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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Anotações sobre Humor

Os filósofos têm elaborado diversas teorias sobre o fenómeno do humor, das quais se destacam as teorias de Freud, Bergson e Plessner. Como já analisei a teoria de Plessner, vou concentrar-me nas interpretações de Freud e de Bergson. Freud e Bergson interpretam o humor como a apreensão de uma discrepância fundamental entre as exigências do superego e da libido, no caso de Freud, e entre o organismo vivo e o mundo mecânico, no caso de Bergson. Aquilo que me interessa nestas duas teorias do humor é o seu aspecto comum: ambas encaram o cómico como uma discrepância ou incongruência: «Uma situação é invariavelmente cómica quando pertence ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos inteiramente independentes e é capaz de ser interpretada em dois sentidos completamente diferentes ao mesmo tempo» (Bergson). Dado ser um conceito nuclear da antropologia filosófica, interpreto o humor como fenómeno especificamente humano, o que me permite enunciar diversas novas teses filosóficas que restringem a qualidade cómica às situações humanas. Eis as teses que proponho:

Tese 1: O Homem é o único ser capaz de se rir - e chorar! - de si mesmo, dos outros e de certas situações. (Daqui decorre que a qualidade cómica se refere sempre a situações humanas: os animais só são cómicos quando lhes atribuímos características humanas.)

Tese 2: A discrepância constitui o ingrediente fundamental de todas as piadas. Existem diversos tipos de discrepância - as incongruências propostas por Freud e Bergson - mas todos eles nos reconduzem à discrepância fundamental entre o homem e o cosmos. É esta discrepância antropocosmológica fundamental que faz do cómico um fenómeno especificamente humano. Daqui se segue nova tese.

Tese 3: O cómico reflecte o aprisionamento do espírito humano no mundo, sobretudo no mundo abandonado pelos deuses: «A alma é um estranho na terra» (Georg Trakl). Esta tese já é conhecida desde a Antiguidade Clássica. A concepção de ironia como a mais alta liberdade possível do homem num mundo sem Deus - exposta pelo Jovem-Lukács - relaciona-se com esta tese.

Tese 4: A distinção entre tragédia e comédia esquece que ambas são comentários sobre a finitude radical do homem: a noção existencial de homem como náufrago ou ser-sem-abrigo coaduna-se com esta tese filosófica.

Tese 5: Ao aceitarmos a última tese, somos forçados a encarar o cómico como uma dimensão objectiva da realidade humana: o humor mais não é do que o reconhecimento da cómica discrepância da condição humana.

Estas teses são suficientes para elaborar uma nova teoria filosófica do humor. Poderia acrescentar outras teses, talvez para mostrar que é muito difícil relativizar o humor, mas prefiro concluir enunciando uma tese que clarifica a teoria que tenho em mente.

Tese 6: A negação da metafísica conduziu ao triunfo da trivialidade: o humor que se faz actualmente perdeu a graça. Fechado em si mesmo e neste mundo intra-empírico, o homem tornou-se incapaz de encontrar o seu próprio caminho de fuga. O mundo trivial em que vivemos deixou de ser engraçado. A perda de graça é proporcional à invasão do mundo pelo homem: o cansaço da humanidade de Nietzsche pode ser compreendido à luz desta nova perspectiva. 

Anexo. Um colega brasileiro criticou o meu recurso a uma teoria da natureza humana, acusando-me de ser liberal em vez de marxista. Os rótulos não me incomodam: aqui direi apenas que o conceito de natureza humana me permite compreender o homem do passado mais distante ou do presente mais próximo. Afinal, o homem de todos os tempos ri e chora. Ora, este facto fundamental mostra que há uma natureza humana fundamental que nos une a todos e que nos une aos nossos antepassados. Além disso, uma tal teoria veda-me o caminho dos disparates políticos. A Filosofia é um empreendimento teórico sério.

J Francisco Saraiva de Sousa 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O Retorno a Marx

Um filme de terror ajudou-me a clarificar os meus conceitos positivos de História e de Natureza Humana. Quando o "psicopata" se dirigia em direcção das suas vítimas, com a faca na mão, pensava: mata essas criaturas que berram como leitões. Identificando-me com o "psicopata", via as vítimas como leitões que mereciam morrer. Inverti o sentido moral da narrativa: o princípio do mal era encarnado não pelo "psicopata", que se limitou a fazer o papel sujo da história, eliminando a escória pseudo-humana, mas sim pelas próprias vítimas. Só hoje quando fui tomar café é que compreendi que a minha identificação com o "psicopata" tinha algo a ver com a teoria marxista da história. Esta identificação reflecte um sentimento comum: nós - seres pensantes - estamos profundamente cansados da humanidade existente. Confesso: ver os leitões a serem degolados e esfaqueados deu-me prazer, não um prazer sádico mas sim um prazer estético, no sentido de libertar o mundo dos homens que se comportam como animais. Precisamos de espaço aberto para construir um mundo novo: o "psicopata" agiu de modo a libertar o espaço da presença desses homens - mais animais do que humanos - que bloqueiam o futuro. Sem violência não há verdadeiramente história: todos sabemos que os protestos organizados de rua não alteram o status quo. Marx e Engels sabiam isso: a violência é a parteira da história. Até aqui tenho estado a namorar com o princípio marxista da história como "hominização do homem" que é retomado por Marx no prefácio de 1859. Marx iniciou uma imensa revolução teórica que não chegou a concluir. (:::/:::)

Reler Marx - e trazê-lo à nossa presença - implica a tradução rigorosa da sua obra em língua portuguesa: as traduções existentes - tanto as portuguesas como as brasileiras - são péssimas. O desenvolvimento cultural de um país pode ser avaliado em função da sua actividade editorial e da qualidade das traduções. O atraso cultural de Portugal revela-se desde logo no desfasamento temporal entre a publicação das obras pioneiras e a sua tradução em língua portuguesa. Além disso, as grandes obras que marcaram o mundo ainda não foram traduzidas e as poucas que foram mal traduzidas estão desfasadas da sua conjuntura cultural. Mas o mais preocupante é que os leitores portugueses lêem essas obras como se elas fossem a última palavra sobre as matérias abordadas. O princípio de influência que predomina em Portugal entrava o seu próprio desenvolvimento cultural: quem não tenha uma figura influente na família não tem futuro em Portugal. Todas as instituições portuguesas, incluindo as instituições culturais, são regidas por este princípio de influência: elas são sempre-já capturadas pelas máfias reinantes. (:::/:::)

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A Ditadura da Estupidez

A Europa e o mundo ocidental perderam o juízo. Há muitas formas de totalitarismo e uma delas é a perda do bom-senso. A democracia ocidental produziu nas últimas seis décadas uma sociedade inviável e, o que não deixa de ser sintomático, anti-democrática. A turba pseudo-democrática é totalitária: a ideologia nefasta dos direitos humanos produziu a ditadura da estupidez. Cada elemento da turba de cidadãos anónimos é um inquisidor. Vivemos numa sociedade inquisitorial, a pior sociedade alguma vez produzida pelos homens ao longo da sua história violenta. Platão já sabia que a democracia produz a sua própria destruição: o que ele não sabia é que a democracia banaliza o mal radical. Este é o momento oportuno para introduzir uma inflexão radical: os agentes ideais desta mudança radical devem estar para além da Direita e da Esquerda. Embora não seja um agente secreto, sou suficientemente inteligente para detectar por detrás dos sites mundiais de esquerda a presença de uma ideologia terrorista: as redes sociais são palcos de manobras obscuras, terrivelmente obscuras, algumas das quais abusam do bom nome de Karl Marx para promover o terrorismo. (E onde há x, há também y, o seu arqui-inimigo, que só se unem contra z, neste caso, a Alemanha!) As forças do bem tornaram-se impotentes perante a prepotência das forças do mal que capturaram as redes sociais. O Mal exterior e interior organizou-se para derrubar o ocidente. Se o ocidente não inflectir o seu rumo, será presa fácil das forças exteriores do mal que agem com a cumplicidade de uma população interior envelhecida, egoísta e terrivelmente inculta. Só vejo uma alternativa: a ditadura. E, quando só temos esta alternativa, já não podemos sonhar: o futuro foge do nosso controle. Eu tenho sido sincero quando digo que sou o filósofo da funda meia-noite: não há filosofia sem um público inteligente restrito. As sociedades ocidentais de hoje não são sociedades sem escola; são sociedades sem ensino e sem educação, são sociedades capturadas pela mediocridade, pela inveja e pela maldade. Infelizmente, estamos rodeados de carrascos que elegeram como inimigo a abater o pensamento independente. Uma sociedade envelhecida sem pensamento não tem futuro. O ocidente tal como o conhecemos não tem futuro. (A situação em Portugal é terrivelmente obscura. O povo português é, profundamente, estúpido, invejoso e maldoso; daí a sua incapacidade para produzir uma sociedade civilizada. Infelizmente, o 25 de Abril não produziu o efeito desejado; pelo contrário, banalizou a maldade radical do povo português. Tenho em mente uma geografia da maldade portuguesa, mas esta deixou de ser a minha luta. Portugal não é a pátria de seres inteligentes, Portugal é a pátria dos zombis anti-cognitivos e da sua brutalidade.)

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A ideia das Humanidades no plural

Porto: Caminhos do Romântico
Chegou a hora de demolir a ideia de uma única humanidade. Há humanidades no plural, cada uma das quais com a sua própria história filogenética e cultural. Nos últimos textos, tenho omitido a ideia de cultura como processo de pseudo-especiação, mas deve-mos retomá-lo e reformulá-lo, de modo a mostrar as especi-ficidades de cada uma das humanidades existentes e da sua evolução cultural. É um erro fatal - o mais fatal de todos os erros - pensarmos a humanidade no singular, como se todos os homens pertencessem a uma única humanidade. No passado ainda recente, essa ideia levou-nos a classificar as sociedades em primitivas e civilizadas, como se todas elas pertencessem a um mesmo processo contínuo de evolução social e cultural. Porém, a verdade é que as sociedades primitivas não pertencem ao círculo de evolução da civilização ocidental: as nossas próprias sociedades arcaicas pertencem ao passado, mas a distinção que fazemos entre sociedades primitivas e sociedades civilizadas pertence ao presente, um presente que permanece igual a si próprio, apesar da difusão da ideologia igualitária. Não podemos abdicar de dizer a verdade para contribuir para a difusão de uma mentira que ameaça mergulhar o mundo na catástrofe. É urgente reformular a biologia das raças humanas, de modo a elaborar sociobiologias humanas particulares. (Os continentes estiveram isolados uns dos outros durante milhares e milhares de anos e as diferenciações culturais geraram barreiras etológicas que são refractárias aos cruzamentos entre pseudo-espécies. A hibridização não é futuro. Não é o racismo que gera barreiras; é a própria biologia que as gera. Qualquer cultura híbrida é decadente.) O fracasso da implantação da democracia liberal nos espaços ocupados por culturas não-ocidentais aponta nessa direcção. O discurso do racismo ou do etnocentrismo está gasto e já não convence ninguém: lá onde se iludem a violência predomina. Devemos ser corajosos e ousar dizer a verdade: a grande narrativa da humanidade unida é uma mentira. Precisamos pensar as bifurcações antropológicas e culturais, se quisermos pacificar a vida na Terra. Meus amigos, a minha missão é mostrar-vos o caminho da salvação.

Advertência. Muniram-me dos instrumentos necessários para reformular a biologia das raças humanas. O conceito de humanidades no plural não colide com a "unidade" da espécie Homo sapiens, embora acentue a relatividade dessa unidade. Em 1941, Julian Huxley propôs a substituição do termo raça pela expressão mais neutra de grupo étnico. Compreendo a pertinência desta sugestão, mas os dois conceitos referem-se a realidades diferentes, embora interligadas entre si. Tal como o usa, o conceito de grupo étnico está mais próximo da realidade que designo de humanidades no plural. Em princípio, aceito a definição de raça dada por Dunn e Dobzhansky (1946): as raças humanas como populações que diferem na frequência relativa de alguns dos seus genes. Este conceito permite pensar as raças não em termos de diferenças fenotípicas absolutas, mas em termos de diferenças relativas na distribuição de frequências de caracteres ou genes. O que interessa é compreender o mecanismo de raciação: os grupos humanos isolados estão - ou estiveram - sujeitos a processos de mudança evolutiva, nos quais entraram em jogo os seguintes factores: selecção natural, mutação, isolamento, oscilação genética, hibridação, selecção sexual e selecção social. Eu sou contra o racismo, isto é, contra a doutrina ideológica que usa as diferenças raciais para justificar e legitimar a dominação de uma raça sobre outras raças. No entanto, não podemos acusar uma pessoa de ser racista por não considerar os membros de outra raça eroticamente atractivos, por exemplo. Estou convencido de que o estudo biológico das raças humanas pode ajudar a dissolver muitos preconceitos negativos.

J Francisco Saraiva de Sousa 

domingo, 10 de junho de 2012

Genética do Comportamento: O colapso das ciências sociais

Experiência Genética
Nick Martin planeou uma carreira profissional na política, tendo iniciado uma licenciatura em Artes. Mas o seu interesse pela tensão existente entre as ideias políticas de igualdade perante a lei e a realidade biológica das diferenças individuais levou-o a iniciar o seu primeiro estudo de gémeos durante o seu período estudantil na Universidade de Adelaide (Austrália). Atraído pela análise genética do comportamento que se realizava em Birmingham, Nick Martin foi para Inglaterra para realizar a sua tese de doutoramento, onde trabalhou com Lindon Eaves e John Jinks. Martin e Jinks desenvolveram a análise genética da estrutura da covariância, em que se baseia em grande medida a análise genética multivariante. Os cálculos da potência dos estudos de gémeos revelaram que estes estudos deviam ser mais extensos que os realizados até aí. Martin regressou à Austrália para fundar o Registo Australiano de Gémeos, em torno do qual desenvolveu os seus estudos sobre genética da personalidade, alcoolismo e outros traços psiquiátricos, estando actualmente a realizar estudos de ligamento e associação para descobrir os genes implicados nos caracteres do comportamento humano.

Martin trocou a carreira política pela carreira de investigação científica no domínio da genética do comportamento. As massas anarquistas de "esquerda" suspeitam da genética: a ciência da hereditariedade é, para estas criaturas sem qualidades, uma ciência capitalista. Em 1969, foi publicada nos Estados Unidos da América a tradução inglesa do livro de Z. A. Medvedev - The Ascent and Fall of T. D. Lysenko. Deste maravilhoso livro retenho apenas dois parágrafos, um do próprio Lysenko e outro do seu discípulo Prezent. Sobre a competição entre membros de uma mesma espécie. Lysenko escreve em 1947: «A humanidade constitui uma só espécie biológica. Segundo os capitalistas, é da lei natural que os membros de uma espécie compitam entre si para obter os recursos necessários para sobreviver; os indivíduos mais bem adaptados, saem vitoriosos. O mesmo, dizem, ocorre com a espécie humana: os empresários vivem com luxo e os seus milhões de operários vivem na miséria, devido a que os empresários são mais inteligentes e capazes, dada a sua herança biológica». Prezent reforça a convicção de Lysenko: «O capitalismo, durante o seu período histórico florescente e no cume da sua cultura, produzia uma das criações supremas do pensamento biológico: o darwinismo, uma visão histórica do mundo orgânico. O capitalismo corrupto produziu, durante o período imperialista do seu desenvolvimento, um bastardo abortado da ciência biológica: a doutrina metafísica e anti-histórica da genética formal». Com o apoio de Estaline e mais tarde de Kruschov, Lysenko e Prezent - o teórico do lysenkysmo - apresentaram uma nova teoria da hereditariedade, rejeitando a teoria morgano-mendeliana como um produto capitalista que negava os princípios fundamentais do "materialismo dialéctico". Para eles, os genes não existiam: a hereditariedade era uma propriedade geral interna da matéria viva que, como tal, não necessita de um sistema genético separado, localizado nos cromossomas. Escusado será dizer que quando foram aplicadas às práticas agrícolas a teoria da hereditariedade de Lysenko (sic) e a sua pretensa descoberta do processo de vernalização - enfim, a biologia mitchurinista por oposição à biologia capitalista - produziram fracassos agrícolas desastrosos, levando a URSS a importar cereais do estrangeiro. O lysenkysmo não só criticou o darwinismo social, o que era e é justo, como também aboliu o ensino da genética mendeliana nas academias soviéticas, gerando um atraso estrutural da investigação biológica na URSS. Usar o lysenkysmo para condenar o materialismo dialéctico não faz sentido, bastando ler as obras de Marx e Engels para nos convencermos disso. No entanto, apesar das intuições geniais de Engels, a maior parte do marxistas seguiu a via das ciências sociais sem procurar clarificar a sua base natural. Os marxistas traíram a teoria da história de Marx. O medo da genética de Lysenko propagou-se a todos aqueles que lutam por uma igualdade nivelada por baixo, em nome da qual sacrificaram o desenvolvimento exaustivo do materialismo histórico. O resultado dessa luta fraudulenta salta à vista: os menos aptos ingressaram nas ciências sociais, enquanto os mais aptos optaram pelas ciências naturais. As ciências sociais abortaram sem ter conseguido aperfeiçoar o paradigma científico de Marx; as ciências naturais desenvolveram-se de tal modo que procuram realizar aquilo que não foi efectuado nas ciências sociais pelos menos aptos, cujo objectivo de vida é partilhar aquilo que é produzido pelos outros ou que deriva da sua actividade. A clivagem entre ciências sociais e ciências naturais é uma clivagem de competências: os menos aptos apoderaram-se do domínio das ciências sociais, provocando a sua estagnação. E são de tal modo destituídos de capacidades mentais que não se aperceberam de que a ideia de selecção não é estranha ao materialismo histórico. Vistas à luz do conhecimento de que dispomos hoje, as teorias de Darwin e de Marx não são teorias rivais; pelo contrário, elas são complementares, até porque ambas germinaram no século XIX no seio da sociedade inglesa. O que é a teoria da ideologia de Marx a não ser uma teoria da selecção social das ideias? A aproximação de Marx a Darwin permite concluir a teoria do materialismo histórico, ao mesmo tempo que prepara o terreno para a sua integração na teoria sintética da evolução. O marxismo soviético fracassou lá onde ele se distanciou do materialismo histórico: a queda da URSS não fez mossa na teoria da história de Marx.

Os meus últimos textos movem-se em terrenos movediços e perigosos. A tese que pretendo defender é a seguinte: a teoria sintética da evolução não está completa enquanto não integrar o materialismo histórico no seio do seu quadro teórico. Nem todos os sociobiólogos reagiram do mesmo modo ao estudo dos comportamentos humanos: os americanos mostram-se muito mais propensos a ver os seres humanos como organismos sociobiológicos do que os ingleses. Trivers (1976), Alexander (1975) e Wilson (1975) consideram que a selecção natural é responsável pela nossa formação, sendo necessário compreendê-la para conhecer as nossas identidades. Dawkins (1976) que nunca fez parte do círculo íntimo de Wilson está menos disposto a aplicar a sociobiologia aos seres humanos, os quais escaparam nos seus aspectos mais importantes às regras biológicas. Maynard Smith (1972) vai mais longe quando se dissocia completamente da sociobiologia humana, negando a sua relevância para o domínio do homem. Dawkins propôs a sua própria teoria da evolução cultural, na qual os memes - tipos de unidades intelectuais - substituem os genes. Uma ideia semelhante já tinha sido proposta por Jacques Monod sob a designação de teoria da selecção natural das ideias. O modelo da hominização esboçado por Engels permite explicar a emergência da cultura no seio do mundo natural, sem ceder ao idealismo. Quando falo da necessidade de integrar o materialismo histórico na nova síntese, refiro-me à articulação das duas formas de evolução, a biológica e a cultural. Os etólogos e os sociobiólogos perderam muito tempo a tentar produzir uma teoria da cultura quando na verdade ela já tinha sido produzida por Marx, em conformidade com a estratégia materialista da ciência. A teoria da cultura assume na obra de Marx a forma de uma teoria da história: a teoria da cultura é, portanto, teoria da história humana. Não se pode ser materialista no plano da biologia humana e idealista no plano da cultura humana. Este contra-senso que atravessa as obras de cientistas revolucionários deve-se ao facto do seu temor pelo comunismo os ter afastado da obra de Marx. Uma vez depurado deste elemento ideológico externo, o marxismo revela ser aquilo que sempre foi: um programa de investigação científica da história humana, fundado na ciência natural. Além disso, os cientistas revolucionários não podem negar a antiga visão tipológica do mundo, substituindo-a pelo esquema da evolução, com base na biologia das populações, e, ao mesmo tempo, conservar uma visão imobilista da história do homem. O conceito marxista de história como uma sucessão descontínua de formações sociais é o único conceito adequado à teoria sintética da evolução. Alguns destes cientistas recorrem à teoria das revoluções científicas de Thomas S. Kuhn para pensar a novidade revolucionária das suas teorias, sem no entanto compreenderem que essa teoria mais não é do que a aplicação do esquema marxista da história ao estudo do crescimento científico. De facto, o mundo nunca mais voltou a ser o que era depois de Marx. Como é evidente, esta integração do materialismo histórico na nova síntese não pode ser levada a cabo sem a participação da neurobiologia e da ecologia. É mais fácil começar pela segunda, reformulando a teoria marxista da reprodução social à luz da teoria da população, do que pela primeira, embora a genética do comportamento abra uma via nesse sentido, como veremos mais adiante. A síntese eco-marxista é um passo fundamental na estratégia de fusão do materialismo histórico e da teoria sintética da evolução. A dificuldade em relação à neurobiologia não reside na explicação neuronal dos comportamentos humanos: a integração de toda a super-estrutura ideológica e noológica implica o desenvolvimento prévio de uma biologia do espírito humano, em articulação com o paradigma da natureza humana. As neurociências têm proposto soluções para o problema mente/cérebro sem levar em conta um factor crucial de estruturação da vida mental: a sociedade. Embora nunca tenha abordado este assunto, pelo menos de modo directo e explícito, Marx abriu a via que permite clarificá-lo, desde os Manuscritos de 1844 até às suas últimas obras. Na Ideologia Alemã, podemos ler esta orientação teórico-metodológica: «E só agora, depois de já examinados quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, nos apercebemos de que o homem também possui "consciência". (Variante: o homem tem "espírito" e esse "espírito" manifesta-se como consciência.) Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão "pura". Desde sempre pesa sobre o "espírito" a maldição de estar "imbuído" de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para outros homens e que, portanto, existe igualmente só para mim, e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, as exigências dos contactos com os outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim. O animal "não se encontra em relação" com coisa alguma, não conhece de facto qualquer relação; para o animal, as relações com os outros não existem enquanto relações. A consciência é, pois, um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, todo-poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; é, por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efectivamente em sociedade. Este começo é tão animal como a própria vida social nesta fase; trata-se de uma simples consciência gregária e, neste aspecto, o homem distingue-se do carneiro pelo simples facto de a consciência substituir nele o instinto ou de o seu instinto ser um instinto consciente. Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o factor básico». (Marx, pelo menos na Ideologia Alemã, parece ser tentado a definir a "consciência" como uma espécie de interface entre o indivíduo e o meio natural e social. A "consciência" como interface pode ser um conceito produtivo.) Depois de ter tentado apresentar uma solução para o problema mente/cérebro, o naturalismo biológico, ao longo de mais de 300 páginas, John R. Searle conclui a sua viagem de redescoberta da mente afirmando que é necessário redescobrir o carácter social da mente. No entanto, quando noutra obra tenta realizar essa tarefa, esquece que a descoberta do carácter social da mente se deve a Marx, tendo sido desenvolvida e ampliada pelos estudos de L. S. Vygotsky, A. R. Luria e Mikhail Bakhtin, para já não falar de E. Fromm e de G. H. Mead. A recusa da teoria de Marx traduz-se sempre num desvio idealista: Tanto John Searle como António Damásio são idealistas quando tentam resolver o problema da natureza da mente sem levar em conta a sua formação socialA superioridade intelectual de Marx em relação aos biólogos reside no facto de não fazer moralismo: quase todas as teorias biológicas propostas acabam por conduzir a uma ética tão individualista - portanto, idealista - quanto o seu pressuposto individualismo metodológico. A integração do marxismo na teoria sintética da evolução desafia alguns dos seus princípios, obrigando-a a reformulá-los e a depurá-los dos seus elementos ideológicos liberais. Um desses desafios diz respeito à unidade fundamental da selecção natural. Estou convencido de que a sugestão de Dawkins é aquela que se adequa melhor à noção marxista de "portador" que aparece explicitada na opus magnum de Marx, O Capital: «a unidade fundamental da selecção (...) não é a espécie, nem o grupo, nem mesmo a rigor o indivíduo - é o gene, a unidade da hereditariedade», donde resulta que os seres vivos são «máquinas de sobrevivência» dos genes.

A genética constituiu um dos maiores avanços científicos do século XX, tendo começado com a redescoberta das leis de Mendel e terminado com a sequência completa do genoma humano. A genética do comportamento constitui uma ponte entre as ciências biológicas e as ciências do comportamento. Para estudar os factores genéticos do comportamento, a genética do comportamento utiliza diversas estratégias de investigação, como por exemplo os estudos de gémeos e de adopção (genética quantitativa), que investigam a influência dos factores genéticos e ambientais, e as estratégias para identificar genes específicos (genética molecular). A genética do comportamento aplica todas estas estratégias de investigação ao estudo do comportamento normal e anómalo, incluindo disciplinas como a genética psiquiátrica, que estuda as perturbações mentais, e a psicofarmacogenética, que estuda as respostas comportamentais às drogas. (:::/:::) O primeiro livro que definiu a genética do comportamento - Behavior Genetics de J. L. Fuller & W. R. Thompson - foi publicado em 1960. Os anos 60 do século XX foram caracterizados por inúmeras controvérsias sobre natureza (genes, herança) versus educação (meio). Um dia será necessário fazer a história destas controvérsias. A grande responsável pelo atraso da investigação genética do comportamento foi precisamente a psicologia, a "ciência" que foi demolida pela etologia, ecologia do comportamento e sociobiologia. O facto de alguns psicólogos trabalharem hoje no campo da genética do comportamento não nos deve impedir de olhar para a psicologia como a grande derrotada pelo progresso científico. O fundador do behaviorismo, J. B. Watson, descartou-se dos factores hereditários, alegando que as estruturas hereditárias podem ser conformadas de mil maneiras distintas, dependendo do meio em que a criança é educada. Nascia assim o mito da educação - o ambientalismo - que veio a ser destruído pela revolução etológica e pela revolução sociobiológica. Em 1992, a Associação Americana de Psicologia destacou a genética como o tema que melhor representava o futuro da psicologia, dando início à invasão da genética do comportamento por psicólogos. Ninguém é contra a participação activa dos psicólogos na investigação genética do comportamento, mas se compararmos os manuais de genética do comportamento com os manuais de outras disciplinas biológicas, verificamos a ausência de um paradigma da natureza humana desenvolvido em conformidade com a teoria sintética da evolução. A psicologia evolutiva não é argumento porque, ela própria, mais não é do que outra designação dada à sociobiologia. Ao longo da sua história já centenária a psicologia nunca conseguiu fazer a sua própria revolução científica: a sua prática normal é "anexar" as descobertas realizadas noutros campos disciplinares. Uma das descobertas científicas que ajudou a clarificar o papel dos genes no comportamento foi a fenilcetonúria (FKU), defeito devido a um único gene - o gene codificante de PAH, a enzima que converte a fenilalanina em tirosina, que era antes causa de um retardamento mental severo e responsável por cerca de 1% dos indivíduos atrasados institucionalizados. Estudos bioquímicos sobre as vias que unem genes e comportamento indicaram que a causa última do retardamento mental era a incapacidade para degradar a fenilalanina, que se traduz na acumulação de níveis elevados desta substância no sangue, danificando gravemente o cérebro em desenvolvimento. Os indivíduos que sofrem de FKU podem ser tratados administrando-lhes durante o período de desenvolvimento uma dieta baixa em fenilalanina. (:::/:::)

Ora, como se sabe, o cérebro constitui a conexão funcional entre os genes e o comportamento, sendo mais impressionante do que o genoma pelos triliões de sinapses em vez de biliões de pares de bases de ADN e pelas centenas de neurotransmissores em vez de quatro bases nucleotídicas do ADN. A neurobiologia - ou neurociência - estuda a função cerebral e, na actual conjuntura teórica, constitui uma das áreas mais activas da ciência. A genética do comportamento interessa-se não só pela descoberta dos genes relacionados com o comportamento, como também pelo modo como funcionam esses genes. Chama-se genómica funcional ao estudo de como funcionam os genes: ela abarca todos os níveis de análise, desde os genes até ao comportamento. Os biólogos moleculares estudam a função ao nível celular, identificando os produtos génicos - as proteínas - e examinando a sua função celular. A este nível a variação genética implica mudanças na estrutura tridimensional das proteínas. Um nível de análise superior é o das mudanças moleculares que ocorrem na sinapse: a plasticidade sináptica tem sido estudada pela neurogenética para compreender a aprendizagem e a memória como processos que implicam mudanças celulares na sinapse. Outros níveis superiores de análise da função cerebral são os dos padrões de estimulação entre neurónios e através de distintas regiões cerebrais e do comportamento do organismo inteiro. A neurogenética é o estudo genético da estrutura e da função cerebral em relação com o comportamento. Utilizando animais mutantes, isto é, animais portadores de mutações espontâneas, mutações produzidas por mutagénese química ou mutações dirigidas, a neurogenética já produziu resultados importantes em pelo menos três áreas: a do ritmo circadiano, onde descobriu vários genes clock cuja expressão controla este ritmo; a da aprendizagem e memória, onde se descobriram mudanças na estrutura e função da sinapse, impulsionadas geneticamente, que desempenham um papel crucial na sinfonia de transformações implicadas nestes processos; e a da resposta a fármacos. (:::/:::)

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Filosofia da Evolução e Antropologia Darwiniana

Human Evolution
«Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob petulâncias ideológicas, de que o homem precisa, em primeiro lugar, comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc.; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos e, por conseguinte, a correspondente fase de desenvolvimento económico de um povo ou de uma época constitui a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas ou mesmo as representações religiosas dos homens, e em relação à qual devem, portanto, explicar-se  - e não, como até agora tem acontecido, inversamente.» (F. Engels)

«Somos nós que criamos as nossas "prisões" e também podemos, com espírito crítico, demoli-las. (...) Não há falseamento antes da emergência de uma teoria melhor. (...) A crítica puramente negativa não pode liquidar um programa de investigação científica.» (Imre Lakatos)

Infelizmente, as traduções das obras de Marx e Engels existentes em língua portuguesa são péssimas. A sociobiologia seguiu a estratégia de atrair cérebros inteligentes para a sua área, enquanto as ciências sociais foram colonizadas por mentes muito pouco inteligentes. Esta clivagem de competências é particularmente evidente nas universidades portuguesas, justificando esta formulação genérica: os mais idiotas dos portugueses vão para as letras e as humanidades. A crise das humanidades é basicamente uma crise de competências, gerada e agravada, em Portugal, pelos esquemas corruptos de recrutamento do pessoal docente. A vida cultural portuguesa desmente claramente um dos princípios do darwinismo: os mais idiotas triunfam sobre os mais inteligentes através da fraude. De facto, tal com estão estruturados e organizados e tal como são leccionados por professores incompetentes, os cursos de ciências sociais e humanas, incluindo a Filosofia, podem ser abolidos por decreto sem causar qualquer tipo de dano sobre a vida cultural do país. O pior é que esta crise da cultura humanista não é apenas portuguesa; ela instalou-se em todas as partes do mundo, - e, o que é deveras preocupante, pelos menos para os países ocidentais, ameaça liquidar a própria Filosofia, a flor da complexidade da civilização ocidental. A filosofia que se faz actualmente está alienada do mundo e, por isso, tornou-se obsoleta, incapaz de orientar racionalmente a praxis de transformação qualitativa do mundo. Tenho defendido nestes últimos estudos a ideia de que a filosofia quebrou a sua relação privilegiada com a ciência, por um lado, e com a política, por outro lado. Ora, este duplo-vínculo que define a prática filosófica foi substituído pela relação perigosa entre filosofia e arte, a qual tem sido interpretada de modo a fazer da própria filosofia um género literário. Esta vulgarização da Filosofia é fatal, não só para o futuro da própria filosofia, mas também para o futuro da própria humanidade. Em vez de lutar pela integridade do seu território, os filósofos idiotas entregaram-no aos próprios cientistas, cuja competência não os habilita nem para a prática científica nem para a prática filosófica. Reina na cultura uma espécie de barbárie, a barbárie dos próprios agentes culturais, cujo sinal mais evidente é a estagnação dos conhecimentos nas diversas áreas do saber humano. O século XX promoveu diversas grandes revoluções científicas que alteraram radicalmente a nossa visão do mundo. Da Física à Biologia, passando pela Química, todas as ciências naturais sofreram profundas alterações de paradigmas, enquanto as ciências sociais e humanas nem sequer avançaram para a fase do paradigma, envolvidas em intermináveis discussões ideológicas que não levam a parte nenhuma. As revoluções biológicas - a molecular, a evolucionista, a etológica, a sociobiológica, a neurobiológica e a ecológica - reformularam radicalmente o paradigma da natureza humana, destruindo os pressupostos das ciências sociais e humanas, condenadas ao seu eterno estatuto ideológico. Se exceptuarmos a História, cujo paradigma foi elaborado por Marx, as ciências sociais e humanas são irrelevantes. Todas as teorias sociais assentam num conceito extraterrestre de natureza humana, a contrapartida ateia e secular do conceito sobrenatural ou teológico de homem: «Nós não desembarcámos neste planeta como alienígenas. A humanidade é parte da natureza, uma espécie que evoluiu ao lado de outras espécies. Quanto mais nos identificarmos com o restante da vida, mais rapidamente seremos capazes de descobrir as origens da sensibilidade humana e de adquirir o conhecimento sobre o qual fundamentar uma ética durável, um verdadeiro senso de direcção» (Edward O. Wilson). Edgar Morin pensou esta mudança de paradigmas da natureza humana como a substituição do paradigma insular - o homem isolado do resto da natureza e confiante da sua situação privilegiada no mundo - pelo paradigma peninsular, mas errou completamente quando avaliou o sentido das revoluções biológicas: cada uma delas e todas elas reformam radicalmente o paradigma da natureza humana. Este impulso reformista já vem detrás: a revolução darwinista teve efectivamente um impacto muito mais violento sobre a nossa visão do homem do que a revolução de Galileu. A defesa do sistema heliocêntrico de Copérnico por parte de Galileu - segundo o qual a Terra girava à volta do Sol - contrariava uma afirmação da Bíblia, mas não punha em causa a existência de Deus, ao passo que a teoria da evolução por selecção natural de Darwin nega a ideia de criação, tornando Deus supérfluo. As duas revoluções científicas relativizaram a existência humana. Quando Copérnico afirmou que a Terra não era o centro do universo, ela passou a ser vista como um planeta entre tantos outros planetas, que gira à volta do Sol diante do fundo panorâmico da Via Láctea. A revolução darwinista atingiu o próprio homem na sua substância mais íntima, nivelando-o com os outros seres vivos: o homem foi obrigado a aprender a ver-se como um produto da evolução biológica, abandonando a fé de que tinha sido criado directamente pela mão de Deus. Copérnico destronou a Terra, lutando contra o sistema geocêntrico de Ptolomeu, e Darwin destronou o próprio homem, lutando contra a teoria da criação. Mas - como sabem os teólogos - a queda de Deus traz consigo a queda do próprio homem, na medida em que a questão de Deus e a questão do Homem pertencem uma à outra. Darwin derrubou num só e mesmo golpe o teocentrismo e o antropocentrismo. A filosofia e a ciência germinaram apenas em solo ocidental, o que justifica a sua marca de origem: a luta feroz que as opôs desde o início ao mito e à tradição dogmática da religião cristã. O materialismo foi a estratégia adoptada para combater o domínio cultural do cristianismo. Até mesmo Sartre na sua crítica ao materialismo é obrigado a reconhecer o seu papel histórico tanto na ciência como na luta pela libertação: «Se eu considerar a fé materialista já não no seu conteúdo, mas na sua história, como um fenómeno social, vejo claramente que não é um capricho de intelectuais, nem o simples erro dum filósofo. Por mais atrás que remonte, encontro-a ligada à atitude revolucionária. O primeiro que quis nomeadamente desembaraçar os homens dos seus temores e das suas cadeias, o primeiro que quis, no seu domínio, abolir a servidão, Epicuro, era materialista». Marx escreveu a sua tese de doutoramento sobre Demócrito e Epicuro (1841), tendo desde logo abraçado o materialismo para contribuir pouco mais tarde para a libertação das classes trabalhadoras. Graças à criação do materialismo histórico, Marx conseguiu relativizar a própria existência social e histórica do homem, abrindo as portas ao futuro novo quando substituiu a luta pela vida - struggle for life - pela luta de classes. A superioridade da revolução teórica de Marx reside no facto de não entregar o homem ao desespero: o reconhecimento da relatividade da sua existência não implica necessariamente o seu naufrágio; pelo contrário, abre-lhe as portas da história que, ele próprio, faz aqui na Terra diante do fundo panorâmico da Via Láctea. Chegou a hora de colocar as cartas sobre a mesa. A aliança entre o projecto científico e a filosofia materialista tem sido extremamente produtiva: ela permitiu não só libertar toda a cultura da tutela da Igreja Católica e das Igrejas Protestantes, como também promover todo um conjunto de progressos científicos espectaculares, em especial no domínio da cultura material. No entanto, apesar de todas estas libertações operadas pela ciência, a estratégia materialista-redutora não consegue resolver os problemas filosóficos fundamentais que atormentam a alma dos homens, sobretudo as almas mais inteligentes. Este é o aspecto mais fraco e débil da estratégia científica. Desgraçadamente, aquilo que a estratégia materialista não resolve também não é resolvido por nenhuma outra estratégia teórica, pelo menos de modo a incrementar o crescimento real e efectivo do conhecimento científico. Tenho proposto um materialismo pluralista para salvaguardar a ciência de uma estratégia demasiado redutora do mundo, susceptível de entrar em colisão com a própria continuidade da vida na Terra. Estaremos nós condenados a escolher entre duas crenças indemonstráveis, a fé materialista ou a fé idealista-espiritualista? Filosofia e ciência estão condenadas a coexistir e a colaborar intimamente uma com a outra, de modo a prolongar a aventura humana num planeta saudável. A antropologia de Pascal ainda tem uma palavra a dizer: «É perigoso mostrar ao homem com demasiada insistência a sua semelhança com os animais, sem lhe mostrar a sua grandeza. É igualmente perigoso exaltar-lhe a sua grandeza sem lhe mostrar a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo na ignorância de uma e outra. Mas é muito útil mostrar-lhe uma e outra». 

A teoria de Darwin compreende duas linhas de pensamento que convém distinguir: a primeira é a teoria da relação genealógica geral de todos os seres vivos e a segunda é a teoria causal desta evolução. As duas teorias foram articuladas e unificadas por Darwin (1859) na sua obra On the Origin of Species by means of natural selection. A teoria da evolução já tinha sido formulada de diversos modos antes de Darwin, o qual se limitou a fazer dela o fundamento novo da biologia. O contributo original de Darwin é a explicação causal da evolução: a teoria da selecção natural. Quando iniciou a sua viagem ao redor do mundo no navio Beagle (1831-36), Darwin ainda acreditava na teoria da constância das espécies. Na sua autobiografia, Darwin refere dois acontecimentos que o obrigaram a abandonar esta teoria: a descoberta de fósseis de animais na América do Sul, cuja espécie se extinguiu ou existia em representantes divergentes (1); e as observações que realizou nas Ilhas Galápagos (2). O registo fóssil revelava as mudanças da fauna em épocas diferentes da história geológica da Terra, enquanto as observações feitas no terreno mostravam a distribuição das espécies não já no tempo mas no espaço. Ora, estas diferenciações distribuídas no tempo e no espaço colidiam frontalmente com a teoria da criação e da constância das espécies. Durante o seu período de estudos teológicos em Cambridge, Darwin foi marcado pela obra Teologia Natural de William Paley, onde este teólogo caracterizava a natureza como obra de Deus. Paley utilizou a organização do olho como prova principal da sua argumentação teológica: a finalidade expressa na organização das plantas e dos animais era a prova directa e irrefutável da sabedoria do Criador. (O bioquímico Michael Behe também utiliza nos nossos dias a organização do olho para desafiar a teoria da evolução.) O que intrigava a inteligência metódica de Darwin era a questão de saber como é que se podiam originar seres vivos a partir de alguns actos de criação espiritual: a teologia natural de Paley criava um abismo que não podia satisfazer as exigências da causalidade. Para introduzir o processo causal nesse hiato, Darwin socorreu-se da obra Principles of Geology de Charles Lyell, cuja análise das mudanças da superfície da Terra no passado aponta para a interacção das forças da natureza ao longo do tempo, de modo a formar um continuum único de uma cadeia complexa de causas e efeitos, com transições rotativas, as quais, não sendo resultado das catástrofes de Cuvier, mais não são do que os efeitos cumulativos de causas banais e comuns. Com a leitura das obras de Lyell, Darwin descobriu o princípio geral de uma solução para o problema da origem das espécies, faltando-lhe clarificar a propriedade específica das causas actuantes no processo de transformação orgânica. Esta solução procurou-a no domínio da domesticação dos animais e do cultivo de plantas. A multidão de raças e de espécies animais e vegetais criadas artificialmente mostravam a maleabilidade e a capacidade de transformação dos organismos vivos. Porém, o que mais chamou a atenção de Darwin foi o esquema da sua génese: em cada geração verifica-se uma variação mais ou menos ampla das propriedades dos indivíduos. O criador inclui na reprodução certas variações e exclui outras, de modo a gerar as raças ou espécies desejadas. Este procedimento é repetido de geração em geração até que, finalmente, através do efeito cumulativo (Lyell) da selecção artificial, surgem raças completamente novas, cujas características são diferentes das da forma original. Darwin utilizou esta prática de criação como modelo explicativo do processo da origem das espécies na natureza: «Vi cedo que a selecção é a chave do êxito do homem no seu trabalho de criar raças úteis de animais e plantas. Como se poderia aplicar a selecção a organismos foi, no entanto, por muito tempo, um segredo para mim». Darwin não podia admitir a existência de um processo planeado. Os cinco anos a bordo do Beagle não foram suficientes para o dotar de uma teoria da evolução capaz de explicar o seu mecanismo causal: a ideia de selecção natural só surgiu dois anos depois de ter regressado a Londres: «Em Outubro de 1838, isto é, quinze meses depois de ter principiado o meu inquérito sistemático, aconteceu-me ler por divertimento o ensaio de Malthus sobre a população e, por, a partir da observação longa e continuada dos hábitos dos animais e das plantas, estar bem preparado para apreciar a luta pela existência - struggle for existence - que continua em toda a parte, repentinamente atingi que, sob certas circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a ser preservadas e as desfavoráveis destruídas. O resultado disto seria a formação de novas espécies. Aqui, então, tinha finalmente conseguido uma teoria boa para trabalhar». Darwin recorreu à teoria da população de Malthus para construir a sua teoria da selecção natural. Malthus argumentava que a população humana aumenta em proporção geométrica, enquanto os recursos para a sua subsistência crescem apenas aritmeticamente, donde resulta uma luta pelos recursos mais escassos. Para Darwin, bem como para Alfred Russel Wallace, a luta humana pela sobrevivência constitui o modelo para todas as espécies: todos os organismos estão envolvidos numa feroz luta pela existência. Os dois primeiros capítulos da Origem das Espécies são dedicados às variações no estado domesticado e no estado selvagem, respectivamente. O primeiro capítulo ilustra a variedade de formas existente dentro das espécies e explica a origem destas raças pelo processo de selecção deliberada: «A chave está no poder do homem de realizar uma selecção cumulativa: a natureza provoca variações sucessivas; o homem acumula-as nas direcções que lhe são úteis». Os conceitos de variação e de selecção aparecem aqui intimamente ligados pela ideia de domesticação. O materialismo de Darwin revela-se plenamente na descoberta de uma analogia que lhe permite operar a passagem da domesticação para a natureza: em vez de postular uma força misteriosa, uma natureza personificada, Darwin deriva o princípio da selecção natural da luta pela sobrevivência decorrente da sobrepopulação num mundo de recursos limitados. Deste modo, ao propor uma força material directa, pela qual a natureza pode "seleccionar" entre as variações individuais para produzir tipos mais adaptados, Darwin introduziu um mecanismo de evolução que, além de contrastar com as explicações de Lamarck e Geoffroy Saint-Hilaire, compreende três fases: existem variações nos indivíduos de cada espécie, em morfologia, fisiologia e comportamento (princípio de variação); os descendentes parecem-se mais com os pais do que com os indivíduos não relacionados (princípio da hereditariedade); e variantes diferentes deixam diferente número de descendentes (princípio da selecção natural). Sensível ao aspecto materialista e ateu da teoria da evolução de Darwin, Engels - indecentemente criticado por Jacques Monod - resume bem a sua novidade revolucionária: «Na sua obra, que fez época, Darwin parte da base factual mais ampla que repousava na contingência. São precisamente as diferenças infinitas criadas pelo acaso entre os indivíduos no interior de cada espécie, diferenças que se acentuam até fazer rebentar o carácter da espécie e de que até mesmo as causas mais imediatas só podem ser demonstradas em casos muito raros, que obrigaram a reconsiderar o fundamento anterior de qualquer lei biológica: a noção de espécie na sua rigidez e na sua imutabilidade metafísicas de outrora. Mas sem a noção de espécie, toda esta ciência ruiria. Nenhum desses ramos poderia ignorar a noção de espécie como base: que seriam, sem ela, a anatomia humana e a anatomia comparada, a embriologia, a zoologia, a paleontologia, a botânica, etc.? Não só todos os seus resultados deveriam ser reexaminados como ainda pura e simplesmente suprimidos. A contingência deita pela borda fora a necessidade tal como esta foi concebida até aqui. A ideia de necessidade que se teve até agora faliu. Conservá-la significa ditar como lei à natureza a determinação humana arbitrária que entra em contradição consigo mesma e com a realidade; significa portanto negar toda a necessidade interna na natureza viva, proclamar de uma maneira universal o reino caótico do acaso como lei única da natureza viva». Dos três princípios estabelecidos por Darwin decorre mecanicamente todo o processo de evolução: Uma vez que os descendentes se parecem mais com os pais, se uma variante deixa mais descendentes que outra, registar-se-á uma mudança de composição da população na geração seguinte. Com o passar do tempo, a população ficará cada vez mais enriquecida da variante com maior taxa reprodutora e a espécie mudará progressivamente. A dinâmica deste processo provém da luta pela sobrevivência: a razão por que algumas variantes deixam mais descendência reside na sua melhor adaptação para obter recursos escassos e reinvestir estes recursos na reprodução. A maior eficiência de uma variante é a manifestação do seu grau mais elevado de perfeição na resolução dos problemas colocados pelo ambiente. O mecanismo proposto por Darwin vale tanto para a mudança como para a adaptação. A teoria da evolução de Darwin permaneceu incompleta, na medida em que ele nunca conseguiu explicar a natureza da variação natural nas populações sobre as quais actua a selecção natural. Embora o artigo de Gregor Mendel sobre a hereditariedade tenha sido escrito em 1865, a redescoberta das suas experiências só ocorreu em 1900. O darwinismo (teoria da transformação das espécies) e o mendelismo (teoria da hereditariedade) só foram reconciliados em 1918 por R. A. Fisher.  A teoria genética da evolução foi articulada nas décadas de vinte e trinta do século XX por S. Tshetverikov (1926), R. A. Fisher (1930), J. B. S. Haldane (1932) e Sewall Wright (1931). Em 1942, J. S. Huxley publicou a sua obra Evolution: The Modern Synthesis, que consagra a designação pela qual a nova teoria da evolução se tornou conhecida: teoria sintética da evolução, para a construção da qual também contribuíram G. L. Stebbins, G. G. Simpson, J. W. Valentine, T. Dobzhansky, Francisco J. Ayala e Ernst Mayr. A filosofia da teoria de evolução encontra-se bem elaborada nas obras de Theodosius Dobzhansky (1937, 1967, 1970, 1977) e de Ernst Mayr (1942, 1963, 1970, 1982, 1988). Infelizmente, não dispomos de nenhuma destas grandes obras do pensamento evolucionista em língua portuguesa. O mundo lusófono é profundamente imbecil.

Do ponto de vista epistemológico, podemos distinguir dois elementos na busca darwiniana de uma teoria causal da evolução: um elemento tecnomorfo e um elemento sociomorfo. Estes dois elementos estão intimamente relacionados entre si e as suas funções são complementares. Darwin começou por utilizar o comportamento do criador humano de novas raças como modelo explicativo do processo natural: o processo da transformação gradual das espécies é concebido como se uma inteligência, semelhante à do criador humano, dispusesse a selecção dos indivíduos com a finalidade de uma adaptação da espécie às condições existentes. A utilização deste modelo tecnomorfo forneceu a Darwin uma orientação para o princípio da selecção natural que vai muito mais além das experiências do criador humano, na medida em que os processos de transformação se desenrolam gradual e lentamente ao longo do tempo geológico, sendo por isso inacessíveis à observação humana directa. Para orientar a passagem do princípio selectivo do criador humano ao princípio selectivo objectivo na natureza, Darwin recorreu a uma concepção adicional. Numa carta dirigida a Engels, Marx identifica as semelhanças entre a selecção natural e a cena social inglesa: «É notável como Darwin reconhece, entre animais e plantas, a sua sociedade inglesa, com as suas divisões de trabalho, competição, abertura de novos mercados, "invenção" e a malthussiana "luta pela existência". É o bellum omnium contra omnes - "a guerra de todos contra todos" - de Hobbes». Mais tarde - na sua Dialéctica da Natureza - Engels retoma este elemento sociomorfo: «Toda a teoria darwinista da luta pela existência é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza viva, da teoria de Hobbes sobre a guerra de todos contra todos e da teoria económica burguesa da concorrência, assim como da teoria da população de Malthus. Uma vez realizada essa manobra forçada (cuja legitimidade absoluta, em especial no que respeita à doutrina de Malthus, é muito problemática), é muito fácil transferir de novo essas teorias da história da natureza para a da sociedade; e é ingenuidade demais pretender ter demonstrado assim que essas afirmações são leis naturais e eternas da sociedade». Na sociedade capitalista, os indivíduos competem e rivalizam uns com os outros para alcançar determinados objectivos ou recursos escassos: os vencedores são aqueles que superam os outros pelas suas qualidades favoráveis ou por se encontrarem numa situação mais favorável. Algo semelhante ocorre na natureza: os indivíduos de uma espécie procuram atingir o objectivo da conservação e da sobrevivência. Mas, devido à sobrepopulação e à escassez de recursos, estes últimos só são acessíveis a uma parte da população: a condição do sucesso é o grau da adaptação às condições externas. O darwinismo social surgiu quando as doutrinas de Malthus, combinadas com a teoria da selecção natural, foram aplicadas à sociedade capitalista do século XIX, servindo de base "científica" para o laissez faire. Segundo esta ideologia burguesa, os homens rivalizam entre si para interpretar o desenvolvimento dos grupos sociais em termos de luta pela existência, da selecção natural e da sobrevivência do mais apto. Os darwinistas sociais compreendem o conflito dos grupos sociais, naturais e raciais em termos estritamente biológicos, sendo a guerra e a competição os instrumentos primários da evolução social. Os grupos raciais ou económicos têm inevitavelmente interesses em conflito e, nessa luta, os mais fracos são eliminados pelos mais fortes ou sujeitam-se à minoria economicamente dominante. A teoria da selecção natural iniciou-se com a transferência de um conceito sociológico para o campo da biologia, para ressurgir depois no darwinismo social como aplicação das teorias biológicas à sociedade. Não admira que a livre concorrência nos negócios tenha sido considerada como uma forma de "selecção natural" que dá vantagem aos mais fortes sobre os mais fracos. Quanto mais intensa for a competição, mais rápido será o progresso: eis o credo do darwinismo social que renasce nos nossos dias sob a designação de neoliberalismo. John Maynard Smith reconhece que a teoria da evolução de Darwin foi influenciada pelo facto dele viver na era do capitalismo concorrencial, no decurso da qual algumas empresas aperfeiçoaram a técnica de produção para crescer em dimensão e opulência, enquanto outras entraram em falência. O liberalismo económico, com o seu princípio da livre concorrência, levou, como demonstraram Marx e Engels (1848) no Manifesto do Partido Comunista, onze anos antes da publicação da opus magnum de Darwin, a massa operária a um empobrecimento terrível. Terá sido Darwin indiferente a este empobrecimento terrível da classe operária? Num dos capítulos de The Descent of Man, Darwin (1871) afirma que, nos povos civilizados, «a selecção natural tem efeitos aparentemente escassos, embora os instintos sociais fundamentais sejam originariamente adquiridos por seu intermédio». Darwin nunca procurou aplicar de modo sistemático o princípio da selecção natural à sociedade humana, chegando mesmo a defender que devemos «assumir as consequências sem dúvida negativas da sobrevivência e da propagação dos fracos sem nos lamentar». Em 1880, Marx escreveu a Darwin para lhe pedir que revisse os capítulos XII (Divisão do Trabalho e Manufactura) e XIII (A Maquinaria e a Indústria Moderna) da edição inglesa de O Capital, que se baseavam na Origem das Espécies, a fim de ter a certeza de que o seu pensamento não tinha sido deformado. Darwin descartou-se dessa missão, alegando que as observações de Marx sobre os seus escritos não necessitavam de qualquer acordo da sua parte. É provável que Darwin nunca tenha lido o exemplar de O Capital que Marx lhe enviou, mas o principal prejudicado foi ele próprio que perdeu a oportunidade de aprender com Marx a melhor maneira de se defender contra o darwinismo social. É fácil descobrir vestígios desta ideologia na própria obra de Darwin, a qual é impensável sem o fundo histórico do capitalismo concorrencial. Sem este fundo social e histórico e sem a sua fortuna, a mente preparada de Darwin nunca teria elaborado a teoria da selecção natural. O facto dele ter evitado o diálogo produtivo com Marx explica, em parte, a deriva ideológica da sua teoria da evolução que fez dela a apologia do status quo. No entanto, a origem social de uma ideia não deve ser confundida com a sua verdade ou a sua produtividade: Darwin examinou as diferenças reais e materiais entre os organismos vivos e substituiu as entidades ideais - as espécies da antiga ordem estática do mundo - por entidades reais - os indivíduos e as populações - enquanto objectos convenientes de estudo, de modo a resolver a contradição entre a mudança e a fixação dos tipos ideais própria do idealismo platónico-aristotélico. A intuição revolucionária de Darwin foi a transformação operada pela selecção natural das diferenças entre indivíduos de uma espécie nas diferenças entre espécies no espaço e no tempo.

O marxismo soviético desvirtuou e adulterou toda a filosofia de Marx. Assumo, pelo menos provisoriamente, a crítica que Marcuse dirigiu contra a marxismo soviético, bem como a sua teoria da base biológica do "socialismo", para me distanciar da divisão canonizada entre o materialismo histórico - a ciência da história fundada por Marx - e o materialismo dialéctico - a filosofia dialéctica de Marx, mas vou mais longe: aquilo que me interessa na obra de Marx é o seu programa de investigação científica que nunca foi refutado, no sentido de ter sido substituído por uma teoria melhor. Será a sociobiologia o programa de investigação que pretende substituir o programa marxista? Com esta questão introduzo aqui um deslocamento que me permite pensar as relações entre a antropologia darwiniana e a antropologia marxista. A obra marxista que deve ser relida é, para espanto de muitos, a Dialéctica da Natureza de Engels, precisamente a obra utilizada pelos marxistas soviéticos para ossificar a filosofia de Marx. Trata-se de uma obra que não chegou a ser concluída: os conhecimentos científicos em que se baseia estão hoje ultrapassados, mas a sua «intenção» - ou melhor, o seu programa de investigação - é ainda muito actual. A peça fundamental desta obra é o fragmento O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem (1876?), onde Engels expõe o seu modelo de antropogénese, que reconhece a acção da alimentação carnívora - bem como da linguagem - sobre o desenvolvimento do cérebro: «o homem só se tornou homem com a alimentação carnívora». Mas o que encanta neste fragmento é a recusa da ideia de que o homem reina sobre a natureza: «nós e a natureza formamos um todo». Engels ridiculariza a ideia absurda e contra-natura de uma «oposição entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo, ideia divulgada na Europa a seguir ao declínio da antiguidade clássica e que conheceu com o cristianismo o seu desenvolvimento mais elaborado». Stephen J. Gould lamentou o facto desta «brilhante exposição dos factos» não ter tido «impacto visível na ciência ocidental», mas todas as teorias da hominização posteriores acabaram por render tributo ao modelo proposto por Engels, dando-lhe o suporte empírico que não podia ter no século XIX. A omissão do nome de Engels em muitos tratados sobre a evolução humana só pode ser justificada por má-fé dos seus autores. Nenhum marxista soube articular a programa de investigação de Engels sobre a hominização com as indicações metodológicas dadas por Marx nos Manuscritos de 1844, de modo a elaborar uma antropologia marxista coerente: «As ciências naturais desenvolveram uma tremenda actividade e reuniram uma massa sempre crescente de dados. Mas a filosofia permaneceu-lhes estranha, da mesma maneira que as referidas ciências continuaram estranhas à filosofia. A sua aproximação momentânea não passou de uma ilusão fantástica. Nasceu o desejo de união, mas faltou o poder para a levar a cabo. (...) A indústria é a relação histórica real da natureza e, por consequência, da ciência natural, ao homem; se ela se conceber como a manifestação exotérica das faculdades humanas essenciais, poderá igualmente compreender-se a essência humana da natureza ou a essência natural do homem; a ciência natural abandonará então a sua orientação abstracta materialista, ou antes, idealista, e tornar-se-á a base da ciência humana, tal como ela já agora - se bem que de forma alienada - se tornou a base da vida humana real. Uma base para a vida e outra para a ciência constituem a priori uma mentira. A natureza, tal como se desenvolve na história humana - no acto de génese da sociedade humana - é a natureza real do homem; por conseguinte, a natureza, tal como se desenvolve na indústria, embora também em forma alienada, constitui a verdadeira natureza antropológica». A ideia nuclear da ciência natural como base da ciência humana conduz a um programa naturalista de investigação: «O homem é directamente um ser da natureza - dotado de poderes e faculdades naturais, que nele existem como tendências e capacidades, como pulsões». Não se trata aqui de retomar a equação "naturalismo = humanismo" do jovem Marx, mas de mostrar que a sua noção de homem como ser da natureza permite estabelecer um diálogo produtivo com a teoria da evolução. É certo que Darwin recusou dialogar seriamente com Marx, mas também é certo que Marx não se esforçou muito em compreender a teoria da selecção natural de Darwin. Seria um erro afirmar que a corrente passou no sentido Darwin-Marx, na medida em que a teoria da luta de classes já estava formulada muito antes de Marx ter lido a Origem das Espécies de Darwin. Marx rejeitou em bloco a teoria da população de Malthus e criticou Darwin por não ter levado em conta o trabalho. Compreende-se a aversão ideológica e política de Marx por Malthus, mas não se compreende que ela o tenha levado a abdicar da demografia para formular a sua teoria da reprodução. Clivagens ideológicas profundas entre Darwin, liberal e individualista de nascença, e Marx, socialista e igualitário de coração, prolongaram o hiato entre ciências da natureza e ciências humanas, hiato esse que ambos desejavam preencher. Chegou a hora de tentarmos restituir ao materialismo histórico a sua base na ciência natural. A minha hipótese de trabalho é a de que só conseguiremos levar a cabo esta tarefa teórica reformulando o conceito de natureza humana. As contradições que parecem existir entre os homens do século XIX que descobriram as leis do mundo orgânico e do mundo histórico, respectivamente Darwin e Marx, podem ser superadas, da mesma maneira que as contradições entre a teoria da selecção natural de Darwin e a teoria da hereditariedade de Mendel foram superadas pela teoria sintética da evolução. A realização de uma tal fusão colocaria desde logo a nova antropologia para além de Marx e de Darwin. No fundo, do que precisamos mesmo é de pensamento novo.

Adenda. Estou a detectar falhas nas teorias existentes, o que vai perturbar o desenvolvimento da minha hipótese de trabalho. A tese fundamental que tenho defendido é a seguinte: Apesar de Marx ter contribuído significativamente para a reforma do paradigma da natureza humana, o marxismo - em si mesmo - é insuficiente para elaborar uma antropologia filosófica, sobretudo quando fica privado da ideologia comunista que o moldou. O discurso que sobrepõe a segunda natureza do homem à sua primeira natureza deve ser abandonado: a partir do momento em que Marx e Engels viram no darwinismo a base natural da ciência humana, inserindo a própria História na história da natureza, eles ficaram tributários da antropologia darwinista, cujo paradigma da natureza humana é claramente biológico. O conceito de natureza humana é biológico: o conjunto de regras epigenéticas que define a natureza humana é refractário à utopia social de Marx. (De um modo geral, as utopias exigem a transformação do homem para poderem ser realizadas. Mas como o homem não é tão maleável como se pensa, as utopias acabam por abrir as portas a alguma biotecnologia totalitária. A história segue sempre o lado mau do caminho: ao tentar realizar um projecto utópico, o homem está a contribuir para a sua autodestruição, porque a utopia social é utopia técnica. A herança mamífera e primata do homem não permite depositar muita confiança neste mamífero dominante: a história está aí para o demonstrar. E, paradoxalmente, quanto mais nos afastamos das origens, mais distantes estamos de um estado de paz: a racionalidade é uma aliada do impulso agressivo. A história é catástrofe. Há um traço que é especificamente humano: a propensão para a loucura.) O resgate da filosofia de Marx exige o abandono desse projecto político que bloqueou o seu próprio desenvolvimento teórico, levando-o a desvirtuar a sua teoria da história, subjugada por um princípio que lhe é estranho: a política deve ser definida, em grande medida, em função da natureza biológica humana. Os ideólogos da sociologia ficam chocados com o determinismo biológico, mas sentem um enorme prazer em opor-lhe o determinismo sociológico, como se a tarefa da mudança social qualitativa fosse travada por um tal determinismo ideológico. Infelizmente, o determinismo sociológico é uma mera mistificação ideológica que não tem qualquer peso na definição de uma política de mudança: a força que deve ser levada em conta reside nos programas sociais da natureza humana. A sociedade não é algo estranho ao genoma humano. Não há sociedade humana sem genomas e os genomas funcionam como forças estabilizadoras: a variação resulta sempre de erros. Estou cada vez mais convencido de que não vale a pena estudar as ciências sociais e humanas, porque a sua integração na nova síntese as tornou obsoletas: ciências naturais, matemática, filosofia e história são suficientes. Não poderia concluir esta adenda sem deixar de referir a necessidade urgente de Ler a Origem das Espécies, de modo a ir ao encontro da Teoria Sintética da Evolução.

J Francisco Saraiva de Sousa 

sábado, 2 de junho de 2012

10 melhores postagens do mês de Maio


Porto: Ponte D Luís I, e as bases da antiga Ponte Pênsil

Veja aqui as 10 melhores postagens do mês de Maio de 2012, a selecção mensal do blogue O Fazedor: Wanderson Lima escolheu o meu estudo Etologia: Agressão e Natureza Humana. Recomendo a leitura dos 10 textos escolhidos pelo meu amigo Wanderson Lima. E já agora aproveito a oportunidade para reconduzir o leitor para um texto brilhante de Wanderson Lima: A Virada Cultural e a Crise dos Estudos Literários.

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 29 de maio de 2012

Etologia: Agressão e Natureza Humana

Violência Encarnada no Futebol
«O homem gosta demasiadamente de se imaginar no centro do universo, não fazendo parte do resto da natureza, mas opondo-se a ela como um ser de essência diferente e superior. Perseverar neste erro é para muitos homens uma verdadeira necessidade. Fazem ouvidos de mercador ao mais inteligente conselho que um sábio alguma vez lhes deu: o famoso "Conhece-te a ti mesmo", atribuído a Sócrates, mas de facto pronunciado por Quílon. Que impede o homem de obedecer a esta ordem? (O orgulho impede-o de se conhecer a si próprio, escondendo-lhe o facto de que ele é um produto da evolução histórica.)» (Konrad Lorenz)

Primeiro a controvérsia evolucionista, no século XIX, depois a controvérsia etológica, e, por fim, a controvérsia sociobiológica, ambas no século XX: a Filosofia tem dedicado muita atenção às controvérsias científicas, nomeadamente à controvérsia entre Samuel Clarke e Leibniz, mas nunca se concentrou seriamente sobre estas três controvérsias biológicas. O que há de comum a estas controvérsias evolucionistas que fere o orgulho do homem? O facto delas desalojarem o homem da sua posição privilegiada na «criação», fazendo dele - tanto ao nível morfológico e fisiológico como ao nível comportamental - o resultado da evolução filogenética por selecção natural. As três revoluções evolucionistas - a revolução darwinista, a revolução etológica e a revolução sociobiológica - opõem-se ao antropocentrismo egoísta do homem. Desalojar o homem do lugar privilegiado que ocupa no universo tornou-se uma tarefa da ciência desde Copérnico: a revolução copernicana desalojou o homem do centro do universo e as revoluções evolucionistas privaram-no do seu lugar central na «criação» orgânica. A destruição do cosmos operada pela ciência moderna e a perda, pela Terra, da sua situação central e singular, levaram inevitavelmente à perda, pelo homem, da sua posição singular e privilegiada no drama teocósmico da «criação», da qual o homem era até então tanto a figura central como a cena. A revolução científica deixou-nos sozinhos no mundo mudo e aterrorizante de Pascal, um mundo desprovido de sentido, no qual o homem encontra o niilismo e o desespero. Nicolau de Cusa e Giordano Bruno não sentiram o deslocamento da Terra do centro do mundo como uma degradação: ambos ficaram satisfeitos com esse deslocamento, e Bruno vai além da afirmação de Cusa de que a imutabilidade não pode ser encontrada em parte alguma de todo o universo, para afirmar que o movimento e a mutação são sinais de perfeição e não de ausência de perfeição. Um universo imutável seria um universo morto; apenas um universo vivo é capaz de se mover e de se modificar. Encontramos aqui formulada a ideia fulcral do progresso: a ideia de aperfeiçoamento, o alvo da crítica protagonizada pela revolução ecológica. No decurso do século XX, a biologia foi a ciência natural que mais contribuiu para a modificação substancial da nossa imagem do mundo e do homem, e, no entanto, a Filosofia voltou-lhe as costas, como se as ciências sociais constituíssem uma plataforma paradigmática segura para conhecer o homem. A etologia, tal como foi elaborada pelo seu fundador, Konrad Lorenz, é menos «redutora» do que a sociobiologia criada por Edward Wilson. Ambas as disciplinas biológicas são contrárias ao antropocentrismo, segundo o qual «o homem é único entre os animais» (Tinbergen). Mas divergem de algum modo quanto à estratégia seguida para conhecer as «raízes animais» do comportamento humano. Ao contrário da estratégia seguida por Wilson, toda ela dirigida à busca das semelhanças e das bases genéticas do comportamento social, a estratégia etológica vacilou muito entre a busca das semelhanças e a busca das diferenças entre o animal e o homem. A conferência de Tinbergen, pronunciada no ciclo "Estudos Sociais e Biologia" na Universidade de Oxford, a 27 de Outubro de 1964, ajuda-nos a compreender esta diferença estratégica entre a etologia humana e a sociobiologia humana, de resto bem evidenciada na obra de John Tyler Bonner (1980) sobre a evolução da cultura nos animais e na obra de W. H. Thorpe (1974) sobre a natureza animal e a natureza humana, para já não referir a obra de I. Eibl-Eibesfeldt (1973) sobre o homem pré-programado.

Quando se diz que o homem é único entre os animais, a palavra "único" pode ter dois significados ligeiramente diferentes. Pode significar: o homem não é idêntico a nenhum animal. É verdade que o homem é notavelmente diferente dos animais, mas este sentido aplica-se igualmente a todos os animais, porque cada espécie, bem como cada indivíduo, é única neste sentido. Mas também pode ter um sentido absoluto: o homem é tão essencialmente diferente que existe uma lacuna entre ele e os animais, a qual não pode ser preenchida, dado o homem ser algo totalmente novo. A utilização da palavra "único" neste sentido absoluto implica a presunção - ou melhor, o juízo precipitado, o preconceito - de que é inútil procurar as raízes animais do comportamento humano. Ora, este divórcio entre a natureza animal e a natureza humana não é uma conclusão baseada numa análise objectiva do comportamento, mas um preconceito antropocêntrico que inviabiliza qualquer tipo de estudo comparado do comportamento. Tinbergen utiliza a palavra "único" no seu sentido relativo: o homem é único por ser notavelmente diferente dos animais, embora também ele seja um animal. E, usando uma frase orwelliana, afirma que «todos os animais são únicos, mas o homem é mais único do que os demais (animais)». Toda a conferência de Tinbergen é dedicada à descoberta daquilo que no homem é realmente único. O singular do homem não reside nas suas estruturas corporais, mas no seu comportamento: o seu corpo e as suas funções são em geral muito similares às dos demais mamíferos, razão pela qual a medicina pode estudar nos animais as funções orgânicas básicas e extrapolar para o homem com certo grau de confiança. Afirmar a singularidade do comportamento humano equivale a afirmar a singularidade do cérebro humano. O homem é único porque o seu cérebro é único e funciona de uma maneira única. Para apreender o que no homem é realmente único, o biólogo recorre ao processo evolutivo: o homem evoluiu, lenta e muito gradualmente, a partir de animais ancestrais que eram muito mais similares aos outros mamíferos do que o é o homem de hoje. Tudo o que o homem é e tudo o que faz agora desenvolveu-se, mediante uma série de pequenos passos evolutivos, a partir do que os seus antepassados foram e fizeram. O homem separou-se gradualmente do tronco dos macacos para se converter no que é hoje em dia, da mesma maneira que as espécies animais modernas intimamente relacionadas se desenvolveram a partir de um tronco comum. O estudo deste processo gradual de evolução divergente implica a utilização de métodos indirectos que permitem aos biólogos reconstruir uma série de processos, cada um dos quais foi único, e de distintas etapas da evolução biológica. As propriedades estruturais podem ser estudadas com base nos fósseis, os quais podem ser datados e colocados numa escala de tempo. O registo fóssil permite-nos dizer com segurança que as baleias procedem dos mamíferos ou que os morcegos transformaram em asas os seus membros anteriores. Estes exemplos mostram que a evolução nunca produz nada realmente novo, operando, em vez disso, mudanças graduais em algo que já existia. A evolução humana não escapa a este modo de actuação da selecção natural, ao qual François Jacob chamou bricolagem: «A evolução não tira do nada as suas novidades. Trabalha sobre o que já existe, quer transformando um sistema antigo para lhe dar uma nova função, quer combinando diversos sistemas para com eles arquitectar um outro mais complexo. O processo de selecção natural não se parece com nenhum aspecto do comportamento humano. Mas se quisermos lançar mão duma comparação, deverá afirmar-se que a selecção natural actua, não à maneira dum engenheiro, mas dum engenhoqueiro (bricoleur); um engenhoqueiro que ainda não sabe o que vai fazer, mas que recupera tudo o que lhe vem às mãos (...) para daí tirar algum objecto utilizável». Além do método paleontológico, o biólogo dispõe de um segundo método, menos directo do que o primeiro: a comparação. Assim, por exemplo, se não tivéssemos fósseis dos antecessores das baleias, poderíamos concluir que elas derivam dos mamíferos terrestres fazendo duas comparações: as baleias compartilham a maioria dos seus caracteres com os mamíferos, apesar da sua semelhança superficial com os peixes; e, como a maioria dos mamíferos são terrestres, concluímos que as baleias descendem de mamíferos terrestres. O método comparativo fornece os mesmos resultados que o estudo dos fósseis, sendo frequentemente utilizado nos casos onde os fósseis são escassos ou não existem. Como os fósseis carecem de comportamento, o estudo evolutivo do comportamento só pode ser realizado com recurso ao método comparativo, o qual é mais seguro quando as diferenças entre as espécies comparadas são pequenas, e menos seguro quando as diferenças são grandes. Quando procuramos as raízes animais do comportamento humano, devemos ter em atenção que as semelhanças entre espécies diferentes podem desenvolver-se de duas maneiras totalmente diferentes. Nas espécies aparentadas as semelhanças são frequentemente o resultado de uma ligeira divergência evolutiva a partir de caracteres ancestrais comuns. Mas noutros casos, sobretudo quando os grupos animais são diferentes, as semelhanças são o resultado de uma convergência por uma adaptação comum a uma função: os padrões específicos de comportamento desenvolvem-se neste caso de maneira convergente. No primeiro caso, as semelhanças (homologias) indicam uma origem comum, enquanto no segundo caso são superficiais (analogias). Tinbergen refere outras dificuldades com as quais se confronta o estudo comparado do comportamento animal e humano, em especial a terminologia, mas quando isola os traços típicos do comportamento humano, tais como por exemplo a aptidão para a cultura, a aptidão para aprender, a capacidade de raciocínio, a linguagem, o sentido da beleza, a ética e a religião, fá-lo de modo a compreender a herança animal do homem, dando exemplos de comportamentos animais que anunciam desde logo esses mesmos traços humanos. Aquilo que parece ser especificamente humano - o comportamento novo - já se encontra pré-figurado e elaborado de algum modo na cadeia da evolução filogenética, diminuindo assim a distância entre o animal e o homem. Lorenz utilizou repetidas vezes este argumento: «Se dizemos: o homem é um mamífero e, muito especialmente, um antropóide, temos razão. Mas se dissermos: o homem na realidade não é mais do que um mamífero, estamos a blasfemar». A etologia humana, cujo programa foi traçado nessa conferência de Tinbergen, rejeita o reducionismo ontológico, de resto já acusado de ser totalmente falso por Julian Huxley que forjou o conceito de evolução psico-social - a evolução cultural de Lorenz e Tinbergen - para explicar as mudanças adquiridas através da experiência individual e transmitidas à geração seguinte por tradição.

O objectivo deste estudo é aflorar alguns aspectos da controvérsia etológica em torno da agressão. Os livros que foram alvo dos ataques brutais dos auto-intitulados humanistas foram os seguintes: A Agressão: Uma história natural do mal de Konrad Lorenz (1963), O Imperativo Territorial, O Contrato Social e African Genesis de Robert Ardrey (1966, 1970, 1961), Adventures with the Missing Link de Raymond A. Dart (1959), O Zoo Humano e O Macaco Nu de Desmond Morris (1969, 1967), A Agressividade Humana e A Destrutividade Humana de Anthony Storr (1968, 1972), e Sobre a guerra e a paz nos animais e no homem de Nico Tinbergen (1968). Estas obras são de valor científico desigual e, por isso, colocá-las ao mesmo nível é intelectualmente desonesto: as obras de divulgação de Ardrey e Morris, escritas numa linguagem jornalística, são «inferiores» - em termos científicos - às obras dos restantes autores que divulgam os resultados da sua própria prática científica. Os detractores da etologia humana - mais tarde desenvolvida por Irenäus Eibl-Eibesfeldt - usaram essa estratégia retórica para atribuir a todos os autores referidos a mesma concepção da natureza humana, a do homem como assassino. Ora, esta noção foi explicitada por Ardrey a partir dos trabalhos de Dart: «Os arquivos da história humana, salpicados de sangue e entranhas destroçadas, desde os testemunhos egípcios e sumérios mais antigos até às atrocidades da Segunda Guerra Mundial, coincidem com o universal canibalismo primitivo, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou os seus equivalentes nas religiões formalizadas, com os costumes estendidos por todo o mundo de arrancar o couro cabeludo, caçar cabeças, mutilar corpos e demais actos necrófilos da humanidade, coincidem, repetimos, em proclamar essa comum paixão sanguinária, esse hábito predador, essa marca de Caim que separa dieteticamente o homem dos seus antropóides afins e o alia melhor com os mais letais carnívoros». Ardrey expressou esta ideia com mais simplicidade dizendo que «o ser humano, nos aspectos mais fundamentais da sua alma e do seu corpo, é ainda hoje a última palavra da natureza enquanto predadores armados, e a história humana deve ler-se em tais termos». O homem emergiu do fundo antropóide por uma única razão: «porque era um assassino». Hoje, graças aos trabalhos de campo de Jane Goodall sobre os chimpanzés na Tanzânia, sabemos que o "fundo antropóide" do qual emergiu o homem não é tão inocente como julgava Ardrey: os chimpazés organizam caçadas de membros de outros grupos de primatas e da própria espécie, matam-nos e comem a sua carne. Entre os primatas, não são apenas os homens que são filhos de Caim: os nossos "irmãos menores", os chimpanzés, também são filhos de Caim. Trata-se de um modelo de antropogénese que foi desenvolvido por S. L. Washburn & Ruth Moore (1980) na sua obra Ape into Human: A study of Human Evolution, e por S. L. Washburn & C. Lancaster (1968) no artigo The evolution of hunting, bem como por outros primatólogos (Claud A. Bramblett, 1976; Craig B. Stanford, 1999) e antropólogos (Lionel Tiger & Robin Fox, 1971), cuja ideia fulcral é a seguinte: «Somos filhos de Caim. A união do cérebro grande e do sistema carnívoro produziu o homem como possibilidade genética» (Ardrey). Eibl-Eibesfeldt (1970) escreveu um livro, Amor e Ódio, para combater a perspectiva de Dart e Ardrey, segundo a qual o modo de vida predador foi a condição necessária para a evolução da agressividade no seio da espécie humana, de modo a demonstrar que o conceito de assembleia dos instintos de Lorenz não permite a redução de tudo ao instinto de agressividade. O que Eibl-Eibesfeldt parece não ter compreendido é que o modo de vida carnívoro desempenhou um papel importante na antropogénese. Os modelos de antropogénese de Lorenz e de Dart-Ardrey são diferentes, mas não são incompatíveis. Infelizmente, Eibl-Eibesfeldt que escreveu importantes obras sobre etologia humana nunca deu especial destaque nelas à antropogénese, uma das grandes preocupações do seu mestre. Lorenz esboçou o seu modelo de antropogénese em diálogo com a antropologia filosófica, em especial com a abordagem antropobiológica de Arnold Gehlen, em dois importantes estudos: O Todo e a Parte na sociedade animal e humana (1950) e Psicologia e Filogénese (1954). No entanto, tanto quanto me lembro, o conceito de mentalidade de carnívoro, retomado de Dart, a propósito dos australopitecos, só aparece reavaliado na sua opus magnum que é A Agressão, cujos últimos três capítulos são dedicados exclusivamente ao estudo biológico do comportamento agressivo do homem. Lorenz comete o erro de pensar que os carnívoros profissionais desenvolveram mecanismos de inibição da agressividade intra-específica que os impedem de matar membros da sua própria espécie: a sociobiologia dos leões demonstrou que eles são capazes de matar os seus rivais e os seus descendentes menores no seu próprio meio natural. A teoria da natureza humana de Lorenz é deveras complicada para ser exposta aqui, tendo sofrido diversas remodelações e aperfeiçoamentos ao longo da sua vida intelectual.

O que estava em causa neste debate entre etólogos e "cientistas sociais" - entre os quais destaco Ashley Montagu (The Nature of Human Aggression, 1976) e Erich Fromm (Anatomia da Destrutividade Humana, 1973) - era saber se a agressão é inata ou adquirida. A teoria da agressão de Lorenz assenta em dois pilares fundamentais: o conceito hidráulico de agressão e a ideia de que a agressão está ao serviço da vida. Ninguém pode duvidar seriamente do carácter instintivo da agressividade humana: o homem não aprende o comportamento agressivo, como sugere Montagu; o homem é, por natureza, um ser agressivo, capaz de matar não só os outros animais (agressividade interespecífica) como também os seus congéneres (agressividade intra-específica), tanto os do seu grupo (agressividade intragrupal) como os dos outros grupos estranhos (agressividade intergrupal). Li A Agressão de Lorenz pouco depois de ter entrado no curso de Medicina, e, logo nessa altura, constatei que estava diante da obra-prima da literatura etológica, que fez estremecer os débeis alicerces das ciências sociais, em particular da psicologia behaviorista americana. É de todas as obras de Lorenz aquela que avança no caminho certo para integrar as ciências sociais, de orientação filosófica, no seio das ciências naturais, mediante um conceito que, sendo usado pelos dois campos disciplinares, permite unificá-los: o conceito de ritualização que Julian Huxley utilizou pela primeira vez, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando realizava os seus estudos pioneiros sobre o comportamento do mergulhão de crista, para designar certos modos de movimento que perderam no decurso da filogénese a sua função primitiva para se tornarem cerimónias puramente simbólicas. Graças a este conceito, no seu duplo sentido de ritualização filogenética e de ritualização cultural, Lorenz não só estabeleceu uma analogia produtiva entre a evolução biológica, cujos grandes construtores são a mutação e a selecção natural, e a evolução cultural, como também esboçou uma teoria natural da cultura e da sociedade - Lorenz distingue quatro grandes sistemas sociais: o bando anónimo, livre de qualquer agressividade, mas cujos membros não se conhecem individualmente e não mostram qualquer solidariedade social (1); a vida social e familiar das garças-gorazes e de outras aves que fazem ninho em colónias, vida inteiramente fundada na estrutura local do território a defender (2); a superfamília dos ratos, cujos membros se não reconhecem enquanto indivíduos mas pelo seu cheiro tribal, de tal modo que o seu comportamento social para com os membros da própria tribo é exemplar, enquanto combatem com ódio e persistência os congéneres que pertencem a outra tribo (3); e as sociedades, cujos membros não se combatem nem ferem mutuamente, porque há, entre indivíduos, laços de amizade e de amor que a isso se opõem (4) - que permite pensar o seu confronto perigoso com a «biologia». Eibl-Eibesfeldt, W. John Smith e Wolfgang Wickler deram contributos importantes no domínio das ritualizações, mas uma das obras mais interessantes é a de Pietro Scarduelli que compara os sistemas rituais humanos a partir da sua base filogenética. Apercebendo-se da ameaça que a etologia representava para o domínio dos letrados nas ciências sociais, cujo paradigma mais não é do que a teoria ambientalista, como lhe chama Eibl-Eibesfeldt, Fromm lamentou o facto de Lorenz ter escolhido como seu herói Darwin: «Para Lorenz, e para muitos outros, a ideia de evolução tornou-se a essência de todo um sistema de orientação e de devoção. Darwin tinha revelado a verdade derradeira quanto à origem do homem; todos os fenómenos humanos que pudessem ser explicados e abordados por considerações económicas, religiosas, éticas ou políticas tinham de ser entendidos do ponto de vista da evolução. Essa atitude quase religiosa em relação ao darwinismo é evidente no emprego que Lorenz faz da expressão "os grandes construtores", referindo-se à selecção e à mutação. Fala dos métodos e dos objectivos dos "grandes construtores" de modo muito parecido com a maneira como um cristão falaria dos actos de Deus. Emprega até mesmo o singular, o "grande construtor", chegando, dessa forma, mais perto da analogia com o conceito de Deus». Aqui está um exemplo da estratégia retórica seguida pelos detractores da etologia: acusar a qualidade idolatra do pensamento do seu fundador, em vez de discutir a própria teoria da agressão de uma forma séria e objectiva. E o mais engraçado é verificar que acusam Lorenz daquilo que eles próprios não conseguem explicar, em função da teoria do meio ambiente, que Lorenz demoliu em poucas frases: «Julgavam eles que as crianças a quem se poupasse todas as frustrações e a quem se fizesse sempre a vontade seriam menos neuróticas, mais bem adaptadas ao seu meio social e sobretudo menos agressivas. Mas um método de educação americano fundado nesta hipótese limitou-se apenas a mostrar que a pulsão agressiva, como muitos outros instintos, surge "espontaneamente" do coração do homem; o resultado desse método de educação foram crianças insuportáveis, insolentes e tudo menos não agressivas. O lado trágico desta tragicomédia revelou-se quando, depois de grandes, essas crianças abandonaram a família e se encontraram, já não frente a pais indulgentes, mas à opinião pública impiedosa, por exemplo ao entrarem para as universidades. Alguns psicanalistas americanos contaram-me que, sob a pressão de uma integração social duramente conquistada, muitos desses jovens se tornaram realmente neuróticos». Com o carácter espontâneo da agressividade encontramo-nos já no âmbito do conceito hidráulico de agressão, um dos pilares da teoria de Lorenz: «A ideia totalmente errada de que o comportamento animal e humano é, em primeiro lugar, reactivo e, portanto, mesmo que contenha também certos elementos inatos, modificável pela aprendizagem, é uma ideia que tem raízes profundas, difíceis de extirpar, no nosso conhecimento defeituoso dos princípios democráticos. Esses princípios, válidos em si mesmos, impedem-nos de admitir que os seres humanos não nasceram todos iguais e que nem todos têm idênticas probabilidades de se tornar cidadãos ideais. Além disso, durante vários decénios, a reacção, o "reflexo", é o único factor de comportamento que os psicólogos sérios estudaram, ao passo que abandonavam tudo o que é "espontaneidade" do comportamento aos vitalistas e à sua interpretação sempre um tanto mística da natureza». Para Lorenz, a agressividade humana é um instinto alimentado por uma fonte de fluxo ininterrupto de energia, e não - como pensam os amigos do reflexo - o resultado de uma reacção a estímulos externos, susceptível de ser modificada pela aprendizagem: Adrian, Paul Weiss, K. Roeder e sobretudo E. von Holst «revelaram-nos que o sistema nervoso central não precisa, para responder, de esperar pelos estímulos, tal como uma campainha precisa que lhe carreguem no botão. Ele pode produzir por si próprio os estímulos, o que na verdade dá uma explicação natural fisiológica do comportamento espontâneo dos animais e dos seres humanos». A energia específica destinada ao acto agressivo acumula-se continuamente nos centros nervosos responsáveis por este padrão de comportamento. Quando se acumula energia suficiente, de modo a aumentar a prontidão para a sua descarga, pode ocorrer um disparo, mesmo sem a presença de um estímulo externo. As experiências com casais de pombos realizadas por Wallace Craig «mostram que quando um comportamento instintivo - neste caso a dança de amor - é interrompido durante um tempo prolongado, o limiar dos estímulos que o provocam diminui. É um facto tão geral e que se produz com tal regularidade que a sabedoria popular o exprime dizendo: "À falta de melhor, come-se do que há". (...) A diminuição do limiar dos estímulos pode, em certos casos, aproximar-se de zero, ou seja, o movimento instintivo em questão pode iniciar-se sem ter havido qualquer estímulo exterior». Geralmente, o animal e o homem encontram estímulos que libertam a energia contida e recalcada do impulso, sem terem de aguardar passivamente pelo aparecimento dos estímulos adequados que o provocam. Eles procuram e até podem produzir os estímulos que libertam a energia armazenada, mediante o comportamento apetitivo (W. Craig): «O recalcamento de um movimento instintivo, produzido pela supressão durante tempo prolongado dos estímulos que o determinam, não tem apenas como resultado tornar o organismo mais pronto a reagir, mas provoca transformações muito profundas que o afectam no seu conjunto. Em princípio, todo o verdadeiro movimento instintivo a que se recusa a possibilidade de ab-reacção, tal como acabamos de descrever, pode ter como efeito pôr o animal num estado de agitação e fazê-lo procurar estímulos aptos a provocá-la». Assim, quando não encontram nenhum estímulo externo, a energia do impulso agressivo acaba por explodir, sendo posta em acção in vacuo, sem estimulação externa demonstrável (actividade no vazio). A agressão é, antes de tudo, uma excitação elaborada internamente que procura ser libertada sob a forma de um acto motor, independentemente da adequação dos estímulos externos: «O que dissemos basta já para fazer compreender que o recalcamento da agressão se torna tanto mais perigoso quanto mais intimamente os membros do grupo se conhecem, e quanto mais se compreendem e gostam uns dos outros. Posso confirmar por experiência que, em tal situação, todos os estímulos que podem desencadear a agressão e o comportamento combativo intra-específico sofrem um forte abaixamento do seu limiar. Coisa que se exprime subjectivamente pelo facto de se reagir contra os pequenos movimentos dos melhores amigos, o seu pigarro ou a maneira de se assoarem, como se se tivesse recebido uma bofetada dum brutamontes bêbedo. Entender o mecanismo fisiológico deste fenómeno extremamente penoso impede-nos de assassinarmos o nosso amigo, mas não minora o nosso sofrimento. A única solução para uma pessoa razoável é, no fundo, abandonar pé ante pé a barraca e, dirigindo-se a qualquer objecto, fazê-lo voar em estilhas com o maior barulho possível. Isto ajuda sempre um bocado e é aquilo a que se chama, na linguagem da fisiologia do comportamento, redirected activity, segundo Tinbergen». O modelo psico-hidráulico de Lorenz (1950) é uma construção teórica brilhante que nos permite explicar os comportamentos instintivos, entendidos como padrões específicos, estereotipados e herdados de comportamento. Lorenz (1981) reformulou-o mais tarde quando escreveu a sua grande síntese etológica, Os Fundamentos da Etologia, articulando-o com os modelos hierárquicos, para se aproximar do parlamento dos instintos, mas nunca ninguém - incluindo Thorpe (1956) - conseguiu traduzi-lo em linguagem neuronal adequada à neurobiologia (Cf. Gordon M. Shepherd, 1983; K. Roeder, 1955; Erich von Holst, 1969-70). O carácter a-fisiológico do modelo justifica-se pelo facto dele não implicar a existência de depósitos de líquido no sistema nervoso central: o seu objectivo era apenas fornecer uma maneira conveniente de descrever as propriedades gerais que deve ter o verdadeiro mecanismo neural, o qual já pode ser interpretado em termos aceitáveis pela actual neurofisiologia do sistema nervoso central. D. S. Lehrman (1953), R. A. Hinde (1970) e, em menor grau, Peter H. Klopfer (1985) criticaram a teoria do instinto de Lorenz e Tinbergen, desvirtuando o sentido dos conceitos e da sua relação estrutural no seio do sistema teórico: o primeiro procurando mostrar que o comportamento não pode ser separado em componentes inatos e aprendidos, distintos um do outro, de modo a rejeitar completamente a ideia de um comportamento inato, inscrito no genoma e não afectado por quaisquer factores ambientais; o segundo movendo um ataque contra os conceitos de accionador e de energia, de modo a rejeitar a ideia de comportamento instintivo, com os seus componentes congénito e accionado internamente; e o terceiro deslocando a etologia para o campo da ecologia do comportamento. No entanto, apesar destas críticas, Lorenz e Tinbergen não alteraram substancialmente a sua teoria.

O conceito hidráulico da agressão diz respeito ao mecanismo (causal) através do qual se produz a agressão: falta agora analisar o carácter adaptativo dos comportamentos agressivos: «Na natureza, a guerra está omnipresente. Os comportamentos e as armas ofensivas ou defensivas postas ao seu serviço atingiram tal perfeição que parece natural atribuí-los à pressão da selecção natural, agindo no interesse da espécie». A agressão está ao serviço da sobrevivência do indivíduo e da espécie: a agressividade que se manifesta por comportamentos programados geneticamente aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio, com a atitude belicosa do adversário, com a provocação de percepções dolorosas e com a época do cio. A agressão intra-específica favorece a sobrevivência da espécie de três modos, as suas três funções: «a repartição de seres vivos semelhantes no espaço vital disponível, a selecção efectuada pelos combates entre rivais e a defesa da prole». Na época do acasalamento, a agressividade incrementa-se e leva a que sejam os machos mais fortes a procriar, transmitindo-se assim aos descendentes as melhores variações qualitativas da espécie. A agressividade que aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio e que diminui com o seu afastamento, estimula a distribuição territorial e impede a superpopulação de um espaço reduzido, a qual - a densidade demográfica elevada - constitui um factor desencadeante de stress que prejudica as qualidades individuais. Quando despertada por percepções dolorosas, a agressividade fomenta a defesa contra agentes agressores passíveis de causarem danos consideráveis. Reduzindo-se ou anulando-se com a submissão do adversário, a agressividade não provoca destruições maciças nos indivíduos mais fracos das diversas espécies animais. Além disso, a agressão intra-específica permite estabelecer uma ordem social hierárquica que atenua os seus efeitos lesivos. A agressão assume esta função de conservação da espécie tanto mais efectivamente quanto mais a agressão mortal foi transformada em comportamentos, tais como ameaças simbólicas, rituais e comportamentos de submissão ou de apaziguamento, que preenchem a mesma função sem danificar a espécie ou mesmo sem a levar à auto-destruição. Pierre Karli (1987) procura desembaraçar-se das ideias de Lorenz tentando sublinhar algumas ambiguidades, contradições e lacunas que motivam a tomada de posição de Lorenz, duas das quais seriam a sua noção de comportamento agressivo e a confusão entre a função da agressão e a função da pulsão agressiva. Não vale a pena mostrar que a confusão não reside na obra de Lorenz, mas sim na obra do próprio Karli. Lorenz define a agressividade como sendo o instinto de combate do animal e do homem - o comportamento de rivalidade - dirigido contra os seus próprios congéneres. A agressão intra-específica está no centro da obra de Lorenz: os grandes arquitectos da evolução criaram mecanismos fisiológicos de comportamento, cuja função é impedir que os indivíduos da mesma espécie se lesem ou se matem uns aos outros. A solução mais engenhosa inventada pela evolução foi canalizar a agressão para vias mais inofensivas, através da reorientação do ataque graças ao processo de ritualização. A vinculação social que se desenvolveu sobre a base do comportamento de intimidação desvia a agressividade, sem no entanto a extinguir. Nas espécies armadas, a agressividade teria conduzido à sua destruição se não fosse o desenvolvimento de programas instintivos, as inibições instintivas, cujos mecanismos desencadeadores inatos se localizam no sistema nervoso central, que impedem a concretização da destruição da espécie. Geralmente, as lutas entre machos armados - meros combates rituais - não acabam com a morte do adversário, mas com uma atitude simbólica de derrota, anunciada por determinados gestos de submissão ou de humilhação. Ora, as espécies não armadas, como é o nosso caso, não desenvolveram inibições contra matar. É nesta passagem da agressão animal à agressão humana que a tese de Lorenz adquire toda a sua pertinência: «É a espontaneidade do instinto que o torna tão perigoso», sobretudo quando a sociedade não dá oportunidades - válvulas de escape - ao homem para descarregar a sua agressividade, a não ser talvez o futebol. A inteligência do homem - o ser desprovido de armas naturais - inventou armas mortíferas, desde os machados de pedra lascada dos tempos mais remotos até ao arsenal bélico sofisticado de hoje: a bomba H como expressão inteligente do instinto agressivo! Com a fabricação de armas, utilizadas nas guerras intertribais, a agressividade humana tornou-se maligna ou, se preferirem, patológica: os três últimos capítulos da obra de Lorenz são dedicados ao homem enquanto ser-em-perigo (Gehlen), isto é, enquanto ser ameaçado pelo perigo do fratricídio generalizado: «A única esperança está em que os actos especificamente humanos do pensamento racional e da moral responsável derivada dele possam salvar a Humanidade». Mas a reavaliação da sua teoria da agressividade humana implica levar em conta pelo menos dois outros estudos, Sobre o acto de matar o semelhante (1955) e Agressividade: Propriedade tendente à conservação da espécie ou fenómeno patológico? (1977), onde Lorenz afina a sua teoria da história natural da agressão, fazendo emergir os instintos sociais, resultantes do processo de ritualização, e estabelecendo novos princípios. A extensão deste estudo preparatório não permite levar a cabo essa reavaliação: a construção de Lorenz é extremamente complexa, englobando todos os aspectos das interacções sociais e repousando sobre a existência de uma pulsão agressiva geneticamente programada. Estou convencido de que podemos melhorar substancialmente a teoria de Lorenz, mas sem descartar os seus postulados fundamentais. Ler A Agressão é um bom título para um ensaio alargado sobre a teoria da agressão de Lorenz.

J Francisco Saraiva de Sousa