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domingo, 22 de abril de 2012

A Filosofia segundo Wittgenstein

Ludwig Wittgenstein
«O método correcto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, isto é, as proposições das ciências naturais - e portanto sem nada que ver com a Filosofia - e depois, quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante - uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia - mas este seria o único método estritamente correcto. /As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela.) /Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo direito. /Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio.» (L. Wittgenstein)

No espaço de língua oficial portuguesa, muitos são os que invocam o nome de Wittgenstein, mas poucos são os que leram a sua obra e a compreenderam. O texto que aparece em epígrafe foi sacado de uma tradução portuguesa do Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein: reparem que os dois últimos parágrafos estão traduzidos de um modo grosseiro que dificulta a compreensão elegante das frases originais de Wittgenstein, como se o tradutor se tivesse posicionado logo à partida diante de um enigma indecifrável. Ora, a linguagem de Wittgenstein é simples e perfeitamente inteligível: ele não foi um filósofo "obscuro" como Heraclito ou Hegel. Os utentes da língua portuguesa têm o terrível hábito de tornar obscuro aquilo que é transparente, mas nós já sabemos que esse hábito resulta da sua impreparação para a Filosofia, que, no caso brasileiro, tende a ser agravada pelo empobrecimento da própria língua. A Filosofia só pode ser dita e pensada numa língua dotada de uma gramática precisa e de uma ortografia que não permita equívocos. (Abaixo o Acordo Ortográfico!) Quem não domina plenamente a língua materna não pode compreender qualquer outra língua e muito menos traduzi-la para a sua própria língua: o resultado fatal desta mediocridade linguística são as más traduções que enchem as nossas livrarias. A indigência cognitiva e mental começa com a regressão linguística: os utentes da língua portuguesa são utentes medíocres, incapazes de falar sobre aquilo que pode ser dito e pensado na sua língua. A Filosofia é precisamente o contrário daquilo que Wittgenstein pensa ser: a Filosofia é o esforço de dizer aquilo que aparentemente não pode ser dito. A Filosofia nunca se cala. Todo o silêncio filosófico é cúmplice do mal-existenteeis a tese que pretendo opor à concepção de Wittgenstein. 

Como é evidente, para expor a concepção de Filosofia de Wittgenstein, seria necessário abordar toda a sua filosofia, em especial as temáticas da certeza, do mundo, do sujeito, da duplicação da realidade, da temporalidade, da linguagem, da compreensão, do complexo e coisa, do significado como jogo de linguagem, das regras, da exactidão e inexactidão, da gramática e lógica, do dado, enfim da vontade, religião e ética, levando em conta o desenvolvimento do seu pensamento filosófico. De momento, para avançar, sou obrigado a deixar esse estudo mais exaustivo para uma outra oportunidade, provavelmente quando resolver confrontar Wittgenstein com Althusser, um exercício que já levei a cabo num seminário: ambos encaram a Filosofia como uma actividade: «A Filosofia não é uma ciência da natureza. (...) O objectivo da Filosofia é a clarificação lógica dos pensamentos. A Filosofia não é uma doutrina, mas uma actividade. Um trabalho filosófico consiste essencialmente em elucidações (conceptuais). O resultado da Filosofia não é "proposições filosóficas", mas o esclarecimento de proposições (científicas). A Filosofia deve tornar claros e delimitar rigorosamente os pensamentos, que doutro modo são como que turvos e vagos» (Wittgenstein). Karl Popper escreveu um texto - How I see Philosophy - onde ataca esta concepção da Filosofia como actividade: o alvo da sua crítica foi a concepção de Friedrich Waismann e, por seu intermédio, a concepção de Wittgenstein e do Círculo de Viena. O texto de Popper assume a forma de uma apologia pro vita sua, isto é, de uma defesa da sua existência, cujo modelo se encontra na Apologia de Sócrates de Platão. Também Merleau-Ponty fez o seu Elogio da Filosofia, Heidegger elaborou o seu texto Qu'est-ce que la Philosophie? e Adorno escreveu a sua Justificação da Filosofia: a Filosofia precisa de fazer a sua própria apologia sempre que as épocas não sejam favoráveis ao seu sangue vital, a crítica. A necessidade deste exercício de defesa da sua existência mostra que a Filosofia incomoda o poder instituído na sociedade, e incomoda-o porque tenta dizer a verdade que o poder oculta: a Filosofia diz aquilo que o poder não quer que seja dito. Wittgenstein preocupou-se mais com a relação entre filosofia e ciências do que com a relação entre filosofia e política: Lenine ensinou-nos que a Filosofia se define por um duplo vínculo, o vínculo com as ciências (ponto nodal nº 1 de Althusser) e o vínculo com a política (ponto nodal nº 2 de Althusser). Ao contrário da ciência que une sem dividir, a Filosofia divide e só pode unir dividindo. Sabemos o que isso significa para a filosofia de Lenine: a Filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria. Ora, dado que representa a política na instância das ciências, «a Filosofia não se explica pela simples relação que mantém com as ciências» (Althusser): eis aqui a divergência fundamental entre as posições de Lenine e as de Wittgenstein, aliás evidenciada na sugestão de Lenine sobre como analisar adequadamente "este copo de água" sobre a mesa, de modo a descobrir a história na fala quotidiana - a linguagem diária de Wittgenstein - como uma dimensão oculta de significado. No entanto, apesar do apego do segundo Wittgenstein ao uso comum da linguagem, a leitura aprofundada da sua obra permite descobrir uma concepção similar de Filosofia como prática filosófica, da qual me distancio através de uma inversão completa das posições filosóficas em relação às ciências. Para expor essa inversão seria obrigado a fazer a minha própria defesa da Filosofia, tarefa que está fora do âmbito deste texto. Em vez disso, vou recriar os textos de Wittgenstein, acampanhando-os a par e passo, de modo a subverter de dentro a sua própria concepção da Filosofia.

Diz Wittgenstein que o homem tem o impulso de investir contra os limites da linguagem: «Lutamos com a linguagem. Estamos envolvidos numa luta com a linguagem» (1931). As raízes do filosofar fundam-se neste impulso, mediante o qual o homem procura ir mais além da linguagem, dizendo o que não pode ser dito. Este investimento contra os limites da linguagem manifesta-se no espanto. Não há nada mais auto-evidente do que o facto de que eu sou e de que o mundo é, e, no entanto, espanto-me com a existência do mundo ou mesmo quando me ouço a falar. O espanto não é uma pergunta, nem tão-pouco pode expressar-se em forma de pergunta, porque não há resposta para ele. O espanto mostra o limite. Todas as filosofias são extremamente complicadas quando procuram dar uma resposta à pergunta O que nos faz pensar? Wittgenstein retoma o espanto admirativo - algo que é sofrido - não tanto como ponto de partida do pensar, como sucede na filosofia grega, mas sobretudo como o mostrar o limite: «Os resultados da Filosofia são a descoberta da simples falta de sentido e das bolhas feitas pelo intelecto ao chocar com as fronteiras da linguagem. Elas, as bolhas, levam-nos a reconhecer o valor daquela descoberta. (...) Qual é a tua meta na Filosofia? Mostrar à mosca o caminho para sair do caça-moscas». O objectivo da Filosofia é, pois, eliminar mal-entendidos e ensinar saídas. O pensamento filosófico de Wittgenstein é atravessado por uma ruptura epistemológica, a qual, sendo preparada por um período de transição, durante o qual Wittgenstein realizou uma revisão radical da análise da linguagem como imagem da realidade, substitui a teoria da linguagem do Tratado Lógico-Filosófico por uma nova teoria da linguagem explicitada nas Investigações Filosóficas, cujo conceito-chave é o de que o significado de uma palavra ou de uma proposição é o seu uso na linguagem. Porém, esta ruptura não foi total, nem sequer foi uma abertura total a novos horizontes de significatividade linguística, na medida em que não envolveu o conceito da sua própria filosofia, elaborado em oposição à filosofia tradicional, caracterizada como essencialista e metafísica: a tarefa e o método da filosofia não foram abrangidos por esta ruptura. O Tratado Lógico-Filosófico acusa enfaticamente a filosofia tradicional de estar repleta de confusões conceptuais, afirmando que as proposições filosóficas carecem de sentido. Por isso, a tarefa da sua filosofia não é criar conteúdos filosóficos (doutrinas, teorias), mas clarificar e delimitar os pensamentos que podem ser ditos na linguagem significativa: a linguagem da filosofia tradicional está de tal modo doente que os seus problemas «surgem de uma má interpretação das nossas formas linguísticas» e de analogias equivocadas. E, para superar este estado de confusão mental, é necessário reconduzir «as palavras do seu uso metafísico (essencialismo) ao seu uso quotidiano (na linguagem ordinária)». Para Wittgenstein, os problemas filosóficos são pseudo-problemas, mais precisamente estados patológicos que surgem do encantamento da mente humana. A filosofia de Wittgenstein propõe-se lutar contra este encantamento ou enfeitiçamento, através da análise linguística. Ela é, portanto, uma terapia e a sua função é combater os problemas que carecem de sentido, não com o objectivo de os resolver, mas sim com o objectivo de os eliminar: «A linguagem arma a todos as mesmas ratoeiras: é uma imensa rede de caminhos transviados facilmente acessíveis. E assim vemos os homens, um após outro, a andar pelos mesmos caminhos e já sabemos onde é que tomarão um desvio, onde continuarão a andar em frente sem reparar na bifurcação, etc. etc. O que tenho de fazer é, portanto, erigir postes de sinalização em todas as bifurcações em que há caminhos errados, de modo a ajudar as pessoas perto dos locais perigosos» (1931). A tarefa da nova filosofia do primeiro e do segundo Wittgenstein é fundamentalmente a mesma, embora a sua crítica da filosofia tradicional tenha sido radicalizada no decurso do segundo período. Wittgenstein recusou sempre em todos os seus textos, mesmo nos textos anteriores ao Tratado, o domínio do meta-descritivo, que ele identifica com o domínio metafísico, como se ambos fossem o mesmo domínio. Em 1913, o jovem-Wittgenstein já dizia que «não há deduções em filosofia; a filosofia é puramente descritiva»: o método da sua filosofia é sempre descrever e tão-somente descrever, eliminando o que há de metafísico nos conteúdos da filosofia. A sua análise da linguagem pretende tão-somente fazer desaparecer os problemas filosóficos fazendo ver que são pseudo-problemas, para os quais não há respostas dentro dos limites da linguagem significativa. A descrição analítica da linguagem é o único método correcto de fazer e de praticar filosofia, porque, sem ele, recaímos na enfermidade da linguagem que a descrição analítica quer curar. A fuga à descrição implica sempre a renúncia à luta contra o encantamento patológico, do qual surgem os pseudo-problemas, porque somente com a descrição podemos eliminá-los e descobrir que não são verdadeiros problemas: «E não devemos produzir nenhuma espécie de teoria. Na nossa investigação não deve haver nada de hipotético. Toda a explicação tem que acabar e ser substituída apenas pela descrição. E esta descrição recebe a sua luz, isto é, a sua finalidade, dos problemas filosóficos. É claro que estes não são problemas empíricos, a sua solução estará antes no conhecimento do modo como a nossa linguagem funciona, de maneira a que de facto este modo seja reconhecido - apesar de um instinto para o não compreender. Estes problemas serão resolvidos não pela adução de novas experiências, mas pela compilação do que é há muito conhecido. A Filosofia é um combate contra o embruxamento do intelecto pelos meios da nossa linguagem. (...) De nenhuma maneira deve a Filosofia tocar no uso real da linguagem; só o pode enfim descrever. (...) A Filosofia, de facto, apenas apresenta as coisas e nada esclarece nem nada deduz. E uma vez que tudo está à vista, também nada há a esclarecer. Porque aquilo que está oculto, não nos interessa». A análise linguística do segundo Wittgenstein, as suas engenhosas perguntas e as suas brilhantes reflexões, não ultrapassam o âmbito da descrição, procurando pacientemente os possíveis significados - ou não-significados - das palavras, das questões e das proposições nos seus diversos usos em função dos variados contextos e circunstâncias, dentro de novos jogos de linguagem, e vendo-os em todas as suas facetas conforme o seu lema: «não penses, olha!» Estas análises terminam geralmente com uma nova interrogação que põe em questão tudo o que disse ao longo do exame do sentido da palavra ou da proposição. Se o primeiro Wittgenstein fazia afirmações, enunciando teses, o segundo Wittgenstein prefere colocar perguntas ou questões, satisfazendo-se mais com a busca de novos caminhos do que com as respostas. No entanto, ao reduzir o seu método filosófico à descrição, Wittgenstein estreitou logicamente o conteúdo da sua filosofia: o campo das suas questões filosóficas fica demasiado limitado ao descritível, o que o leva a ficar calado sobre as questões fundamentais do homem que ultrapassam o âmbito do fenoménico. É certo que o Tratado tinha referido algumas dessas questões - ética, sentido da vida, Deus, etc. -, mas fê-lo remetendo-as ao inexprimível na linguagem significativa e qualificando-as como tentativas desesperadas do investimento humano contra os limites da linguagem. O segundo Wittgenstein reconhece o carácter auto-mutilante da sua filosofia: «Donde provem a importância da nossa investigação (filosófica), uma vez que ela parece destruir tudo o que é interessante, isto é, tudo o que é grande e importante? (Como todos os trabalhos de construção, que só deixam atrás de si algumas pedras e lixo!) Mas só destruímos castelos no ar, libertando o terreno da linguagem em que assentavam». Wittgenstein descarta-se do interessante, grande e importante, dizendo que essas questões não fazem parte do campo do exprimível da linguagem significativa. O místico - a sua realidade, a sua vivência da experiência do limite como tal e a sua inefabilidade - que tinha ocupado um lugar importante no Tratado, desaparece completamente nos textos de transição e na sua última obra. É certo que o homem Wittgenstein confessa a sua nostalgia da fé perdida ao seu amigo Engelmann, mas o filósofo Wittgenstein não altera substancialmente a sua perspectiva filosófica. A diferença entre os limites da linguagem significativa no primeiro e no segundo Wittgenstein pode ser formulada de maneira precisa: o primeiro afirma que só são significativas as proposições das ciências naturais; o segundo diz que só são significativas as proposições descritivas de todas as ciências humanas e da linguagem diária, bastando pensar nas observações sobre O Ramo Dourado de James Frazer. O primeiro Wittgenstein coloca a fronteira da linguagem significativa no metafísico, afirmando que «a totalidade das proposições verdadeiras é toda a ciência natural (ou a totalidade das ciências da natureza)», cabendo à Filosofia a tarefa de «delimitar o que é pensável, do interior, através do pensável». O segundo Wittgenstein põe a fronteira da linguagem significativa no meta-descritivo, cuja fronteira é a mesma do metafísico. Apesar da fronteira imposta pelas ciências da natureza ter sido ampliada, até incluir o campo das ciências humanas e da linguagem ordinária, a fronteira constituída pelo descritivo deixa intacta a fronteira do metafísico. Wittgenstein justifica o seu método filosófico pelos seus resultados: denunciar e eliminar os pseudo-problemas do meta-descritivo, reconduzindo-os ao seu uso na linguagem ordinária, a matriz de toda a linguagem significativa. Os resultados da investigação filosófica de Wittgenstein não são tão "magros" como se pensa: os seus textos póstumos permitem esboçar uma concepção do homem - uma "solução" para a questão do homem - que se situa para lá da experiência e da verificabilidade empíricas. Além disso, Wittgenstein não foi um admirador incondicional da ciência: «As questões científicas podem interessar-me, mas de facto nunca me prendem. Isso só acontece com questões conceptuais e estéticas. No fundo, é-me indiferente a solução dos problemas científicos; mas não a de problemas de outra espécie» (1949). As Investigações Filosóficas dão conta de uma outra faceta da ampliação da fronteira, a do pluralismo dos métodos e das terapias: «Não há um método mas há na Filosofia, de facto, métodos, tal como há diversas terapias». O que devemos questionar na filosofia de Wittgenstein é o facto da recondução das questões fundamentais ao seu uso real na linguagem comum obrigar a Filosofia a deixar «tudo ser como é»: «O filósofo é quem tem de curar em si mesmo muitas doenças do intelecto, antes de poder aceder às noções do senso-comum» (1944). Este elemento ideológico que se abriga no seio da filosofia de Wittgenstein foi denunciado por Marcuse, que viu nas suas declarações mais enfáticas a exibição de um sadomasoquismo académico, de uma auto-humilhação e de uma auto-denúncia do intelectual cujo trabalho não repousa nos logros científicos e técnicos: «Através de todas as obras dos analistas da linguagem encontra-se esta familiaridade com o homem comum, cuja maneira de falar desempenha um papel fundamental na filosofia linguística. A simplicidade da palavra é essencial enquanto exclui desde o início o vocabulário intelectual da "metafísica"; milita contra o não-conformismo inteligente, ridiculariza o intelectual "cabeça de ovo". A linguagem de Fulano e de Sicrano é a linguagem que o homem da rua verdadeiramente fala; é a linguagem que expressa o seu comportamento; é, portanto, o signo da concreção. Contudo, é também o signo de uma falsa concreção. A linguagem que fornece a maior parte do material para a análise é uma linguagem purgada não apenas do seu vocabulário "não-ortodoxo", mas também dos meios de expressar quaisquer outros conteúdos que não sejam fornecidos aos indivíduos pela sua sociedade. A análise linguística descobre esta linguagem purgada como um facto real e usa esta linguagem empobrecida tal como a encontra, isolando-a daquilo que não está nela expresso, embora entre no universo estabelecido do discurso como um elemento e um factor do seu significado. Rendendo homenagem à variedade dominante de significados e usos, ao poder e ao senso-comum da fala ordinária, enquanto bloqueia (como material estranho) a análise do que essa fala (quotidiana) diz sobre a sociedade que a fala, a filosofia linguística suprime uma vez mais o que é continuamente suprimido neste universo do discurso e do comportamento. A autoridade da filosofia dá a sua bênção às forças que fazem este universo. A análise linguística abstrai-se do que a linguagem ordinária revela ao falar como fala: a mutilação do homem e da natureza». O confronto das perspectivas de Gramsci e de Wittgenstein sobre o senso-comum ajudaria a clarificar esta crítica de Marcuse e, sobretudo, a definir a especificidade da linguagem filosófica por oposição à linguagem quotidiana de Fulano, Sicrano e Beltrano. (Adorno elucidou a linguagem filosófica ou, como lhe chamou, a terminologia filosófica naquele que foi o seu derradeiro curso de iniciação à Filosofia para estudantes graduados.) No seu esforço contínuo de dizer o que não pode ser dito, dentro dos limites do discurso do poder instituído, a Filosofia recusa reduzir a sua linguagem ao seu uso humilde e comum: o programa de Wittgenstein de redução masoquista da linguagem ao uso comum é-lhe absolutamente estranho. A Filosofia recusa comprometer-se, em todos os seus conceitos, com o estado de coisas estabelecido: o seu grande compromisso é com a possibilidade de uma nova experiência, precisamente aquela experiência que não pode ser dita dentro dos limites do discurso dominante.

obsessão pela linguagem de Wittgenstein deve ser compreendida num contexto mais amplo, onde a filosofia continental - filosofia existencialista, fenomenologia, ontologia fundamental, teoria crítica, marxismo, hermenêutica, crítica da ideologia - se cruza com a filosofia anglo-saxónica - filosofia analítica, positivismo lógico, semântica. Esta oposição espiritual que expressa oposições relacionadas à mentalidade humana, em especial à mentalidade nacional, além das oposições de orientação objectiva e metódica do pensamento, pode ser ilustrada por meio de uma geografia cultural: de um lado, o território de predominância teuto-francesa, com irradiações na Europa Meridional e na América Latina, e, do outro lado, o território de predominância anglo-saxónica, com irradiações na Escandinávia. O empreendimento heideggeriano do desdobramento da metafísica em técnica choca frontalmente com o carácter progressista da filosofia anglo-saxónica, traduzindo o ressentimento humanista das culturas latinas contra a predominância da civilização tecnológica. Karl-Otto Apel realizou uma análise interessante do cruzamento entre estas duas grandes tradições do pensamento ocidental, através do confronto-relação-aproximação entre Heidegger e Wittgenstein, estabelecendo como ponto comum o questionamento da metafísica ocidental enquanto ciência teórica: a desconstrução da metafísica foi levada a cabo por Heidegger a partir do esquecimento do Ser, isto é, da auto-alienação da "ek-sistência" humana que não compreende verdadeiramente o seu anseio mais próprio, o Ser, sucumbindo à visão do ente com o qual se confronta intramundanamente, e por Wittgenstein a partir da auto-alienação da linguagem, cuja verdadeira função foi esquecida pela filosofia. Ora, estas duas desconstruções da metafísica foram precedidas pela desconstrução de Marx, cuja crítica da metafísica tradicional tem como ponto de partida uma suspeita fundamental: a suspeita ideológica de Marx contra a metafísica que antecedeu - possibilitando-a - a suspeita wittgensteiniana da falta de sentido e a suspeita heideggeriana do esquecimento do ser. (A leitura de Kostas Axelos de Marx como pensador da técnica aproxima-o de Heidegger: uma obra brilhante eclipsada pelo pensamento frouxo neoliberal.) A ponta de lança da obsessão da filosofia pela linguagem foi, sem dúvida, a filosofia anglo-saxónica, logo a partir do empirismo e do nominalismo de John Locke e David Hume: «Estamos convencidos de que a filosofia não está em condições de rivalizar directamente com as ciências, das quais é, por assim dizer, uma actividade secundária, o que quer dizer que não versa directamente sobre os factos, mas sobre a maneira em que expressamos os factos». A. J. Ayer tematiza aqui a secundariedade da filosofia em relação às ciências: as ciências ocupam-se da descrição e da explicação da realidade extralinguística, enquanto a filosofia se ocupa da linguagem, sobretudo da linguagem na qual as ciências formulam a sua representação da realidade. A filosofia que no passado foi "escrava da teologia", seria hoje escrava da ciência: a ambição ontológica da filosofia de falar do real e de enunciar a verdade mais definitiva a propósito da realidade mais essencial deve ser abandonada a favor das ciências e de uma actividade filosófica metalinguística. Esta posição defendida pelo neopositivismo lógico encontra-se presente no Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein (1921), sendo posteriormente generalizada de modo a fazer da filosofia uma descrição e uma análise da linguagem, dos usos e das funções de todas as linguagens e não apenas da linguagem das ciências. Foi um filósofo continental, precisamente Wittgenstein, que ajudou a difundir esta análise filosófica da linguagem no universo anglo-saxónico. A filosofia analítica enquanto filosofia da linguagem ordinária, em oposição à filosofia da linguagem lógica e científica praticada pelo neopositivismo lógico, sobretudo por Rudolf Carnap, ganhou corpo a partir das Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1953). A filosofia da linguagem ordinária foi professada por grupos filosóficos, dos quais V. C. Chappell destacou dois dos mais importantes: o primeiro grupo inclui filósofos que foram influenciados mais ou menos directamente por Wittgenstein, tais como Wisdom, Malcolm, Waismann, Anscombe, Bouwsma e Lazerowit, todos eles interessados em mostrar a correcção da linguagem comum; e o segundo grupo conhecido como Escola de Oxford, cujos membros mais eminentes foram Gilbert Ryle, John L. Austin, Peter F. Strawson, Hart, Hampshire, Hare, Urmson e Warnock, interessou-se mais pelos detalhes reais da linguagem comum e pela elaboração de conclusões filosóficas gerais. Assim, por exemplo, Austin, em vez de se questionar sobre a percepção como processo real, interrogou-se sobre o vocabulário da percepção e sobre a maneira como utilizamos os termos e as expressões que pertencem ao campo semântico da palavra "percepção". Como estamos distantes da grandiosa reacção hegeliana ao poderio crescente das ciências e do pensamento positivo! Desafiada pelas conquistas das ciências, a filosofia académica capitula e afunila a sua ambição teórica, entregando o destino da humanidade e da biosfera aos caprichos da racionalidade instrumental. É certo que muitos destes filósofos estavam convencidos de que as suas investigações linguísticas ajudavam a clarificar a realidade, mas o espírito que presidia a elas era o de preparar o terreno para futuras investigações científicas, como o demonstra a teoria dos actos de fala de John Searle. No entanto, como a consciência e a experiência humanas das coisas estão mediadas pelas palavras e pelos símbolos (Cassirer), um mediação pensada de modo brilhante por Mikhail Bakhtin, cuja obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais é, toda ela, uma filosofia (marxista) da linguagem, a filosofia analítica não resistiu ao poder de atracção exercido pela fenomenologia da linguagem, tal como foi esboçada, por exemplo, por Merleau-Ponty. Esta convergência da filosofia linguística e da fenomenologia pós-husserliana atenuou o abismo que separava a filosofia continental e a filosofia anglo-saxónica, dando início à própria decomposição da filosofia analítica, até porque o interesse pela linguagem surgiu no continente europeu como reacção à tecnociência contemporânea, cuja missão é a transformação técnica da realidade e a reestruturação radical da condição humana. O vínculo operativo - e não simbólico - da tecnociência (Derrida) com a realidade deslocou a primazia do homo locuax para o homo faber, fazendo com que a linguagem perdesse importância na definição da forma de vida e enfraquecendo a definição aristotélica do homem como "ser vivo que fala" (zoon logon ekhon). É contra este questionamento radical do privilégio da linguagem para a forma de vida que reagem o segundo Heidegger e Derrida. A segunda teoria da linguagem de Wittgenstein não é alheia a esta nova problemática filosófica. Graças à filosofia analítica, a análise descritiva da linguagem constitui uma base necessária e insubstituível para toda a filosofia, embora não se deva reduzir toda a actividade filosófica a essa descrição analítica da linguagem. As Investigações Filosóficas de Wittgenstein denunciam a sua concepção anterior da linguagem como imagem da realidade e como cálculo lógico, ao mesmo tempo que levam a cabo a desconstrução dos mitos subjacentes a essa concepção, um dos quais é o mito do logos, segundo o qual o pensamento é uma espécie de linguagem interior, imaterial e racional, capaz de realizar o ideal linguístico que as línguas naturais e concretas não conseguem encarnar de modo perfeito. A filosofia tradicional descreveu o pensamento como o atributo ou a actividade própria de uma substância ou de um ente muito especial, denominado espírito ou alma. Ora, para o segundo Wittgenstein, o pensamento mais não é do que o uso monológico, interior e silencioso da linguagem, a qual é fundamentalmente pública, dialógica e social. Ao negar o carácter privado da linguagem, Wittgenstein aproxima-se da filosofia da linguagem de Bakhtin, mas o seu cogito é de tal modo sobre-socializado que se torna incapaz de pensar para além dos limites impostos pela linguagem comum falada pela sua sociedade e pelo poder instituído: a "mosca" não consegue sair da garrafa e a filosofia tal como a define Wittgenstein pouco pode fazer para a ajudar a encontrar uma saída: «Não podes construir nuvens. E é por isso que o futuro com que sonhas nunca se realiza» (1942). (E, no entanto, o mesmo Wittgenstein é autor de dois aforismos magníficos: «Querer pensar é uma coisa: ter talento para o fazer, outra» (1944), ou então: «Ninguém pode pensar por mim um pensamento, da mesma maneira que ninguém pode por mim pôr o meu chapéu» (1929).) A linguagem é constituída por uma quantidade indefinida de jogos de linguagem que estão associados a actividades práticas executadas em determinados contextos naturais, sociais, técnicos ou mesmo históricos: todo o jogo de linguagem é solidário de uma forma de vida. Embora só apareça cinco vezes nos textos de Wittgenstein, o termo "Lebensform" desempenha um papel importante na teoria dos jogos de linguagem enquanto mediadores das relações palavra-objecto (Cf. Merrill B. Hintikka & Jaakko Hintikka): «Falar uma linguagem é participar numa forma de vida». A forma de vida é algo que pertence à linguagem e que a constitui: a atitude do homem no seu «modo de pensar e de viver» a sua vida está implicada no uso da linguagem. Para o segundo Wittgenstein, o significado de uma palavra ou de uma proposição é o seu uso na linguagem: as palavras entram em diversos contextos linguísticos segundo determinadas regras explícitas ou implícitas (Cf. S. Kripke). Wittgenstein chama gramática do profundo ao conjunto das regras de uso que constituem o significado de um signo, atribuindo-lhe a tarefa de descrever o uso dos signos, sem recurso a uma super-regra susceptível de regular o uso das regras. A linguagem com as suas regras responde a determinadas necessidades e exigências da vida humana e exerce determinadas funções em situações concretas: o uso nasce da vida e muda ao longo do tempo. Wittgenstein contrapõe à linguagem formalizada das ciências a linguagem diária, não como algo absoluto, mas como algo básico e insubstituível na análise linguística: a linguagem quotidiana está aí como um facto previamente dado e sempre vivo na criação de novos modos de a usar e no uso fluído que os homens fazem dela. A linguagem diária é a matriz permanente da qual nascem todas as outras linguagens, o único meio universal da comunicação entre os homens. A linguagem das ciências não goza de nenhum privilégio como ponto de partida da análise linguística e, por isso, não deve ser tomada como modelo ou ideal do conhecimento humano, até porque, ao unificar e dar homogeneidade àquilo que flui, nega a diversidade e o devir dos múltiplos jogos de linguagem. Não há, portanto, jogo privilegiado de linguagem: a descrição teórica é apenas um jogo de linguagem-forma de vida entre tantos outros instrumentos que funcionam de acordo com regras e finalidades completamente diferentes e irredutíveis entre si. Cada um dos diversos jogos de linguagem tem um carácter público, no sentido de ser partilhado por um grupo de sujeitos falantes que jogam o mesmo jogo e observam as mesmas regras. O que garante a estabilidade e a identidade de um jogo de linguagem é o facto de depender desta prática comum, unida à educação, ao treino, à cultura, aos hábitos, aos costumes, à observância, enfim à forma de vida partilhada por todos os membros de um grupo. Compreende-se agora o interesse de Wittgenstein pela etnologia: ela revela-lhe uma multiplicidade de jogos de linguagem heterogéneos e irredutíveis entre si. A linguagem humana é uma instituição que não foi estabelecida nem por Deus nem pela natureza: a regra que governa a acção comum só existe enquanto essa acção a respeite e a aplique. A observância da regra exclui a busca de um fundamento último: as implicações desta proibição no domínio da filosofia da matemática e da lógica - uma meta-linguagem é um outro jogo de linguagem! - são sobejamente conhecidas; o que ainda não se compreendeu é que as Investigações Filosóficas tentam desviar-nos da própria ideia de "teoria". O pessimismo congénito de Wittgenstein levou-o - depois de 1945 - a desejar que a bomba atómica provocasse a destruição total da humanidade e da sua "água suja": a ciência moderna. Como seríamos todos mais felizes se a humanidade fosse extinta! 

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de março de 2012

Guerra Junqueiro: Ruínas

Porto: Torreão-Cisterna,
Rua Barão de Nova Sintra
«Eu amo a noite sombria; /Amo as trevas mais que o dia, /Pois consolam na tristeza, /E dão alívio e firmeza /A quem se acolhe ao seu manto. /Ó sombras da noite escura, /Dai-me estrofes de amargura! /Ó noite, inspira meu canto. (...) Eu não tenho quem deplore /A minha morte, ninguém; /Não tenho pai que me chore, /Tão-pouco não tenho mãe. /E depois, que importa ao mundo, /O ser que morre, que vai? /É gota do mar profundo, /E no ar perdido um ai». «O fundo da alma portuguesa, visto com os olhos, é azul e branco». (Guerra Junqueiro)

Guerra Junqueiro teve a infelicidade de nascer em Portugal, o ermo onde o pensamento essencial não germina. Os portugueses são demasiado medíocres para apreciar a sua poesia e o pensamento que se abriga em cada um dos seus poemas. Hoje estive a reler algumas páginas portuguesas dedicadas ao pensamento de Guerra Junqueiro: a crítica que António Sérgio, talvez o mais burro dos portugueses, lhe dirige revela, exemplificando-a, a incapacidade inata dos portugueses para compreender a novidade de uma obra que transcende a mediocridade do horizonte cognitivo nacional. António Sérgio projecta a sua própria estupidez na obra alheia, procurando ridicularizar aquilo que, ele próprio, introduziu furtivamente nela: António Sérgio é, portanto, um projecto que se auto-anula, tropeçando nos seus raciocínios esqueléticos. Porém, os maiores inimigos de Guerra Junqueiro não são tanto os seus adversários declarados mas sobretudo os seus supostos aliados, que o filiam à matriz obscura do pensamento português. Leonardo Coimbra dedicou-lhe uma obra inteira, ou melhor, um conjunto de textos recolhidos em livro. Já escrevi um longo ensaio para libertar o pensamento de Guerra Junqueiro da leitura de Leonardo Coimbra: a chave de leitura que utilizei para elucidar o pensamento essencial de Guerra Junqueiro permitiu-me esboçar um projecto estético e político para a História de Portugal, do qual apenas resta o projecto dos quadros portuenses. Precisava de mais uma vida para realizar o projecto inicial, mas, como não a tenho, preferi substituir Portugal pela Cidade do Porto. Uma suspeita antiga confirmou-se subitamente durante a tarde de hoje: a magia que a palavra "ruínas" desperta em mim não me permitiu ver que, no poema Ruínas de Guerra Junqueiro, há um outro andamento, um outro caminho a percorrer, para o qual a minha filosofia da história tinha vedado o acesso: «A consciência humana é um monte de destroços». Sabia da sua existência, meditei-a longamente, mas foi preciso reformular a minha concepção da história para lhe dar acesso. Na poesia de Guerra Junqueiro, as ruínas adquirem uma extensão conceptual raramente vista num outro poeta, numa articulação fantástica com uma nova concepção de infância: «Oh, que existência doirada /Lá cima, no azul, na glória, /Sem cartilhas, sem tabuada, /Sem mestre e sem palmatória. (...) Como querem que despontem /Os frutos na escola aldeã, /Se o nome do mestre é - Ontem /E o do discíp'lo - Amanhã!» Ou então estes versos: «Vendo esta velhinha, encarquilhada e benta, /Toque, toque, toque, que recordação! /Minha avó ceguinha se me representa... /Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta, /Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!» Eis os dois sonetos desse grande poema:

I

«E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.

Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!...

Ó ciência, minha amante, é sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo...
Nunca o teu lábio conheceu piedade!

Mas caia embora o velho paraíso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.

II

Morreu-me a luz da crença - alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.

A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.

Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herói antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.

A implacável, a rígida ciência
Deixou-me unicamente a Providência,
Mas, deixando-me Deus, deixou-me tudo».

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Três Sonetos de António Nobre

Cidade do Porto: Ribeira
Estamos em Portugal, onde de vez em quando surge uma figura de génio que a mediocridade nacional se apressa a sepultar em vida. Nesta terra amaldiçoada pela Senhora Inveja, todas as figuras de génio foram sepultadas em vida, e, depois de mortas, as suas obras são encerradas em encadernações tumulares que invadem as livrarias a preços verdadeiramente proibitivos, como que a não incentivar a sua leitura. A cultura superior não é bem-vinda em Portugal, onde a cunha ou qualquer outro esquema corrupto valem mais do que todo o mérito de um homem nascido com a estrela da redenção. Não admira portanto que António Nobre tenha escrito estes versos: «Não me importas, País! seja meu Amo /O Carlos ou o Zé da T'resa... Amigos, /Que desgraça nascer em Portugal!» Sim, é uma desgraça, uma terrível desgraça, uma terrível fatalidade nascer em Portugal: o fatalismo que é atribuído a António Nobre não tem outro sentido a não ser o de um grito de desespero - o grito não escutado pelos carrascos! - daquele que é sepultado em vida por um corcel de alienados mentais. Portugal é o país maldito que sepulta em vida todos os que nasceram com a estrela da redenção: a figura de génio que tenha nascido nesta terra maldita é sempre-já exilada e enclausurada. O exílio interior é o destino de todos os portugueses de génio: «Que triste fado! /Antes fosse aleijadinho, /Antes doido, antes cego.../Ai do Lusíada, coitado!». O sepultamento em vida que é o exílio interior assume muitas formas, uma das quais é a negação do mérito. Em Portugal, todos são iguais, de modo terrivelmente nivelador, sobretudo depois desse fatídico dia que foi o 25 de Abril de 1974: os vizinhos - os malditos vizinhos! - da figura de génio não lhe reconhecem publicamente o mérito; roubam-lhe o mérito, apropriando-se das suas ideias como se elas lhes pertencessem: os portugueses são macacos de imitação que simulam ser e pensar aquilo que efectivamente não são e não pensam. Figuras absolutamente planas e superficiais que tomam emprestada uma profundidade que não lhes pertence. Quando um homem de génio como António Nobre se sente assaltado na sua essência única, no seu núcleo existencial, reage enaltecendo o seu próprio ego, o Eu-Virgílio: o carácter autobiográfico da poesia de António Nobre só pode ser compreendido como uma defesa do seu próprio eu num mundo que não tolera a diferença que se destaca da mediocridade nacional. Os portugueses comportam-se como zombies, mortos-vivos, que, para alimentar os seus corpos desabitados, precisam de sacar o sangue dos outros que são habitados por estrelas da redenção. O fatalismo dos portugueses de génio mais não é do que a filosofia que lhes permite conservar e proteger a autenticidade do seu núcleo existencial dos ataques da turba de medíocres. A afirmação do eu contra um mundo de corpos desalmados - a tirania da maioria desalmada! - constitui um acto de extrema coragem, cujo preço é a própria solidão. António Nobre (Porto: 1867-1900) publicou em vida uma única obra - , da qual assistiu a duas edições (1892, 1898), sendo as outras duas obras póstumas: Despedidas, que inclui um fragmento d' O Desejado (1902), e Primeiros Versos (1921). Hannah Arendt traçou uma distinção muito importante entre o estar isolado e o estar solitário: o indivíduo está isolado quando se encontra numa situação em que não pode agir porque não há ninguém para agir consigo, e está solitário quando se encontra numa situação em que, como pessoa, se sente completamente abandonado por toda a companhia humana. Deste modo, ao isolamento na esfera pública corresponde a solidão na esfera dos contactos sociais, sendo o primeiro um conceito político e o segundo um conceito existencial. Mas os dois conceitos não se excluem em certas situações distantes do governo totalitário, como o demonstra a condição de estar só de António Nobre. Epicteto ajuda a compreender esta condição do poeta portuense quando distingue entre o homem solitário, aquele que, apesar de estar rodeado por outros, não pode estabelecer contactos com eles, estando exposto à sua hostilidade, e o homem só, aquele que, estando sem companhia, pode desfrutar a companhia de si mesmo, já que tem a capacidade de falar consigo mesmo. A poesia de António Nobre é, toda ela, um diálogo de dois-em-um: o poeta aproveita a ocasião de não ter no mundo português um lugar reconhecido e garantido pelos outros concidadãos para estar consigo mesmo, na companhia do seu próprio eu, sendo assim dois-em-um, não só o Eu-António mas também o Eu-Portugal. A minha leitura do de António Nobre pretende apenas resgatar a sua poesia, dando resposta ao seu anseio tumular no reino da paz: «O tempo tudo põe no seu lugar e faz justiça a quem na tem». Ora, referindo-se à recepção da primeira edição do , António Nobre confessa em Janeiro de 1896: «Quando eu publiquei o meu livro, saíram-me ao encontro meia dúzia de bandidos que nos jornais me caíram em cima». A caricatura que Rafael Bordalo Pinheiro fez dele em 1892 mereceu-lhe este comentário, talvez o seu grande testamento: «Não devo ao meu país glorioso e lindo senão o acaso do nascimento. E com o parto do mais uma vez vi que a literatura portuguesa é uma Costa de África de penas, lutas, horrores». António Nobre não deve nada a Portugal, a não ser o acaso do nascimento e o seu próprio exílio. Portugal é um túmulo, Portugal é um ermo, no qual os portugueses não deixam germinar o génio. Buscar a companhia de si mesmo, em resposta à hostilidade dos outros, num diálogo interminável do eu consigo mesmo, é um acto que se abriga desde logo na proximidade da morte: «Toda a dor pode suportar-se, toda! (...) /Mas uma não: a dor do pensamento! /Ai quem me dera entrar nesse convento /Que há além da Morte e que se chama A Paz!» O acto de pensar implica um afastamento do mundo, de modo a que aquele que pensa possa estar a sós consigo mesmo, mas o pensamento que se pensa a sós visa sempre encontrar o seu caminho num mundo comum, através do seu reconhecimento pelos outros. Porém, quando se perde o mundo, a garantia recíproca e a esperança de modificar o mundo real na companhia dos outros, como sucedeu com António Nobre, cujo mundo já não é o mundo real mas o mundo-desejo do Eu-António, aquele a quem os portugueses negaram todas as suas tentativas de renascimento, corre-se o risco de perder o próprio eu, desejando a sua aniquilação: o Eu-Saudade, o Eu-Portugal mais não são do que desejos - ou configurações do desejo - do Eu-António que pensa na vizinhança da morte. Mas o suicídio é também a possibilidade virtual de um assassinato colectivo: a morte de Portugal tumular e dos bandidos que o povoam. A poesia de António Nobre vacila entre o suicídio e o homicídio, ambos figuras do desejo, sem fechar a porta a um eventual resgate futuro, o qual implica a morte de Portugal e o seu renascimento periódico, duplo-movimento inscrito na terrível dialéctica entre o colectivo aniquilador e o individual criativo. Eis o legado de António Nobre que transita de génio em génio, longe dos zombies assassinos que se apoderaram do destino de Portugal, o país quase-totalitário que obriga os seus génios a "serem infelizes para serem grandes", para parafrasear uma frase de António Nobre escrita em 1888.

Eis os três sonetos de António Nobre:

Em certo Reino, à esquina do Planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Pais,
Há quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fora não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À má-fé, numa traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reais!

E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa árvore de Heróis que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:

Nada me importas, País! seja meu Amo
O Carlos ou o Zé da T'resa... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal! (Coimbra, 1889)

Longe de ti, na cela do meu quarto,
Meu corpo cheio de agoirentas fezes,
Sinto que rezas do Outro-Mundo, harto,
Pelo teu filho. Minha mãe, não rezes!

Para falar, assim, vê tu! já farto,
Para me ouvires blasfemar, às vezes,
Sofres por mim as dores cruéis do parto
E trazes-me no ventre nove meses!

Nunca me houvesses dado à luz, Senhora!
Nunca eu mamasse o leite aureolado
Que me fez homem, mágica bebida!

Fora melhor não ter nascido, fora,
Do que andar, como eu ando, degredado
Por esta Costa d'África da Vida. (Coimbra, 1889)

Falhei na Vida. Zut! Ideais caídos!
Torres por terra! As árvores sem ramos!
Ó meus amigos! todos nós falhamos...
Nada nos resta. Somos uns perdidos.

Choremos, abracemo-nos, unidos!
Que fazer? Porque não nos suicidamos?
Jesus! Jesus! Resignação... Formamos
No Mundo, o Claustro-Pleno dos Vencidos.

Troquemos o burel por esta capa!
Ao longe, os sinos místicos da Trapa
Clamam por nós, convidam-nos a entrar:

Vamos semear pão, podar as uvas,
Pegai na enxada, descalçai as luvas,
Tendes bom corpo, Irmãos! Vamos cavar! (Coimbra, 1889)

J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 26 de novembro de 2011

Antropologia Filosófica no Scribd

Ponte da Arrábida ao anoitecer, Porto


Leia aqui uma recolha de alguns textos de antropologia filosófica da minha autoria: Scribd. (É só clicar em Scribd para ler!)

J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cesário Verde e a Cidade de Lisboa

Baixa Pombalina de Lisboa
«Júlio César Machado, Eça, Cesário Verde (e lá fora, Baudelaire e outros), convergem na expressão de idênticas inquietações revelando certos aspectos da vivência citadina. Spleen, tédio, ganham terreno ao longo da segunda metade do século XIX, a par e passo que se efectiva a urbanização em larga escala. São sentimentos "civilizados", ou seja, característicos dos homens que tiveram de adaptar-se ao crescimento das cidades e que, em dado momento, se sentiram muralhados nelas, como que ludibriados pela aventura urbana. Falta-lhes ar. Os largos horizontes, a noite estrelada ou luarenta, o ritmo lento do desenrolar dos dias, tradições tornadas hábitos atávicos, e condicionadas por uma vida que, mesmo quando urbana, tinha o campo à mão de semear, ou dentro da própria cidade, em cujos quintais vicejavam as couves e as árvores, e estralejava o cantar do galo, - tudo isso vai ser substituído. /Em vez dos largos horizontes do campo, as ruas sujas, movimentadas e rumorosas; em lugar da noite natural, de Lua e estrelas, a noite artificial e enjoativa do gás; em vez do ritmo estacional e dos anos, o galopar dos dias e das horas, numa pressa, numa "febre" que contagiava tudo e todos. Desse choque entre hábitos ancestrais e necessidades novas, resultam a instabilidade, o desajustamento, acre percepção da solitude. Solitude essa que, umas vezes, se condensa afectivamente no spleen, no tédio próprio das cidades, outras, em sonhos de evasão, ou de uma nova comunhão humana a constituir peça a peça, desde o princípio.» (Joel Serrão)

Eu não nasci no Porto, o Porto não foi o meu primeiro mundo, o meu mundo de berço, e, por isso, não guardo memórias de infância da Cidade Invicta. Não posso escrever um ensaio sobre a minha infância portuense, como fez Walter Benjamin em relação à sua infância vivida em Berlim, porque o Porto não me viu nascer para o mundo. Cheguei demasiado tarde ao Porto e, quando cheguei ao Porto vindo de outro mundo, apaixonei-me pelos seus telhados, não pelos seus habitantes que me hostilizaram, como se fosse um intruso cosmopolita que ameaçava privar a cidade das suas tradições e dos seus atavismos. Confesso que o meu desejo, tanto ontem como hoje, foi sempre livrar a Cidade Invicta de vastos sectores da sua população nativa. Não gosto dos portugueses e, para mim, os portuenses de berço são demasiado portugueses para merecer a minha simpatia. Onde há portugueses não há cultura urbana, precisamente a cultura que me moldou desde o berço. Sou um ser medularmente urbano que não sabe viver longe das grandes cidades: a experiência oitocentista da vida urbana é-me completamente estranha. A oposição entre a cidade e o campo que Eça tematizou em A Cidade e as Serras não faz sentido para um homem que vive a cidade como o seu mundo próprio. O campo aborrece-me de tal modo que não consigo lá permanecer mais de 5 ou 6 dias. Sou demasiado desassossegado e livre para querer viver uma vida tranquila num mundo que rejeita a modernidade. A aventura urbana só tem um rival digno de ser explorado: a selva. Se tivesse de escrever um livro sobre os mundos que me atraem, escolheria como título A Cidade e a Selva, porque é nesta oposição dialéctica que reside o fio condutor que me permite compreender a história da humanidade ao longo dos tempos e a minha própria história de vida. Sou filho de uma cópula paradoxal entre a cidade e a selva, os dois grandes mundos que me viram nascer e crescer e que serviram de palco activo à aventura que sou. A literatura portuguesa, sobretudo a literatura dos tempos modernos, é, quase toda ela, dominada pela indecisão entre a cidade e o campo, oposição esta que Cesário Verde tende a definir como oposição entre a civilização burguesa (cidade) e a Idade Média (campo), cada uma delas com o seu próprio tempo e o seu próprio ritmo: o tema da selva raramente foi tratado pelos autores portugueses. O único que escreveu sobre A Selva foi Ferreira de Castro, mas a sua selva brasileira está muito distante do imaginário mítico das terras selvagens. A oposição entre mito e história é profundamente estranha à literatura portuguesa. Júlio Dinis que traçou a morfologia urbana da cidade do Porto, em função do perfil económico e cultural dos seus habitantes, sobretudo no seu romance Uma Família Inglesa, acabou por se render ao campo, tal como Cesário Verde quando escreveu Nós (1884). Júlio Dinis e Cesário Verde, dois escritores portugueses que cresceram e se fizeram homens nos dois grandes centros urbanos de Portugal: o poeta Cesário Verde em Lisboa e o romancista Júlio Dinis no Porto. O meu projecto dos quadros portuenses, tal como os desenho mentalmente depois de ter chegado vindo de longe à Cidade Invicta, tem pouco a aprender com a poesia de crise de Cesário Verde e com o romance demasiado apegado a paisagens rurais de Júlio Dinis. Confrontar o universo urbano de Cesário Verde com os quadros parisienses de Baudelaire produz - involuntária e inadvertidamente - uma degradação da própria literatura portuguesa: a Lisboa de Cesário Verde não tem nada a ver com a cidade de Paris de Baudelaire. A bohème, o flâneur, o spleen e a modernidade são experiências estranhas ao universo lisboeta de Cesário Verde e, mesmo quando nos deparamos com elas na sua forma rudimentar e elementar, falta-lhes autenticidade. Paris de Baudelaire é dotada de todas as fantasmagorias que povoam as terras selvagens e que animam os seus mitos. Lisboa de Cesário Verde, tal como o Porto de Júlio Dinis, carece de magia, sendo feita de um cinzento monótono que quebra a respiração do poeta:


«O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba:
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.


«Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-se, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.


«E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.


«E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (O Sentimento dum Ocidental, 1880)


Joel Serrão teve o mérito de ter esboçado o quadro de Lisboa oitocentista, sem ter esquecido o Porto, como sucede frequentemente neste ermo chamado Portugal e mergulhado no abismo das negras trevas do provincianismo saloio pelas tristes almas vestidas de cirurgia pardacenta: «Durante o século XIX a população portuguesa cresceu a um ritmo seguro que, aliás, se vai acelerar na segunda metade dessa centúria. De 1822 (à volta de 3 milhões) a 1900 (aproximadamente 5 milhões), a grei lusa aumentou cerca de 2 milhões de indivíduos, acréscimo esse bem maior que toda a população da época dos descobrimentos... /Embora "oficialmente" houvesse 31 cidades, como acontece que Braga, o terceiro centro urbano quanto ao povoamento, contava em 1890 apenas 23 000 habitantes, é evidente que na realidade, só Lisboa e Porto vão adquirindo características de cidades "civilizadas". /De facto, os nossos dois maiores centros urbanos evidenciam um dinamismo até então desconhecido entre nós; assim, de 1864 a 1890, a população lisboeta passou de 163 763 para 391 206 e a do Porto de 86 751 para 146 739 habitantes. Ou seja, verifica-se que em 26 anos o número dos seus habitantes duplica. E a par de tal aumento populacional, as duas cidades, e mormente a capital, lá iam apresentando algumas das características das grandes cidades europeias suas contemporâneas. Aí se processa um fenómeno complexo que não só é demográfico mas também, e essencialmente, económico, social, técnico, o que, por seu turno, implica transformações culturais e psicológicas da mais variada gama. No conjunto da vida nacional, os tentáculos das duas cidades, e essencialmente de Lisboa, estendem-se pela província fora, despertando aqui e acolá resistência e adesões: por um lado, movimentos de repulsão rotineira, e, por outro, aspirações inovadoras concretizadas quer no abandono da província quer até na insatisfação perante as tarefas habituais. Por essas duas cidades, introduzia-se no país a civilização europeia coeva e a mentalidade progressista que, através das linhas férreas, paulatinamente se impunha a um país que pulsava ainda, na sua maior parte, a um ritmo bem diverso do dessas capitais de "trabalho, de inteligência, de febre" (como dizia Cesário), - Paris, Londres». Joel Serrão funde de tal modo as duas grandes cidades portuguesas que, pelo menos numa primeira leitura, ofusca as diferenças entre elas, tal como foram vislumbradas por Sampaio Bruno, o rosto aglutinador do Porto da boémia filosofante e política. No entanto, mesmo que se levem em conta essas diferenças, não podemos rejeitar o quadro urbano oitocentista de Portugal esboçado por Joel Serrão. De certo modo, sem disso se aperceber, até porque a sua preocupação estava muito longe do espírito antiburguês da estética, Joel Serrão esboça alguns quadros oitocentistas de Lisboa: a Lisboa dos Cabrais, um quadro delineado a partir da visita do príncipe alemão Lichnowsky em 1842; a Lisboa de Júlio César Machado (cronista), cuja obra A Vida em Lisboa parece recusar os fenómenos que se processavam ao seu redor; a Lisboa de Eça de Queirós (romancista), brilhantemente retratada em A Capital; a Lisboa iluminada à noite pelos candeeiros eléctricos de Guilherme de Azevedo; a Lisboa das boémias literárias e artísticas, em especial a do Grupo do Leão; e a Lisboa de Cesário Verde (poeta). Joel Serrão encara estes quadros lisboetas como «aspectos da vivência citadina» dos referidos escritores, sendo levado a destacar o tédio como o aspecto fundamental dessa vivência citadina. As limitações deste projecto de Joel Serrão evidenciam-se no subtítulo do ensaio Da Lisboa dos Cabrais à Poesia de Cesário Verde: Pistas e Sondagens. Para o converter num verdadeiro projecto dos quadros de Lisboa, o que faria dele um projecto histórico-estético, Joel Serrão devia ter sondado a arquitectura e a pintura, talvez com a ajuda de José-Augusto França. O projecto dos quadros portuenses possibilita mais facilmente, pelo menos do ponto de vista estrutural, a articulação de todas as artes, desde a literatura até à pintura, passando pela arquitectura: Filosofia do Porto-Fantasia Arquitectónica tentou esboçar este projecto, mas a falta de estudos prévios de qualidade dificulta a sua realização plena, como se também eu estivesse obrigado às pistas e sondagens. Sou, portanto, forçado a articular os dois projectos - o dos quadros portuenses e o dos quadros lisboetas - num só projecto que visa, em última análise, clarificar as aventuras e desventuras da dialéctica da modernidade em Portugal.


Em relação à poesia de Cesário Verde, concordo com o quadro geral do seu campo de forças internas em luta permanente, como que suspensas numa indecisão fundamental, apresentado por Joel Serrão, mas vou mais longe quando descubro tensões internas e diversos quadros lisboetas n'O Livro de Cesário Verde. A tese defendida por Joel Serrão resume-se numa única frase: «poeta da cidade e poeta do campo - mas em épocas diversas da sua vida e da sua evolução poética». Esta tese leva o ilustre historiador a estabelecer uma cronologia: as composições poéticas de Cesário Verde anteriores a 1875 revelam uma indecisão fundamental entre o campo e a cidade, na medida em que o poeta, com um pé em Lisboa (cidade, civilização burguesa) e o outro em Linda-a-Pastora (campo, Idade Média), oscila pendularmente de um pólo para o outro. Só a partir da sua composição poética Na Cidade (1876) é que Cesário Verde tenta a aventura da integração urbana, cujos marcos principais são Num Bairro Moderno (1877) e Cristalizações (1879): «Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! - /Carros de mão, que chiam carregados, /Conduzem saibro, vagarosamente; /Vê-se a cidade, mercantil, contente: /Madeiras, águas, multidões, telhados!» (Cristalizações). Por volta de 1880, Cesário Verde é, plenamente, um habitante da cidade, isto é, um burguês, mas, quando escreve O Sentimento dum Ocidental (1880), o seu tédio pessoal se transmuta em dor anónima: à atracção urbana segue-se a repulsa urbana que apela ao regresso à vida tranquila do campo. Depois de ter vivido intensamente a vivência da cidade, Cesário Verde cansou-se dela, sendo levado a voltar-lhe as costas em consequência de uma experiência dolorosa - a doença - que deixou rastos e vestígios nos seus poemas. Cesário Verde regressou finalmente ao campo, onde encontrou a paz, a estabilidade e a harmonia das rotinas rurais. Os poemas Nós (1884) e Provincianas (1887) celebram as harmonias rotineiras da vida rural: «E o campo, desde então, segundo o que me lembro, /É todo o meu amor de todos os anos! /Nós vamos para lá; somos provincianos, /Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!» (Nós). Esta celebração da vida provinciana implica a condenação da vida urbana e da própria civilização burguesa: «Ó cidades fabris, industriais, /De nevoeiros, poeiradas de hulha, /Que pensais do país que vos atulha /Com a fruta que sai dos seus quintais?» (Nós). Na poesia de Cesário Verde descobrimos em acção a dialéctica do moderno e do anti-moderno, cujo desfecho fatal é a recusa da própria modernidade. Cesário Verde não ousou consumar a modernidade e, em vez de a completar com um projecto de emancipação geral da sociedade portuguesa, recuou e regressou ao campo, isto é, à sua Idade Média. Curiosamente, o poema O Sentimento dum Ocidental que marca o início da sua ruptura com a modernidade, é dedicado a Guerra Junqueiro, o poeta de Os Simples. Apesar do apelo à simplicidade da vida e das coisas partilhado pelos dois poetas portugueses, não há uma afinidade estrutural entre eles: Guerra Junqueiro não abdica da modernidade, em nome da qual critica severamente a pátria dos portugueses, modernidade esta que foi pensada filosoficamente por Sampaio Bruno, o cidadão portuense que abraçou a Cidade para sempre. A lição a reter é a de que os quadros lisboetas esboçados por Cesário Verde, durante o seu período citadino, não podem ser comparados com os quadros parisienses de Baudelaire: Cesário Verde não foi, cognitiva e afectivamente, um cidadão de Lisboa, como Baudelaire o foi de Paris do seu tempo, logo "o" Baudelaire que esboçou uma filosofia do moderno que cortaria a respiração da alma de Cesário Verde que ansiava pela tranquilidade do campo, onde não se passa nada de novo.


J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 3 de setembro de 2011

Introdução à Leitura da Poesia de António Botto

António Botto (1897-1959)
Este ensaio sobre a poesia gay de António Botto reúne dois outros textos que já tinham sido editados. A História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e de Óscar Lopes é de tal modo homofóbica que despreza o contributo ímpar e singular de António Botto para a literatura portuguesa: cantar abertamente o amor entre homens é algo que, para os seus autores, não é digno de ser estudado e divulgado. António Botto tentou sair do armário, assumindo publicamente a sua condição homossexual, mas os falsificadores da literatura portuguesa não lhe perdoaram a ousadia do gesto e baniram-no da sua história. A literatura portuguesa é refém da miopia intelectual de homens sombrios e pardacentos que, no caso de António José Saraiva e de Óscar Lopes, toma a forma de uma espécie de inquisição positivista. A masculinidade deficiente destes falsificadores leva-os a empobrecer tudo aquilo em que tocam. Qual seria a sua reacção se tivessem lido a colectânea de contos - Military Sex - de Stewart Chatwick? Há uma vasta literatura gay e, em Portugal, pelo menos na sua versão publicamente assumida, o seu berço encontra-se na obra de António Botto. O que é a literatura gay? A literatura gay é, antes de tudo, uma literatura de género: uma literatura produzida por homens e para homens. Mas é algo mais do que isso: Fernando Pessoa e José Régio definiram-na como uma literatura que exalta a beleza masculina, o que equivale a dizer que se trata de uma literatura produzida por homens homossexuais e para homens homossexuais. Utilizámos a definição de pornografia de Alfred C. Kinsey para definir a literatura gay como uma literatura produzida por homens e para homens. Porém, a literatura gay não é necessariamente pornográfica: a literatura é pornográfica quando excita, e nem toda a literatura gay tem a excitação erótica do leitor como o seu objectivo deliberado, principal ou único. Assim, por exemplo, os contos recolhidos por Stewart Chatwick dão visibilidade e publicidade a certos devaneios hiper-masculinos que visam excitar os seus leitores, não todos os leitores, mas os leitores masculinos que são atraídos eroticamente por outros homens e/ou que se excitam facilmente com estímulos eróticos. A poesia de António Botto não tem conteúdo pornográfico: Fernando Pessoa captou o seu "ideal estético" quando disse que ela funcionava como «arma contra a opressão do nosso ambiente», isto é, contra a opressão imposta pela sociedade heterosexista e homofóbica. Tal como qualquer outra forma superior de arte, a literatura gay denuncia a homofobia que, segundo as palavras enfáticas de António Botto, «quebra destinos», isto é, recusa aos homens homossexuais o "direito à felicidade": a grande literatura gay é uma literatura da emancipação gay. António Botto devolve aos inimigos o seu próprio veneno: quem quebra o destino do outro, pelo facto de ser diferente, não tem direito à felicidade.


(Primeira Parte)


"Quanto, quanto me queres?, - perguntaste
Numa voz de lamento diluída;
E quando nos meus olhos demoraste
A luz dos teus senti a luz da vida.


Nas tuas mãos as minhas apertaste;
Lá fora a luz do sol já combalida
Era um sorriso aberto num contraste
Com a sombra da posse proibida...


Beijámo-nos, então, a latejar
No infinito e pálido vai-vem
Dos corpos que se entregam sem pensar...


Não perguntes, não sei, - não sei dizer:
Um grande amor só se avalia bem
Depois de se perder". (António Botto, Adolescente, 16)

Intróito I: Decadência Sexual e Anti-Cultura. Houve um tempo em que a homossexualidade masculina era associada a um nível elevado de inteligência e de cultura. Mas, neste nosso tempo indigente e decadente, os homens homossexuais desistiram do cultivo da sua mente, preferindo deambular pelos urinóis, pelas estações de serviço, pelas dunas das praias periféricas e por outros lugares escuros, onde se entregam ao sexo ocasional. Os homens homossexuais já não são agentes culturais, mas vagabundos sexuais que desconhecem a obra dos seus antepassados com a mesma orientação sexual. O capitalismo tardio embruteceu de tal modo a sociedade e os seus membros que liquidou não só a imaginação que permite sonhar novos mundos para o homem, mas também a memória que zela pela lembrança do sofrimento passado. Um sistema social vagabundo como o capitalismo - governado por essas mulheres travestidas de homens que são os economistas! - gera os seus próprios vagabundos que o deixam reproduzir-se em paz, como se fossem zombies desmemorizados e destituídos de imaginação. O capitalismo só conhece um tempo: o tempo da gratificação imediata que permite aos seus zombies viver o presente como uma sucessão contínua de momentos de gratificação. A busca do lucro a curto prazo leva o capitalismo a esquecer o passado e a não ser capaz de antecipar o futuro: o capitalismo é auto-destrutivo. E, desde que entraram na via do consumo, os portugueses ficaram mais burros do que já eram nos tempos sombrios de Salazar. As "bichas" hetero, homo e bi - empenhadas na busca frenética de novos parceiros sexuais - já não lêem, tendo por isso perdido o contacto com a poesia gay produzida em Portugal, tanto por António Botto como pelas músicas de António Variações. Os "mariquitas" portugueses tornaram-se inúteis e, caso Portugal venha a ser invadido, eles, em vez de pegar em armas para combater o inimigo, irão oferecer-lhe o buraco enorme que é Portugal. Portugal é uma imensa bunda que perdeu a sensibilidade! Oh, que bunda feia, hirsutista, insensível e insaciável, onde tudo cabe sem a saciar!


Excurso I. «Se a generalidade dos homens acha mais belo o corpo da mulher que o do homem, é talvez porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. Se alguns homens anormais (por excepcionais) acham mais belo o corpo do homem, é talvez ainda porque à contemplação puramente estética desse corpo se substituiu o desejo dele. A preferência estético-sexual do homem pela beleza feminina é explicada pelo génio da espécie: pela previsão da natureza. Só do abraço da mulher e do homem nascerão filhos do homem. A preferência estético-sexual de alguns homens pela beleza masculina ainda não foi explicada; apesar das várias hipóteses. Mas é facto existir, e ser tão natural a esses homens como à generalidade deles a preferência oposta. Em uns e em outros, o desejo sexual perturba a sensualidade puramente estética. Uns e outros são homens. Nem duns nem de outros se pode esperar um juízo imparcial de esteta. (...) Na base da Arte magnífica de António Botto está toda a sua fatalidade de homem. (...) Tanto mais que falo dum Poeta que ousou ser como é (isto é, homossexual): O que sempre louvo num verdadeiro Poeta - porque o verdadeiro Poeta eleva tudo em que fala; e de resto, é sempre o que é quer o queira quer não». (José Régio)

Não conheço a fundo a poesia de António Botto, mas sei que ela nos fala do lugar da homossexualidade masculina. José Régio e João Gaspar Simões dedicaram-lhe dois estudos interessantes, tendo publicado alguns dos seus poemas na revista Presença. O estudo de José Régio, do qual saquei a citação em epígrafe, é deveras surpreendente e importante, mais pelo seu contributo à psicologia das masculinidades do que pelo seu contributo propriamente estético. José Régio aborda as atracções sexuais masculinas em termos muito actuais: o seu conceito de preferência estético-sexual corresponde àquilo a que chamamos hoje orientação sexual. Em termos estritamente estéticos, José Régio parece exigir um juízo estético imparcial que esteja para além e acima da atracção sexual pela beleza feminina ou pela beleza masculina. Mas a sinceridade de António Botto cativou-o: o poeta ousou dizer o nome do seu amor, sendo na sua obra o que foi na sua vida: um homem homossexual que cantou a beleza do corpo masculino jovem. Hoje, na biociência do comportamento, é usual dizer que as sexualidades de género masculino são mais rígidas do que as sexualidades de género feminino. Os estudos confirmam esta diferença sexual, mas as anomalias que começam a ser observadas nos estudos de campo apontam noutra direcção, como se hoje compreendêssemos melhor a homossexualidade masculina do que a própria heterossexualidade masculina. A homossexualidade masculina, pelo menos o tipo mais efeminado, é mais rígida do que a heterossexualidade masculina: os homens heterossexuais são mais fluídos nas suas experiências sexuais do que os homens homossexuais. Noutros textos, tentei tematizar de forma provocante esta diferença inter-masculina dizendo que os homens portugueses tendem a ser "paneleiros" ou, como preferia chamá-los Natália Correia, "mariquitas", independentemente da sua orientação sexual. Esta hipótese pode ser generalizada com segurança a todos os homens latinos: a busca de suporte empírico para esta hipótese é fundamental para a clarificação futura dos mecanismos genéticos e neuro-hormonais responsáveis pela orientação sexual. O facto da atracção sexual do homem pela beleza feminina ser explicada pelo génio da espécie rouba-lhe logo à partida a sua potencial carga erótica, o que, no cenário da vida contemporânea, pode significar que a libertação das mulheres está a afastar os homens delas, levando-os a explorar novas fontes de prazer sexual. (A libertação das mulheres poderá ter libertado os homens da heterossexualidade normativa que castrava a sua expressão sexual omnívora!) Os fenómenos de dissociação sexual-afectiva começam a ser muito frequentes, exibindo uma grande variedade de combinações exóticas. Fiquei com a impressão - que ainda não sei explicar - de que José Régio considera que toda a exaltação masculina da beleza feminina é pura hipocrisia. De facto, a análise de conteúdo dos léxicos eróticos masculinos revela que o corpo que os homens mais admiram é o próprio corpo masculino, o seu ou o dos outros, e das estruturas desse corpo a mais admirada é o pénis: o homem (sexo masculino) é o ser que, por natureza, está apaixonado pelo seu próprio pénis (De Sousa, 2006). Há nesta apreciação um interesse claramente homossexual: o narcisismo psico-sexual converte-se em homossexualidade quando o homem deixa de manifestar interesse sexual no sexo oposto. Forjei o termo heterossexuais exóticos para designar esses homens heterossexuais - auto-intitulados "bicuriosos" - que fazem sexo com outros homens: quanto maior o número de atributos hipermasculinos - corporais e comportamentais - revelados pelos homens, maior será a sua propensão para variar e diversificar a sua "ementa sexual". (O culto de corpos musculados é já uma indicação de claro interesse homossexual. Que o digam os brasileiros que povoam os ginásios portugueses! Os homens gay têm razão quando chamam "barbies" aos homens musculosos, porque eles - tal como as mulheres - se comportam como se fossem "mercadorias-fetiches" muito desejadas no mercado sexual que valoriza os seus atributos-maquilhados-artificiais. Na hora da verdade, em vez de exibir o instrumento masculino, exibem as nádegas, para frustração total dos seus parceiros sexuais. Como estou divertido, vou contar uma pequena "história-caso": Ontem, no decorrer da minha ciberpesquisa, conheci um homem gay dos Açores. Ele exibia o seu físico e, como simpatizou comigo, pedi-lhe para mostrar a "língua marota". Puro veneno de pesquisador! Ele mostrou e acabou também por mostrar a cara: o olhar confirmou a minha suspeita. O homem-músculo era mais passivo do que activo, ou, como dizem, versátil. Mas bastou usar um perfil do tipo "homem-activo" para a sua versatilidade se converter em pura passividade, de resto já visível na exibição das nádegas. Curiosamente, este homem gay passivo tinha um corpo masculino, exibindo pilosidade corporal abundante e barba espessa bem amparada, para já não falar das mãos e das dimensões do pénis: o que sugere a existência de abundante testosterona livre durante o desenvolvimento pré-natal que masculinizou as estruturas corporais, sem ter acesso - como é evidente! - ao cérebro que permaneceu feminino. Suspeito que, se fosse vivo, Kees van Dongen pintaria hoje, preferencialmente, a artificialidade de mulher da vida das barbies masculinas! Pelo menos, já pintei dois quadros onde mostro esse mundo!) A hipótese que formulei - e para a qual já tenho evidência empírica disponível - tende a destacar o carácter masculino da sexualidade e do erotismo, o que já foi confirmado por centenas de estudos experimentais e estatísticos. Mas, tal como Abel Salazar, tendo a achar que há "algo" na mulher latina que não atrai os homens, como se elas funcionassem como um tampão que se coloca entre eles e a sua própria masculinidade. Serão as mulheres latinas castradoras da masculinidade dos "seus" próprios homens? Para todos os efeitos, a exaltação latina da beleza feminina é hipocrisia!.


II (Segunda Parte)

"A mulher que vai ao clube
Passa por ser desonesta
Até lhe chamam perdida;
Só se vê nela o desejo
Decadente de viver
O fundo inútil da vida.

Ninguém procura ver nela
Mais que a mentira de um beijo
À margem de outra mentira;
Um cigarro que se fuma,
Ou palavra que se perde
Na voz de alguém que delira...

Se os olhos enche de pranto,
E com ele os olhos lava
- Reflexo de uma agonia, -
Quantos não dizem: - Fiteira,
Quer comprar alguma jóia
E o ourives não lha fia.


E a mulher por mais rameira
Não tem somente por norte
Atraiçoar ou mentir:
Nela, há tesoiros de amor
Que valem mais que a fortuna
Maior que possa existir!

Porque nós é que a levamos
Ao pecado que deprime
E ao bordel da perdição;
Triste odisseia da carne
Que se canta e se amortalha
Nos versos de uma canção!

Mas, como a verdade é uma,
Embora digam que há muitas,
E cada qual tem a sua,
Na mulher não queiram vê-la
Simplesmente quando beija
E apenas quando está nua." (António Botto, Canção)

"Era uma vez uma boneca
Com meio metro de altura.

Insinuante, bonita,
Mas, pobremente, vestida.

Um ar triste, - uma amargura
Diluída no olhar...
- Grandes olhos de safira,
E um sorriso combalido
Como flor que vai murchar.

Quási a meio da vitrine
Lá daquela capelista
Essa boneca de trapos
A ninguém dava na vista!

Ninguém via o seu sorriso!

Ninguém sequer perguntava:
- Quanto vale a "marafona"?
Quanto querem p'la "Princesa"?...

Passaram anos. - Com eles,
Foi-se a minha mocidade
E cresce a minha tristeza.

- Quem é que dá p'la Boneca
Que os meus olhos descobriram
Lá naquela capelista
Quási à esquina do Jardim?...

- Quem dá por Ela? Ninguém.

E quantas almas assim!" (António Botto, História Breve de uma Boneca de Trapos)

Intróito II: Bonecas, Homossexuais e Economistas. Estes dois poemas de António Botto permitem-me denunciar a "mulher-dona-de-casa" - mulher fútil, mulher rameira, mulher tirana, mulher fiteira, mulher ladra, mulher estéril - que há dentro de cada economista neoliberal e de cada gestor. Nesta fase tardia do capitalismo, o triunfo da economia e do seu discurso implica o triunfo do Homem-mulher à frente dos destinos colectivos dos povos da Terra. À era dos homens políticos sucedeu a era do Homem-mulher - encarnado pelos economistas e figuras afins. Os gregos que nos legaram a matriz da nossa civilização nunca deram especial destaque à esfera económica: a economia dizia respeito à esfera privada e doméstica, não merecendo destaque na esfera pública, a não ser sob a forma larvar de economia política. No nosso tempo indigente, num movimento contínuo cujos traços começaram a desenhar-se ainda antes da II Guerra Mundial, as más-fadas do lar - os Homens-mulheres cujos testículos os abastecem de testosterona decadente e afectada - saíram do seu mundo fechado e invadiram o mundo público, reduzindo o debate político a uma discussão de receitas económicas caseiras: o mundo público tornou-se fatalmente um prolongamento ampliado do mundo doméstico. A tirania doméstica instalou-se em todas as esferas da vida social e pública: as crianças que ontem brincavam nas despensas das mães, anotando as entradas e as saídas dos géneros alimentícios, entre outros produtos de uso doméstico, são hoje os Homens-mulheres que reduzem a nossa vida a um cálculo empobrecedor e brutal das nossas trocas metabólicas com a natureza. Seres que cresceram num ambiente fechado, pobre em estímulos, não conseguem adaptar-se a um mundo aberto a não ser ampliando o seu universo fechado à escala global: o mundo global conspirado por estas criaturas mental e cognitivamente estreitas mais não é do que a ampliação do seu pequeno e triste universo doméstico. Os contabilistas da despensa caseira não conseguem pensar no Homem sem o reduzir a um produtor-consumidor de bens, ou melhor, a um tubo digestivo dotado de uma boca para comer e de um ânus para evacuar os produtos que o mercado disponibiliza. Com a sua supervisão, o capitalismo conseguiu colonizar todas as esferas da personalidade, da sociedade e do mundo da vida, de modo a reduzi-las à sua dimensão metabólica: a sociedade metabolicamente reduzida é uma invenção destes Homens-mulheres que são os economistas, cujas vidas adultas reflectem a estreiteza da sua infância vivida na clausura da despensa. A vida sexual dos economistas que conquistaram lugares de destaque vacila entre a agressão sexual e a sexual bondage, para já não falar da luxúria, da promiscuidade sexual, da prostituição de luxo, da homossexualidade envergonhada ou de certas parafilias. Um caso mediático recente exemplifica a primeira situação que se repete a um ritmo alucinante nos espaços fechados ocupados por estas criaturas dotadas de vida mental pobre, mas a segunda situação é mais típica, porque revela a miséria mental dos economistas e, sobretudo, a sua passividade encoberta pela ideologia do sucesso. Quando chegam ao fim do dia, depois de terem sacado o dinheiro dos outros e gerido a sua vida de modo a empobrecê-la, estes Homens-mulheres estão de tal modo "anestesiados" que precisam ser humilhados, açoitados e espancados para se sentirem vivos. Hoje as bolsas e os mercados de capitais desempenham as funções dos manicómios de outrora; aliás estas instituições financeiras são os manicómios do nosso tempo: o que quer dizer que estamos a ser governados por loucos e por perturbados mentais, cuja "racionalidade" é a do tubo digestivo e da retenção de fezes. Com efeito, os estudos disponíveis (Janus et al., 1977) demonstraram que estes profissionais de colarinho-branco - a necessidade compulsiva de esconder a sua pobreza psicológica por detrás de um fato! - recorrem regularmente ao serviço de prostitutas para os dominar. Os Homens-mulheres que ocupam posições dominantes na nossa sociedade decadente são, tendencialmente, homens submissos que, devido à dificuldade de encontrar mulheres heterossexuais dominantes (Baumeister, 1988; Weinrich, 1987), recorrem ao negócio emergente denominado "dominatrix", para descobrir mulheres dominadoras (dominatrices) especializadas na satisfação das necessidades sexuais de homens submissos-receptivos, supostamente não-homossexuais (Scott, 1983). Quer sejam prostitutas ou não, estas mulheres dominadoras podem atar ou acorrentar os seus clientes de colarinho-branco, dar-lhes palmadas ou chicotadas, açoitá-los, dominá-los e humilhá-los. Muitas destas práticas são suficientes para satisfazer as necessidades dos seus clientes, que também podem masturbar-se durante a sessão de submissão sexual. Baumeister (1988) interpretou este desejo de desempenhar um papel submisso-receptor na sexual bondage como um sinal evidente de masoquismo, portanto, como um desejo de eliminar a liberdade de acção e a iniciativa, que, nalguns casos observados por mim, aponta no sentido da auto-destruição ou da auto-mutilação corporal (De Sousa, 2006). Assim, o indivíduo que pratica a submissão sexual é aliviado ou liberto da iniciativa, da escolha e da responsabilidade por actos sexuais que, de outro modo, poderiam gerar conflito interno. A submissão sexual constitui uma espécie de fuga ou de escape aos elevados níveis de consciência do self: a sua prática evita que o Homem-mulher tome a decisão e assuma a responsabilidade pelos actos praticados. Ao ser amarrado ou limitado, o self do Homem-mulher promove um baixo nível de auto-consciência imediata e concentra a sua atenção sobre o desamparo e a vulnerabilidade. Porém, os indivíduos que apreciam a sexual bondage raramente se envolvem em episódios de coerção sexual. Este último comportamento está intimamente relacionado com o narcisismo (Bushman et al., 2003; Baumeister et al., 2002). Os narcisistas acreditam cegamente nos mitos convencionais da violação, vêem as vítimas como culpadas (Reparem: o actual governo português responsabiliza os pobres pela sua pobreza!) e sentem menos empatia pelos outros (Reparem: ontem o Ministro das Finanças revelou a sua inumanidade cruel!). Além disso, são muito favoráveis aos filmes com cenas de descrição de violações e, na realidade, reagem muito negativamente à rejeição das mulheres. Por isso, como não aceitam facilmente que as parceiras recusem os seus avanços sexuais, podem recorrer à força para fazer sexo não-consentido. (Quem é que acredita na inocência de Dominique Strauss-Kahn?) Malamuth (1996) falou mesmo de uma síndrome de masculinidade hostil, caracterizada por um forte desejo de controlar as mulheres e por uma atitude insegura mas hostil em relação a elas. Esta síndrome combina-se com a preferência por sexo anónimo e a agressão sexual (De Sousa, 1998, 2006, 2007). Mas, quer sejam agressores sexuais ou submissos sexuais, homossexuais ou não-homossexuais, os economistas e afins estão a destruir a civilização ocidental com a sua racionalidade da marmita e da retenção solipsista das fezes: os servidores da economia doméstica do capital financeiro não têm estofo intelectual ou mesmo humano para assumir os destinos colectivos dos povos da Terra. As suas fantasias fatais de Homens-mulheres - rameiras e fiteiras - produziram o pior mundo de que há memória na história da humanidade: o predomínio do capital financeiro - o principal responsável pela liquidação da economia real - esteve sempre ligado às situações de crise europeia profunda. A nossa época indigente precisa de Homens-Políticos exigentes, tribais e "selvagens", que tenham coragem para reter os economistas e afins na despensa ou mesmo na retrete, o seu lugar de origem, donde nunca deviam ter saído. A salvação provisória da Humanidade e do Planeta que sustenta a Vida implica a ruptura radical com a visão da História-Acumulação: adiar esta revolução histórica - o maior salto qualitativo alguma vez dado pela Humanidade ao longo da sua história - é caminhar a passo acelerado para a catástrofe. Hoje a Grande Política define-se por oposição à racionalidade necrófila e destrutiva dos economistas neoliberais e do seu amo, o capital financeiro. A cultura dos Homens-mulheres - as rameiras-mentirosas do capital financeiro - é cultura das fezes e do lixo que o sistema produz continuamente. Aceitar esta "cultura" é aceitar a redução do homem à sua condição de animal doméstico, gerado e criado num imenso aviário supervisionado por um Estado capturado pelo capital financeiro. Depois deste longo desvio pelo universo decadente e patológico dos economistas, proponho a leitura dos dois poemas de António Botto, sobre os quais farei um comentário lateral.

Excurso II. «Acusam a obra de António Botto de cantar o amor masculino impudicamente, desassombradamente,sinceramente. Reparem: acusam António Botto de ser sincero; reparem melhor: acusam-no de ser artista. Escrevi: acusam António Botto de ser artista porque é sincero e, sendo sincero, canta o amor masculino. Evidentemente, que quero dizer: é o amor anormal que constitui o fundo estético (o estimulante estético) da sua personalidade. Contudo, a este fundo acrescem outros muitos atributos artísticos: dom verbal, acento lírico, facilidade imaginativa, exactidão intelectual, talento de sugerir, poder de criação cenográfica, sobriedade expressiva, etc. Estes, porém, são os atributos complementares. Sem eles não podia António Botto ser o admirável poeta que é; só com eles arriscar-se-ia a não passar dum poeta interessante. É a predisposição íntima para um certo desvio e a perturbação psicológica desse desvio resultante - que faz de António Botto um poeta original e superior». (João Gaspar Simões)

Os dois poemas de António Botto articulam-se pela ordem inversa àquela em que foram apresentados: o menino chamado António Botto cresceu a sonhar com uma boneca de trapos que não lhe deram na infância, e, quando já adulto, ele revê-se não numa mulher qualquer, mas na mulher que desejou ser quando olhava para a boneca da capelista: a prostituta capaz de satisfazer o desejo de todos os marinheiros, essas figuras caricaturais que noutros tempos encarnaram o máximo possível da masculinidade intumescida tão cobiçada pelos homens homossexuais. António Botto foi durante toda a sua vida um dandy gay que frequentava assiduamente os bairros boémios e as docas marítimas de Lisboa, em busca de marinheiros - com a barba por fazer - suficientemente masculinos, promíscuos e encharcados nas suas próprias "munições" contidas - mas prontas a disparar a qualquer instante - para satisfazer os seus desejos e fantasias de "mulher escondida". Parece que estou a descrever o desenvolvimento psico-sexual de um transsexual masculino. Os mecanismos biológicos que determinam o transsexualismo e a homossexualidade masculinas são diferentes, mas tanto os transsexuais como os homossexuais masculinos partilham alguns traços comuns. Um desses traços é a infância sexualmente atípica: as crianças que se tornam mais tarde heterossexuais tendem a viver infâncias sexualmente típicas, enquanto as crianças que mais tarde se tornam homossexuais tendem a viver infâncias sexualmente atípicas. Os homens homossexuais e os transsexuais masculinos viveram geralmente infâncias sexualmente atípicas. No caso dos rapazes, os traços infantis que indicam a sua orientação sexual quando adultos incluem comportamentos tais como não apreciar jogos rudes ou desportos de equipa, preferir a leitura, preferir a companhia de meninas,brincar com bonecas em vez de camiões e, sobretudo no caso dos rapazes mais efeminados, gostar de vestir roupas de menina ou de mulher. Os pais julgam que, comprando os brinquedos sexualmente adequados para os seus filhos, estão a zelar pela sua futura heterossexualidade, mas estão enganados: as crianças de ambos os sexos revelam precocemente uma preferência por determinados brinquedos, cada um dos sexos escolhendo os seus próprios brinquedos. É, por isso, que a atipicidade desta preferência - moldada pelas interacções pré-natais entre os esteróides gonadais e o cérebro - pode revelar antecipadamente a futura atracção sexual por pessoas do mesmo sexo: meninos que preferem brincar com bonecas e meninas que preferem brincar com camiões são sexualmente atípicos e, geralmente, serão homossexuais na vida adulta. Os pais nada podem fazer para modificar a futura orientação sexual dos filhos: privá-los dos brinquedos preferidos, impondo-lhes os brinquedos sexualmente adequados, não irá alterar a sua futura orientação sexual; pelo contrário, poderá dificultar seriamente a sua expressão sexual saudável. A homossexualidade masculina é, como dizia António Botto, um "fado", mas o fado gay e o fado transsexual são distintos, no sentido dos homens homossexuais, incluindo mesmo os mais efeminados, não expressarem disforia de género, como sucede sempre no caso dos transsexuais. A expressão - uma mente feminina presa num corpo masculino - usada para definir o transsexual masculino não se aplica aos homens homossexuais: o transsexual que exiba elevado grau de atipicidade sexual é, desde a infância mais remota, uma figura sexualmente discordante que nutre uma aversão pelo seu próprio pénis e, especialmente, pelo seu uso em actividades sexuais. Os homens homossexuais são seres que curtem a sua própria masculinidade e a masculinidade dos outros: o sentimento que acompanha a sua identidade de género - o sentimento da sua masculinidade - é igual ao dos homens heterossexuais: o tamanho do núcleo cerebral responsável por este sentimento não varia entre os homens heterossexuais e os homens homossexuais. É certo que os homens homossexuais mais efeminados tendem a não usar o seu pénis nas actividades sexuais, mas este comportamento - que indica quanto muito a sua preferência pelo papel receptor - não é suficientemente poderoso para os levar a procurar tratamentos hormonais e cirurgia de reconstrução para alterar o seu corpo tornando-o tão feminino quanto possível, como fazem os transsexuais masculinos. António Botto que, durante a sua infância, sonhou com uma boneca de trapos, desejando vir a ser uma bela mulher desejada pelos homens, não conseguiu escapar ao seu próprio destino neuro-hormonal: ele não se tornou mulher, mas também não conseguiu ser heterossexual, apesar de ter casado com uma mulher. António Botto não se auto-amputou e é provável que nunca tenha pensado nisso: o que quer dizer que a sua luta simulada e ritualizada foi contra a sua própria homossexualidade, que procurou "iludir" ou "parodiar" casando com uma mulher. O facto de ter casado com Carminda Silva Rodrigues leva-me a supor que, quando interagia sexualmente com outros homens, desempenhava preferencialmente o papel receptor: um menino que cresce a sonhar com uma boneca de trapos e que deseja vir a ser uma boneca grande quando adulto tende a torna-se mais tarde homossexual passivo. Os homens gay pensam precipitadamente que todos os homens bissexuais são activos, mas as suas próprias interacções sexuais com esses homens casados heterossexualmente desmentem esta crença. Como é possível ser activo com a mulher e passivo com outros homens? A diversidade sexual desafia a imaginação científica. Mas o desafio que me preocupa aqui é o desafio lançado pela poesia gay de António Botto, em especial pelo seu belo poema "O Fado" que tenho estado a comentar de fora e à distância do olhar científico. A riqueza interior desta poesia desmente a crença heterosexista, segundo a qual os homens homossexuais desconhecem a linguagem afectiva e emocional do amor, como se fossem amputados afectivos. Convém lembrar aos membros da seita fanática heterosexista que os homens homossexuais e as lésbicas se apaixonam perdidamente. Muitos homens homossexuais formam casais, muitos separam-se e muitos voltam a procurar outro companheiro. Os homens homossexuais e as lésbicas vivem as mesmas sensações e emoções em termos de amor romântico que são descritas pelos indivíduos heterossexuais, e lutam exactamente com os mesmos problemas criados por esses laços românticos. Annie Proulx imortalizou - ainda recentemente - O Segredo de Brokeback Mountain: o amor-paixão entre Jack Twist e Ennis, mostrando toda a lógica emocional subjacente aos laços românticos que unem dois homens rudes. Mas as figuras que o cinema de Hollywood imortalizou como encarnações vivas da masculinidade intumescida, os cowboys, também foram os protagonistas das maiores paixões homossexuais: os homens de fronteira viveram intensas aventuras homossexuais que não podem ser justificadas pelo facto de viverem em acampamentos distantes das pequenas cidades a um ou dois dias de viagem, onde não havia mulheres. Os poemas desse período da história dos USA mostram como era comum dois "homens rudes" formar um casal diferenciado e tornarem-se "companheiros" para toda a vida. Quanto mais rude for a masculinidade de um homem, maior é a sua propensão para viver intensamente paixões homossexuais. Obrigados a viver no armário durante séculos de perseguição, os homens homossexuais sempre encontraram refúgio e consolo nos oásis dos homens rudes: todo o imaginário gay envolve homens rudes, tais como os marinheiros, os vaqueiros, os cowboys, os mineiros, os pescadores, os madeireiros, os prisioneiros, os operários, os militares, os infiéis, os boémios, os peões da rua, os estrangeiros exóticos, os emigrantes, os camionistas, enfim os homens selvagens. (Em Portugal, os homens mais "felizes" são os camionistas, que, em cada paragem, encontram sempre algum gay para lhes sugar o membro viril.) A homossexualidade é tão velha quanto a humanidade: o amor entre homens está inscrito no genoma humano. As páginas mais belas da poesia e da literatura ocidentais foram escritas por homens homossexuais: os leitores heterossexuais tendem a omitir esse facto ou, pelo menos, alegam algum tipo de justificação para continuar a rever as emoções do seu amor lá onde elas exprimiam os estados de paixão homossexual. Mas o facto de ser possível rever o amor heterossexual no amor homossexual indica que as emoções que lhes são subjacentes se desenvolveram há muito tempo. Os homens homossexuais são profundamente românticos, mas os laços românticos que estabelecem uns com os outros tendem a dissolver-se rapidamente, até porque a sociedade não lhes fornece quadros positivos de referência. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro que também desejaram ser mulher não ousaram cantar o amor entre homens por temer a perseguição homofóbica: António Botto não só assumiu publicamente a sua homossexualidade, como também ousou cantar o amor gay, tal como o fizeram Walt Whitman e Oscar Wilde. A coragem de ser tem o seu preço, sobretudo neste ermo inóspito que é Portugal: Oscar Wilde foi preso, sendo acusado de pedofilia, e António Botto foi despedido da função pública, procurando refúgio no Brasil, primeiro em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, onde morreu na miséria e na desgraça: «Hoje não posso ouvir-te; adeus, não sei/ Que transição foi esta que me deu -/ Pra não poder sequer uma palavra/ Ouvir da tua boca! A chama arrefeceu./ Não sei se passa, este sentir de agora./ O teu amor/ Despiu-se daquela fantasia luminosa/ Que me lançou no árido alarido/ De uma febre brutal, tumultuosa.../ Vai; quero ficar na realidade /Dos que provaram do amor o amargo travo/ E lutam na miséria e na descrença/ De não saber se há mais fatalidade.../ Deixei de olhar-te desejando a posse/ E o latejar da tua carne quente./ - Deixei de achar sabor ao vício fundo/ De articular palavras no delírio/ De te vencer e amar perdidamente» (António Botto, Canção). Quem é que não deseja amar perdidamente, mesmo sabendo que «a vida não deve Ser vivida com paixão» (António Botto)? Quem é que não gostaria de passar uma noite agitada com Querelle de Brest para ser esfaqueado ao amanhecer? Jean Genet, outra alma vagabunda, descobriu uma estranha relação entre assassínio, marinheiros e homossexualidade masculina, que aqui vou retomar num outro sentido: «A ideia de assassínio evoca muitas vezes a ideia de mar, de marinheiros. Mar e marinheiros, não se apresentam então com a nitidez de uma imagem, é antes o assassínio que faz a emoção rebentar em nós, por vagas. Se os portos são teatro repetido de crimes, a explicação é fácil, mas numerosas são as crónicas em que se revela que o assassino era um navegador, falso ou verdadeiro, e, sendo falso, o crime tem ligações mais estreitas com o mar. O homem que veste a farda de marujo não obedece somente à prudência. O disfarce provém do cerimonial que preside sempre à execução dos crimes premeditados. (...) À ideia de mar e assassínio junta-se naturalmente a ideia de amor ou de voluptuosidade - e, melhor, de amor contra natura. É indubitável que os marinheiros transportados pelo desejo e pela necessidade de assassínio pertencem, antes de tudo, à marinha mercante» (Jean Genet). A vida destas almas vagabundas que são os homens homossexuais na sua peregrinação na Terra é um suicídio premeditadamente impensado. António Botto e Fernando Pessoa, bem como Jean Genet, partilham a mesma condição ou o mesmo sonho de serem "embarcados", aliás um traço específico da condição humana que eles viveram enquanto homens homossexuais: «Desde pequeno/ - O meu Sonho/ Era chegar a ser homem /E ser marujo! - embarcar...» (António Botto, O Fado). O ser-embarcado deriva do ser-sem-abrigo que define ontologicamente a humanidade do Homem: o ser que embarca para se descobrir a si próprio e ao mundo que lhe nega um abrigo permanente e definitivo parte para a aventura, sabendo que nesse percurso acidentado está em-risco. O ser-em-risco cristaliza-se na condição homossexual. Lançado num mundo hostil que lhe impõe a conspiração psicológica do silêncio, o homem homossexual está constantemente em risco. Tendo o risco como fado, o homem homossexual - se conseguir chegar à velhice - olha para trás, vendo que a vida o susteve no seu "declive": «Sentado à minha varanda, /Contemplo a noite que desce/ E a rosa/ Que puseste no meu peito./ E, largo tempo,/ Ficando silencioso,/ Oiço uma voz que me fala.../ - Que voz é esta,/ Tão incisiva, tão pura,/ Que me pede que acredite/ E tenha fé no destino?/ Inclino a fronte, - medito/ No altíssimo desejo/ Que anda comigo/ E sobe a cada momento!/ Nas ramas do arvoredo,/ O vento,/ Passando, diz qualquer coisa./ A sombra cai,/ De repente, volumosa./ Mal distingo as minhas mãos./ E ao pé de mim/ Tomba o corpo/ Fino e frágil dessa rosa...» (António Botto, Canção sobre um eterno motivo). A actual prática de sexo anal sem protecção - barebacking - é suficiente para mostrar que, depois da libertação, os homens homossexuais continuam a arriscar constantemente a sua vida para satisfazer os seus interesses sexuais. Muito antes de Jean Genet, Mário de Sá-Carneiro já tinha identificado o homem homossexual como uma espécie de "criminoso", no sentido de violar as normas de género impostas pela sociedade heterosexista que o obriga a viver na clandestinidade ou à margem do espaço central da visibilidade pública, e, sobretudo, no sentido de negar essa parte da sua vida íntima para agir em conformidade com as normas de género que asfixiam a sua expressão sexual mais própria e genuína. Mas o que ontem foi um grito de revolta - selfdisclousure - é hoje um acto criminoso: contagiar premeditamente outros com o vírus da Sida ou mesmo com o vírus da Hepatite B é assassiná-los. Os adeptos da prática do sexo anal sem protecção fazem amor com os outros para os matar e, quando isso ocorre com o consentimento de todos os envolvidos, estamos diante de uma espécie de suicídio colectivo. Depois de se terem libertado da clausura, os homens homossexuais tornaram-se os maiores inimigos da homossexualidade e de si próprios: a libertação que os entregou à sua própria escravidão sexual está a liquidá-los. As orgias gay são cerimónias que respondem "SIM" à questão que tinha sido colocada anteriormente: os homens gay - libertos mas escravos da sua própria promiscuidade sexual - aceitam fazer "sexo" com Querelle de Brest para no final serem "esfaqueados" por ele. Ora, estes homens homossexuais que facilitam a propagação das doenças sexualmente transmissíveis já não fazem poesia: o seu universo mental encolheu ou invaginou-se de tal modo que, no seu lugar, vemos apenas um "cu largo", para usar a expressão consagrada por Aristófanes. Hoje, os homens homossexuais são "cus largos" - fendas abertas pelo cio permanente e insaciável - que se exibem sem vergonha em todos os sítios e lugares, incluindo os oásis eróticos virtuais que são os sites Web-cam. Para dar vivacidade a este pensamento que visa confrontar a concepção autónoma com a concepção heterónoma da homossexualidade, proponho um exercício de imaginação: imaginem Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e António Botto com os respectivos rabos voltados para cima, numa postura de submissão e de apaziguamento, algures numa doca marítima de Lisboa (ou no Aeroporto da Portela?), aguardando pela chegada dos viris marinheiros (ou dos burocratas da troika?): a "mulher" que havia dentro de cada um deles desejava ser possuída à bruta por todos os marinheiros, mesmo correndo o risco de ser espancada ou assassinada por um deles. No Porto, os homens homossexuais frequentavam, pelo menos na primeira metade do século XX, as docas de Matosinhos, em busca de pescadores, mas, por vezes, eram surpreendidos pelas mulheres, e apanhavam valentes tareias. (É muito provável que o marido de Florbela Espanca, Mário Pereira Lage, frequentasse este circuito de engate gay!) Além disso, tanto quanto sei, algumas vezes pagavam pelos serviços sexuais prestados pelos pescadores, os antepassados recentes dos actuais gigolos do Sul de Portugal: o pagamento evitava a agressão das mulheres, tal como ainda acontecia até bem recentemente na Costa da Caparica e noutras zonas piscatórias. A imagem de "ser possuído" por uma masculinidade intumescida alheia (isto é, heterossexual) impregna quase toda a poesia gay latina, como se todo o homem homossexual fosse um ser passivo que precisa de recorrer aos serviços sexuais de homens heterossexuais para se realizar sexualmente. Esta dependência sexual dos homens homossexuais em relação aos homens heterossexuais foi quebrada - no plano artístico - tanto por Whitman como por Genet, para já não falar da fotografia de Robert Mapplethorpe, cuja contrapartida heterossexual é a fotografia de Helmut Newton: eles não estigmatizaram a homossexualidade passiva; pelo contrário, devolveram-lhe um toque de masculinidade, sujeitando-a às normas de autonomia sexual da comunidade gay. Homens latinos fermentados nos meios católicos homofóbicos nunca poderiam dar início à tarefa plástica de devolver a masculinidade de couro à homossexualidade: a sua inclinação mais genuína é, como se observa nos cortejos do Carnaval de Torres Vedras e de Ovar, para parodiar a "mulher", mais especificamente a prostituta. A imagem interiorizada da Virgem Maria leva-os a preferir a sua eterna adversária: a mulher da má-vida - a Nossa Senhora das Flores de Genet! - que se entrega a todos os homens a troco de determinadas quantias de dinheiro. Ser homem é, para os homens latinos, introduzir o seu membro viril dentro de qualquer buraco, a vulva da mulher ou o ânus/boca de outro homem, constituindo esta última introdução-acção a apoteose máxima da sua masculinidade. O carácter omnívoro da sexualidade masculina latina agrada, como é evidente, aos homossexuais passivos: os homens heterossexuais satisfazem mais o seu desejo-feitiço-de-mulher-anal do que os homens homossexuais activos que condenam a sua passividade extrema. Com a libertação gay, a homossexualidade passiva converteu-se em problema sério de saúde: os homossexuais passivos não só são excluídos da comunidade gay, como também não são bem-vindos nos meios virtuais ou reais onde os homens de todas as orientações sexuais e tendências parafílicas partilham e curtem a sua própria masculinidade intumescida. Os homens são dotados da capacidade de exercer um poder hipnótico uns sobre os outros e essa capacidade muito masculina revela toda a sua eficácia em ambientes fechados ou isolados. Num momento de solidão íntima, longe da agitação da vida social e do assédio feminino, qualquer homem é capaz de descobrir o seu desejo proibido, despertado e lançado cá para fora pelo outro homem com quem está a privar: estes contactos homossexuais ocorrem com muita frequência, mas são geralmente silenciados. O universo poético de Jean Genet revela a fluidez das fronteiras entre orientações sexuais masculinas: o poder hipnótico é um poder de sedução permanente que conduz à transgressão dos tabus sexuais. As relações sociais trazem, pois, a marca natural da homossexualidade, não da homossexualidade efectiva, mas da homossexualidade ritualizada, como demonstrou Luc De Heusch a partir da obra de Lévi-Strauss: os homens de todos os tempos e de todas as culturas usaram as mulheres para impressionarem os outros homens e para chamar a sua atenção. Quando um homem beija a sua mulher na rua, olhando para outro homem, o seu desejo de reconhecimento dirige-se a esse outro homem e não à mulher que usa para impressionar o outro. A fragilidade biológica do homem (sexo masculino) só pode ser compensada por uma sociedade de homens, que, nas sociedades primitivas, tomou a forma institucional da Casa dos Homens, cujo acesso era vedado às mulheres: privar o homem da companhia de outros homens, como acontece hoje em dia no mundo ocidental, é lançá-lo no abismo, isto é, no ocaso catastrófico da masculinidade que inventou a cultura e a civilização. Os homens (sexo masculino) são seres que, por natureza, procuram o reconhecimento entre os seus pares do mesmo sexo e não entre as mulheres: o homem que procura o seu reconhecimento entre as mulheres é, por definição, um "paneleiro". (E o homem-mulherengo é o mais "paneleiro" de todos os homens.) O homem português que encarna tão perfeitamente esta figura masculina decadente deve a sua impotência de criar a essa doença fatal que o priva da sua própria masculinidade criadora. O eterno presente de Portugal deve ser visto como o destino fatal da civilização ocidental, se nada for feito para evitar o seu ocaso. A portugalização do ocidente é a maior ameaça que paira no ar: o domínio das mulheres e das suas cópias masculinas, os homens-paneleiros, só pode ocorrer numa civilização que já entrou em decadência acelerada, sendo vulnerável às invasões por parte de culturas mais jovens dominadas por homens. A masculinidade latina é, portanto, uma masculinidade histérica ou, como lhe chamaram Teixeira de Pascoaes e Cunha Leão, emotiva: o carácter histérico ou emotivo dos homens portugueses é sobejamente conhecido e, por isso, o espírito briguento e ordinário de António Botto não deve causar espanto. A ordinarice materializada na palavra oral e na expressão corporal é um traço típico dos transsexuais masculinos, sendo particularmente evidente nos transsexuais latinos. A feminilidade de António Botto não lhe permitiu escapar a esta ordinarice que os homens homossexuais efeminados tendem a partilhar com os transsexuais masculinos. Geralmente, os homens homossexuais efeminados identificam-se com a definição social do maricas, vivendo a sua homossexualidade como se fossem mulheres frágeis e receptivas às investidas sexuais dos machos. E, como a sua presença era e é relativamente bem tolerada em certos nichos de homens rudes, eles nunca tomaram a iniciativa de elaborar um pensamento próprio para orientar a luta pela libertação gay: António Botto assumiu publicamente a sua homossexualidade sem a ter libertado do esquema tradicional do sexo. O seu esquema de acesso aos machos foi sempre o velho esquema usado pelas mulheres, sobretudo pelas mulheres do bordel: António Botto estava de tal modo satisfeito com o papel-função que a sociedade heterosexista lhe atribuía que nunca ousou pensar, afirmando-a, a masculinidade rude dos homens homossexuais, tal como fizeram Whitman, Genet e Mapplethorpe. Pelo uso que fazem do seu corpo, tanto António Variações como Ney Matogrosso - talvez mais o segundo do que o primeiro! - enquadram-se neste tipo fatal de homossexualidade que interiorizou o opressor. Ainda há nos nossos dias homens homossexuais portugueses que não conseguem incluir-se na categoria de Homem: os "homens verdadeiros" são os heterossexuais; eles são caricaturas do sexo feminino - ou como dizem: "bichas, bichonas, trichas" - que coexistem com outras figuras sexuais marginais em determinados nichos periféricos da sociedade. Nos sites Web-cam, podemos ver os homossexuais ultra-passivos reagir à exibição de um falo portentoso com estas palavras: "Quero engravidar de ti" ou "Quero ter filhos teus". O sentimento de masculinidade destes homossexuais passivos está cronicamente em depressão: os homens verdadeiros são "aqueles que penetram"; o resto - mulheres e homossexuais masculinos - são "coisas" que, tal como os cães de Pavlov que começavam a salivar quando ouviam o toque de uma campainha, salivam abundantemente ante as exibições fálicas, antecipando uma cena de violação. Esta auto-percepção era precisamente a de António Botto que frequentava o submundo da prostituição feminina, as docas marítimas e os bairros boémios de Lisboa. António Botto quis ser um "homossexual passivo" no mundo dos outros, sem suspeitar que era preciso alterar radicalmente esse mundo para poder ser um homossexual visível. Depois de ter sido despedido da função pública, exilou-se no Brasil: o seu sonho de vida fracassou (não o seu sonho poético), não tanto por causa da homofobia católica reinante, mas sobretudo por causa da sua própria homofobia interiorizada. António Botto não ousou ser um Homem (masculino) gay. O fracasso - ou melhor, o naufrágio - de uma vida consumida no perdulário do instante - como foi a de António Botto - é dito neste poema de Mário de Sá-Carneiro: «Atapetemos a vida/ Contra nós e contra o mundo./ - Desçamos panos de fundo/ A cada hora vivida!/ desfiles, danças - embora/ Mal sejam uma ilusão.../ - Scenários de mutação/ Pela minha vida fora!/ Quero ser Eu plenamente:/ Eu, o possesso do Pasmo./ - Todo o meu entusiasmo,/ Ah, que seja o meu Oriente!/ O grande doido, o varrido,/ O perdulário do Instante -/ O amante sem amante,/ Ora amado, ora traído.../ Lançar as barcas ao mar -/ De névoa, em rumo de incerto.../ Pra mim o longe é mais perto/ Do que o presente lugar./ ...E as minhas unhas polidas -/ Ideia de olhos pintados.../ Meus sentidos maquilados/ A tintas desconhecidas.../ Mistério duma incerteza/ Que nunca se há de fixar -/ Sonhador em frente ao mar/ Duma olvidada riqueza.../ - Num programa de teatro/ Suceda-se a minha vida -/ Escada de Oiro descida/ Aos pinotes, quatro a quatro!...» (Canção do Declínio).

J Francisco Saraiva de Sousa