior que aguarda ansiosamente a sua voz: a voz que diz a verdade.
Definir o suicídio tem sido visto como um problema, sobretudo desde que este assunto passou a ser considerado uma área profissional, reservada a meia dúzia de pessoas cuja única vocação é dificultar aquilo que é simples, de modo a garantir os seus empregos artificiais. A definição mais simples de suicídio apresenta-o como um autocídio intencional, embora se possa distinguir entre os suicidas verdadeiros e os falsos suicidas (Stengel & Cook, 1958). Daí que Stengel (1973) tenha definido o suicídio como «qualquer acto deliberado de dano cometido por uma pessoas contra si própria e no qual não pode estar certa de sobreviver». Quer sejam verdadeiros ou falsos suicidas, todas as pessoas que se auto-infligem danos arriscam a vida e, por isso, estão sujeitas a perdê-la.
Contudo, a obra de Émile Durkheim (1897), «O Suicídio». continua a ser a mais completa, abrangente e influente das teorias sociais sobre o suicídio, e, ao contrário do que se pensa, não é completamente incompatível com a perspectiva de Freud apresentada inicialmente em «Luto e Melancolia» (1917) e posteriormente em «Além do Princípio de Prazer» (1920). Durkheim defendeu que a consistência das taxas de suicídio é um facto social, explicado pelo grau em que os indivíduos são integrados e regulados pelas forças morais coercitivas da vida colectiva. Isto significa que o suicídio é função da desintegração das ligações sociais, quer se trate de agrupamentos religiosos e familiares, quer se trate do amorfismo e da anomia da sociedade contemporânea no seu conjunto. O suicídio egoísta e o suicídio altruísta resultam, respectivamente, da subintegração e da superintegração do indivíduo pela sociedade, enquanto o suicídio anómico é causado pela sub-regulação. Durkheim opõe o suicídio altruísta ao suicídio egoísta e ao suicídio anómico, porque dos três tipos é aquele que tem origem numa integração demasiado forte do indivíduo na colectividade, o que parece confirmar a sua explicação do suicídio em função da medida da integração social. A utilização de correlações entre o suicídio e várias taxas de associação externa, para demonstrar a validade dos seus conceitos fundamentais, permitiu a Durkheim mostrar que as populações católicas tinham taxas de suicídios inferiores às populações protestantes, porque a comunidade católica vincula o indivíduo mais rigorosamente à colectividade do que as comunidades protestantes. Para Durkheim, o egoísmo e a anomia crescentes estavam a causar as taxas de suicídio invariavelmente ascendentes das sociedades ocidentais. Daí que Durkheim, preocupado com a força crescente da anomia e do amorfismo nas sociedades ocidentais, tenha procurado novos meios práticos susceptíveis de reforçar a «solidariedade orgânica» em detrimento da «soledariedade mecânica» (por exemplo, um novo corporativismo).
É evidente que existem muitos outros factores que favorecem o suicídio, em particular a urbanização e o isolamento (Halbwachs, 1933; Sainsbury, 1955; Cavari, 1965), a falta de integração de status (Gibbs & Martin, 1964), a falta de restrição externa (Henry & Short, 1954; Maris, 1969), a limitação decorrente da cobertura dos mass media (Phillips & Carsyensen, 1988), desespero, hostilidade e baixa auto-estima (Neuringer, 1976), desemprego crescente, baixos níveis de um metabolito da serotonina e estados de profunda depressão (Brown et al. 1982) ou mesmo predisposição genética para o suicídio. Todos estes factores (sociais, psicológicos e biológicos) ajudam a compreender melhor o fenómeno do suicídio, mas são incapazes de fornecer uma política do sentido, tal como a abordámos neste outro post: Socialismo e Políticas do Sentido. Isto significa que precisamos olhar para a Filosofia, a única capaz de fornecer uma visão política do suicídio, esse acto a-político por excelência.
A filosofia da liberdade de Hegel é uma filosofia da morte, que encara o suicídio como a «manifestação suprema da liberdade do homem», esse ser que é «morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária». Ora, dado a morte ser a condição necessária e suficiente da liberdade e da historicidade, da individualidade e da universalidade, num mundo perfeitamente corrupto como o nosso e sem futuro, a não ser continuar a constituir a «reserva de mão-de-obra barata» necessária ao sustento e à diversão de uns poucos corruptos e abusadores do poder, a morte voluntária constitui a única alternativa capaz de afirmar a recusa da ordem social estabelecida no seu conjunto. Assim, todos aqueles que procuraram a sua própria morte devem ser vistos como a encarnação da grande recusa: preferiram matar-se, em vez de viver uma vida pouco digna. De certo modo, realizaram o sentido da política: suicidaram-se para se livrarem da escravatura e da democracia cleptocrática que negam a maioria das pessoas uma vida digna e sem angústia. Este sentido político do suicídio é a negação da ordem estabelecida, que, doravante, pode ser avaliada pelas taxas de suicídio que provoca e desencadeia. Recordar os que morrem voluntariamente é manter viva a sua luta contra a ordem estabelecida.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lourenço Marques: Uma Capital Colonial

Descobri um site que mostra imagens de Lourenço Marques nos anos 20.
Veja aqui: http://www.malhanga.com/LM-1929/.
De facto, era uma cidade africana cosmopolita. Apesar de nem todos serem livres para desfrutar esse cosmopolitismo, era já uma cidade colonial desenvolvida para a época e tornou-se muito mais desenvolvida e moderna com o passar dos anos. Imagens como estas testemunham o carácter peculiar do colonialismo português.
Aguardo notícias do meu amigo Florêncio que prometeu mostrar Vila Pery nos anos 20. Bem sei que o meu amigo Agry pensará que se trata de saudosismo ou de branqueamento do colonialismo português. Não, a razão é outra: Chamar a atenção dos portugueses para Moçambique e levá-los a aprofundar os seus conhecimentos sobre a História de Portugal que também foi a História de Moçambique. É um convite à colaboração e ao diálogo e, porque não?, ao turismo.
Chegou a altura dos portugueses em colaboração com os moçambicanos redescobrirem Moçambique Colonial, fazerem a sua história económica, social, cultural e política e estudar aprofundadamente o seu património arquitectónico. Existem diversas tendências arquitectónicas que coexistem harmoniosamente e que estabelecem um diálogo intercultural. Por exemplo, as "farmes" dos gregos ou dos ingleses, os «palácios» dos administradores coloniais, os edifícios de estilo especificamente colonial e também a arquitectura moderna de excelente qualidade. Ou o seu mobiliário feito em madeiras exóticas e bordadas por mãos hábeis, muitos dos quais (os "bordados") decalcados de desenhos (leões, palhotas, negras, crianças, pilões, enfim paisagens moçambicanas, ou figuras geométricas sofisticadas) feitos por uma criança: Sim, fui eu mesmo que os desenhei, cobrando dinheiro ao meu pai para comprar livros.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Lourenço Marques nos Anos 20

Um amigo moçambicano chamado Florêncio teve a amabilidade de disponibilizar esta breve descrição da vida citadina de Lourenço Marques, actual Maputo, nos anos 20, em plena época colonial.
Como diz Florêncio, cujo blogue não consegui encontrar, trata-se de uma «transcrição do Boletim da Agência Geral das Colónias, Nº 50, Ano 5º, Agosto de 1929, págs. 246 a 251».
«A cidade de Lourenço Marques, com seus luxuosos hotéis, os seus edifícios públicos sem grandes pretensões, mas bem distribuídos e elegantes, as suas ruas asfaltadas e limpas, as suas praças ajardinadas, os seus quiosques luxuosos, longas avenidas arborizadas, vivendas entre jardins bem tratados, dá ao visitante uma agradabilíssima impressão de casa carinhosamente arrumada, onde se respira conforto e bem estar, onde há disciplina, ordem e trabalho.
«A vida em Lourenço Marques difere um pouco da vida nas outras cidades coloniais portuguesas e estrangeiras porque é grandemente cosmopolita. Todos levaram para ali um pouco dos seus costumes e dos seus hábitos, das suas qualidades e dos seus defeitos, adaptando-os à vida colonial portuguesa.
«Depois dos europeus portugueses são os ingleses que formam a colónia mais importante. Para lá levaram os seus clubes, os seus desportos, as suas instituições, sendo agradável notar que estas não mantêm as características rigidamente britânicas que eles costumam apresentar em toda a parte. Depois, são os Índios, oriundos da Índia inglesa e portuguesa, pitorescos no seu trajar, de camisa de fora e pernas ao léu, cheirando a caril e a nós moscada, e que conseguiram açambarcar o comércio com os indígenas, até mesmo com os europeus; os gregos, com lojas de fruta, e, nos quiosques, vendendo gelados e jogando impenitentemente aos dados; os chinas, de longa trança e vestidos à europeia, exploram a horticultura e mantêm casas de pasto nas imediações dos quartéis, têm um sumptuoso «Pagode» e um clube republicano. Os índios portugueses católicos formam uma das mais numerosas colónias, ocupando muitos lugares nos serviços públicos e até altas funções na burocracia e magistratura; os italianos exploram hotéis; franceses, belgas e alemães ocupam-se no comércio, na indústria e nas empresas de navegação, etc. Os naturais, indígenas civilizados, são excelentes criados de servir e contínuos nas repartições públicas e escritórios comerciais, vestem à europeia com exagerada elegância. Os “zamzibaristas” e macuas, pretos maometanos, são típicos pelo seu cofió vermelho de longa borla preta e longa cabaia branca. Todos concorrem para o aspecto pitoresco da cidade com a variedade dos seus trajes, hábitos e línguas e todos parecem viver felizes na terra e sob a liberal e justa administração portuguesa.
«A cidade acorda, geralmente, às sete horas da manhã, mas a essa hora é já intensíssima a vida no grande cais. O comércio abre as suas portas às oito horas, fechando às sete da noite, com intervalo das 12 às 14, em que encerra para o almoço e a sesta. Cidade de trabalho, o movimento pelas ruas só é intenso depois das 17 horas, hora a que fecham os escritórios e as repartições, hora a que se invadem os quiosques para o «chá das cinco», os clubes e os “bars” para o primeiro “sundowner”. Muitos automóveis correm então em todas as direcções, os eléctricos e os “omnibus” são assaltados, uns para a praia, outros para os retiros, para os campos de desporto, para os centros de cavaco. Ninguém pensa entrar em casa antes das 20 horas. Senhoras e crianças também não regressam da praia, dos jardins públicos e dos centros elegantes de «chá» antes dessa hora.
«Lourenço Marques, de noite, é uma cidade pacata, três cinemas muito cómodos funcionam com filmes novos e modernos. Uma vez por semana, a monotonia do cinema é quebrada por pequenas companhias teatrais portuguesas e estrangeiras que são geralmente apreciadas. Passeios de automóvel à praia, profusamente iluminada e com uma boa orquestra no Pavilhão de Chá, reuniões nos diversos clubes, bailes «Cinderella» (até à meia noite), e depois o descanso, muito necessário em África e em todas as terras de trabalho.
«A cidade adormece, pois, a esta hora em que fecham os quiosques e os “bars”, e os eléctricos e os “omnibus” recolhem.»
«Ao que parece, a globalização já por cá anda à mais de 78 anos. Um abraço, Florêncio».
Muito obrigado.
J Francisco Saraiva de Sousa

Memória e Amnésia Histórica do Socialismo

Este é um dos conceitos fundamentais da cultura ocidental e, de facto, poderíamos escrever a sua história à luz deste conceito, a começar pela obra de Homero. Mas, neste momento, o meu objectivo é mais modesto.
A leitura do texto de Baptista Bastos, RAUL SOLNADO: A PRESENÇA DA GRANDEZA. postado por Agry e a sua noção de amnésia história acordaram em mim uma velha memória: o meu estudo sobre a memória que ainda está por concluir e não sei se será alguma vez concluído. Outro texto de Agry, ALTERNATIVAS AO NEOLIBERALISMO, sugeriu-me uma via de abordar a memória histórica que quero partilhar: qual a relação da política com a memória? Ou mais precisamente: qual a relação da Esquerda com a memória?
Martha Harnecker tem razão quando afirma que o marxismo não pode ser culpabilizado pelos «erros» cometidos pelo «comunismo soviético», mas engana-se quando afirma que o marxismo possui uma «receita». O seu mestre, Louis Althusser, tomou consciência disso muito tarde, já na «clínica psiquiátrica», após ter morto a mulher: o marxismo não tem uma política, isto é, não tem uma receita alternativa ao «liberalismo económico», isto é, à economia de mercado. É, por isso, que a Esquerda atravessa um período de crise teórica e prática. Sem alternativa de um novo modelo económico, depois do colapso da economia planificada ou dos modelos de auto-gestão, a Esquerda ficou necessariamente paralisada e, quando está no poder, tende a ser mais «liberal» do que a própria Direita. Isto significa que temos de tentar melhorar a «sociedade» no âmbito do capitalismo global. A Esquerda deve proteger a economia de mercado, reservando ao Estado um papel regulador substancial, e não deve salvaguardar um modelo patrimonial de capitalismo, de resto propenso a fomentar a burocracia e a corrupção.
Vejo no esquecimento do seu passado uma das razões da sua crise teórica e política. A Esquerda em geral e a Esquerda Socialista (Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas) em particular sofrem actualmente de amnésia histórica: ignoram o seu passado e os seus autores, sobretudo ignoram Marx, entregando-se a um «pragmatismo» destituído de projecto político (socialismo) ou mantendo um saudosismo pouco criativo, como se a classe trabalhadora integrada ainda fosse uma possível força de transformação social (comunismo).
A causa de Marx triunfou: a classe trabalhadora lutou pela melhoria das suas condições de vida, integrou-se e, neste momento, é tão ou mesmo mais metabólica que as forças de Direita. A sua luta é meramente sindical e não política. Como Lenine sabia, os sindicatos são instituições pouco dadas à luta política revolucionária e os partidos que os defendem, em particular o Partido Comunista Português, já não são fiéis ao pensamento político de Lenine, de resto o grande político do marxismo. Só a agravamento das condições objectivas de vida poderia criar uma conjuntura política favorável a um movimento revolucionário, mas, diga-se a verdade, não adianta fomentar esse movimento, porque não há sociedade perfeita ou qualquer fim da História, a não ser a destruição da humanidade. Devemos, portanto, retomar a leitura dos grandes mestres da Esquerda, isto é, recuperar a memória activa do nosso passado, mas sem projectar uma sociedade futura perfeita. Isto não significa que o sonho seja proibido; pelo contrário, é sonhando para a frente num horizonte sempre aberto e, portanto, inconcluso, que podemos salvaguardar a nossa memória histórica e libertar o futuro, melhorando o presente.
Este esquecimento do passado deve-se não só à atrofia cognitiva que se observa nos lideres políticos actuais, bem como nos cidadãos das mesmas gerações, mas também ao facto deles constituírem a grande geração mais privilegiada da história da humanidade. Esta geração grisalha beneficiou de condições extremamente favoráveis, em particular de todos os benefícios do Estado Social, aqueles que estão a ser reduzidos drasticamente por todos os países da União Europeia. Isto significa que as novas gerações vão viver em constante risco e risco de pobreza. Esta pode ser novamente utilizada como uma arma política. No entanto, preferia ver o socialismo incentivar a economia de mercado, chamando os proprietários às suas responsabilidades e levando-os a assumir riscos, sem contar com o apoio do Estado e dos seus subsídios, outra forma de capitalismo patrimonial.
Deste modo, o Estado ficaria livre para apoiar iniciativas que vão ao encontro da sua tradição histórica. O mercado deve funcionar por si mesmo, sem ajudas financeiras significativas do Estado e, uma vez libertado do seu sector público (outra força de corrupção), o Estado pode zelar pelos ideais da Esquerda, entre os quais o liberalismo político. Isto exige uma reforma do Estado que o partido socialista português tem evitado fazer. Esta reforma não visa a extinção do Estado, como pretendia Marx, mas o aumento da sua eficácia na implementação de políticas sociais, culturais, educacionais, de saúde, de combate à pobreza, de apoio à natalidade, defesa da cidadania e da participação política, enfim todas aquelas políticas que o socialismo sabe pela sua história serem as suas políticas. Abandoná-las como sucede actualmente na União Europeia é o mesmo que trair o próprio Ocidente, a única civilização que ousou contrariar as forças obscuras do destino e que se permitiu sonhar para a frente.
Uma economia de mercado forte, entregue às suas próprias leis, embora regulada pelo Estado, cuja missão fundamental é combater as desigualdades sociais, pode ser uma força capaz de ajudar o socialismo a cumprir a sua missão histórica: defesa da liberdade e defesa da igualdade de oportunidades. O marxismo só é hoje possível como marxismo liberal. Dado a memória não ser uma força passiva mas uma força activa e formadora, a rememoração do seu passado «esquecido» pode relançar esse marxismo liberal, capaz de fazer face às políticas neoliberais da Direita Liberal ou conservadoras da Direita Retrógrada. Reformulando o seu passado, a Esquerda socialista pode recriá-lo e munir-se de um projecto político capaz de levar os cidadãos a tomarem consciência de que também eles devem participar activamente na transformação eterna da sociedade em função de um modelo negativo: aquele que não arrisca uma definição cabal da futura sociedade.
Precisamos de reler Marx em chave liberal e está leitura deve relançar a crítica da economia política, capaz de denunciar as técnicas adaptativas dos cálculos económicos e financeiros. O discurso da extinção do Estado ou do Trabalho, por exemplo, deve ser relido e substancialmente alterado ou mesmo abandonado. Uma sociedade de lazer é um perfeito absurdo e, como viu Hannah Arendt, esta ideia «marxista» contribuiu para a construção de uma sociedade metabólica de consumidores, impondo uma concepção perigosa de igualdade, absolutamente contrária à natureza humana. Em vez dessa ideia, precisamos de políticas de requalificação e de dignificação do trabalho, com emprego pleno, as únicas capazes de ajudar a fazer frente aos desafios da globalização. Em vez de um princípio hedonista, precisamos retomar uma política que valorize o esforço e a competência em todos os níveis da sociedade, a começar pela escola e pela educação.
São estas «pequenas coisas» que devem marcar a diferença entre a Esquerda e a Direita. A Esquerda é, por definição, a insatisfação permanente com o estado de coisas estabelecido, sem promessas de futuro garantido. Em diálogo permanente com o passado, a Esquerda sonha sempre para a frente, procurando melhorar a qualidade de vida, sem estar prisioneira de um modelo pré-estabelecido de sociedade. Isto significa que a sua divergência interna, reforma ou revolução, já não faz sentido.
A amnésia histórica não é apenas um traço definidor da Esquerda estabelecida: a Direita também sofre da mesma síndrome, mas com uma diferença substancial. A Direita não tem passado, porque toda ela é profundamente ideológica, ou seja, má consciência: o seu objectivo é sempre conservar as regalias conquistadas ou os direitos adquiridos, isto é, manter o status quo, sem qualquer projecto dirigido para a frente. Isto significa que só a Esquerda pode dinamizar a história e, portanto, zelar pela continuidade da aventura ocidental. Recuperar Marx é, pois, reactivar a nossa Tradição Ocidental.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 18 de novembro de 2007

Notas sobre Burocracia

Coube, efectivamente, a Max Weber apresentar uma teoria mais elaborada da burocracia, a qual tem dominado os estudos sobre o fenómeno burocrático (Michel Crozier) e, muitas vezes, foi usada para criticar o socialismo.
Contudo, muito antes de Weber, Hegel viu a burocracia como uma condição essencial para a salvaguarda do Estado soberano. Para Hegel, só um Estado forte e «autoritário» pode assegurar a manutenção da sociedade capitalista, fazendo prevalecer o universal acima dos interesses particulares divergentes. O instrumento privilegiado do Estado soberano é, segundo Hegel, uma burocracia estável: um corpo de funcionários públicos que, tendo por missão a administração da riqueza pública, deve ser estranho à concorrência económica dos interesses privados.
Esta concepção hegeliana da burocracia é muito musculada: a burocracia é vista como um instrumento do Estado soberano, capaz de assegurar a ordem social, sem permitir que os interesses particulares se sobreponham ao universal. Este conceito musculado de burocracia tem a virtude de colocar o universal acima dos interesses particulares divergentes, de resto uma das missões fundamentais do Estado, mas a solução proposta, um corpo de funcionários públicos estranho à concorrência e aos interesses económicos dos privados, contribuiu para o aparecimento em larga escala do fenómeno da corrupção.
Com efeito, como verificamos actualmente nas democracias ocidentais, esse corpo de funcionários, onde devemos incluir os quadros dos partidos políticos, constitui, como disse James Burnham (1941), uma «classe dirigente» que controla efectivamente os meios de produção, mesmo que não possua os títulos de propriedade. Esta nova classe dirigente ocupa, através de meios pouco transparentes (cunhas, apadrinhamentos, troca de favores, etc.), todos os centros de decisão públicos e privados (empresas, bancos) e é ela e não o proletariado, como acreditava Marx, que está a substituir ou a fundir-se com a classe burguesa.
A «revolução dos managers» foi a designação dada por Burnham a esta mudança social que se tem consolidado ao longo destas últimas décadas em todo o mundo. A democracia tende cada vez mais a formalizar-se, como se observa na construção da União Europeia e no modo como os lideres europeus «conspiram» silenciosamente entre si, abdicando da consulta popular, convertendo-se finalmente numa democracia oligárquica. Ora, as práticas desta nova classe dirigente não são alheias aos interesses privados: o universal é usado nas campanhas eleitorais para conquistar votos e vencer eleições (a hipocrisia da classe dirigente), mas, uma vez conquistado o poder, são os interesses privados que são salvaguardados em detrimento do universal. Aquilo que os membros desta classe dirigente criticavam na URSS ou na actual Federação Russa, a «ditadura da burocracia» (Trotsky) é aquilo que eles representam e protagonizam no chamado mundo livre. Como dizia Lenine, um dos homens que inflectiu internamente o marxismo, ao dar ao partido uma organização sólida e centralizada, antes de morrer: «O nosso pior inimigo interior é a burocracia». De facto, até mesmo os funcionários públicos estão mais preocupados em defender os seus «direitos adquiridos», aliás uma noção muito pouco democrática, e, se possível, engordá-los, do que em servir a democracia política e social.
Hannah Arendt definiu a burocracia como o governo de ninguém, no sentido em que «há muita gente que pode pedir contas, mas ninguém para as prestar, uma vez que "ninguém" pode ser tido por responsável». A obsessão de Arendt pelo Holocausto ofuscou-lhe a visão política e distorceu a sua perspectiva daquilo que, de certo modo, admirava em Marx, mas ambos foram, cada um à sua maneira, cegos em relação ao sentido político da burocracia. A burocracia tem rosto, as classes dirigentes, e tem «ideologia», a do «politicamente correcto», isto é, o chamado «pensamento único». Estes são os nossos inimigos e é na luta contra a corrupção que a política socialista encontra a sua raiz revolucionária e, portanto, a sua razão de ser.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 17 de novembro de 2007

Maldita Regionalização?

A blogosfera portuguesa produz discursos inflamados sobre a regionalização. Embora defenda a regionalização como um processo de aprofundamento das práticas saudáveis da democracia e da cidadania e do desenvolvimento económico e cultural das regiões, quando leio estas reacções metabolicamente reduzidas, sou confrontado com o lado mau da humanidade: aquele lado que corrompe os ideais forjados pela nossa cultura superior para nos libertar das trevas e da menoridade (Kant). A regionalização é sistematicamente reduzida à economia e ao poder metabolicamente reduzidos, portanto, ao alargamento «democrático» das práticas de corrupção. Afinal, a «democracia» é vista por estas mentes metabolicamente reduzidas como um meio para criar localmente condições favoráveis às práticas de corrupção, de resto já nossas conhecidas e bem evidentes nas políticas dos autarcas locais.
Assim, por exemplo, até já fui acusado de ser «alfacinha», num pequeno «debate» realizado num blogue, cujo nome omito para evitar uma polémica que não pretendo levar a cabo, não com o seu autor que respeito pela firmeza das suas ideias claras, mas com os «bairristas». O texto é o seguinte:
«Sou Nortenho convicto e defensor da regionalização. Defendo acima de tudo a descentralização e o fim da discriminação política, social, financeira e cultural a que o Norte tem sido devotado.
O Sr. Saraiva de Sousa parece daqueles alfacinhas que fala de barriga cheia.
É mais do que senso comum, que a pujança económica do país está a Norte, aliás, as maiores empresas portuguesas nascerem de homens do Norte e são lideradas por homens do Norte.
No dia que o Norte usufruir das mesmas oportunidades que Lisboa, veremos. Só tenham medo que a capital mude cá para cima....ehehhe».
O Norte já está dividido, sempre esteve dividido, e, para dizer a verdade, existem mais afinidades entre Lisboa e o Porto do que entre o Porto e Braga, ou Vila Real ou Guimarães. Basta pensar nas ilustres figuras do Porto que têm participado activamente na governação de Portugal, nos seus intelectuais nobres ou nos seus empresários. O Porto é profundamente liberal e este traço marca a diferença: o resto do Norte é conservador e retrógrado. Por isso, os seus distritos afundam e sempre afundaram o Norte, condenando-o a fazer parte de uma estatística miserável, atrás da Madeira do tio Alberto, politicamente da mesma cor. Querer que a capital do Norte fosse qualquer outra cidade que não o Porto seria a catástrofe e, nesse caso, mais vale o centralismo político renovado que o regionalismo mesquinho liderado por criaturas gordas, ladras, corruptas e profundamente incompetentes, numa palavra, analfabetas em todos os sentidos do termo.
Reacções como estas, e tantas outras mais ridículas, levam-nos a meditar a essência da democracia e a escutar a voz daqueles intelectuais que, como Hannah Arendt, aconselham muita moderação, propondo um conceito mais restritivo, portanto, mais elitista, de democracia. De facto, nem todos os habitantes de um país democrático são verdadeiramente cidadãos, até porque carecem de competências para participar racional e responsavelmente nos debates da esfera pública. De certo modo, a III Tese sobre Feuerbach de Marx colocava a questão: «A doutrina materialista referente à mudança das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o educador também tem de ser educado». De facto, numa sociedade que dispensou o pensamento crítico, como a nossa, torna-se necessário educar efectivamente os portugueses para o exercício pleno da cidadania. Caso contrário, não vale a pena alterar o modelo administrativo ou propor referendos.
J Francisco Saraiva de Sousa

Racismo e Colonialismo

Dedico este post a responder às críticas que me foram dirigidas pelo autor do blogue «Navegador Solitário» e começo por impugnar a sua tese central: «o colonialismo é, por definição e nas suas práticas, racista». Embora não pretenda defender o colonialismo, sou obrigado a livrá-lo de estigmas como este e a refazer a sua história, de modo a que «os assassinados (não sejam) defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação» (Theodor W. Adorno). Por isso, para que os mortos estejam em segurança (W. Benjamin), contraponho uma tese que formulo quase como um silogismo, embora a forma possa enganar:
Teoricamente falando, a ciência não é uma ideologia.
Teoricamente falando, o racismo é uma ideologia.
Portanto, teoricamente falando, a ciência não é racista.
Por ciência, entendo não só o conjunto do sistema de conhecimentos empíricos, como também todas as filosofias produzidas ao longo da História da Civilização Ocidental. Com a vastidão deste conceito de ciência, corro o risco de ver a minha tese refutada, através da referência a pensamentos científicos e filosóficos que justificaram alguma forma de racismo, sobretudo de racismo intra-europeu. Mas conheço esses pensamentos, muitos dos quais analisados por Ernst Cassirer na sua obra «O Mito do Estado», e, por isso, corro seguramente o risco. Não me deixo intimidar pelos discursos de determinadas correntes antropológicas, nem sequer pela realidade insólita do Holocausto e, contra estes discursos e realidades ideologicamente empolgadas, reafirmo o carácter emancipador da ciência, mais precisamente da sabedoria ocidental e o seu discurso da paz e da tolerância.
Antes de avançarmos argumentos a favor da nossa tese, devemos clarificar a noção de racismo. Afinal, o que se entende por racismo? Qualquer Dicionário de Língua Portuguesa define o racismo nestes termos: «Teoria que tende a preservar a unidade da raça numa nação». Esta definição tirada de um Dicionário real é muito pouco comum e talvez muitíssimo ideológica, mas o racismo e o nacionalismo caminham quase sempre juntos (Ernst Gellner). A definição mais comum diz apenas que se trata de uma doutrina que considera que determinada raça é superior a outra(s) raça(s), justificando assim alguma assimetria de poder existente.
Nesta perspectiva, até faz sentido o conceito de colonialismo proposto por Agry: o colonialismo é racismo. Mas esta concepção é perigosa, na medida em que se move no seio do próprio racismo. As assimetrias de poder existentes entre etnias ou raças podem ser (e são) explicadas ideologicamente pelo racismo: a raça supostamente dominante submete a raça supostamente inferior. Porquê? Porque é superior em determinadas características ou traços, características estas que podem ser observadas objectivamente e que lhes permitem subjugar as raças menos dotadas de certas capacidades, em particular cognitivas.
Não adianta recorrer à ciência para combater o racismo e as suas práticas: os racistas são inteligentes e sabem adaptar o seu discurso às descobertas científicas. Negar biologicamente as raças não é solução, porque uma tal negação não é científica mas ideológica, muitas vezes imposta pelos próprios poderes colonialistas ou racistas, pouco interessados em fazer face a uma sublevação das raças oprimidas. Não cabe às ciências denunciar o racismo, porque estas são obrigadas pelas regras do seu jogo a detectar diferenças inter-raciais e estas diferenças existem e são conhecidas.
Neste momento, convém entrar em cena o conceito de filosofia como crítica da ideologia, aquele elaborado por Marx e seus seguidores, de resto o único capaz de desmistificar o racismo. Cabe à Filosofia e, portanto, à política, denunciar o racismo e iluminar a prática que visa a sua abolição ou, pelo menos, a atenuação dos seus efeitos estigmatizantes e injustos.
Parece que sigo caminhos estranhos, mas não são tão estranhos quanto parecem: podem ser selvagens e, por isso, sujeitos a reformulações teóricas mais precisas, resultantes de uma busca cooperativa da verdade. O discurso científico das diferenças inter-raciais não justifica nem legitima as práticas racistas coordenadas por uma ideologia que afirma a superioridade de uma raça ou mesmo grupo étnico, para legitimar o seu poder sobre outras raças ou grupos étnicos. São jogos completamente diferentes: a ciência procura conhecer a realidade, sem a transfigurar, enquanto a ideologia visa legitimar assimetrias de poder. Brecht dizia que todos nós somos lá no fundo racistas, uns mais do que outros. E tinha razão, conforme demonstrou Konrad Lorenz, quando constatou que a maior parte dos povos reservam a noção de «homem» ou «humanidade» para designar o seu próprio grupo, e a noção de não-homens ou bárbaros para designar os membros doutros grupos. A dinâmica instintiva investida nestas formas de agressividade intra-específica e na fomentação de laços intragrupais é extremamente complexa e ninguém pode pensar temerariamente que as pode neutralizar facilmente, com pequenos ensinamentos morais ou mediante a aprendizagem. A vida tem as suas próprias leis, de resto muito refractárias às mudanças sociais e culturais impostas do exterior. Estamos condenados a viver eternamente com o racismo latente nas relações de poder e a tentar controlá-lo eternamente. A luta contra o racismo é uma luta permanente, simplesmente porque certas características raciais são demasiado evidentes e visíveis para serem negadas.
Além disso, o triunfo do Ocidente sobre outras culturas é, até ao momento presente, incontornável: o Ocidente domina porque simplesmente detém o monopólio da racionalidade e, portanto, do poder (Max Weber, Ernst Gellner). Mas também tem cabido ao Ocidente ajudar as outras culturas a libertarem-se dos poderes do obscurantismo e a lutar pela democracia, até por uma democracia multi-racial que defenda o respeito pelas diferenças que reflectem no fundo a biodiversidade.
Apesar disto tudo que foi dito, continuo convencido de que o colonialismo não é essencialmente um racismo, porque o que o moveu foi a dinâmica do próprio capitalismo em expansão, em busca de novos mercados e, portanto, de maiores lucros. O racismo pode ter surgido depois quando era necessário manter uma reserva de mão-de-obra barata e submissa, pronta a vender a sua força de trabalho em troca de salários miseráveis, como se as suas características raciais específicas justificassem a sua própria exploração.
Mas esta ideologia é muito velha: ela sempre foi usada pelas sociedades de classes, nas quais a classe dominante usa todos os aparelhos de Estado, repressivos e ideológicos, mais os últimos do que os primeiros (Althusser), para conquistar o assentimento dos membros das classes exploradas. O sistema indiano de castas é perfeitamente racista, provavelmente muito mais racista que o colonialismo português que, em todos os lados por que passou, deixou atrás de si muitos mestiços, cuja prova mais evidente foi a colonização do Brasil, tão bem analisada por Gilberto Freyre na sua obra «Casa-Grande & Senzala».
Como já é tarde e começo a ficar muito ensonado, dou por terminado este post e, se os meus leitores tiverem dúvidas, coloquem-nas e juntos podemos clarificar melhor estes conhecimentos, na esperança de conseguirmos vencer um preconceito, pelos vistos enraizado na natureza humana.
J Francisco Saraiva de Sousa