«As autobiografias são compostas por recordações pessoais, a totalidade das nossas experiências, incluindo as experiências dos planos que fizemos para o futuro, sejam eles precisos ou vagos. O eu autobiográfico é uma autobiografia feita consciente. Faz uso de toda a história que memorizámos, tanto recente como remota. Estão incluídas nessa história as experiências sociais das quais fizemos parte, ou das quais gostaríamos de ter feito parte, bem como as recordações que descrevem as nossas mais refinadas experiências emocionais, nomeadamente as que possam ser classificadas de espirituais.» (António Damásio, 2010)
António Damásio é um homem dotado de sensibilidade social apurada: as elucidações dos conceitos que utiliza para construir o cérebro consciente colocam quase sempre desafios embaraçosos à sua estratégia de investigação neuro-redutora. A definição de eu autobiográfico aqui apresentada em epígrafe é de tal modo rica que diferencia entre dois aspectos da experiência pessoal memorizada: o eu autobiográfico memoriza não só as experiências sociais "positivas" mas também as experiências sociais "negativas". Lançado num mundo comum que partilha com outros, o eu autobiográfico é forçado a fazer um balanço dos seus projectos para o futuro e das suas experiências sociais: a frustração, o fracasso, atormentam-no, levando-o no melhor dos casos a lutar contra a estrutura da sociedade que lhe nega a oportunidade de se realizar. A sociedade portuguesa é de tal modo feudalizante e corrupta que gera nos seus indivíduos frustração, mas infelizmente esta frustração é "reprimida" pelos portugueses apáticos sem conduzir à revolta contra o sistema. A sensibilidade apurada de António Damásio introduziu - talvez inadvertidamente - um outro elemento na sua neurologia da consciência humana: a sociedade. A construção do eu autobiográfico exige, além do cérebro, do corpo e da mente, este outro elemento nuclear que é a sociedade. Porém, o individualismo metodológico adoptado por António Damásio dificulta-lhe o acesso à sociedade, como se o próprio cérebro fosse o "sujeito" do processo de fazer do homem um ser dotado de consciência alargada. Se fosse coerente com a sua estratégia materialista de investigação, António Damásio devia ter rompido com esta noção idealista de um processo com sujeito. Estou a colocar um desafio que também não sei resolver cabalmente; o que sei é que o individualismo metodológico dificulta a explicação neurobiológica do célebre problema que herdámos de Descartes, o problema mente-cérebro. Para ser bem-sucedida, a estratégia materialista de investigação do cérebro deve desalojar o inimigo idealista ou mesmo espiritualista que se infiltrou no seu próprio terreno: o individualismo metodológico que, além de atomizar a sociedade, introduz noções-obstáculos que impedem a elucidação neurobiológica do problema mente-cérebro, com recurso à teoria da sociedade e da história tal como foi elaborada por Marx. O caminho seguido por António Damásio para elucidar a passagem do proto-eu para o eu autobiográfico, passando pelo eu-nuclear, confronta-o com a sociedade e, se há um "sujeito" nesse processo de desenvolvimento filogenético e ontogenético, esse "sujeito" só pode ser o eu autobiográfico. Porém, o eu autobiográfico não é anterior à sociedade: a pesquisa neurocientífica deve abdicar da tentativa de explicar a sociedade a partir da construção do cérebro consciente. Sem sociedade não pode haver cérebro consciente, até porque a consciência individual, a consciência autobiográfica de António Damásio, é um fenómeno ou "facto sócio-ideológico" (Bakhtin). A pesquisa neurocientífica deve encarar a sociedade como estando sempre-já aí onde se revela o cérebro consciente. Mas a concepção da sociedade como estrutura sempre-já presente na construção do cérebro consciente exige uma reformulação crítica da própria teoria do eu autobiográfico de António Damásio, de modo a abri-la à História, o continente descoberto por Marx: o cérebro é, evolutiva, estrutural e funcionalmente, um órgão social. Com esta reformulação crítica da teoria da construção do cérebro consciente de António Damásio, podemos fazer justiça ao verdadeiro materialismo que sempre foi uma filosofia da libertação, livrando-o dessa velha ideologia opressora que é o individualismo.
Atribuo as dificuldades do programa de pesquisa do cérebro à ausência de uma teoria bem-elaborada do cérebro. Changeux captou o eixo fundamental dessa teoria quando escreveu que «a capacidade de construir representações lábeis "abre" a organização do encéfalo ao meio social e cultural», mas esqueceu completar o seu darwinismo das sinapses com a teoria social e histórica de Marx: a abertura do cérebro ao mundo exige a substituição como figura de referência teórica de Darwin por Marx, substituição que foi operada com sucesso pela Escola de Psicologia "soviética" encabeçada por Vygotsky e Luria. A grande referência teórica da psicologia de Vygotsky, responsável pela sua superioridade em relação à psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget, não é Darwin, como dizem os psicólogos cognitivos do mundo anglófono, mas sim Marx e Engels: «A internalização das actividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana» (Vygotsky). Quando refere que "signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contacto social com outras pessoas", Vygotsky pressupõe uma teoria social do cérebro, completamente distinta da que opera nas obras de António Damásio, onde o cérebro mergulha na sua própria interioridade corporal, mantendo com o mundo exterior relações estritamente instrumentais. Com efeito, a sua hipótese de construção de uma mente consciente articula duas partes: "o cérebro constrói a consciência através da criação de um eu no interior de uma mente desperta" (1), cuja essência - do eu, claro! - é "vista como um focar da mente sobre o organismo material que ele habita", e o eu "é construído por fases" (2): a primeira fase surge da parte do cérebro que representa o organismo - o proto-eu - e consiste num aglomerado de imagens que descrevem aspectos relativamente estáveis do corpo e criam sentimentos espontâneos do corpo vivo, os sentimentos primordiais; a segunda fase resulta do estabelecimento de uma relação entre o organismo - tal como representado pelo proto-eu - e qualquer parte do cérebro que represente um objecto-a-ser-conhecido, dando origem ao eu nuclear; e a terceira fase permite que objectos múltiplos, anteriormente registados como experiência vivida ou como futuro antecipado, interajam com o proto-eu e produzam uma série de pulsos do eu nuclear, dando como resultado o eu autobiográfico. A teoria dos três estádios do eu é sedutora, mas não é isenta de dificuldades intrínsecas, até porque Damásio parece retomar o paradigma botânico da maturação (Karl Stumpf), como se o cérebro sozinho no seu enorme vazio social fosse capaz de construir estes três espaços imagéticos. Bem sei que não é esse o modelo subjacente à teoria de Damásio, mas o seu individualismo metodológico empobrece a sua teoria do cérebro, privando-o - o cérebro, claro! - da abertura ao mundo que o define como "órgão de relação" (Sherrington). A preocupação predominantemente filogenética de Damásio, em detrimento da perspectiva ontogenética e histórica, revela desde logo as dificuldades da sua teoria da construção de uma mente consciente: a rica "semântica" usada para descrever estados ou processos da mente consciente, normais ou patológicos, não se reflecte nas relações internas que os conceitos estabelecem uns com os outros no seio da matriz teórica que os define. Segundo Damásio, "os processos do eu apenas começaram a ter lugar depois de as mentes e a vigilância terem sido estabelecidas como operações cerebrais": a consciência comporta três elementos indispensáveis, o estado de vigília, a mente e o eu, dos quais o mais importante é o eu, pelo facto de ser "o representante máximo dos mecanismos individuais de regulação vital, a sentinela e curador do valor biológico". Damásio aborda assim a neurologia da consciência a partir do eu e não a partir da mente, como sucede habitualmente. No entanto, a abordagem da consciência a partir do eu não é inteiramente original: Karl Popper e John Eccles já tinham realizado uma abordagem similar, mas com uma diferença fundamental que reflecte problemáticas teóricas divergentes. Ao contrário da perspectiva defendida por Damásio, para quem os "eus" são possuídos pelo cérebro consciente, para Popper, tal como para Platão, o cérebro é possuído pelo eu: o eu activo é o programador activo ou o piloto do cérebro. O materialismo de Damásio cerebraliza precipitadamente os eus para demolir de vez o dualismo, mas paga um preço demasiado elevado: priva-se do contributo da teoria social do eu, como se o homem nascesse como eu quando, na verdade, ele aprende a ser um eu no decorrer das interacções sociais que estabelece com os outros significativos e, mais tarde, com o outro generalizado, a própria sociedade (Mead). Uma criança privada de experiência no mundo social não aprende nada! Damásio estabelece muitas diferenciações conceptuais subtis, usando uma linguagem francamente mentalista, mas, quando chega a hora da verdade, cerebraliza rapidamente todo esse universo mental sofisticado, correndo o risco de pôr em causa a credibilidade do programa materialista de pesquisa do cérebro. Quando aborda a construção do eu autobiográfico, para dar consciência à memória, Damásio destaca dois mecanismos: um dependente do mecanismo do eu nuclear e outro mecanismo de coordenação à escala cerebral, mas logo a seguir esclarece a natureza material deste último: "Os dispositivos coordenadores que postulo não são teatros cartesianos (não há neles uma peça a ser interpretada). Não são centros de consciência. (Não existe tal coisa.) Não são homúnculos interpretadores. (Não sabem nada, nem interpretam nada.) São exactamente aquilo que descrevo na minha hipótese e nada mais. São organizadores espontâneos de um processo. Os resultados da operação não se materializam nos dispositivos coordenadores, mas sim noutro local, mais especificamente nas estruturas do cérebro criadoras de imagens e edificadoras da mente, situadas tanto no córtex cerebral como no tronco encefálico». Ora, se o cérebro é o seu próprio "sujeito-objecto", o uso de uma linguagem mentalista é pura ficção, incapaz de se explicar como tal: a cerebralidade da mente consciente fecha-se ao mundo, ao mesmo tempo que precisa desse mundo e dos seus instrumentos linguísticos, conceptuais e técnicos para comunicar com os outros. O materialismo ultracerebral de Damásio é de tal modo paradoxal que se refuta a si próprio sempre que usa a linguagem da teoria adversária: o que está aqui em questão não são as hipóteses sobre as estruturas e os mecanismos da implementação do eu autobiográfico, mas sim a pertinência da teoria geral usada para os explanar. O pluralismo não é incompatível com o materialismo e, sobretudo, com o neuro-reducionismo. Damásio reconhece-o, pelo menos ao nível da descrição, quando fala da mente independente e rebelde que, sendo protagonizada pelo eu autobiográfico, criou o mundo da cultura, mas logo a seguir submete o seu desenvolvimento ao impulso homeostático. O materialismo só é uma filosofia adequada num universo plural, onde as subjectividades se confrontam e lutam umas contras as outras pela definição da realidade social; caso contrário, converte-se em totalitarismo.
A melhor maneira para compreender a teoria de Damásio é confrontá-la com outras teorias: Damásio e Popper partilham o individualismo metodológico, a abordagem da consciência a partir do eu e a negação da imortalidade da alma. O neuro-reducionismo, que, na actual conjuntura teórica, é ainda uma mera hipótese de trabalho, tem os seus próprios limites que não pode ultrapassar sob pena de perder toda a sua credibilidade: a sociedade não é um mero agregado de cérebros-mentes conscientes e a cultura, mesmo que seja produzida por eus autobiográficos, não pode ser explicada pela sua neurologia. A consciência crítica destes limites da estratégia neuro-redutora levou Popper e Eccles a propor uma teoria interaccionista que procura salvaguardar a autonomia do mundo físico, do mundo mental e do mundo cultural criado pela mente consciente do homem. No entanto, a autonomia de cada um destes mundos é pensada de maneira diferente por cada um deles: o agnosticismo de Popper não lhe permite aceitar a imortalidade da alma preconizada por Eccles. Ao acentuar de modo velado a mortalidade da mente ou do eu, Popper aproxima-se da posição mais radical de Damásio: as patologias da consciência analisadas por Damásio não só fornecem evidência empírica às suas hipóteses de localização cerebral dos fenómenos psicológicos que analisa, como também mostram que a consciência é um fenómeno demasiado precário e efémero que pode desaparecer em virtude de lesões de determinadas áreas cerebrais provocadas por doenças ou traumatismos. A cerebralidade da mente consciente aponta desde logo para a sua finitude radical, mas a sua morte, que é sempre a morte de uma pessoa, não afecta o mundo comum que partilhou em vida com outras pessoas: a sociedade é anterior aos seus membros e, enquanto se renovar, continuará a existir depois da sua morte. A teoria social do eu que Popper formula dizendo que "a criança se torna consciente de si própria sentindo o seu reflexo no espelho da consciência das outras pessoas sobre si" constitui uma peça fundamental da teoria do cérebro consciente, capaz de produzir cultura. Sem esta teoria que foi primeiramente elaborada por Hegel, Marx, Engels, Mead e Vygotsky, a neurologia da consciência alargada do homem corre o risco de não apreender a abertura do cérebro ao mundo social: os "objectos" mais importantes do mundo que a criança procura conhecer são as outras pessoas que interagem com ela. Se crescesse socialmente isolada, a criança falharia na obtenção da consciência plena do eu: a teoria da epigénese por estabilização selectiva das sinapses de Changeux explica o desenvolvimento da criança sem negar a autonomia da sociedade e da cultura. Changeux é, tal como Damásio, neuro-reducionista, mas o seu darwinismo das sinapses, além de substituir o darwinismo dos genes, abre o cérebro em crescimento ao mundo e à comunicação entre os indivíduos: a sociedade molda o encéfalo de todos os indivíduos que nascem no seu seio. A sociedade historicamente dada explica mais facilmente a psicologia dos seus membros do que esta última explica a própria estruturação da sociedade em que vivem. Como vimos, o individualismo metodológico que Damásio e Popper partilham tende a explicar a sociedade pela psicologia de cada um dos seus membros. Porém, o individualismo de Damásio leva-o a confrontar-se finalmente com o mundo da cultura que resiste à sua abordagem, enquanto que Popper, talvez por razões políticas, é obrigado a abdicar dele quando discute o eu, falando do eu como se fosse uma quase-essência, posição que tinha anteriormente reprovado nos seus adversários chamados Hegel e Marx. A discussão destas questões é demasiado complexa para ser esclarecida em poucas palavras. Reconheço o contributo de Damásio para a elucidação neurobiológica do cérebro consciente, mas não posso aprovar a teoria do cérebro que lhe é subjacente: o materialismo social e histórico não só liberta o neuro-reducionismo do individualismo metodológico, como também reforça a sua estratégia de investigação sem fechar o cérebro na sua corporalidade material. Ou numa linguagem mais provocante: protege-o do totalitarismo, abrindo o cérebro ao mundo em mudança, não tanto para não o desencantar, como parece suceder com a posição de Popper, mas sobretudo porque o cérebro enquanto órgão de relação está efectivamente aberto ao mundo. O eu autobiográfico de Damásio está de tal modo empenhado em construir-reconstruir a sua própria biografia pessoal que se esqueceu de tentar construir a crónica da sociedade que lhe fornece os quadros sociais e históricos da sua memória tornada consciente: o eu autobiográfico é um protagonista inadequado para narrar a "heterobiografia-crónica" da sociedade que moldou o seu cérebro em crescimento. (Tentarei noutros textos melhorar a minha perspectiva teórica.)
António Damásio é um homem dotado de sensibilidade social apurada: as elucidações dos conceitos que utiliza para construir o cérebro consciente colocam quase sempre desafios embaraçosos à sua estratégia de investigação neuro-redutora. A definição de eu autobiográfico aqui apresentada em epígrafe é de tal modo rica que diferencia entre dois aspectos da experiência pessoal memorizada: o eu autobiográfico memoriza não só as experiências sociais "positivas" mas também as experiências sociais "negativas". Lançado num mundo comum que partilha com outros, o eu autobiográfico é forçado a fazer um balanço dos seus projectos para o futuro e das suas experiências sociais: a frustração, o fracasso, atormentam-no, levando-o no melhor dos casos a lutar contra a estrutura da sociedade que lhe nega a oportunidade de se realizar. A sociedade portuguesa é de tal modo feudalizante e corrupta que gera nos seus indivíduos frustração, mas infelizmente esta frustração é "reprimida" pelos portugueses apáticos sem conduzir à revolta contra o sistema. A sensibilidade apurada de António Damásio introduziu - talvez inadvertidamente - um outro elemento na sua neurologia da consciência humana: a sociedade. A construção do eu autobiográfico exige, além do cérebro, do corpo e da mente, este outro elemento nuclear que é a sociedade. Porém, o individualismo metodológico adoptado por António Damásio dificulta-lhe o acesso à sociedade, como se o próprio cérebro fosse o "sujeito" do processo de fazer do homem um ser dotado de consciência alargada. Se fosse coerente com a sua estratégia materialista de investigação, António Damásio devia ter rompido com esta noção idealista de um processo com sujeito. Estou a colocar um desafio que também não sei resolver cabalmente; o que sei é que o individualismo metodológico dificulta a explicação neurobiológica do célebre problema que herdámos de Descartes, o problema mente-cérebro. Para ser bem-sucedida, a estratégia materialista de investigação do cérebro deve desalojar o inimigo idealista ou mesmo espiritualista que se infiltrou no seu próprio terreno: o individualismo metodológico que, além de atomizar a sociedade, introduz noções-obstáculos que impedem a elucidação neurobiológica do problema mente-cérebro, com recurso à teoria da sociedade e da história tal como foi elaborada por Marx. O caminho seguido por António Damásio para elucidar a passagem do proto-eu para o eu autobiográfico, passando pelo eu-nuclear, confronta-o com a sociedade e, se há um "sujeito" nesse processo de desenvolvimento filogenético e ontogenético, esse "sujeito" só pode ser o eu autobiográfico. Porém, o eu autobiográfico não é anterior à sociedade: a pesquisa neurocientífica deve abdicar da tentativa de explicar a sociedade a partir da construção do cérebro consciente. Sem sociedade não pode haver cérebro consciente, até porque a consciência individual, a consciência autobiográfica de António Damásio, é um fenómeno ou "facto sócio-ideológico" (Bakhtin). A pesquisa neurocientífica deve encarar a sociedade como estando sempre-já aí onde se revela o cérebro consciente. Mas a concepção da sociedade como estrutura sempre-já presente na construção do cérebro consciente exige uma reformulação crítica da própria teoria do eu autobiográfico de António Damásio, de modo a abri-la à História, o continente descoberto por Marx: o cérebro é, evolutiva, estrutural e funcionalmente, um órgão social. Com esta reformulação crítica da teoria da construção do cérebro consciente de António Damásio, podemos fazer justiça ao verdadeiro materialismo que sempre foi uma filosofia da libertação, livrando-o dessa velha ideologia opressora que é o individualismo.
Atribuo as dificuldades do programa de pesquisa do cérebro à ausência de uma teoria bem-elaborada do cérebro. Changeux captou o eixo fundamental dessa teoria quando escreveu que «a capacidade de construir representações lábeis "abre" a organização do encéfalo ao meio social e cultural», mas esqueceu completar o seu darwinismo das sinapses com a teoria social e histórica de Marx: a abertura do cérebro ao mundo exige a substituição como figura de referência teórica de Darwin por Marx, substituição que foi operada com sucesso pela Escola de Psicologia "soviética" encabeçada por Vygotsky e Luria. A grande referência teórica da psicologia de Vygotsky, responsável pela sua superioridade em relação à psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget, não é Darwin, como dizem os psicólogos cognitivos do mundo anglófono, mas sim Marx e Engels: «A internalização das actividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana» (Vygotsky). Quando refere que "signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contacto social com outras pessoas", Vygotsky pressupõe uma teoria social do cérebro, completamente distinta da que opera nas obras de António Damásio, onde o cérebro mergulha na sua própria interioridade corporal, mantendo com o mundo exterior relações estritamente instrumentais. Com efeito, a sua hipótese de construção de uma mente consciente articula duas partes: "o cérebro constrói a consciência através da criação de um eu no interior de uma mente desperta" (1), cuja essência - do eu, claro! - é "vista como um focar da mente sobre o organismo material que ele habita", e o eu "é construído por fases" (2): a primeira fase surge da parte do cérebro que representa o organismo - o proto-eu - e consiste num aglomerado de imagens que descrevem aspectos relativamente estáveis do corpo e criam sentimentos espontâneos do corpo vivo, os sentimentos primordiais; a segunda fase resulta do estabelecimento de uma relação entre o organismo - tal como representado pelo proto-eu - e qualquer parte do cérebro que represente um objecto-a-ser-conhecido, dando origem ao eu nuclear; e a terceira fase permite que objectos múltiplos, anteriormente registados como experiência vivida ou como futuro antecipado, interajam com o proto-eu e produzam uma série de pulsos do eu nuclear, dando como resultado o eu autobiográfico. A teoria dos três estádios do eu é sedutora, mas não é isenta de dificuldades intrínsecas, até porque Damásio parece retomar o paradigma botânico da maturação (Karl Stumpf), como se o cérebro sozinho no seu enorme vazio social fosse capaz de construir estes três espaços imagéticos. Bem sei que não é esse o modelo subjacente à teoria de Damásio, mas o seu individualismo metodológico empobrece a sua teoria do cérebro, privando-o - o cérebro, claro! - da abertura ao mundo que o define como "órgão de relação" (Sherrington). A preocupação predominantemente filogenética de Damásio, em detrimento da perspectiva ontogenética e histórica, revela desde logo as dificuldades da sua teoria da construção de uma mente consciente: a rica "semântica" usada para descrever estados ou processos da mente consciente, normais ou patológicos, não se reflecte nas relações internas que os conceitos estabelecem uns com os outros no seio da matriz teórica que os define. Segundo Damásio, "os processos do eu apenas começaram a ter lugar depois de as mentes e a vigilância terem sido estabelecidas como operações cerebrais": a consciência comporta três elementos indispensáveis, o estado de vigília, a mente e o eu, dos quais o mais importante é o eu, pelo facto de ser "o representante máximo dos mecanismos individuais de regulação vital, a sentinela e curador do valor biológico". Damásio aborda assim a neurologia da consciência a partir do eu e não a partir da mente, como sucede habitualmente. No entanto, a abordagem da consciência a partir do eu não é inteiramente original: Karl Popper e John Eccles já tinham realizado uma abordagem similar, mas com uma diferença fundamental que reflecte problemáticas teóricas divergentes. Ao contrário da perspectiva defendida por Damásio, para quem os "eus" são possuídos pelo cérebro consciente, para Popper, tal como para Platão, o cérebro é possuído pelo eu: o eu activo é o programador activo ou o piloto do cérebro. O materialismo de Damásio cerebraliza precipitadamente os eus para demolir de vez o dualismo, mas paga um preço demasiado elevado: priva-se do contributo da teoria social do eu, como se o homem nascesse como eu quando, na verdade, ele aprende a ser um eu no decorrer das interacções sociais que estabelece com os outros significativos e, mais tarde, com o outro generalizado, a própria sociedade (Mead). Uma criança privada de experiência no mundo social não aprende nada! Damásio estabelece muitas diferenciações conceptuais subtis, usando uma linguagem francamente mentalista, mas, quando chega a hora da verdade, cerebraliza rapidamente todo esse universo mental sofisticado, correndo o risco de pôr em causa a credibilidade do programa materialista de pesquisa do cérebro. Quando aborda a construção do eu autobiográfico, para dar consciência à memória, Damásio destaca dois mecanismos: um dependente do mecanismo do eu nuclear e outro mecanismo de coordenação à escala cerebral, mas logo a seguir esclarece a natureza material deste último: "Os dispositivos coordenadores que postulo não são teatros cartesianos (não há neles uma peça a ser interpretada). Não são centros de consciência. (Não existe tal coisa.) Não são homúnculos interpretadores. (Não sabem nada, nem interpretam nada.) São exactamente aquilo que descrevo na minha hipótese e nada mais. São organizadores espontâneos de um processo. Os resultados da operação não se materializam nos dispositivos coordenadores, mas sim noutro local, mais especificamente nas estruturas do cérebro criadoras de imagens e edificadoras da mente, situadas tanto no córtex cerebral como no tronco encefálico». Ora, se o cérebro é o seu próprio "sujeito-objecto", o uso de uma linguagem mentalista é pura ficção, incapaz de se explicar como tal: a cerebralidade da mente consciente fecha-se ao mundo, ao mesmo tempo que precisa desse mundo e dos seus instrumentos linguísticos, conceptuais e técnicos para comunicar com os outros. O materialismo ultracerebral de Damásio é de tal modo paradoxal que se refuta a si próprio sempre que usa a linguagem da teoria adversária: o que está aqui em questão não são as hipóteses sobre as estruturas e os mecanismos da implementação do eu autobiográfico, mas sim a pertinência da teoria geral usada para os explanar. O pluralismo não é incompatível com o materialismo e, sobretudo, com o neuro-reducionismo. Damásio reconhece-o, pelo menos ao nível da descrição, quando fala da mente independente e rebelde que, sendo protagonizada pelo eu autobiográfico, criou o mundo da cultura, mas logo a seguir submete o seu desenvolvimento ao impulso homeostático. O materialismo só é uma filosofia adequada num universo plural, onde as subjectividades se confrontam e lutam umas contras as outras pela definição da realidade social; caso contrário, converte-se em totalitarismo.
A melhor maneira para compreender a teoria de Damásio é confrontá-la com outras teorias: Damásio e Popper partilham o individualismo metodológico, a abordagem da consciência a partir do eu e a negação da imortalidade da alma. O neuro-reducionismo, que, na actual conjuntura teórica, é ainda uma mera hipótese de trabalho, tem os seus próprios limites que não pode ultrapassar sob pena de perder toda a sua credibilidade: a sociedade não é um mero agregado de cérebros-mentes conscientes e a cultura, mesmo que seja produzida por eus autobiográficos, não pode ser explicada pela sua neurologia. A consciência crítica destes limites da estratégia neuro-redutora levou Popper e Eccles a propor uma teoria interaccionista que procura salvaguardar a autonomia do mundo físico, do mundo mental e do mundo cultural criado pela mente consciente do homem. No entanto, a autonomia de cada um destes mundos é pensada de maneira diferente por cada um deles: o agnosticismo de Popper não lhe permite aceitar a imortalidade da alma preconizada por Eccles. Ao acentuar de modo velado a mortalidade da mente ou do eu, Popper aproxima-se da posição mais radical de Damásio: as patologias da consciência analisadas por Damásio não só fornecem evidência empírica às suas hipóteses de localização cerebral dos fenómenos psicológicos que analisa, como também mostram que a consciência é um fenómeno demasiado precário e efémero que pode desaparecer em virtude de lesões de determinadas áreas cerebrais provocadas por doenças ou traumatismos. A cerebralidade da mente consciente aponta desde logo para a sua finitude radical, mas a sua morte, que é sempre a morte de uma pessoa, não afecta o mundo comum que partilhou em vida com outras pessoas: a sociedade é anterior aos seus membros e, enquanto se renovar, continuará a existir depois da sua morte. A teoria social do eu que Popper formula dizendo que "a criança se torna consciente de si própria sentindo o seu reflexo no espelho da consciência das outras pessoas sobre si" constitui uma peça fundamental da teoria do cérebro consciente, capaz de produzir cultura. Sem esta teoria que foi primeiramente elaborada por Hegel, Marx, Engels, Mead e Vygotsky, a neurologia da consciência alargada do homem corre o risco de não apreender a abertura do cérebro ao mundo social: os "objectos" mais importantes do mundo que a criança procura conhecer são as outras pessoas que interagem com ela. Se crescesse socialmente isolada, a criança falharia na obtenção da consciência plena do eu: a teoria da epigénese por estabilização selectiva das sinapses de Changeux explica o desenvolvimento da criança sem negar a autonomia da sociedade e da cultura. Changeux é, tal como Damásio, neuro-reducionista, mas o seu darwinismo das sinapses, além de substituir o darwinismo dos genes, abre o cérebro em crescimento ao mundo e à comunicação entre os indivíduos: a sociedade molda o encéfalo de todos os indivíduos que nascem no seu seio. A sociedade historicamente dada explica mais facilmente a psicologia dos seus membros do que esta última explica a própria estruturação da sociedade em que vivem. Como vimos, o individualismo metodológico que Damásio e Popper partilham tende a explicar a sociedade pela psicologia de cada um dos seus membros. Porém, o individualismo de Damásio leva-o a confrontar-se finalmente com o mundo da cultura que resiste à sua abordagem, enquanto que Popper, talvez por razões políticas, é obrigado a abdicar dele quando discute o eu, falando do eu como se fosse uma quase-essência, posição que tinha anteriormente reprovado nos seus adversários chamados Hegel e Marx. A discussão destas questões é demasiado complexa para ser esclarecida em poucas palavras. Reconheço o contributo de Damásio para a elucidação neurobiológica do cérebro consciente, mas não posso aprovar a teoria do cérebro que lhe é subjacente: o materialismo social e histórico não só liberta o neuro-reducionismo do individualismo metodológico, como também reforça a sua estratégia de investigação sem fechar o cérebro na sua corporalidade material. Ou numa linguagem mais provocante: protege-o do totalitarismo, abrindo o cérebro ao mundo em mudança, não tanto para não o desencantar, como parece suceder com a posição de Popper, mas sobretudo porque o cérebro enquanto órgão de relação está efectivamente aberto ao mundo. O eu autobiográfico de Damásio está de tal modo empenhado em construir-reconstruir a sua própria biografia pessoal que se esqueceu de tentar construir a crónica da sociedade que lhe fornece os quadros sociais e históricos da sua memória tornada consciente: o eu autobiográfico é um protagonista inadequado para narrar a "heterobiografia-crónica" da sociedade que moldou o seu cérebro em crescimento. (Tentarei noutros textos melhorar a minha perspectiva teórica.)
J Francisco Saraiva de Sousa