quinta-feira, 29 de março de 2012

Congratulations Porto


... For European Best Destination 2012 Awards!

O Porto cativa e encanta o mundo. Viva o Porto, capital do mundo! Mais uma razão para lutarmos pela nossa independência e para nos libertarmos do estigma de ser português! Afinal, somos portuenses, cidadãos da Cidade-Estado chamada Porto! O Porto é a nossa pátria!

quarta-feira, 28 de março de 2012

A Gazeta Literária: o Primeiro Periódico Literário Português

Porto: Rua de Santa Catarina
«Pregador era a maneira antiga de ser jornalista, como jornalista é a maneira moderna de ser pregador». (Sampaio Bruno, Portuenses Ilustres)

O jornal mais importante da época pombalina foi a Gazeta Litteraria, publicada no Porto entre Julho de 1761 e Julho de 1762. Segundo Silva Pereira, trata-se do «periódico que verdadeiramente iniciou o jornalismo literário em Portugal. Antes dela, como periódicos literários, só se haviam publicado O Anónimo (Lisboa, 1752) e O Oculto Instruído (Lisboa, 1756)». A Gazeta Literária era redigida por Francisco Bernardo de Lima, considerado o primeiro folhetinista e o primeiro crítico teatral português. O Padre Bernardo de Lima foi, sem dúvida, a figura mais representativa do Iluminismo na imprensa periódica portuguesa, tendo assumido a missão de manter o público culto português ao corrente das principais obras sobre literatura, artes e ciência publicadas então na Europa, de que faz críticas inteligentes e bem informadas. O Discurso Preliminar que antecede o primeiro número da Gazeta Literária assume claramente essa missão de divulgar entre nós as obras sobre literatura, artes e ciências publicadas na Europa Civilizada: «O gosto das artes e ciências que neste século se tem felizmente propagado por todas as nações civilizadas produz tal variedade de novas ideias e de composições igualmente sólidas e frívolas que parece impossível conhecer ainda imperfeitamente todos os assuntos de que tratam ou ainda fazer juízo sem uma notícia regular e metódica daquelas, cujos Autores aspiram ao sublime lustre da reputação literária e querem na República das letras um lugar distinto dos escritores vulgares». Como se sabe, o movimento periodístico português reduz-se, pelo menos até ao último quartel do século XIX, quase exclusivamente a Lisboa e ao Porto: a vantagem quantitativa de Lisboa é ultrapassada pela vantagem qualitativa do Porto. A Gazeta Literária preparou o terreno para a emergência da esfera pública literária em Portugal, a qual irá ser ampliada pela revolução liberal de 1820. A partir de 1820 o Porto será o berço de numerosas revistas literárias - sobretudo revistas de poesia - que escreveram as linhas gerais da nossa história da literatura, da política e do pensamento. Infelizmente, não temos ao nosso dispor análises de conteúdo, quantitativas ou qualitativas, dos principais periódicos portugueses. As histórias da imprensa disponíveis não nos fornecem essas análises tão necessárias para avaliar a qualidade da imprensa portuguesa e o seu impacto sobre a formação de um público culto. Entretanto, convém dizer que o desenvolvimento da imprensa portuguesa não se atrasou significativamente em relação ao desenvolvimento da imprensa europeia, como defende José Tengarrinha: as invasões francesas deram-nos dois periódicos importantes, em termos de luta contra o absolutismo, o Diário do Porto e a Gazeta de Lisboa, e, muito antes disso, o domínio filipino já nos tinha tentado colonizar mentalmente através das folhas noticiosas, como testemunham pouco mais tarde as Gazetas da Restauração. A primeira grande reflexão sobre o jornalismo deve-se talvez a Alexandre Herculano que, num artigo penetrante publicado em O Panorama (nº. 48, de 31 de Março de 1838), escreveu: «Era preciso animar o povo depois daquela ousada tentativa; convinha narrar-lhe as vantagens alcançadas contra a Espanha, bem como as dificuldades em que se via envolvida aquela monarquia, e até exagerá-las; e porventura o Governo não achou meio nenhum mais azado a seus intentos do que lançar mão das gazetas, invento que, como vimos, era já conhecido em outros países da Europa». 

Bibliografia antiquíssima sobre a Imprensa Portuense:

  • António Rodrigues Sampaio: Homenagem Prestada à Sua Memória pela Imprensa do Porto (1882). Porto: Real Tipografia Lusitana.
  • Aranha, Brito (1898). A Imprensa em Portugal nos séculos XV e XVI. Lisboa: Imprensa Nacional.
  • Bruno, Sampaio (1906). Os Modernos Publicistas Portugueses. Porto: Livraria Chardron, Lello & Irmão Editores.
  • Carregal, Joaquim da Costa (1940). Gutenberg e a Civilização. Porto: Imprensa Moderna.
  • Carqueja, Bento (1893). A Liberdade de Imprensa. Porto: "O Comércio do Porto".
  • Carqueja, Bento (1924). O Comércio do Porto: Notas para a sua História. Porto: "O Comércio do Porto". (Escrevi muitos artigos de juventude tanto em O Comércio do Porto como em O Primeiro de Janeiro. Por causa da imbecilidade de um velho socialista, nunca cheguei a publicar no Jornal de Notícias.)
  • Cunha, Alfredo da (1925). Camilo Castelo Branco, Jornalista. Lisboa: Ventura Abrantes.
  • Cunha, Alfredo da (1941). Elementos para a História da Imprensa Periódica Portuguesa (1641-1821). Lisboa: Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, t. VI.
  • Freire, João Paulo (1936). Escolas do Jornalismo. Porto: Ed. Nacional.
  • Gomes, Luís F. (1925). Jornalistas do Porto e a sua Associação. Porto.
  • Guimarães, Luís José de Pina (1945). Isagoge Histórica do Jornalismo Médico. Porto: Costa Carregal.
  • Herculano, Alexandre (1838). «Gazetas, Origens das gazetas em Portugal». In O Panorama, 48.
  • Lacerda, Augusto de (1904). A Irradiação do Pensamento. Porto: Bodas de Oiro de "O Comércio do Porto".
  • Olinto, António (1955). Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
  • Pereira, Augusto Xavier da Silva (1891). «Os primeiros jornais que se apregoaram pelas ruas». In A Imprensa, 71.
  • Pereira, Augusto Xavier da Silva (1896). O Jornalismo Português. Lisboa
  • Pina, Luís de (1949). Um Pioneiro Portuense do Jornalismo Médico Português. Porto: "O Tripeiro".
  • Salgado, Joaquim (1945). Virtudes e Malefícios da Imprensa. Porto: Portucalense Editora.

Nota: Em vez da publicação de obras actuais de escasso valor científico, as editoras portuguesas deviam reeditar as obras clássicas em português actualizado. Ninguém quer ler obras medíocres escritas por alucinados que não sabem pensar em função de matrizes teóricas consagradas. O ensino pós-25 de Abril mergulhou Portugal na bancarrota mental e cognitiva: o que temos hoje são burros diplomados

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 27 de março de 2012

Prós e Contras: O Ânimo da Nação

Porto ao anoitecer
Não pretendo comentar o debate Prós e Contras de ontem (26 de Março), mas, desta vez, Fátima Campos Ferreira dispensou a presença envelhecida das figuras tutelares dos seus debates e convidou novas figuras da sociedade civil para debater o estado de espírito dos portugueses, sujeito - como está! - às chicotadas permanentes do Ministro das Finanças e da EDP. A pergunta que interroga pelo estado de espírito dos portugueses neste tempo sombrio de crise é puramente retórica. Depois de pagar todas as suas contas mensais, sobretudo a renda ou prestação de casa e as contas da electricidade, do gás e da água, o espírito dos portugueses não pode presentear a alma com ânimo. Neste momento, a alma e o espírito dos portugueses estão divorciados: o espírito não dá ânimo à alma e a alma não alimenta o espírito. Os portugueses não estão preparados para fazer a longa travessia, porque o seu espírito já não é capaz de abrir caminhos, de os iluminar e de pôr a alma a caminho. (A Irmã Fátima, uma das convidadas que encantou Herman José, o humorista que cultiva os "melhores grelos da margem sul", falou de espiritualidade, dando ao espírito o sentido espiritual de pneuma (grego) e de spiritus (latim). Mas o espírito de que falo aqui - mais inspirado no ruah (hebraico) - é a chama do entusiasmo que inflama e que nos caça e nos extasia, lançando-nos, a cada um de nós, para fora de si mesmo. O resgate do espírito do jazigo do esquecimento implica a elaboração de uma pneumatologia filosófica, capaz de transcender o velho dualismo ocidental: o Espírito, esse sopro de vida que habita o mundo, em toda a sua espessura carnal e material, leva os homens a lutar contra a opressão e a iniciar uma vida nova, fazendo deles sujeitos activos dessa vida nova, em comunhão com a natureza e a história resgatadas.) Sem chama que o inflama, o espírito dos portugueses já nem sequer é capaz de sentir a dor que dilacera: ele está morto! Passos Coelho, o Ministro das Finanças e a EDP mataram-no! O Congresso do PSD limitou-se a reafirmar a morte de Portugal, cujo anoitecer já não promete uma nova aurora. Portugal é noite, não noite azul mas noite escura!

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de março de 2012

O Diário do Porto: o Primeiro Periódico Português

Porto: Ponte D. Luís I
Alfredo da Cunha e Augusto Xavier da Silva Pereira afirmam ser o Diário do Porto o primeiro periódico a circular em Portugal: o seu primeiro número saiu, na cidade do Porto, a 5 de Abril de 1809, «com permissão e aprovação do governo». Rocha Martins caracteriza-o como «obra infame e infecta dum português alacaiado, dos que estão sempre prontos a rastejar, um daqueles "homens de viva quem vence"». O Diário do Porto era a folha oficial do invasor francês, que encarnava o espírito da liberdade contra o absolutismo régio. No seu primeiro número, tece grandes louvores ao marechal Soult, a quem chama «herói em cujo coração se disputam a primazia, o valor e a humanidade», e noticia abundantemente os avanços e vitórias do exército francês. (O Porto também teve o seu período francês, que, apesar de tudo, não durou muito tempo, porque os portuenses souberam organizar-se contra Junot e expulsar os franceses da cidade.) A colecção da Biblioteca Nacional de Lisboa compreende apenas cinco números, datando o último de 6 de Maio de 1809. José Tengarrinha, cuja História da Imprensa Periódica Portuguesa admiro, contesta sem razão a tese defendida por Alfredo da Cunha, alegando que o primeiro periódico português publicado diariamente foi o Diário Lisbonense, fundado por Estêvão Brocard, cujo primeiro número apareceu a 1 de Maio de 1809. Esta polémica não faz grande sentido, porque estamos diante dos dois primeiros periódicos portugueses, sendo o Diário do Porto quase um mês anterior ao Diário Lisbonense. O que importa destacar é que, em matéria de imprensa, Portugal e as suas colónias - incluindo o Brasil que, no período histórico que me interessa, ainda era uma colónia portuguesa - acompanharam sempre o movimento da imprensa mundial, sem nenhum tipo de atraso. Em Portugal, formou-se efectivamente uma esfera pública, política e literária, polarizada e «disputada» entre o Porto e Lisboa, para já não falar dos outros pólos ultramarinos, como por exemplo Rio de Janeiro (Brasil), Goa (Índia), Lourenço Marques (Moçambique) e Luanda (Angola). (O período áureo da esfera pública portuense vai dos finais do século XVII até meados do século XX: o Porto Oitocentista é o momento mais glorioso da esfera pública portuense.) Hoje vivemos o período de decadência dessa esfera pública, o período da sua refeudalização política. Associo esta corrupção da esfera pública à profissionalização do jornalismo e, no caso português, ao centralismo cavaquista que empobreceu dramaticamente Portugal: o jornalismo manipulador sepultou o jornalismo crítico. A perda da função crítica foi fatal para a esfera pública em todos os cantos do mundo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 24 de março de 2012

O Mal de Portugal

Porto: Rua da Reboleira
O descobrimento do mal - o mal existe! - marcou toda a filosofia de Sampaio Bruno, cuja peça-chave é a dialéctica do bem e do mal. Raul Brandão que o acompanhava nas suas deambulações filosóficas pelas ruas nocturnas do Porto, provavelmente à luz do óleo ou do gás, reteve estas palavras suas que nunca mais esqueceu:

Sampaio Bruno: «- Escusam de procurar... a nossa ruína não vem dos políticos nem do regime. Mudaremos o regime e ficaremos na mesma. O mal é mais profundo; o mal é da raça.»

Um dos amigos: «- A raça? Mas com esta raça descobrimos o mundo! ...»

Sampaio Bruno: «O mal é da raça. Se quisermos modificar o País, temos de fazer exactamente o mesmo que se faz com os cavalos, temos de mandar vir homens do norte, ingleses, escandinavos ou suecos, e de montar aqui e além postos de cobrição.» (Raul Brandão, Vale de Josafat)

Ironia portuense? Não sabemos se Sampaio Bruno proferiu estas palavras que lhe foram atribuídas por Raul Brandão, mas elas convencem os espíritos esclarecidos: o mal de Portugal são os portugueses! Infelizmente, esta é a grande verdade: Sem renovação genética - e sem uma revolução radical que liquide as pseudo-elites nacionais - Portugal não tem futuro! Afinal, quem de perfeito juízo quer jogar golfe com os "cagalhotos entalados" que dão rosto às elites portuguesas do poder? Pena não existirem anacondas gigantes a sair dos buracos para os devorarem! Malditos ladrões que nem sequer os répteis os conseguem digerir!

J Francisco Saraiva de Sousa

Borges: Esse Ofício do Verso

Porto: Ponte da Arrábida
Mergulhei completamente no meu projecto estético dos Quadros Portuenses: estudo a geografia da doença de António Nobre e, ao mesmo tempo, aproximo Guerra Junqueiro de Sampaio Bruno, cuja intuição fundamental do devir fundamenta todo o seu projecto filosófico. Ontem fui tentado a publicar um texto, António Nobre: a Geografia da Tuberculose, mas a leitura de uma biografia do poeta portuense obrigou-me a adiar a sua publicação. Hoje descobri Sampaio Bruno e António Nobre de "mãos dadas" no exílio em Paris: ambos fizeram a experiência do desterro e, logo depois, já em terras portuguesas, a experiência do exílio. Do Porto disse Sampaio Bruno: «É a melhor terra do mundo para se viver. Nem Paris lhe chega!» É o Porto que ainda me liga a Portugal, porque a minha vontade é ir de vez para a Dinamarca, a Suécia ou qualquer outro país nórdico. E também descobri o desentendimento entre Sampaio Bruno e Ricardo Jorge a propósito da "peste bubónica" do Porto (1899). Doravante, o quadro dominante é o Porto Mental, a capital do pensamento português. Entretanto, nesta minha vinda rápida à blogosfera, descubro este texto do meu amigo Wanderson Lima, cuja leitura recomendo: Borges e a Poesia: Esse Ofício do Verso. Uma análise fina da obra de Borges, Esse Ofício do Verso!

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de março de 2012

António Nobre: Do Porto a Baltimore

Cidade do Porto: Ponte D. Luís I
De Maio a fins de Junho de 1897, António Nobre viajou até à América do Norte, aproveitando a sua paragem pelos Açores para cumprir um voto expresso na sua poesia: visitar o túmulo de Antero de Quental. Nos Estados Unidos, a mesma intenção o levou a Baltimore, em homenagem à poesia de Edgar Poe. Baltimore, a cidade americana onde morreu o poeta admirado nos meios literários do Porto, sugeriu-lhe as quintilhas intituladas Sensações de Baltimore, incluídas na sua obra póstuma Despedidas: «Meu caro Antero de Figueiredo, como post-scriptum à minha última carta, envio-lhe esse belo magazine, Bookman, onde desde já poderá ir estudando feições da sua Revista. Tanto mais que ela publica neste número um estudo sobre Edgar Poe, acompanhado desses retratos, que muito lhe deve interessar. Cheguei, há pouco, aqui procedente de Baltimore onde fui visitar o túmulo do pobre Allan, do "Corvo". Também vi um convento de Pretos. Adeus» (Filadélfia, sábado, 29 de Maio de 1897). Hoje estive a estudar a cartografia de António Nobre. Das cidades que conheceu a que mais amou foi a sua terra natal, a cidade do Porto, que ele canta a partir da Foz e dos Rios Douro e Leça: «Tu não gostas de Lisboa, dizes. É pour? E daí, é possível que sejas franco. Eu, por mim, só me sinto bem, quando estou no Porto, em minha casa, com a minha família, com os meus amigos. Tenho muitas saudades do Porto...» (Carta de Eduardo Coimbra dirigida a António Nobre, 3 de Abril de 1884). (Lisboa d'O Desejado é uma pedra no meu sapato hermenêutico! Porém, a pedra dissolve-se quando penso que o António é o herói Anrique!) Eis o poema incompleto sobre Baltimore:

«Cidade triste entre as tristes,
Oh Baltimore!
Mal eu diria que na terra existes
Cidade dos Poetas e dos Tristes,
Com teus sinos clamando "Never-more".

«Os comboios relâmpagos voando,
Pela cidade de Baltimore,
Levam uns sinos que de quando em quando
Ferem os ares, o coração magoando,
E os sinos clamam "Never-more, never-more. (...)» (Baltimore, 1897)

E sobre o mar do Porto - da Foz a Leça - retenho este soneto antigo, Ao Mar: António Nobre retém das cidades tudo aquilo que o evoca, como se depreende de uma carta dirigida da Madeira a Antero de Figueiredo, datada de 28 de Junho: «Creia que tenho as maiores saudades do nosso Portugal. Os meus estios, se bem que no Doiro, administrativamente, diante de Deus e do céu estrelado, estão no Minho também. Que saudades dessas fontes, dessas águas! A Madeira é linda, mas falta-me o passado que é tudo em mim, nada me evoca por mais que eu olhe».

«Ó meu amigo Mar, meu companheiro
De infância! dos meus tempos de colégio,
Quando pra vir nadar como um poveiro
Eu gazeava à lição do mestre-régio!

«Recordas-te de mim, do Anto trigueiro?
(O contrário seria um sacrilégio)
Lembras-te ainda desse marinheiro
De boina e de cachimbo? Ó mar, protege-o!

«Que tua mão oceânica me ajude.
Leva-me sempre pelo bom caminho,
Não me faltes nas horas de aflição.

«Dá-me talento e paz, dá-me saúde,
Que um dia eu possa, enfim, poeta velhinho!
Trazer meus netos a beijar-te a mão...»

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de março de 2012

Guerra Junqueiro: Ruínas

Porto: Torreão-Cisterna,
Rua Barão de Nova Sintra
«Eu amo a noite sombria; /Amo as trevas mais que o dia, /Pois consolam na tristeza, /E dão alívio e firmeza /A quem se acolhe ao seu manto. /Ó sombras da noite escura, /Dai-me estrofes de amargura! /Ó noite, inspira meu canto. (...) Eu não tenho quem deplore /A minha morte, ninguém; /Não tenho pai que me chore, /Tão-pouco não tenho mãe. /E depois, que importa ao mundo, /O ser que morre, que vai? /É gota do mar profundo, /E no ar perdido um ai». «O fundo da alma portuguesa, visto com os olhos, é azul e branco». (Guerra Junqueiro)

Guerra Junqueiro teve a infelicidade de nascer em Portugal, o ermo onde o pensamento essencial não germina. Os portugueses são demasiado medíocres para apreciar a sua poesia e o pensamento que se abriga em cada um dos seus poemas. Hoje estive a reler algumas páginas portuguesas dedicadas ao pensamento de Guerra Junqueiro: a crítica que António Sérgio, talvez o mais burro dos portugueses, lhe dirige revela, exemplificando-a, a incapacidade inata dos portugueses para compreender a novidade de uma obra que transcende a mediocridade do horizonte cognitivo nacional. António Sérgio projecta a sua própria estupidez na obra alheia, procurando ridicularizar aquilo que, ele próprio, introduziu furtivamente nela: António Sérgio é, portanto, um projecto que se auto-anula, tropeçando nos seus raciocínios esqueléticos. Porém, os maiores inimigos de Guerra Junqueiro não são tanto os seus adversários declarados mas sobretudo os seus supostos aliados, que o filiam à matriz obscura do pensamento português. Leonardo Coimbra dedicou-lhe uma obra inteira, ou melhor, um conjunto de textos recolhidos em livro. Já escrevi um longo ensaio para libertar o pensamento de Guerra Junqueiro da leitura de Leonardo Coimbra: a chave de leitura que utilizei para elucidar o pensamento essencial de Guerra Junqueiro permitiu-me esboçar um projecto estético e político para a História de Portugal, do qual apenas resta o projecto dos quadros portuenses. Precisava de mais uma vida para realizar o projecto inicial, mas, como não a tenho, preferi substituir Portugal pela Cidade do Porto. Uma suspeita antiga confirmou-se subitamente durante a tarde de hoje: a magia que a palavra "ruínas" desperta em mim não me permitiu ver que, no poema Ruínas de Guerra Junqueiro, há um outro andamento, um outro caminho a percorrer, para o qual a minha filosofia da história tinha vedado o acesso: «A consciência humana é um monte de destroços». Sabia da sua existência, meditei-a longamente, mas foi preciso reformular a minha concepção da história para lhe dar acesso. Na poesia de Guerra Junqueiro, as ruínas adquirem uma extensão conceptual raramente vista num outro poeta, numa articulação fantástica com uma nova concepção de infância: «Oh, que existência doirada /Lá cima, no azul, na glória, /Sem cartilhas, sem tabuada, /Sem mestre e sem palmatória. (...) Como querem que despontem /Os frutos na escola aldeã, /Se o nome do mestre é - Ontem /E o do discíp'lo - Amanhã!» Ou então estes versos: «Vendo esta velhinha, encarquilhada e benta, /Toque, toque, toque, que recordação! /Minha avó ceguinha se me representa... /Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta, /Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!» Eis os dois sonetos desse grande poema:

I

«E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.

Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!...

Ó ciência, minha amante, é sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo...
Nunca o teu lábio conheceu piedade!

Mas caia embora o velho paraíso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.

II

Morreu-me a luz da crença - alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.

A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.

Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herói antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.

A implacável, a rígida ciência
Deixou-me unicamente a Providência,
Mas, deixando-me Deus, deixou-me tudo».

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 18 de março de 2012

Sobre os vampiros do Porto

Fotografia artística de Herb Ritts 
Nesta nossa triste peregrinação pela terra somos actores que desempenhamos papéis que nem sempre resultam da nossa escolha. Por detrás desse emaranhado de papéis, há um eu que não se atreve a revelar-se a si próprio, nem sequer nas páginas mais íntimas de um diário: tudo o que diz ou escreve sobre si próprio não é ele próprio. O eu não se revela a si próprio: mostra-se e oculta-se ao mesmo tempo. A gratuitidade da vida revela-se em cada um dos momentos vividos por esse estranho hóspede da casa do cérebro. Se a vida não fosse gratuita, o cérebro não seria a máquina de fabricar ilusões que de facto é, para suportar esse pesadelo que é a vida. A angústia fundamental que se apodera da nossa alma resulta do carácter gratuito da vida, fazendo dela uma tragédia, da qual nem sequer o dramaturgo mais exímio consegue escapar: a solidão acompanha-o eternamente. Quando saí de uma discoteca do Porto, já na rua, fui interceptado por um vampiro, o vampiro A., que durante vários anos procurou destruir a minha vida. Escrevo estas palavras sob o efeito da febre, provavelmente resultante de uma dentada de vampiro infectado por sangue corrompido. Estou sozinho e tenho toda a madrugada por minha conta, o que nem sempre sucede. Desde que fiquei órfão deixei de ter alguém em quem confiar. E, quando se perde a confiança nas pessoas que nos rodeiam, somos frequentemente assaltados por um pensamento demasiado íntimo: alguns caracterizam-no como o medo de estar completamente só, num mundo que nos é estranho e no qual não podemos intervir, mas não é tanto a solidão que assusta, mas sim a maldade que nos cerca nas silhuetas espectrais dos outros e que, aos poucos, nos estrangula quando menos esperamos: a maldade que nos rouba o sossego e que nos afasta dos caminhos de uma vida não-danificada. Só tomamos consciência da solidão quando perdemos a confiança naquelas silhuetas nocturnas que nos rodeiam por todos os lados. Nesse momento, receamos que nos roubem todos os vestígios da nossa vida. E um único pensamento nos consola quando tememos pela nossa vida: o pensamento da morte, a encenação quase onírica da nossa morte própria e a invocação dos mortos queridos. Com efeito, é deste pensamento ritualmente convocado dia após dia que renascemos novamente para a vida, na esperança de que um dia o carrasco se encarregue da sua própria morte. Adormecemos e, ao amanhecer, começa um novo dia que não sabemos se será melhor do que o dia anterior que findou com o pensamento da morte própria. Não o sabemos de antemão e não adianta consultar o horóscopo ou lançar as cartas do Tarot, para sondar o futuro próximo ou distante: estamos vivos e preparados para lutar contra a adversidade anónima de outrem. Herdei da minha mãe a coragem de ser e do meu pai, a percepção da beleza da natureza. Talvez um dia venha a ter a oportunidade para unificar a minha dupla-herança numa única peça do meu destino. De facto, se há uma lição a tirar do princípio do egoísmo genético, é a de que não podemos viver sem os nossos congéneres numa sociedade, num tempo e num espaço que não escolhemos: a sexualidade condena-nos a essa fatalidade, a fatalidade de viver com quem não queremos viver, a partir do momento em que suspeitamos que a vida não tem sentido. Se a sociedade é forjada por rivalidades, a começar desde logo pelas rivalidades entre irmãos, como pressupõe o princípio do egoísmo genético, então estas rivalidades só podem existir na ambiência do amor e da conexão. Ódio e amor são as duas palavras fundamentais inscritas no genoma humano, donde resulta ser este um permanente campo de batalha. O gene egoísta precisa de outro gene egoísta para atingir o seu propósito básico: fazer uma cópia de si próprio. E nós que somos prisioneiros da genética, desejamos no entanto o impossível: o predomínio da vida e a permanência do amor. Quando penso na minha mãe, já defunta, vejo o mundo com mais confiança, tal é a força do seu espírito. Começo a ficar com sono. Devo ter adormecido, porque acordei com novo ânimo: persistir na minha luta contra a maldade humana, sem me deixar encantar pelas vozes sedutoras dos vampiros que cativam os mortais neste tempo tão carente de experiência. Quando uma pessoa, num determinado momento da sua trajectória vital, olha para trás e diz "foi em vão", não é apenas uma avaliação que faz do seu passado, é sobretudo o pensamento horrível de desperdício vital e de perda de tempo que lamenta. Vida danificada: eis a expressão usada por Adorno para designar este pensamento avassalador. Mas, dada a irreversibilidade do tempo, essa flecha acelerada que nos leva até aos braços da morte, o mais grave é o facto de não podermos recuperar de algum modo o tempo perdido, à maneira de Proust, porque o tempo desperdiçado na companhia das silhuetas nocturnas está irremediavelmente perdido para a alegria: aquilo que poderia ter sido já não pode ser. O tempo e a morte são parceiros íntimos no jogo que preside à vida. Guerra Junqueiro disse num dos seus poemas que o tempo era um coveiro. De facto, o fluir do tempo encarrega-se de enterrar tudo, mas, quando enterra uma parte significativa e substancial da nossa vida, a parte do sonho, da esperança e da promessa, enterra-nos a nós próprios, sem nos dar uma segunda oportunidade, a oportunidade de escolher um novo projecto de vida, um novo começo. A vida transforma-se, nesse momento em que é problematizada pelo balanço feito pelo pensamento livre de ilusões, em angústia profunda: o projecto que poderíamos ter sido já não é viável. Matámos todas as nossas possibilidade e, quando as queremos despertar, já é demasiado tarde. Da angústia que captura a nossa alma não nos podemos livrar, nem sequer através da memória criadora, a menos que sejamos demasiado fracos. A vida que se torna estranha a si própria confronta o seu suporte com a sua verdade, à luz da qual o interroga sobre a sua responsabilidade pelo desperdício do seu tempo com pessoas e coisas que não mereciam a sua atenção vital. Ninguém no seu perfeito juízo escolhe uma vida danificada que o afunda na morte precoce. É talvez a genética que nos obriga a correr riscos desnecessários na vida, numa oscilação permanente entre a aliança e a rivalidade. O homem sonha com o amor-dádiva, o único que a seu ver o pode libertar da prisão das conexões perigosas. Rivalidade e aliança são dois conceitos nucleares da genética moderna. Hoje, quando acordei, fui logo tomar três cafés, e, neste preciso momento, acabo de tomar o meu quarto café do dia. Preciso de cafeína para pensar. O vampiro S. que me serviu este último café na esplanada tem um hábito terrível. Quando lhe dou uma nota de 20 euros para pagar o café, ele faz-me o troco como se lhe tivesse dado uma nota de 5 euros. Uma voz sepulcral diz-me aos ouvidos: "É a crise que se instalou na restauração!". Engana-se, porque é o velho espírito de pilhagem e de trapaça dos portugueses que faz o vampiro S. agir deste modo tão previsível. Mas este não é o pior tipo de vampiro que habita a cidade do Porto. Quase todos os vampiros que tentam apoderar-se do meu sangue têm nomes começados pela letra A. Estranha coincidência: a primeira letra do alfabeto dá o nome ao vampiro A., igual a tantos outros vampiros. A vida do homem decorre sob o signo da guerra, a mãe de todas as coisas. A guerra, a luta de todos contra todos, é a matriz desse enredo tecido de alianças e de rivalidades. Afinal, a aliança não é mais do que a formação de um grupo para lutar contra outro grupo rival. Cada um de nós pertence a uma tribo, urdida por mil e uma artimanhas e por rivalidades internas confessas, que só alcançam um estado de paz quando o nosso grupo se une contra outro grupo estranho. O princípio do egoísmo genético não nos oferece outra alternativa, a não ser a do nós unidos contra os outros estranhos, porque não pertencem ao nosso grupo. O homem está condenado a lutar para viver e, por isso, não adianta tentar limar as arestas deste imperativo vital, ao qual a própria individualidade não é alheia. Com efeito, a nossa individualidade forma-se, como já Hegel sabia, na luta que travamos contra os outros: cada um dos seus traços distintivos traz a marca de uma vitória contra os outros que tudo fizeram para bloquear o nosso processo de diferenciação e de individualização. Lembro-me que, quando fui lançado no Liceu de Alexandre Herculano no Porto, vindo do estrangeiro e de um colégio particular, me senti cercado por um bando primitivo de vampiros que odiavam a nobreza da minha personalidade. Mas não podia queixar-me, porque essa tinha sido a minha decisão: terminar o curso complementar numa escola pública do Porto. A mediocridade geral dos professores não me surpreendeu: eu sou o autor do projecto em andamento que se faz a si próprio. Mas tomei consciência daquilo que sempre soube: os vampiros perdem a sua individualidade quando vivem em bandos. Ou talvez fosse melhor dizer: os vampiros carecem de individualidade. O meu excesso de individualidade repele e atrai, ao mesmo tempo, os vampiros, porque sou tudo aquilo que eles não são e que procuram ser, mediante um acto de apropriação ilícita. Nada mais assusta aquele que se abriga no azul anímico da noite estrelada do que ser sugado pelos vampiros que o rodeiam por todos os lados. O imaginário lendário dos povos associa a figura do vampiro à figura de um morto-vivo perverso que, à noite, sai da sua tumba para ir caçar vítimas humanas vivas, com o objectivo de lhes sugar o sangue vermelho, símbolo de vitalidade, a vitalidade de que necessitam para continuar a viver nas trevas. O vampirismo, mesmo nesta forma lendária e cinematográfica, é uma espécie de parasitismo. Porém, nem sequer Drácula era tão cruel como os novos vampiros arregimentados e massificados que circulam nos lugares públicos da moderna sociedade urbana. Talvez devido a uma mudança de perspectiva e a uma degenerescência genética, os vampiros urbanos desejam mais do que a apropriação da energia vital dos mortais: eles desejam absorver o eu do indivíduo que resiste à massificação e apropriar-se literalmente da sua vida, da sua acção, da sua obra, das suas emoções, dos seus sentimentos, das suas ideias, do seu estatuto social, dos seus bens, do seu pensamento, dos seus desejos, enfim dos seus amigos, conhecidos e familiares. Outrora o vampiro sugava o sangue dos vivos para dar vida ao seu corpo morto; hoje tudo faz para absorver a alma daqueles que ousaram traçar a sua trajectória de vida no mapa social. Vampirar é tornar "seu" aquilo que pertence ao outro, apropriando-se ilicitamente até mesmo da sua identidade e da sua intimidade. Este novo tipo de vampirismo egológico está intimamente ligado à sociedade de consumo: consumir pessoas, o seu eu localizado no mapa social, tornou-se uma forma de vida para todos aqueles que não possuem um eu forte. Ora, este consumo de identidades alheias é parente próximo do canibalismo: os novos vampiros que sofrem de fragilização do eu, desenterram práticas arcaicas que deixaram de ser visíveis há muito tempo. O vampiro A. é um consumidor nato daquilo que não lhe pertence. Julgo que a arte de copy paste foi uma invenção do vampiro A., porque ele não só toma emprestada a vida dos outros, como também lhes saca as suas obras de pensamento: tudo o que exibe como se fosse "seu" pertence a alguém, cujo nome é sistematicamente omitido para não ensombrar a sua pseudo-criatividade e a sua pseudo-originalidade. Mas há mais: Julgo que todos os portugueses são meros clones do vampiro A., o pai ancestral de todos aqueles que tomam emprestada a vida dos estranhos sobre-individualizados que habitam o mesmo território com eles. O exílio a que os vampiros A. condenam os portadores de eu forte torna-se preocupante quando os leva a perder a confiança nos outros, mas nada está perdido: a vida partilhada encarrega-se, mais tarde ou mais cedo, de arrancar o véu que cobre as nossas ilusões e adições sociais. Até mesmo aqueles que comem, dormem, trabalham ou vivem connosco acabam por perder a auréola, tornando-se aquilo que sempre foram: meros vampiros de tipo A., a que estávamos ligados pelo hábito e pela inércia. O tempo das promessas apaga-se subitamente, e, no seu lugar, emerge repentinamente o tempo vazio que nos prepara para a morte, da qual não há regresso. Tal como Prometeu roubou o fogo a Zeus para o dar aos homens, eu roubei o segredo aos portugueses, para o expor ao julgamento mundial. Os clones do vampiro A. são Ninguém, essa terrível figura corporal da escassez de existência que invade a nossa vida em todas as suas dimensões espessas, não para a fortalecer, acrescentando-lhe valência ontológica, mas para a enfraquecer, procurando anular o projecto que cada um de nós é. O Ninguém - o anti-herói deste conto! - não tem espírito: esta é a sua doença mortal que, pelo seu comportamento promíscuo, se alastra a toda a sociedade. Não sei até que ponto a figura vicentina do Parvo se coaduna com o Ninguém que estou a elaborar, em função do perfil do vampiro A. Mas suspeito que o Parvo afirma ser "ninguém" para se demarcar e se distanciar daquele "alguém" que é pelo facto de exibir publicamente uma máscara colectiva, adornada ou não com pedras preciosas, igual a tantas outras, por detrás da qual não há um hóspede genuíno. Se esta leitura estiver correcta, e eu julgo que está, então o "ninguém" vicentino prenuncia de algum modo a máscara anónima e impessoal do Ninguém, cujo perfil domina o nosso tempo indigente. Privado de espírito, o Ninguém procura afirmar-se no mundo comum pela apropriação ilícita do espírito subjectivo e objectivo do outro e pelo consumo conspícuo de objectos, fetiches, maquilhagens, próteses, tecnologias, comportamentos estereotipados, ideias e identidades, para a construção dos quais não deu nenhum contributo significativo, embora procure convencer-se a si próprio e convencer os outros de que tudo isso é sua criação. A alma de Georg Lukács acabou de me sussurrar aos ouvidos: "Converteste a tua angústia numa concepção do mundo!" Mal ela sabe que, com a ajuda do meu feiticeiro invisível, nesta luta constante contra os vampiros que tem sido a minha vida, me transformei num vampiro milenar, o mais antigo da estirpe dos vampiros nobres, aquele que nasceu para os matar. Ninguém que tenha ousado desafiar-me conseguiu viver muito tempo depois disso. Georg Trakl farta-se de rir, dizendo em voz alta: "Tu és o Sebastian, o Helian, o Elis que anunciei para matar a estirpe maldita". Já não sei bem quem sou: Serei ainda humano ou serei antes a nobre figura azul que habita a eterna noite, tendo por companheiras as almas brilhantes do outro mundo? De uma coisa estou certo: neste mundo despovoado de almas brilhantes, sou mais lúcido e sábio quando estou a dormir e, sobretudo, a sonhar do que quando estou acordado, lançado entre os vampiros. Acordei do sonho nocturno depois de ter assassinado o vampiro A., sem lhe espetar uma estaca de madeira no coração. Descobri que os vampiros podem ser privados da sua aparente imortalidade clonal quando lhes damos a beber sangue contaminado. No meu sonho redentor, o vampiro A. morreu de doença contraída enquanto andava à caça de sangue fresco, para os lados de Leça, Gaia e Águas Santas. O que fiz para o matar? Transformei um sapo numa figura afrodisíaca, com olhos de cão abandonado, cujo sangue foi contaminado pelo velho feiticeiro africano. A doença consumiu-o até ao seu último suspiro vital. Enterremo-lo, porque já cheira a carne putrefacta. Depois deste acontecimento redentor, já posso mergulhar de novo no regaço sereno da noite azul. Matei com astúcia o vampiro que ousou tentar roubar-me a alma.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 16 de março de 2012

Sobre os mortos que nos visitam

Porto: Escadas do Barredo
«Um morto vem visitar-te. Do coração corre-lhe o sangue que ele próprio verteu, e no sobrolho negro aninha-se um instante indizível. Encontro lúgubre. Tu - uma lua de púrpura, quando o outro aparece na sombra verde da oliveira. Segue-o a noite eterna». (Georg Trakl)

A alma errante de Georg Trakl já me visitou, pedindo-me sete rosas brancas que depositei no seu túmulo em Innsbruck. E nunca mais me abandonou, tendo-se aninhado no meu lar, junto do meu feiticeiro e do meu séquito de onze almas protectoras. Um vidente do Centro Espirita do Porto aproximou-se de mim para me dizer que andava bem acompanhado por vinte e uma almas. Sorri garantindo-lhe que havia mais uma alma, talvez a mais querida das minhas almas defuntas. A TVI tem o seu programa sobre a "vida depois da morte", frequentado por uma plateia de pessoas em busca de contacto com os seus mortos queridos. Vivemos num mundo despojado de sinais de transcendência e, quando as pessoas os procuram, fazem-no de um modo extremamente mesquinho e egoísta, mais para se livrarem dos remorsos do que por reverência pelo mundo transcendente da alma. As pessoas umbilicais não sabem que para verem os mortos que nos visitam não precisam de ir à TVI, bastando-lhes mergulhar numa multidão urbana e distinguir entre os vivos e os mortos. Pelo menos, este é um exercício que não exige treino nem mediadores: os mortos gostam de passear entre os vivos e, por isso, nada melhor do que os procurar lá onde os vivos se aglomeram. Ao contrário do que pensam as pessoas mesquinhas, esmagadas pelos remorsos, os cemitérios são despovoados: as almas dos defuntos não gostam de habitar os cemitérios, fechadas dentro dos caixões. Elas estão onde há pessoas vivas. Na cidade do Porto, podemos ver muitos mortos a circular entre os vivos nas Ruas de Santa Catarina e Sá da Bandeira ou mesmo no metro nas suas horas de ponta. E nem todos os mortos que visitam o Porto são naturais desta bela cidade. Nas artérias de maior movimento, encontramos muitos mortos provenientes de outras zonas do país e do estrangeiro: o cosmopolitismo portuense também é um cosmopolitismo de almas. As almas do outro mundo não resistem aos encantos do Porto: elas habitam o Porto, tal como os vivos, de modo perdidamente apaixonado. Abençoado por Deus desde tempos imemoriais, provavelmente desde o fabuloso começo do mundo, o Porto é um dos maiores pólos mundiais de atracção da transcendência e de comércio entre os vivos e os mortos. A Sida leva à morte um artista portuense, algures num passado não muito distante, mas meses depois do seu enterro a sua colega D. cruza-se com ele perto da sede originária do Banco Borges & Irmão, no cruzamento entre as Ruas de Sá da Bandeira e de 31 de Janeiro, sob o olhar atento da Estação de São Bento. Pensando que estava a ter uma alucinação visual, sinal evidente da "loucura" que a família lhe atribui, evita olhá-lo de frente e continua o seu caminho. Ele intercepta-a novamente e sorri-lhe, passando para o outro lado da rua, e, quando ela tenta conversar com ele, a imagem-holográfica do defunto já está no cimo da Rua de 31 de Janeiro: o morto aproximou-se dela e sorriu-lhe, mas não lhe falou. Esta aparição deixou-a de rastos, como se fosse o anúncio da proximidade da sua própria loucura. Calou-se e não contou nada a ninguém. Mas, mais tarde, já num outro dia, D. cruza-se com uma amiga de infância de Vila Real, desta vez na Rua de Santa Catarina: cumprimenta-a e tenta pôr a conversa em dia, mas o holograma sorri sem lhe responder, desaparecendo rapidamente na multidão. À noite, D. contou à mãe e à irmã que esteve com a sua amiga de infância que não via há muitos anos. A troca de olhares entre a irmã e a mãe gelou-lhe o sangue. E a mãe disse-lhe: "Então, filha, não sabes que ela morreu num acidente trágico?" Quando ouviu estas palavras da mãe, D. começou a chorar, dizendo que estava a ficar louca, porque já era a segunda vez que via um morto. A mãe confortou-a quando lhe disse que ver mortos não constituía sinal de loucura: "Os mortos andam entre os vivos e tu, minha filha, tens o dom de os ver". Quando me relatou estes dois encontros lúgubres com mortos, D. referiu um outro episódio: um estranho telefonema nocturno que lhe tirou o sono, pelo facto de pressentir a morte próxima da sua prima, que, de facto, morreu tragicamente nessa madrugada no Hospital de São João. Enquanto conversávamos, a maior bruxa do Porto, sim aquela que cheira mal, mais conhecida como a "língua-esfregona" do Porto, aproximou-se de nós, toda sorridente, e convida-nos a ir com ela ao Cemitério de Agramonte, onde a mãe está sepultada, em busca de "sinais dos mortos". Olhei para D., receando uma reacção de desaprovação, mas, em vez disso, ela prontificou-se a ir ao cemitério à noite. E, no cemitério, junto das suas grades, as duas "malucas" surpreenderam-me: uma - a bruxa, claro! - chamava pelos gatos, na esperança de que um deles fosse a mãe; a outra empoleirou-se no muro e divertia-se a comentar os túmulos e a contar as velas e os caixões de cada um dos jazigos familiares. Uma brisa de ar moveu um dos pinheiros e a bruxa decifrou no movimento insignificante dos galhos uma mensagem do outro mundo. D. comentava baixinho comigo que ela estava "mesmo louca", quando ela me interpela mencionando a cor dos olhos de um gato negro: "A minha mãe está neste gato, porque os olhos são da mesma cor". Afastei-me ligeiramente dela, para não alimentar a sua paranóia, mas qual a minha surpresa quando a ouço a chamar "cabra" ao gato. A força do remorso de ter deixado a mãe morrer sozinha não era suficientemente poderosa para apagar o ódio que sempre nutriu por ela: o gato-mãe continuava a ser uma "cabra". D. que também tem as suas discussões com a mãe, não compreendia como a "velha bruxa" podia odiar tanto a mãe já morta e sepultada, a ponto de ter deitado no lixo quase todas as suas lembranças. Afinal, havia no mundo uma criatura mais "maluca" do que ela: as suas idas nocturnas ao cemitério ainda eram alimentadas por esse velho ódio de estimação que a levou a abandonar precocemente a casa materna. Em privado, já depois do regresso atribulado a casa, repleto de palavrões, contei-lhe que a bruxa sofre de uma doença bipolar e que ela só vai ao cemitério quando entra em depressão profunda. Mas, enquanto lhe explicava as ambiguidades anómalas do comportamento da bruxa, Georg Trakl segredou-me aos ouvidos uma ida às escadas do Barredo. Levei D. até às escadas do Barredo, onde em determinado sítio a deixei sozinha, depois de lhe ter tirado os aparelhos auditivos, para ela temer as sombras dos eucaliptos e das árvores. Cobertos pelas sombras nocturnas dos muros, eu e Trakl riamo-nos com os gritos de D. que acenderam algumas luzes. Ainda pensei chamar um velho vampiro do Porto para lhe morder o pescoço, mas a sua aflição comoveu-me. Depois de lhe devolvermos a audição, arrancando-a ao mundo do silêncio absoluto, resolvemos levar D. até casa, onde a deixámos entregue aos seus pensamentos de cafeína e de haxixe. D. nunca mais voltou a ver mortos: ela prefere ver homens vivos, de preferência musculados e fortes mas sem usar tatuagens e piercings na língua e no pénis e, sobretudo, sem necessidade de tomar viagra ou dar uma injecção no pénis para obter erecções fortes, evitando uns - as "barbies masculinas" - e aproximando-se de outros, nesse eterno movimento de alienação que é a vida quotidiana

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 14 de março de 2012

Nicolau Nasoni e o Porto Setecentista

Porto: Igreja e Torre dos Clérigos
«O rei de Portugal - D. João V que dispunha do quinto do ouro e das minas de diamantes do Brasil - é agora, no consenso geral, o monarca mais rico do mundo. Naturalmente uma parte importante dessa levada aurífera, que parecia inesgotável, canalizava-se para Roma, sede da Cristandade. Além das concessões pontifícias, altamente tarifadas, vinham de Itália, objectos e alfaias adestritas ao culto e à ostentação: obras de arte religiosa, paramentos, tapeçarias, impressões ricas, coches, peças de sumptuosa indumentária. Algumas vezes artistas e artífices trasladavam-se com as suas produções ao país que as encomendava. (...) Sem contrato ou convite, muitos súbditos dos diferentes estados italianos vinham também à ventura, tentar fortuna em Espanha, onde Isabel Farnesio e o Cardeal Alberoni desenvolviam as suas intrigas e planos redentoristas, e do país vizinho passavam com frequência ao nosso. (...) Todos esses elementos: os artistas que trabalhavam em Itália para Portugal; os que vieram desse país ao nosso, estabelecendo-se nele temporária ou definitivamente; e os portugueses que foram aprender ou adestrar-se em Roma e noutros centros importantes da península itálica - como Nápoles e Turim - concorreram para a italianização do gosto e da cultura». (Virgílio Correia)

Com esta citação não desejo prestar uma homenagem a Virgílio Correia, um estudioso da arte portuguesa que desprezo, mas destacar e enquadrar o papel de Nicolau Nasoni na italianização do Porto. Doravante, sempre que tentarmos esboçar um quadro portuense, convém autonomizá-lo da história de Portugal, de modo a encarar o Porto como uma Cidade-Estado, cuja história foi feita pelos portuenses em condições "nacionais" adversas. Qualquer quadro portuense deve ser pensado em função da ideia redentora da independência da Cidade Invicta. A elaboração da História da Cidade do Porto é, portanto, um projecto científico e político: a ideia nefasta de história regional que presidiu à feitura da História do Porto dirigida por Oliveira Ramos, subordina a nossa história à chamada história nacional, a história de Portugal, implicando no máximo a defesa do projecto da regionalização. Mas, se olharmos de perto a História do Porto de Oliveira Ramos, verificamos facilmente que ela fica aquém - em termos científicos e políticos - da História da Cidade do Porto dirigida por Damião Peres: o Porto de Oliveira Ramos perde a autonomia e o brilho do Porto de Damião Peres; é um Porto diminuído, subserviente, pálido, anémico, incapaz de se libertar das cadeias da história de Portugal. Como é evidente, não é esta a perspectiva de Oliveira Ramos, que, na Introdução, acusa o envelhecimento da obra de Damião Peres: «(...) é importante vincar que os três volumes da História da Cidade do Porto, concebidos, nos anos cinquenta, por Artur de Magalhães Basto, despontam à volta de 1960 e ficam concluídos em 1965, segundo uma orientação de perfil factual, deveras erudita, cuja expressão maior resulta do saber e da escrita dos seus colaboradores, Magalhães Basto, Damião Peres, António Cruz, e de alguns autores. Trata-se, portanto, de uma obra envelhecida por ulteriores investigações dispersas por um sem-número de livros e revistas, pelo teor do enfoque, pelo limite temporal». Concordo com a crítica de Oliveira Ramos: a obra de Damião Peres é demasiado factual e carece da abrangência temporal da História do Porto. Mas, em vez de acentuar o seu envelhecimento natural, prefiro destacar a sua ousadia política: o quadro factual estabelecido pelos seus autores eruditos permite vislumbrar o velho anseio dos portuenses, não dos portuenses grandes aldeões (Almeida Garrett) que colaboram com Lisboa para oprimir o Porto, mas dos portuenses iluminados que lutam pela sua independência. Na História da Cidade do Porto, os factos apontam tanto mais na direcção do futuro liberto do Porto quanto mais recuam no passado, onde descobrimos os vestígios da Idade Heróica do Porto, o nosso berço. Ora, sempre que somos confrontados com esses vestígios heróicos, respiramos ar novo e fresco, tomando consciência de que Portugal é uma entidade étnico-cultural profundamente estranha ao Porto e ao Norte: o Porto tem uma história própria que não tem nada a ver com a história pardacenta de Portugal. A integração do Porto nessa entidade saloia chamada Portugal é um equívoco histórico, um erro fatal que devemos corrigir, lutando pela nossa autonomia. Portugal é uma maldição da qual nos devemos libertar. Aliando erudição cientificamente informada à tarefa política da luta pela independência, a História da Cidade do Porto constitui ainda o Manifesto da Libertação do Norte, enquanto a História do Porto, destituída de imaginação política, faz o Porto capitular diante da velha Lisboa saloia e provinciana que envergonha os próprios portugueses. De certo modo, uma obra de história nunca envelhece, porque ela própria faz parte integrante da história que relata: Oliveira Ramos condena a fantasia em nome do "presente", isto é, sacrifica a utopia no altar da ideologia que recusa aos portuenses a restituição integral da sua própria história, citando uma frase conhecida de Sampaio Bruno: «Julgou-se que a história do passado anunciaria o futuro, o que era um conceito absurdo, porque não há, nunca houve, nunca haverá na história um facto que integralmente se repita. Disse-se que o passado era lição do presente. Quando o presente é que é a lição do passado. Quer dizer que eu, pela história antiga, não fico habilitado a entender a história moderna. Ao contrário, pela história moderna é que me habilito a entender a história antiga» (1906). Sampaio Bruno foi um ilustre pensador portuense, considerado pela maior parte dos portugueses como o pai do pensamento filosófico português. Os portugueses não se enganam quando o enaltecem, porque Sampaio Bruno não foi suficientemente corajoso para lutar pela autonomia do Porto, mesmo quando tomou consciência do desastre a que Lisboa conduzia o país. Há, pelo menos, dois registos a reter neste dito - mal-pensado! - de Sampaio Bruno: um é legítimo, o outro é equívoco quando interpretado como conceito de tempo histórico. O dito de Sampaio Bruno é de tal modo confuso que Oliveira Ramos o interpretou como necessidade urgente de "descobrir um futuro para o passado", a partir do momento presente, o que, de certo modo, contraria o seu sentido. A ideia essencial de Bruno pode ser identificada nesta frase de Marx: «A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco». A ideia de repetição factual mina completamente o primeiro enunciado de Sampaio Bruno, sem ter qualquer relação com a ideia de que o passado anuncia o futuro: o primeiro enunciado deve ser rasurado. Resta apenas o conceito de que, para entender o passado, precisamos conhecer o presente, quando destituído da sua carga moral. É o que Marx parece dizer quando afirma que só podemos conhecer os signos denunciadores de uma forma superior de vida, quando essa forma superior é já conhecida. Ou na linguagem de Sampaio Bruno: o conhecimento da forma superior habilita-me a entender os seus vestígios passados, bem como as formas inferiores. Mas afirmar que compreendemos o passado à luz do presente não implica que o presente seja a lição do passado. Com efeito, as duas ideias são distintas, sendo a primeira compatível com o conceito de que o passado está prenhe de futuro. A ideia de progresso opera nas duas afirmações, tanto na de Marx como na de Sampaio Bruno: o tempo forte, o grande atractor, é o futuro. Marx e Bruno, cada qual à sua maneira, são revolucionários. Romper com a ideia de progresso que alimenta o optimismo militante soa a cedência ao pensamento conservador. Não admira que Jürgen Habermas tenha chamado conservador ao marxismo de Walter Benjamin, para quem a história é catástrofe. Mas hoje o progresso é a própria figura da catástrofe, da qual devemos salvar o passado, de modo a garantir a continuidade da aventura humana. A dialéctica é muito mais complexa do que pensavam os seus mentores, Hegel e Marx: nada está a salvo da destruição. A missão da grande política já não é construir um paraíso terrestre, ideia que já repugna a todos, mas adiar o colapso do mundo. A rememoração do passado ajuda a consolidar identidades e a manter o seu eterno confronto: a globalização - a caricatura do progresso triunfante - combate-se conservando as nossas identidades locais em luta permanente. A lógica do progresso é totalitária, e a dialéctica, sempre que tenta reconciliar os contrários numa síntese superior, cava o seu próprio túmulo, contribuindo para a vitória da anti-dialéctica. Num mundo ontologicamente avesso à garantia definitiva, a dialéctica só pode ser negativa, abdicando da síntese. A política é luta e não consenso: lá onde há consenso a política está morta. Spengler via o presente como o tempo da decisão e, de modo superficial, Oliveira Ramos aproxima-se desta problemática quando, a partir das recomendações do Conselho da Europa (1975), defende a necessidade de dar um futuro ao passado. Ora, dar um futuro ao passado é salvá-lo do esquecimento: as hipóteses de trabalho desenhadas para isso são resultado da fantasia que resgata e nos restitui o passado. O resgate do passado tornou-se a utopia do nosso tempo indigente. O passado até pode não nos dar uma lição, mas une-nos na luta contra a opressão. A libertação - sendo uma tarefa das cidades - envolve hoje um trabalho complexo nas três frentes da temporalidade: passado, presente e futuro. Para nós portuenses, o resgate do nosso passado alimenta a luta contra a opressão portuguesa, ao mesmo tempo que indica o caminho a seguir: reconquistar a nossa autonomia e redefinir a nossa abertura ao mundo sem a mediação corruptora de Lisboa. Queremos ser aquilo que somos: Portuenses leais à nossa cidade e não portugueses leais a uma capital que nos empobrece!

Nicolau Nasoni, filho legítimo de José Nasoni e Margarida Rozy, nasceu no dia 2 de Junho de 1691 na terra de San Giovanni Valdarno de Cima do Priorado de S. Lourenço, dos Estados do Grão Duque de Toscana (Itália). A escassez de documentos a respeito da vida de Nicolau Nasoni não permite esboçar uma biografia integral deste insigne pintor e arquitecto do Porto. Mas já podemos alinhavar uma determinada sequência de acontecimentos, dando-lhes uma ordem cronológica. O Cabido da Sé-Catedral do Porto mandou executar obras na Catedral nos primeiros anos da Sé-Vaga de 1717-1741, quando o bispo D. Tomás de Almeida foi elevado ao patriarcado de Lisboa, deixando vaga a Sé portuense. Sabemos que a iniciativa da vinda de Nasoni para o Porto partiu do colégio capitular da Sé, tendo como missão trabalhar nas obras da Catedral, mas não conhecemos o ano da sua chegada ao Porto. Em 1717, já se faziam obras de certa importância na Catedral ou nas suas dependências, embora a Restauração da Sé só tenha começado em 1722. O nome de Nasoni só aparece nos papéis de pagamento da Mitra em 1734. Porém, Nasoni já estava a viver no Porto em 1729. Com efeito, no dia 28 de Agosto desse ano, Nasoni esteve na Rua Chã, nas Casas Nobres de Vandoma, morada do Reverendo D. Jerónimo de Távora e Noronha e Leme Sernache, Deão da Sé-Catedral do Porto, onde um tabelião de notas lavrou uma solene escritura. Os outorgantes dessa escritura foram o italiano Bras Castriotto, morador na Rua de São Miguel, em nome e como procurador do seu pai, Carlos Alexandre Castriotto Ricardi (ou Rixaral), e da sua mãe, Paula Francisca, moradores nesta cidade do Porto, e Nicolau Nasoni e a sua mulher Isabel Castriotto Ricardi, moradora nesta cidade do Porto, à frente do chafariz de S. Domingos. A escritura foi celebrada publicamente para garantir uma promessa anterior: os pais de Isabel Castriotto Ricardi tinham prometido um dote de 400$000 reis a Nasoni quando este se casou com a filha em 31 de Julho de 1729, na Sé-Catedral, tendo como testemunhas o D. Jerónimo Távora e Noronha e Miguel Francisco da Silva, morador no Paço Episcopal e Mestre das obras de talha que se realizavam na Sé. Isabel Castriotto, natural da freguesia de S. João Maior da cidade de Nápoles, presenteou o marido, um ano mais tarde, no dia 8 de Julho de 1730, com um filho, que foi baptizado logo no dia 11 com o nome de José, na Capela de Vandoma, tendo como padrinhos D. Manuel de Noronha e Meneses, arcediago da Sé, por procuração do seu irmão D. Luís de Noronha e Meneses, abade da Cumieira, e o Reverendo Deão D. Jerónimo de Távora e Noronha, por procuração da sua mãe D. Micaela Antónia Freire. Dezassete dias depois do nascimento do filho morreu Isabel Castriotto, conforme notifica o termo descoberto nos arquivos da freguesia da Sé: «Isabel Nasoni, mulher de Nicolau Nasoni, pintor e morador na Rua Chã, faleceu com todos os sacramentos e não fez testamento. Morreu em 25 de Julho de setecentos e trinta, e foi sepultar à Sé». Nicolau Nasoni casou-se em segundas núpcias logo no dia 3 de Setembro de 1730 com Antónia Mascarenhas Malafaia, de 24 anos, que residia desde os 20 anos na casa de D. Micaela Antónia Freire, mãe do Deão D. Jerónimo de Távora e Noronha. Este segundo casamento de Nasoni realizou-se na Capela de Nossa Senhora de Vandoma, anexa às Casas Nobres de Vandoma, que pertenciam a D. Micaela Freire, tendo como uma das testemunhas ou padrinhos D. Jerónimo. Natural da freguesia de Santa Eulália de Lamelas (antigo Concelho de Refoios de Riba d'Ave, Santo Tirso), Antónia Mascarenhas Malafaia - filha de António Mascarenhas Malafaia e de Isabel da Silva - foi baptizada no dia 28 de Dezembro de 1706 na Igreja matriz da sua freguesia, tendo como padrinhos Antónia Monteira e Luís Brandão Pereira de S. Payo. Os opulentos e nobilíssimos fidalgos da Casa de Vandoma tinham uma grande estima por Nasoni, permitindo-lhe desenvolver uma intensa actividade artística nos primeiros tempos de casado. Em 1731, Nasoni apresentou à Irmandade dos Clérigos o seu primeiro projecto para a construção da Igreja dos Clérigos. Ora, o Presidente da Irmandade era precisamente o Deão D. Jerónimo de Távora: o nome de Nicolau Nasoni aparece sempre - nos papéis da Irmandade - precedido pelo título de Dom e acompanhado pelos qualificativos de insigne pintor e de arquitecto. A segunda mulher de Nasoni deu-lhe, pelo menos, cinco filhos. Todos os filhos de Nasoni, tanto o do primeiro casamento como os do segundo casamento, tiveram presentes nas suas cerimónias de baptismo ou mesmo de casamento membros nobres e ricos da Casa de Vandoma e da Casa da Prelada, como padrinhos ou como testemunhas. Assim, por exemplo, D. Micaela Antónia Freire foi madrinha de quatro filhos de Nasoni.

Como não lhe faltava trabalho, Nasoni prosperou rapidamente na vida. O primeiro sinal dessa prosperidade foi a compra, logo em 1732, de uma pequena propriedade na freguesia da naturalidade da sua mulher. No ano seguinte (1733), Nasoni passou procuração a dois indivíduos, um dos quais era assistente em casa de D. Jerónimo de Távora, concedendo-lhes poderes para, em nome dele e da mulher, intentarem demandas, arrecadarem dívidas e outras tarefas na comarca de Refoios. Em 1737, o casal Nasoni passou nova procuração geral a D. Jerónimo de Távora, conferindo-lhe plenos poderes para todos os assuntos forenses. Entre os anos de 1738 e 1748, surgem nos registos portuenses muitas escrituras lavradas de empréstimos de dinheiro a juros, nas quais figura o nome de Nasoni como aquele que empresta dinheiro a juros aos outros: Nasoni emprestou - segundo uma dessas escrituras - a quantia de 800$000 reis a António de Sousa Correia Montenegro, talvez a quantia de dinheiro mais elevada emprestada pelo artista toscano. Em 1758, Nasoni é designado numa escritura como "homem de negócios". Como dispunha de capitais, Nasoni fez figura de capitalista portuense no Porto Setecentista. No entanto, não conhecemos todos os pormenores da aquisição desses capitais. Uma parte da fortuna de Nasoni adveio pelos casamentos: o dote de Isabel Castriotto foi de 400$000 reis. Da escritura desse dote consta que faltava entregar-lhe 82$000 reis, sendo a parte restante representada por uma longa lista de valiosas peças de vestuário da noiva, jóias do seu uso pessoal e roupas de casa. O dote de Antónia Mascarenhas Malafaia não é conhecido, mas pelas procurações do casal já referidas infere-se que estava ligado com propriedades que possuía no Concelho de Refoios. A maior parte do dinheiro que Nasoni emprestava a juros deve ter sido adquirida através do seu trabalho como pintor e arquitecto. Além da Igreja, Enfermaria e Torre dos Clérigos (1731-73), foram-lhe atribuídas o Paço Episcopal (1734); a galeria setentrional (galilé) da Sé-Catedral do Porto (1725-39); o Palácio do Freixo e seus jardins (1742-54); a casa da Quinta da Prelada e seus jardins (1743-58); a Fonte das Lágrimas (1745); a Casa do Despacho da Ordem Terceira de São Francisco (1746-49); a frontaria da Igreja da Misericórdia (1749); dois projectos para a Cadeia e Tribunal da Relação e Jardim da Cordoaria (1750-51); o Palácio de São João Novo, mandado construir por Pedro da Costa Lima em data desconhecida; o Chafariz de São Miguel ou do Anjo, junto da Sé do Porto (1737); a Casa da Quinta de Ramalde, da família de Leite Pereira (1746); e trabalhos de restauro nas Sés do Porto, Lamego e Braga. A Igreja do Carmo, pelo menos a fachada, também é da sua autoria (1754-60), bem como a traça da Casa Nobre, do Cónego Domingos Barbosa, construída na Rua de D. Hugo, por volta de 1740, onde hoje se encontra instalada a Casa-Museu de Guerra Junqueiro. Na cidade do Porto temos ainda a Igreja do Recolhimento dos Órfãos de Nossa Senhora da Esperança e Jardim de São Lázaro (1746-58); a Capela da Casa dos Maias (1746-63); a reconstrução da Casa de Vandoma, situada na Rua de D. Hugo (1750); a Casa Barroso-Pereira (1750); a Igreja da Ordem do Terço (1756-59); a Capela de Nossa Senhora do Pinheiro (1757), e o belo Palácio de Bonjóia (1759). Além disso, Nasoni desenvolveu uma enorme actividade artística no Norte de Portugal: as obras de arquitectura na Quinta de Santa Cruz do Bispo (Matosinhos, 1737), o Chafariz e a escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios (Lamego, 1738), a fachada da Igreja do Senhor Bom Jesus (Matosinhos, 1743-47), o restauro da Igreja de Santa Marinha (Gaia, 1745), a Igreja de Santiago de Bougado (Trofa, 1748-54), as obras de arquitectura e de escultura na Quinta dos Cónegos (Maia, 1727-37), a Casa e a Capela da Quinta de Fafiães (Leça do Balio, Matosinhos, 1733-35), o corpo central do Palácio de Mateus (Vila Real, 1740-43), a Casa da Quinta de Chantre (Matosinhos, 1743-46), a Capela da Quinta da Conceição (Leça da Palmeira, Matosinhos, 1743-47), a fachada lateral da Igreja do Convento de Corpus Christi (Gaia, 1745), a Casa e os jardins da Quinta do Viso (Senhora da Hora, Matosinhos, 1746-58), e o risco da obra de arquitectura e decoração dos jardins da Quinta do Alão (Matosinhos, 1760). Existem muitos documentos que comprovam a enorme actividade artística de Nasoni no Porto e arredores: alguns deles indicam os pagamentos efectuados a Nasoni pelos seus trabalhos artísticos. Assim, por exemplo, pela planta que fez para o Palácio Episcopal recebeu 40$000 reis, pela planta da Igreja da Misericórdia recebeu 24$000 reis, e pelas duas plantas da nova Igreja de Santa Marinha recebeu 19$260 reis. Algumas destas plantas - os seus originais - foram conservadas e, tanto quanto sei, a planta da Igreja da Misericórdia pode ser vista. É certo que existem lacunas temporais e omissões nos arquivos, como por exemplo a escassez de documentos entre 1734 e 1740, mas os que existem são suficientes para reconstituir, pelo menos em termos probabilísticos, o montante da fortuna acumulada por Nasoni. Por volta de 1747 Nasoni já não morava na Rua Chã, mas no sítio do Corpo da Guarda. O ano mais memorável da sua vida foi o ano de 1750, quando apresentou à Mesa da Irmandade dos Clérigos o magistral projecto da construção da imponente Torre dos Clérigos, no dia 8 de Fevereiro. Dos documentos posteriores a 1758 retenho de momento aqueles que ajudam a clarificar a biografia de Nasoni: dois deles mostram-no transformado em homem de negócios, passando letras para o Brasil e cuidando de cobrar dinheiro que lhe deviam. Mas subitamente - depois de um terrível episódio que deixarei para o próximo parágrafo - os últimos documentos revelam um Nasoni "pobre", já viúvo, vivendo com a sua filha Margarida, numa casa de viela, muito extra-muros da cidade do Porto. Dez anos depois de concluída a Torre dos Clérigos que imortalizou o seu nome e a cidade do Porto, Nasoni morreu no dia 30 de Agosto de 1773. Dois documentos registam a sua morte, um dos Livros do Cartório da Irmandade dos Clérigos, o outro o registo do óbito que diz textualmente estas palavras: «Nicolau Nasoni, viúvo que ficou de Antónia Mascarenhas Malafaia já defunta, morador na viela do Mendes, Rua do Paraíso, desta freguesia de Santo Ildefonso do Porto; faleceu com todos os sacramentos nos trinta dias do mês de Agosto do ano de mil e setecentos e setenta e três anos, fez testamento, ficou sua testamenteira sua filha Margarida, solteira, moradora na dita Rua e Casa, e foi sepultado na Igreja dos Clérigos pobres, de sua Irmandade desta freguesia de Santo Ildefonso; de que fiz este assento que assinei (...)».

Francisco Ribeiro da Silva abordou toda a problemática social do Porto Setecentista num capítulo intitulado Tempos Modernos da História do Porto dirigida por Oliveira Ramos, mas ao homem que moldou arquitectonicamente a cidade do Porto, sendo responsável pelos signos arquitectónicos mais emblemáticos da cidade, os autores do capítulo intitulado O Porto Oitocentista dedicaram apenas um magro e miserável parágrafo: «Paralelamente, na arquitectura religiosa persistirá, ao longo da segunda metade do século XVIII, uma forte adesão à linguagem barroca, evoluindo para a exuberância rocaille (rococó), sobretudo na talha dourada dos interiores, que reflecte não só o gosto, mas também a riqueza da Igreja portuense. Refira-se, de resto, que algumas congregações, como a do Oratório ou dos Lóios, para não falar no Cabido, fundam grande parte da sua riqueza nos réditos do vinho do Porto. A arquitectura religiosa tem no arquitecto florentino Nicolau Nasoni o seu mais conceituado representante. Autor de edifícios religiosos marcantes, como a Torre dos Clérigos (1757-1763) ou a fachada da Igreja da Misericórdia (1749-50), Nasoni não deixará ainda de impor o seu estilo a alguns edifícios particulares, como o Palácio do Freixo, dos Leme Cernache». Maria do Carmo Serén e Gaspar Martins Pereira comportam-se como os empedernidos historiadores da arte portuguesa que condenam a chamada linguagem barroca, sem terem lido e assimilado a estética do barroco, tal como foi elaborada pelos grandes historiadores e filósofos alemães do barroco. Doravante, para fazer justiça ao arquitecto que veio de Itália para o Porto, o século XVIII portuense será conhecido como o século de Nicolau Nasoni. Os malditos portugueses dizem desprezar, talvez por inveja, aquilo que os nórdicos - em especial alemães, noruegueses, suecos, dinamarqueses, holandeses e ingleses - mais amam no Porto: a sua arquitectura barroca, não só a arquitectura religiosa mas também a arquitectura civil. Mas há uma outra razão que leva as criaturas das trevas - os portugueses, claro! - a tentar omitir o nome de Nicolau Nasoni, atribuindo a sua obra a nativos portuenses ou portugueses: o seu ódio-inveja pelo estrangeiro e pelo distinto, um ódio que devia ser erradicado da cidade do Porto, cuja cultura é, como já vimos noutro lugar, uma cultura de abertura ao mundo. Porém, quando tentam apropriar-se da obra alheia, como se fossem ladrões, são obrigados a reconhecer que Nicolau Nasoni - o mais ilustre dos portuenses - fez escola: a primeira grande escola de arquitectura do Porto está ligada ao nome de Nasoni, cuja biografia sofre agora uma nova modificação para tentar explicar a miséria em que morreu em 1773. Nascido nas terras de Toscana, Nasoni veio para o Porto, onde viveu, construiu, edificou, moldou o espaço e amou até à sua morte. Mas, antes de se fixar definitivamente no Porto, Nasoni fez a sua própria cronologia numa outra geografia e numa outra sociedade. Convém, portanto, recuperar a memória dessa outra localização social e geográfica de Nasoni. Nasoni viveu em Sienna, onde aprendeu pintura, artes decorativas e arquitectura, tendo como mestres Giuseppe Nicola Nasini (pintor) e Franchim e Vicenzo Ferrati (arquitecto). Em 1712, quando se realizaram as cerimónias fúnebres de Fernando III de Médici, Nasoni era responsável pelo cadafalso para a Catedral de Sienna. Quando ingressou na Academia de Artes - Istituto dei Rozzi, para aperfeiçoar os seus conhecimentos, os seus colegas deram-lhe a alcunha de Il Piangollegio. Em 1715, a Academia de Artes escolheu Nasoni para realizar os trabalhos artísticos da recepção do novo arcebispo de Sienna, sobrinho do Papa Alexandre III. Mais tarde Nasoni trabalhou no Carro de Marte que desfilou no cortejo das comemorações em honra da eleição do novo grão-mestre da Ordem de Malta. A sua participação regular nestas celebrações chamou a atenção do Conde Francisco Picolomini, amigo de D. António Manuel Vilhena, futuro grão-mestre da Ordem de Malta. Desta sua arte efémera nada resta. De Sienna Nasoni foi para Roma e, mais tarde, para Malta, onde pintou um tecto do Palácio de Valeta, em 1724. Ora, esta obra foi dirigida por D. António Manuel de Vilhena, o grão-mestre português da Ordem de Malta: a conexão com o Porto estava estabelecida. Na Ilha de Malta, Nasoni teve contactos com fidalgos e figuras da Igreja Católica, entre as quais D. Roque Távora e Noronha, irmão do Deão da Sé-Catedral do Porto, D. Jerónimo Távora e Noronha, que, por sua recomendação, convidou Nasoni a deixar Malta para vir para a cidade do Porto, o palco rico e próspero de uma grandiosa revolução artística. A data da sua chegada ao Porto é desconhecida: os trabalhos de pintura na Sé-Catedral do Porto - o magnífico edifício de matriz românica - iniciaram-se em Novembro de 1725. O comércio com o Brasil e o vinho do Porto contribuíram para a prosperidade do Porto Setecentista, que não passou despercebida a Nasoni: o Porto era não só o palco de uma imensa revolução artística como também o palco da riqueza. Qualquer artista digno deste nome apaixona-se facilmente pelo Porto e Nasoni não escapou a esta atracção artística quando trocou definitivamente a sua terra natal pelo Porto, onde se fez artista-homem de negócios portuense. Porém, como já vimos, os últimos documentos posteriores a 1758 dão-nos Nasoni "como pobre". Magalhães Basto descobriu uma Acta da Vereação da Câmara do Porto, realizada em 27 de Fevereiro de 1762, na qual foi nomeado determinado indivíduo - Inácio José Xavier de Meireles - para exercer o cargo de Escrivão de Almotaçaria, por desistência que desse cargo fizera António Mascarenhas Nasoni, «o qual se acha degredado por toda a vida para os Estados da Índia». António Mascarenhas que tinha assumido aquelas funções em 10 de Maio de 1749, era filho de Nasoni. Tendo sido envolvido num "caso de corrupção", ele foi degredado para a Índia. Ora, esta tragédia deve ter ensombrado a velhice de Nasoni, levando-o à miséria, provavelmente com a ajuda de pessoas muito invejosas, capazes de mentir para obter benefícios privados. De uma coisa estou certo: os portugueses são capazes de fabricar mentiras para prejudicar o próximo, em benefício próprio. A glória artística de Nasoni criou certamente muitos inimigos, mas desses inúmeros malfeitores portugueses não há memória digna de mérito: os verdugos não têm rosto, nem história; eles pertencem a todos os tempos. Como escreveu Pitigrilli: «O tempo fica, não é verdade que passe. Fica nas coisas, a fim de que um pouco de nós sobreviva ao desaparecimento. As casas decrépitas e os móveis antigos têm uma alma feita de emanações do passado; conservam os séculos no seu gesso e nas suas fibras; são acumuladores de tempo, de ternura, de sentimentos estratificados, que se volatilizam, oferecendo-nos quotidianamente sem que demos por isso - transformando assim o túmulo da história em poesia taciturna». Nicolau Nasoni não "morreu", pelo menos a sua obra artística continua viva; ele vive na cidade que ajudou a edificar e a imortalizar, a cidade que hoje nos dá abrigo. A cidade do Porto atesta a imortalidade de Nasoni. 

J Francisco Saraiva de Sousa